Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
249/08.8TTAGD.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
RECUSA A PRESTAÇÃO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA
SEGURADORA
Data do Acordão: 09/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTºS 10º, 14º E 37º DA LEI Nº 100/97, DE 13/09 (LEI DOS ACIDENTES DE TRABALHO - LAT); 26º E 29º DO DL Nº 143/99, DE 30/04.
Sumário: I – Tendo o sinistrado recusado a assistência médica da seguradora e optado pelo recurso a actos clínicos efectuados por entidades não indicadas pela mesma seguradora, e mostrando-se esses actos adequados à recuperação clínica do sinistrado, não estando demonstrado que se em vez de ter sido assistido pelos médicos e serviços clínicos que o sinistrado escolheu tivessem sido os serviços clínicos da seguradora a assisti-lo aquele não teria padecido das incapacidades temporárias que sofreu, ou ficado com a incapacidade permanente com que ficou, tem o mesmo direito a ser reembolsado das despesas com internamento, operações, consultas, tratamentos e deslocações, mas tendo como limite os preços que a seguradora suportaria por tais serviços, se fossem por si assegurados e /ou contratados.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
                                                          

                        A… veio instaurar, no Juízo do Trabalho de Águeda - Comarca do Baixo Vouga,  a presente acção, emergente de acidente de trabalho, contra B…, pedindo:

                        A) Que seja declarado que as lesões resultantes do acidente que sofreu representam um risco específico clinicamente considerado de alta cirurgia;

                        B) A condenação da R. a tal reconhecer e, em consequência, a pagar-lhe:

                        a) € 11.322,08, referentes a internamento, operações e tratamentos;

                        b) € 6.548,00, de despesas com honorários clínicos;

                        c) € 540,00, de despesas com consultas médicas;

                        d) € 1.861,50, de despesas com sessões de fisioterapia;

                         e) € 528,23, de despesas com transportes de ambulância;

                        f) € 27,30, de despesas com taxas moderadoras (meios complementares de diagnóstico);

                        g) € 1.257,55, de deslocações em transporte próprio;

                         h) € 60,00, de despesas com deslocações ao Tribunal;

                        l) € 4.692,20, a título de indemnização por incapacidades temporárias;

                        m) O capital de remição da pensão anual e vitalícia de € 1.753,42, no valor de € 23.131,12, devido desde o dia seguinte ao da alta;

                        n) € 12.000,00, por danos não patrimoniais sofridos;

                        o) Juros de mora sobre o capital peticionado, a partir de 01/9/2009, até integral pagamento.

                        Alegou para tanto, em síntese e tal como consta da sentença recorrida, que no dia 23 de Junho de 2008 sofreu um acidente de trabalho (queda de elevador quando transportava garrafas), que lhe provocou danos corporais, concretamente fractura bilateral multi esquirolada com afundamento e envolvimento articular dos calcâneos, envolvendo achatamento dos muros internos destes e, ainda, fractura do peróneo esquerdo.

                        Na sequência do acidente, foi transportado e manteve-se internado no Hospital Infante D. Pedro em Aveiro entre o dia 23 e o dia seguinte.

                        No dia seguinte ao do seu internamento naquele hospital, foi transferido para a Clínica Montes Claros (Instituto de Cirurgia Reconstrutiva), em Coimbra, onde foi submetido a três intervenções cirúrgicas.

                        Manteve uma ITA desde 23/06/2008 a 30/06/2009 e uma ITP de 50%, desde 01/07/2009 a 01/09/2009, tendo a alta sido reportada a 01/09/2009.

                        Ficando a partir daí com uma IPP de 42%.

                        Para efeitos de reabilitação, submeteu-se a sessões de fisioterapia no centro médico do concelho da sua residência, entre Setembro de 2008 e Agosto de 2009.

                        Todas as deslocações que efectuou para efeitos de tratamentos, exames ou consultas médicas, foram feitas em ambulância ou viatura própria (conduzida por terceiros), por não existir percurso de transportes públicos entre os locais utilizados, e por força das suas limitações motoras.

                        A recusa da Ré em suportar os encargos com o internamento, operações e tratamento, causou-lhe angústia, desânimo e preocupações.

                        A responsabilidade emergente do acidente encontrava-se transferida para a Ré, por contrato de seguro de acidentes de trabalho, sendo como tal esta a responsável pelo pagamento das quantias peticionadas.

                        O Instituto da Segurança Social, I.P. veio deduzir contra a Ré pedido de reembolso dos € 210,98 que pagou ao Autor a título de subsídio de doença, no período de 24 de Junho de 2008 a 15 de Julho do mesmo ano, em que este esteve com baixa médica, em consequência das lesões resultantes do acidente de trabalho em discussão, mais juros de mora legais, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

                        A Ré contestou, aceitando a existência do acidente de trabalho e das lesões daí resultantes, defendendo no entanto que o sinistrado recusou a assistência médica designada pela Seguradora, sem que estivesse em causa uma situação clínica de urgência, susceptível de oferecer perigo de vida, associada a procedimentos de alto risco ou com compromisso de órgãos vitais.

                        Pelo que, face à recusa do sinistrado em ser assistido pelos serviços clínicos da Ré, o acidente está excluído do âmbito de aplicação do contrato de seguro, não sendo a contestante responsável pela sua reparação.

                        Considerando que a acção deve ser julgada em conformidade com a prova que vier a produzir-se e requerendo a realização de exame por junta médica.

                        Foi proferido despacho saneador, onde se absolveu a Ré da instância no que  concerne o pedido de condenação no pagamento de € 12.000,00, por danos não patrimoniais alegadamente sofridos.

                        Teve lugar exame do sinistrado através de junta médica – cfr. fls. 218 e seg..

                        Foi proferida sentença, que veio a ser objecto de recurso por parte do Autor, para este Tribunal da Relação, que, por acórdão constante de fls. 332 e segs., decidiu anular a decisão proferida, no que respeita à matéria de facto constante dos n.ºs 7º, 27º e 29º da b.i e determinar, quanto a ela, a repetição do julgamento, nos termos do disposto no art. 712º n.º 4 do Cód. de Processo Civil.

                        Teve lugar novo julgamento (circunscrito à matéria de facto acima referenciada), no âmbito do qual foram ouvidos em esclarecimentos os peritos que intervieram na Junta Médica.

                        Foi, então, proferida sentença, decidindo o seguinte:

                        “Em face de todo o exposto, julgando a acção parcialmente procedente, decide-se:

                        I. Fixar em 42% o grau de incapacidade permanente parcial para o trabalho de que o A. ficou afectado, em consequência do acidente em discussão, desde 02/09/2009 (dia seguinte ao da consolidação médico legal das lesões).

                        II. Condenar a R. a pagar ao A.:

                        - O capital de remição da pensão anual e vitalícia de € 1.753,42 (mil setecentos e cinquenta e três euros e quarenta e dois cêntimos), com efeitos desde 02/09/2009;

                        - € 4.481,22 (quatro mil, quatrocentos e oitenta e um euros e vinte e dois cêntimos) de indemnização por incapacidades temporárias (absolutas e parciais) desde 23/06/2008 até 01/09/2009 – valor esse já deduzido dos € 210,98 (duzentos e dez euros e noventa e oito cêntimos) que a R. terá que reembolsar ao Instituto da Segurança Social, I.P.;

                        - € 60,00 (sessenta euros), a título de indemnização por despesas de transporte com deslocações ao tribunal;

                        - Juros de mora à taxa legal (actualmente de 4%), desde o respectivo vencimento até integral pagamento.

                        III. No mais, absolver a R. do pedido formulado pelo A..

                        IV. Condenar a R. a pagar ao demandante Instituto da Segurança Social, I.P., a quantia de € 210,98 (duzentos e dez euros e noventa e oito cêntimos), que este pagou ao A. a título de subsídio de doença, no período de 24/06/2008 a 15/07/2008, mais juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

                                                           *

                        Custas por A. e R., na proporção dos respectivos decaimentos (arts.º 446º do Cód. de Processo Civil).

                         Fixa-se à acção o valor de € 62.967,98 (art. 120º do Cód. de Processo de Trabalho).
                                                                       x
                        Parcialmente inconformado, veio o Autor interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões (aperfeiçoadas na sequência do despacho da relatora de fls. 427):
                        […]

                        Não foram apresentadas contra-alegações.

                        Foram colhidos os vistos legais, tendo o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitido douto parecer, onde propugna pela improcedência da impugnação da matéria de facto e sustenta a condenação da seguradora no pagamento dos custos de reparação médico - assistencial do acidente de trabalho que sempre teria de custear se  o Autor tivesse sido operado por médico escolhido pela seguradora, em hospital por ela escolhido.

                                                                       x
                        Definindo-se o âmbito do recurso pelas suas conclusões,  temos, como questões em discussão:
                   - a impugnação da matéria de facto;
                        - se o Autor /sinistrado tem direito a ser reembolsado pela Ré – responsável das despesas por aquele suportadas com internamento, operações, consultas, tratamentos, taxas moderadoras e deslocações.
                                                                  x
                        A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

                        […]

                                                                       x

                        - a impugnação da matéria de facto:

                        Pretende o Autor – apelante que se alterem as respostas aos pontos 7º, 27º e 29º   da base instrutória, por forma a dar-se como provado “que as lesões resultantes do acidente como representam um risco específico clinicamente considerado de alta cirurgia ou alto risco, independentemente do tratamento cirúrgico comportar ou não perigo de vida para o recorrente”.
                        Perguntava-se em tais pontos:
                        7 - As lesões resultantes do acidente representam um risco específico clinicamente considerado de alta cirurgia ?

                        27º Cujo tratamento cirúrgico (da fractura sem compromisso de órgãos vitais, dada como provada na resposta ao ponto 26) não está associado a procedimentos de alto risco ?
                        29 - Sendo uma cirurgia bastante comum, sem qualquer risco associado ?

                        Tendo o tribunal respondido a esses pontos da seguinte forma:

                         - 7: Não provado;

                         - 27: Provado.

                         - 29: Provado apenas que tal cirurgia comporta os riscos normais de qualquer cirurgia.

                        Para tal desiderato, considera o apelante decisivas as declarações da testemunha Prof. Dr. C…, médico, que operou o sinistrado na sequência das lesões sofridas no acidente, em detrimento do parecer da junta medica efectuada nos autos e dos esclarecimentos prestados, em audiência, pelos Srs. peritos que a integraram.

                        No acórdão desta Relação de fls. 332 e ss considerou-se que:

                        “Como assinala o Exmº PGA os Srºs Peritos não fundamentaram a resposta ao quesito 7° da base instrutória, nem tão pouco fundamentaram a resposta ao quesito 27° da mesma base (limitando-se a responder "não considerada" à pergunta se o tratamento cirúrgico não está associado a procedimentos de alto risco), quesito este e respectiva resposta que o recorrente não questiona mas cuja matéria se encontra directamente ligada à questão controvertida (saber se a cirurgia é de alto risco).

                        Como se sabe as conclusões dos peritos, ainda que emitidas por unanimidade, não vinculam o julgador. Este pode livremente apreciar a prova pericial, exercendo sobre ela a sua actividade crítica, sem outros limites que não sejam os que lhe são impostos pela sua convicção e pelo seu próprio juízo.

                        Contudo, salvo melhor opinião, esta actividade crítica apenas poderá ser exercida se forem conhecidos os fundamentos que estiveram na base das respostas dos Srºs peritos aos quesitos, o que se desconhece no caso concreto.

                        Considerando, por outro lado, o sentido para que aponta o depoimento do Profº C... (cirurgia de alto risco) entendemos que os Srºs peritos deviam ter fundamentado as respostas dadas aos quesitos e ser confrontados com o depoimento prestado pelo Profº Drº C….

                        Assim, com vista ao apuramento da verdade e à boa decisão da causa deverão na 1ª instância os Srºs peritos ser convocados para comparecerem na audiência de julgamento - artigo 588° do Cód. Proc. Civil- a fim de aí procederem à fundamentação das respostas que deram aos quesitos acima referidos e prestarem outros esclarecimentos que se reputem necessários, devendo ser confrontados com o depoimento do Profº Drº C..., o qual será convocado também para comparecer em julgamento caso a sua presença também se repute necessária”.

                        Tendo-se decidido “anular a decisão de facto no que respeita exclusivamente à matéria dos quesitos 7°, 27° e 29°, devendo a 1a instância proceder do modo atrás referido após o que deverá responder aos referidos quesitos decidindo sobre o mérito em conformidade”.

                        Em obediência a essa decisão, foi ordenada e efectuada a repetição do julgamento, com a audição dos referidos Srs. Peritos.

                        E dos depoimentos dos mesmos resulta o seguinte:

                        O Prof. Dr. C..., na primeira sessão de julgamento, referiu que as lesões apresentadas pelo Autor são  “situações de risco, que levam à trombose e falência vascular para o pé, tanto a perna como o pé há derrames brutais, há ali uma artéria que fica, sei lá, a libertar, e depois a circulação de drenagem também, é um monstro autêntico, os pés ficam uns monstros autênticos e não é possível nem é indicado fazer cirurgia de imediato....mas há medidas de monitorização, tipo arterio, portanto, fazer o controle com dopler vascular...quando o doente chegou foi feito um dopler vascular e punções para diminuir aquele...do sítio onde é o hematoma, para diminuir a tensão, aquilo a que a gente chama um síndroma compartimental. (…)Isto é uma medida preventiva para que o desfecho não seja fatal, para o membro, para os membros. Aqui está num risco de trombose, não é, e o pé perder a vida;

                        E, mais adiante:

                        Eu vi aqui uma coisa que às vezes é desagradável ver isto aqui, porque às vezes tem a ver com companhias de seguros e assim....Alto risco, alta cirurgia. O alto é tudo relativo, se é alto, se é baixo. Quer dizer: a cirurgia é diferenciada. É cirurgia de ordem vascular, nervosa e a parte óssea(…)

                        “É uma questão de sobrevivência do pé em si, de complicações por causa da parte vascular e nervosa, porque se está numa situação limite...de sobrevivência das estruturas vasculares, cutâneas e do próprio pé(…)

                   “É uma situação de risco, de alto risco. Se querem por o alto, o médio, o longo...mas é uma situação de alto risco pela especificidade da lesão em si.

É uma muito complexa, e uma situação complexa....É uma coisa absolutamente monstruosa, os pés deste senhor na altura em que chegou

                        Por usa vez, e na sessão de repetição de julgamento, os Srs. peritos que integraram a junta médica referiram de essencial e decisivo:

                        - as lesões que apresentava o Autor não exigem uma alta cirurgia, entendida esta como aquela que exige meios e instrumentos especiais, que não estejam ao dispor de qualquer hospital ou centro clínico, nem profissionais de elevada e invulgar experiência.;

                        - essa cirurgia pode ser feita por qualquer ortopedista, e não há qualquer risco se não se recorrer de imediato a intervenção;

                        - mais de 80% dos casos (das fracturas apresentadas pelo sinistrado) não são tratáveis com cirurgia, mas sim com aplicação de gesso.

                        - a cirurgia, a existir, deve, na maioria dos casos, ser diferida e não de imediato, sendo que esta envolve maiores riscos, nomeadamente de necrose, que a cirurgia pode potenciar.

                        Em suma, tudo de acordo com o referido na fundamentação da convicção do Sr. Juiz:

                        “A convicção do tribunal baseou-se no parecer nesse sentido expresso, por unanimidade, pelos Exmºs Peritos que integraram a Junta Médica realizada, (dois dos quais especialistas em ortopedia), vertido no auto de exame de fls. 218 e seg., complementado pelos esclarecimentos que prestaram em julgamento, onde reafirmaram o entendimento de que as lesões que para o sinistrado resultaram do acidente (fractura dos dois calcâneos e do peróneo esquerdo) não representam qualquer risco especifico, que possa clinicamente ser enquadrado como de alta cirurgia, não implicando designadamente risco para a vida nem para qualquer órgão vital, mas apenas em termos de funcionalidade do pé, já que se tratam de fracturas que na maior parte das vezes deixam sequelas. E que o seu tratamento cirúrgico, quando necessário ou indicado, envolve meios técnicos vulgares, em termos de especialidade ortopédica. Sendo uma operação que qualquer normal ortopedista está habilitado a fazer. E que é realizada em qualquer hospital, visto que não demanda equipamento especial.

                        (…)
                        E que contrariou – de forma decisiva, quanto a nós – o entendimento manifestado pela testemunha Prof. Dr. C..., que foi quem operou o sinistrado, de acordo com o qual a operação em questão é delicada e complexa e pode ser considerada de alto risco (para o pé)”.

                        Posto isto, importa referir  que é  reconhecida, fora de qualquer dúvida, a necessidade e  a importância  das juntas médicas, cuja realização é imposta pela própria   lei  como  modo  de  melhor  permitir  ultrapassar  a discordância  de  qualquer das partes em relação ao parecer  do perito singular.

                        É sabido, por outro lado, que a decisão final cabe ao juiz, que,  embora  grandemente  ajudado  por  pareceres  de  peritos especialistas,  não  está vinculado a eles, cabendo‑lhe ter  em conta  todas  as circunstâncias que no caso  sejam  pertinentes (cfr. artº 389º do C. Civil).

                        Como  refere  Leite Ferreira (Cod. Proc. Trabalho,  1989, 540)  as  asserções  e conclusões dos peritos  não  vinculam  o julgador.  O princípio da livre apreciação das provas tem  aqui perfeito  cabimento. Por isso, pode o magistrado exercer  sobre elas  a sua actividade crítica, movendo‑se, na sua  apreciação, com inteira liberdade e sem outros limites que não sejam os que lhe  são impostos pela sua convicção íntima ou pelo seu próprio juízo.

                        Porém, o julgador, na decisão sobre tais matérias, não deve proceder  a uma determinação arbitrária, antes se lhe  impondo, mesmo  dentro  do  princípio da prova livre, que  ele  haja  de valorar  convenientemente  o resultado dos exames médicos e  os demais  elementos auxiliares de diagnóstico que possam existir. Aliás,  tais  exames  são, na esmagadora maioria dos  casos,  o único elemento à disposição do julgador.

                        Tais  tipos  de  questões são  de  natureza  essencialmente técnica,  sendo  os  Srs.  peritos médicos  as  entidades  mais vocacionadas para se pronunciarem sobre elas, só devendo o juiz divergir dos respectivos pareceres quando disponha de elementos que lhe permitam, seguramente, fazê‑lo.

                        No caso dos autos é indubitável que estamos perante um caso clínico que foi objecto de diversos pareceres médicos, com resultados distintos.

                        Como se refere no Ac. da Relação Lisboa de 10/5/2006, proc. 1958/06-4, in www.dgsi.pt, e para cuja fundamentação exaustiva remetemos, nada obsta a que o julgador se desvie dos pareceres de alguns peritos e até dos pareceres da maioria dos peritos que foram chamados a pronunciar-se sobre a situação clínica do sinistrado e opte por um parecer de apenas dois peritos. Apenas se exige, nesses casos, que o juiz deixe consignada nos autos a sua motivação, isto é, os fundamentos ou razões por que o fez (arts. 653º, n.º 2 e 655º do CPC) e que seja convincente nessa motivação. Exige-se, sobretudo, que o julgador, nesses casos, esclareça as razões que o levaram a basear a sua convicção num parecer que não se encontra fundamentado (art. 586º, n.º 1 do CPC) e a desprezar todos os demais pareceres. Exige-se que explique por que razão, perante tamanha discrepância, não solicitou a realização de exames e pareceres complementares (art. 139º, n.º 5 do CPT); por que razão a sua convicção se manteve inabalável no parecer maioritário, não sentindo necessidade de o mandar fundamentar (art. 586º, n.º 1 do CPC).
                        Ora, no caso em apreço, pensamos que o Sr. Juiz fundamentou devidamente, e de harmonia com a prova produzida, essa convicção, precisamente porque se baseou no parecer, unânime, dos peritos que intervieram na junta médica, que eram, pelos motivos expostos, quem em melhores condições estavam para analisar clinicamente a situação do sinistrado, não tendo o Sr. Juiz outros e melhores elementos para divergir desse parecer, designadamente para acolher a opinião médica do Prof. Dr. C.... E esses peritos foram claros na descrição, com a devida exposição de motivos, das razões pelas quais entendiam que as lesões não apresentavam risco específico clinicamente considerado de alta cirurgia, e que o respectivo tratamento cirúrgico não está associado a procedimentos de alto risco,  comportando os riscos normais de qualquer cirurgia.

                        E não colhe a argumentação do apelante derivada da circunstância de esses peritos não terem observado nem prestado assistência clínica ao sinistrado logo após o acidente, tendo recolhido as informações do respectivo processo clínico. Resulta, com evidência, dos seus depoimentos, que os mesmos se sentiram perfeitamente habilitados a opinarem sobre a situação clínica do sinistrado, nada transparecendo que nos permita duvidar dessa convicção.

                        Assim sendo, não vemos motivos para alterar as respostas aos referidos pontos da base instrutória, improcedendo a impugnação da matéria de facto.

                        Mantendo-se aqui, por não haver qualquer fundamento para a alterar, toda a factualidade dada como provada em 1ª instancia.
- a segunda questão:
                        Trata-se, como se referiu, de saber se o Autor /sinistrado tem direito a ser reembolsado pela responsável das despesas por aquele suportadas com internamento, operações, consultas, tratamentos, taxas moderadoras e deslocações.

                        A sentença recorrida negou-lhe essa sua pretensão, já que tendo o Autor sido submetido a cirurgia, que não é clinicamente considerada de alto risco, nem implicava perigo de vida para o sinistrado, não lhe era permitido  escolher o médico operador, à revelia da Ré - seguradora, como foi o caso.

                        Concluindo que “não pode a R. ser responsabilizada pelo pagamento de todos os custos inerentes à escolha que o A. fez, devendo como tal ser absolvida do pedido, no que concerne às despesas com internamento, operações e tratamentos efectuados na Clínica de Montes Claros, honorários clínicos e consultas médicas, bem como com as sessões de fisioterapia a que decidiu submeter-se, na Clibairro, com os transportes de ambulância e em veículo próprio, da sua residência para as referidas cínicas e para Aveiro e com taxas moderadoras (meios complementares de diagnóstico)”.

                        Vejamos:

                        Dispõe o artº 14º da Lei nº 100/97, de 13/9 (LAT e que é a aqui aplicável):

                        “Artigo 14.º

                        Observância de prescrições clínicas e cirúrgicas

                        1 – Os sinistrados em acidentes devem submeter-se ao tratamento e observar as prescrições clínicas e cirúrgicas do médico designado pela entidade responsável e necessárias à cura da lesão ou doença e à recuperação da capacidade de trabalho, sem prejuízo do direito a solicitar o exame pericial do tribunal.

                        2 – Não conferem direito às prestações estabelecidas nesta lei as incapacidades judicialmente reconhecidas como consequência de injustificada recusa ou falta de observância das prescrições clínicas ou cirúrgicas ou como tendo sido voluntariamente provocadas, na medida em que resultem de tal comportamento.

                        3 – Considera-se sempre justificada a recusa de intervenção cirúrgica quando, pela sua natureza ou pelo estado do sinistrado, ponha em risco a vida deste”.

                        Por sua vez estabelece-se nos artºs 26º e 29º do DL 143/99, de 30/4 (RLAT):

                        “Artigo 26º

                        Médico assistente

                        1 - A entidade responsável tem o direito de designar o médico assistente do sinistrado.

                        2 - O sinistrado poderá, no entanto, recorrer a qualquer médico nos seguintes casos:

                        a) Se a entidade empregadora ou quem a represente não se encontrar no local do acidente e houver urgência nos socorros;

                        b) Se a entidade responsável não nomear médico assistente ou enquanto o não fizer;

                        c) Se a entidade responsável renunciar ao direito de escolher o médico assistente;

                        d) Se lhe for dada alta sem estar curado, devendo, neste caso, requerer exame pelo perito do tribunal.

                        Artigo 29º

                        Escolha do médico operador

                        O sinistrado pode escolher o médico que o deva operar nos casos de cirurgia de alto risco e naqueles em que, como consequência da operação, possa correr perigo a sua vida”.

                        As lesões consequentes a um acidente de trabalho poderão incapacitar o trabalhador para o trabalho, conferindo o art 10º da Lei 100/97, de 13/9, o direito à reparação em espécie (compreendendo as prestações referidas na al. a)) e em dinheiro (compreendendo, conforme previsto na al. b), o direito a indemnização, pensão ou capital de remição e demais subsídios aí mencionados). Se e enquanto tais lesões determinarem uma incapacidade, absoluta ou parcial, de natureza temporária, conferem o direito a uma indemnização correspondente aos períodos e perda da capacidade de ganho; se e quando passarem a determinar uma incapacidade, absoluta ou parcial, mas de natureza permanente, conferem o direito a uma pensão ou capital de remição. Tal incapacidade considera-se permanente quando as lesões desaparecerem totalmente ou se apresentem como insusceptíveis de modificação, com terapêutica adequada (“cura clínica” ou, como vulgarmente também se designa, “alta definitiva”) – cfr. artº 2º, al. f), do DL 143/99, de 30/4.

                        Refere Carlos Alegre em Regime Jurídico Anotado (2.ª edição)- Acidentes de Trabalho e Doenças profissionais,  pag. 77:

                        “O princípio que enforma a razão de ser de todas estas prestações pecuniárias é o de que a vítima de um acidente de trabalho não só não deve despender nada com as despesas do seu tratamento e recuperação para a vida activa, como deve, ainda, ser indemnizado em função do seu nível salarial, de forma a que, economicamente não saia prejudicado, por causa do acidente. As prestações em dinheiro, porém quer assumam a forma de indemnização ou a de pensão, não reparam integralmente o prejuízo sofrido pelo sinistrado, tendo, tão somente, um carácter compensatório, como se verifica quando se analisa o efectivo cálculo das prestações”.

                        Importa também referir que à entidade responsável pela reparação dos danos provenientes do acidente de trabalho (seguradora e ou empregadora, consoante os casos - cfr. artº 37º da LAT) cabe providenciar por essa reparação, em espécie e em dinheiro, conferindo-lhe a lei, salvas as excepções legalmente previstas, o direito de designar o médico assistente (cfr. arts. 26º, 28º e 29º do DL 143/99, de 30.04), sem prejuízo do direito do sinistrado ou da entidade responsável contestarem as resoluções daquele, nos termos previstos nos arts. 30º e 31º do citado DL 143/99, de 30.04

                        Chegados aqui, numa primeira análise e tal como se decidiu na sentença recorrida, tendo o sinistrado recusado a assistência médica da seguradora e optado pelo recurso a cirurgias e tratamentos efectuados por entidades não indicadas pela mesma seguradora, seria de excluir a sua pretensão a ser reembolsado das despesas daí decorrentes.

                        Contudo, não podemos deixar de concordar com o afirmado no parecer do Exmº Procurador Geral Adjunto emitido aquando do primitivo recurso, quando a este respeito refere o seguinte:

                        “Como se vê na douta sentença, o Tribunal a quo considerou que, face à matéria de facto assente, ao sinistrado não assiste o direito " ... ao peticionado reembolso das despesas suportadas pelo A. com internamento, operações, consultas, tratamentos, taxas moderadoras e deslocações ... " (vd. fls, 260). E chega a tal conclusão pela conjugação do disposto nos art.ºs 14.°, da LAT, 26.° e 29.°, do RLAT).

                        Em nosso entender, a lógica de tais preceitos assenta no seguinte:

                        A reparação dos acidentes de trabalho abrange valores monetários (art.º 10.º, aI. b), da LAT) e em espécie (art.º 10.°, aI. a), da LAT). Ora, para a prestação dos pertinentes cuidados médicos, as empresas de seguros habitualmente estabelecem contratos de prestação desses serviços com empresas/clínicas de saúde ou médicos. E, por força de tais contratos, as seguradoras, ao que julgamos, conseguem preços inferiores aos que uma pessoa singular consegue para cada acto médico. Ora, na nossa perspectiva, nos casos em que o sinistrado procurou e contratou por si os cuidados médicos que recebeu (fora da Seguradora), a empresa de seguros, face aos referidos preceitos, não tem de suportar os preços que o sinistrado, à revelia da seguradora, contratou, com a empresa de saúde ou profissional de saúde. Porém, sempre será responsável pelo preço dos actos médicos praticados que, se justificados à luz das «leges artis», a própria seguradora teria de suportar, se contratados/praticados por si (embora, porventura, a preço inferior, por contratar para um elevado n. º de casos. Ilustremos com um exemplo: se uma dada cirurgia foi contratada pelo sinistrado por 3.000 euros, mas a Seguradora estava em condições de lhe disponibilizar a mesma cirurgia por 2.000 euros, a Seguradora só é responsável pelo reembolso de 2.000 euros e não 3.000 euros).

                        Assim, no caso concreto, evidencia-se que ao sinistrado, por contratação por si estabelecida, foram praticados actos médicos que a seguradora sempre teria de prestar (embora, porventura, a preços inferiores). Donde, evidenciando-se que os actos médicos contratados directamente pelo sinistrado foram os adequados, então tem ele direito ao reembolso, até ao valor que a seguradora sempre pagaria, se fossem por si assegurados. Com efeito, a seguradora, por força da apólice de seguro, tem de assegurar ao sinistrado os tratamentos médicos adequados para o restabelecimento, na medida possível, do estado de saúde anterior ao acidente. Na hipótese de o sinistrado contratar por si tais serviços de saúde, compreende-se facilmente que a Seguradora não seja responsável por valor superior ao que suportaria, se tais actos fossem por si assegurados. Mas já não tem justificação a empresa de seguros não ser responsável pelo valor que sempre suportaria, se os mesmos actos médicos fossem directamente por si assegurados (através da contratação de tais serviços por si realizada), pois que cair-se-ia, se bem vemos, numa situação de enriquecimento sem causa.

                        Aplicando tal entendimento ao caso sub judice, temos que falta apurar o valor que Ré Seguradora suportaria pelos actos médicos em causa, se por si assegurados e contratados (em clínica ou profissional de saúde que entendesse, desde que reunissem idoneidade e competência)”.

                        Esta solução parece-nos a que, no caso concreto, estabelece  um ponto de justo equilíbrio entre os legítimos interesses da seguradora/responsável em utilizar os meios humanos e materiais à sua disposição, e que entenda serem os mais adequados à recuperação física do sinistrado, e os não menos relevantes interesses do sinistrado em que a reparação infortunística não deixe de levar em linha de conta todas as despesas em que foi obrigado a incorrer por virtude dos tratamentos, consultas e cirurgias directamente impostas pela lesões sofridas.

                        É claro, contudo, que uma solução deste tipo  não poderá revestir um carácter generalista, só podendo valer em casos, como o presente, em que os actos clínicos prestados ao sinistrado por entidades estranhas às designadas pela seguradora / responsável se afiguraram indispensáveis (nada ficou provado em contrário) ao tratamento e recuperação clínica do sinistrado e quando não está demonstrado, cabendo o respectivo ónus à entidade responsável, que se em vez de ter sido assistido pelos médicos e serviços clínicos que aquela escolheu, tivessem sido os serviços clínicos da seguradora a assisti-lo, o Autor não teria padecido das incapacidades temporárias que sofreu, ou ficado com a incapacidade permanente com que ficou.

                        Tanto mais que o Autor não esteve, digamos assim, sozinho nessa sua opção, estando esta suportada por parecer médico.

                        Termos em que procedem, na medida do exposto, as conclusões do recurso.

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                        Decisão:

                        Nos termos expostos, acorda-se em conceder parcial provimento à apelação, indo a Ré condenada a pagar ao Autor o montante, cuja liquidação se relega para uma ulterior fase de execução, correspondente ao reembolso das despesas por ele efectuadas em internamento, operações, consultas, tratamentos e deslocações, conforme pontos 16 a 22 da matéria de facto provada, mas tendo como limite os preços que a Ré suportaria por tais serviços, se fossem por si assegurados e/ou contratados.

                        Em tudo o mais se confirma a decisão recorrida.

                        Custas por apelante e apelada, em ambas as instâncias, na proporção de vencidos.

                                                           Coimbra, 27/09/2012

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                                                           (Ramalho Pinto)

                                                          

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                                                           (Azevedo Mendes)

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                                                           (Joaquim José Felizardo Paiva)