Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
613/03.9TAACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA
REQUISITOS
VALIDADE
Data do Acordão: 09/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA - 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 94º E 196º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E ARTIGO 145º, Nº 2, ALÍNEA A) E 146º DA LEI Nº 144/99, DE 31 DE AGOSTO
Sumário: A medida de coacção de termo de identidade e residência imposta ao arguido por termo nos Autos, lavrado em Auto, em diligência presidida pela Autoridade Judiciária Alemã, no caso sub judice pelo Juiz, que explicou ao arguido e lhe deu a conhecer os seus deveres de acordo com o nº 3, do artigo 196º, do Código de Processo Penal, factos que o mesmo compreendeu e do qual recebeu um duplicado traduzido em língua germânica, Auto esse que foi redigido, assinado quer pela Autoridade Judiciária competente, quer pelo arguido e por uma terceira outra pessoa, é formal e substancialmente válida, ainda que o formulário “stricto sensu” do termo de identidade e residência, enviado para o efeito, não se mostre assinado pelo arguido.
Decisão Texto Integral: Acordam, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. – Relatório.
Em contra mão com o decidido no despacho exarado a fls. 180 do processo supra referenciado que considerou não haver sido validamente prestado o termo de identidade e residência colhido ao cidadão declarado contumaz A... , pelas instâncias judiciárias da República Federal Alemã, na circunscrição judicial de Neumünster, e, consequentemente, não declarada a situação de contumácia que havia sido decretada no processo relativamente ao mencionado cidadão, recorre o Ministério Público, tendo, a final da motivação, apresentado a seguinte sinopse conclusiva:
«1ª – Vem o Ministério Público interpor recurso do douto despacho proferido nos Autos a fls. 180 que considerou que quer declarações do arguido, quer o termo de identidade e residência a que o mesmo foi sujeito, em diligência presidida pela Autoridade Judiciária Alemã, não são válidos, porque o formulário do termo de identidade e residência enviado para o efeito não se mostrar assinado pelo arguido e, por isso, indeferiu o requerido pelo Ministério Público a fls. 179, onde se promovia a declaração de cessação da contumácia, por caducidade e se designasse dia para L realização da Audiência de Discussão e Julgamento;
2ª – O Direito Processual Penal Português não prevê que a sujeição do arguido à medida de coacção do termo de identidade e residência obedeça ao preenchimento e assinatura, por parte do arguido de um FORMULÁRIO “stricto sensu”, no caso sub judice, do formulário de fls. 156, não lendo essa assinatura, requisito de validade “ad substanciam” e “ad probationem “;
3ª – Antes impondo que tal termo seja lavrado no processo e dele conste os demais requisitos enunciados no artigo 196º, do Código de Processo Penal e lhe sejam dados a conhecer as menções constantes do nº 3, do mesmo Compêndio Processual Penal;
4ª – Pelo que legalmente nada obsta a que a medida de coacção de termo de identidade e residência não possa ser aplicada sem a utilização de uma “fórmula pré-impressa”, desde que lavrada em Auto, assinado pela Autoridade Judiciária que preside à diligência e nele faça constar a “fé com que se desenrolou o referido acto processual e dele faça constar o que passou e as declarações prestadas pelo arguido”;
5ª – Quando a medida de coacção de termo de identidade e residência é imposta ao arguido por termo nos Autos, lavrado em Auto, em diligência presidida pela Autoridade Judiciária Alemã, no caso sub judice pelo Mo. Juiz, que explicou ao arguido e lhe deu a conhecer os seus deveres de acordo com o nº 3, do artigo 196º, do Código de Processo Penal, factos que o mesmo compreendeu e do qual recebeu um duplicado traduzido em língua germânica, Auto esse que foi redigido, assinado quer pela Autoridade Judiciária competente, quer pelo arguido e por uma terceira outra pessoa, é formal e substancialmente válida a sujeição do arguido àquela medida de coacção, sendo igualmente válidas as declarações pelo mesmo prestadas àquela Autoridade Judiciária;
6ª – Tanto mais que, na sujeição do arguido a tal medida de coacção pela referida autoridade Judiciária Alemã, foram salvaguardados os direitos, liberdades e garantias do arguido, em termos mais exigentes do que os previstos na Lei Processual Penal Portuguesa onde tal medida de coacção, pode desde logo, ser aplicada ao arguido quer pelo Ministério Público, quer dos Órgãos de Polícia Criminal;
7ª – Tendo-se o arguido apresentado à Autoridade Judiciária Alemã e tendo sido por esta submetido a termo de identidade e residência, nos supra expostos, deve declarar-se extinta, por caducidade, a situação de contumácia em que o arguido se encontra e ser designado dia e hora para a realização da Audiência de Discussão e Julgamento;
8ª - Ao ter decidido de forma diversa da acima exarada, violou o douto despacho a quo o disposto nos artigos 1º, nº 1, al. b), 94º, nº 3, 95º, nº 1, 99º, nº 1, 100º, nº 1, 194º, nº 1 “a contrario”, 196º, nºs. 1 e 3, 334º, nº 2, 336º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Penal».
Nesta instância, o Exmo. Senhor Procurador-geral Adjunto apôs o seu visto, tendo adido que no processo referenciado no ponto II. da motivação foi prolatada decisão concedendo parcial procedência á pretensão manifestada no recurso.
A questão que vem suscitada no presente recurso atina com a validade formal e substancial do acto judicial praticado pelas instâncias judiciária estrangeira em cumprimento de um pedido formulado pelas autoridades judiciárias nacionais, ao amparo das convenções internacionais de entreajuda mútua judiciária.

II. – Elementos Pertinentes para a decisão.
- Promoção do Ministério Público, datada de 31.10.2006 para que fosse declarada cessada, por caducidade, a situação de contumácia na qual o arguido se encontrava e fosse designada data para audiência de julgamento (na ausência do arguido);
- Despacho recorrido, que se transcreve: “Pese embora o teor das declarações do arguido constantes da tradução de fls. 171, a verdade é que o termo de identidade e residência (formulário enviado) propriamente dito, não se mostra assinado pelo arguido (cfr. fls. 156). Assim sendo, não se pode considerar que o arguido prestou TIR, mantendo-se na situação de contumácia (art. 336.º, nº 1, do Código de Processo Penal “a contrario “)”.
- Tradução da carta rogatória enviada ao tribunal da comarca de Neumünster, donde consta ter ao arguido comparecido perante o Juiz e ter declarado:
«Estou de acordo com a realização do processo na minha ausência.
No que respeita ao termo de identidade e residência, o Arguido declara o seguinte: Chamo-me A..., sou alemão, nasci a 13.05.1966, estado civil solteiro, carta de condução nº 012001LJW12, endereço: Lessingstrasse 11, 24536 Neumünster.
O Arguido foi informado sobre os seus deveres de acordo com o artigo 196 parágrafo 3 do Código do Processo Penal e declara:
Compreendi esta explicação e recebi um duplicado do termo de identidade e residência de acordo com o artigo 196 parágrafo do Código do Processo Penal.
Lido, aprovado e assinado.»

II. – De Direito.
Considerou-se no despacho sob impugnação que o termo de identidade e residência requestado pelas autoridades judiciárias portuguesas às autoridades judiciárias alemãs não cumpre os requisitos formais impostos pelo artigo 196º do Código de Processo Penal, o que inviabilizaria a validação do acto praticado pela autoridade judiciária requerida, com a consequente manutenção do estatuto de contumaz declarado em relação ao arguido.
Nos termos do artigo 145º, nº 2, alínea a) da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto o auxílio judiciário em matéria penal compreende, nomeadamente, a notificação e audição de suspeitos e entrega de documentos.
Para a prestação de auxílio por parte das autoridades judiciárias portuguesas o direito aplicável é a lei portuguesa – cfr. artigo 146º da lei citada.
Em matéria de cooperação judiciária em matéria penal vigora o princípio da reciprocidade segundo o qual o Estado requerido apenas está obrigado a cumprir a requesta do Estado requerente se este conceder idêntica e correspectiva contrapartida ao pedido formulado por cada um dos Estados involucrados. Equivale a dizer que se o Estado português solicitar o cumprimento de um acto judiciário a um Estado estrangeiro este está obrigado a cumpri-lo, nos termos da Lei de cooperação Judiciária, se o Estado português aceitar o cumprimento desse mesmo acto na sua ordem jurídica interna. E aceitando-o, prescreve a convenção estabelecida entre as partes contratantes, que o acto seja cumprido segundo a lei do Estado requerido. O estabelecido no preceito supra citado – cfr. artigo 146.º da Lei 144/99 – tem simétrico e paralelo acolhimento no ordenamento interno de cada um dos Estados subscritores da convenção adrede.
Sendo os actos processuais, segundo a lei portuguesa, assinados pelos sujeitos processuais que neles tenham intervido, o certo é que segundo a lei processual-penal alemã – cfr. § 35 do Strafprozessbuch (StPO) – “as decisões que se tomem na presença da pessoa afectada ser-lhe-ão dadas a conhecer mediante uma comunicação. A solicitação desta, ser-lhe-á entregue um duplicado” – (tradução nossa do “Código Penal Alemán (StGB) e Código Procesal Penal Alemán (StPO), Edição Marcial Pons, 2000, Coordenação de Emílio EiraNova Encinas, com Introdução do Professor Claus Roxin), sendo que as actas em que tenham intervindo um magistrado devem ser assinadas pelo presidente do tribunal e pelo secretário – cfr. §271 do StPO – provando-se através delas todas as formalidades e actos jurisdicionais que se tenham cumprido perante a entidade que presidiu ao acto, não podendo o seu conteúdo ser infirmado sem que seja suscitada a falsidade da acta – cfr. §274 do mesmo livro de leis.
O termo de identidade e residência como acto que deve constar do processo e fazer fé, no plano endoprocessual, das injunções comunicadas ao arguido, por virtude do estatuto que a sua constituição lhe confere, assume a forma de acto processual reduzido a escrito, assumindo normalmente a feição de um acto escrito em fórmula pré-impressa – cfr. nº 3 do artigo 94º do Código de Processo Penal.
Porém, de acordo com a legislação alemã, como se extrai dos preceitos supra citados, o acto judiciário porque requestado por uma autoridade judiciária estrangeira, foi efectivado perante o presidente do órgão jurisdicional a quem o acto havia sido requestado. Na reciprocidade paralela que é assumida no direito convencionado, havemos de convir que o acto praticado perante o tribunal rogado se rege segundo a lei processual vigente para o Estado requerido. A notificação do acto requestado, como se atesta no documento enviado pelo tribunal rogado, foi praticada perante o magistrado titular do órgão jurisdicional requerido, assumindo este a validade substancial que os actos praticados perante esta entidade assumem no direito interno do Estado requerido. E assumindo a validade substancial que o § 274 do StPO confere aos actos praticados e firmados pelo presidente do tribunal perante o qual são efectivados, não pode o Estado requerente (rogante) derruir ou socavar a validade jurídico-material que a lei interna do Estado rogado lhe atribui. Ao Estado rogado cabe aceitar a validade substancial que o ordenamento interno confere ao acto rogado e à luz do formalismo externo que o ordenamento prescreve para o tipo de acto rogado. A assumpção da validade do acto terá que ser aferida pelo ordenamento jurídico do Estado rogado e não pelo formalismo e ritual do Estado requerente, excepto, é claro, se o formalismo se revelar de todo incompatível e inviável na ordem jurídica deste último.
Não parece que seja o caso para o acto objecto da rogatória.
Na verdade, não é absolutamente incompatível ou se configure como acto extravagante e heterodoxo, que o termo de identidade possa ser somente assinada pela autoridade judiciária que preside ao acto. Na verdade, não se configura incompatível com o ordenamento jurídico-processual penal português, que um acto judicial praticado perante um magistrado judicial e estando assinado somente por ele e pelo funcionário adjuvante do acto em questão – cfr. artigo 95º do Código de Processo Penal – valha como documento convalidante das situações e actos jurídicos que nele se mostrem relatados. O valor probatório de uma acta assinada pela entidade que presidiu ao acto jurisdicional que nela se atesta adquire um valor probatório interno e externo que só poderá ser estremecido e verrumado pelos incidentes processuais adequados a impugnar a validade dos documentos autênticos, ou seja pelo incidente de falsidade.
No ordenamento português, tal como no ordenamento estrangeiro onde foi praticado o acto rogado, a validade de um acto praticado perante um magistrado judicial apenas pode vir a ser afectada e abalada se lhe for oposto incidente que concite a falsidade substancial das situações factuais que constam da acta como tendo, efectivamente, ocorrido e não hajam decorrido como a acta atesta. A não ser assim, os documentos assinados pelo magistrado que presidiu ao acto, fazem prova plena de que, efectivamente, o que aí se encontra descrito e relatado se passou como nele se encontra narrado.
Não é, pois, incompatível, antes se conforma com a prática judiciária vigente para o ordenamento jusprocessual português, que um acto judicial que seja praticado por um juiz ateste a sua validade interna e externa se dele constar a assinatura do magistrado que presidiu ao acto descrito na acta.
Acresce, por outro lado, que não se prefigura curial, nem se perfile institucionalmente adequado, que seja o magistrado requerente a colocar em crise a validade do acto praticado por magistrado a quem o mesmo foi solicitado. A menos que o acto se mostre absolutamente desconforme à realidade do ordenamento jusprocessual vigente na ordem jurídica interna, o que não é, manifestamente, o caso. É que atestando-se na acta que descreve o acto jurisdicional rogado, que o arguido tomou devida nota de tudo o que lhe foi explicitado, de acordo com os preceitos da lei portuguesa, e ficou ciente das consequências que para a sua posição processual advinha o facto de aceitar que o julgamento se realizasse na sua ausência, não compete ao magistrado rogante infirmar a validade intrínseca do acto afrontando-o com uma formalidade não essencial para a validade probatória do acto praticado.
Na conformidade do exposto, reputa-se o acto praticado pela autoridade judiciária rogada válido e com virtualidade de convalidar na ordem jurídico-processual interna o acto solicitado no âmbito da convenção de cooperação internacional em matéria penal, devendo ser aceite pela autoridade judiciária rogante com todas as consequências jurídicas a que tendia, quais fossem pôr fim à situação de contumácia em que o arguido foi involucrado e permitir o julgamento na sua ausência.

III. – Decisão.
Na defluência do argumentado, decidem os juízes que constituem este colectivo, na secção criminal do Tribunal da relação de Coimbra, em:
- Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar o despacho impugnado que deverá ser substituído por outro que declare cessada a situação de contumácia em que o arguido se encontra e, concomitantemente, designe dia para julgamento do arguido, na sua ausência.
- Sem tributação.