Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2677/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 11/29/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 64.º, H) DO RAU; E 342.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: 1. O conceito rigoroso de estabelecimento comercial caracteriza-se pela ideia de unidade jurídica, com uma organização de pessoas e meios ao seu serviço, contrapondo-se claramente à vulgar noção de «loja»;
2. Nada impede que o comércio tenha lugar sem porta aberta ao público, numa área utilizada para armazenagem pelo comerciante

3. Quem invoca o direito à resolução compete alegar e provar o específico objecto do contrato ou destino do arrendamento

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... fez intentar pelo 2º Juízo Cível da Comarca de Viseu acção declarativa com processo sumário contra B... e C... pedindo a condenação destas a reconhecer a sua qualidade de arrendatária comercial de determinado prédio urbano e a pagarem-lhe € 6.250,00, acrescidos de 1.250,00 por mês até efectiva restituição, pelos prejuízos com a tomada à força do locado pelas Rés e o consequente encerramento do estabelecimento comercial que nesse local a A. tem instalado, bem como a restituírem-lhe todas mercadorias, ou o respectivo valor, que se encontravam no seu interior e de que também se apoderaram, além de a indemnizarem dos danos ocasionados, estes a liquidar em execução de sentença.
Citadas contestaram as Rés argumentando que no imóvel em causa não funciona qualquer estabelecimento desde 19 de Outubro de 1988, por abandono do local, conservando-se a porta encerrada contínua e ininterruptamente; e que, perante a recusa do detentor das chaves, após notificação, em entregá-las, resolveram mudar as fechaduras, nada tendo retirado do interior. Concluem pela improcedência da acção e deduzem reconvenção na qual pedem se declare a resolução de qualquer arrendamento, mesmo verbal, com base no encerramento referido, ou, subsidiariamente, na falta de pagamento ou depósito de rendas em nome das Rés, condenando-se a A. ao despejo imediato.
Respondeu a A. à matéria da reconvenção, impugnando o encerramento do estabelecimento e excepcionando a caducidade do direito de resolução do contrato por virtude de haverem depositado as rendas dos 12 meses anteriores acrescidas de 50%. Finalizam como na petição, na improcedência da reconvenção.
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O processo seguiu a sua regular tramitação vindo o Sr. Juiz, após julgamento, a proferir sentença em que julgou a acção parcialmente procedente, condenando as Rés a reconhecer a A. como arrendatária comercial do identificado imóvel e a indemnizarem-na, em liquidação executiva, dos prejuízos causados com a remoção de bens do locado, absolvendo-a do mais; e procedente a reconvenção, declarando resolvido o contrato de arrendamento dos autos, condenando a A. a despejar imediatamente o locado entregando-o às Rés livre de pessoas e bens.
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Inconformada apelou a A. concluindo as suas alegações da seguinte forma:
1 – São comerciais os arrendamentos de prédios tomados para fins directamente relacionados com uma actividade comercial.
2 – Desde que lícita e inserida na sua actividade comercial, a utilização que, em concreto, o inquilino pode dar ao espaço arrendado só está limitada pelo contrato.
3 – O facto do inquilino ter começado por instalar no arrendado um posto de vendas ao público, não permite concluir que esse era o fim único do contrato, estando vedada a sua utilização como armazém.
4 – Porque não existe contrato escrito, e as circunstâncias não permitem estabelecer que o único fim contratado para o arrendado – que se situa em zona pouco frequentada pelo público, o que aponta em sentido contrário – era a instalação de um estabelecimento de vendas.
5 – A sua ocupação como armazém de apoio aos postos de venda do inquilino que se situam na proximidade, por ser inegável que se inscreve na sua actividade comercial, é lícita.
6 – Só poderia concluir-se pelo encerramento do estabelecimento, se se demonstrasse que o espaço foi originariamente arrendado para o fim específico da instalação de um estabelecimento de vendas ao público.
7 – Só em tal circunstância se poderia considerar que a alteração da ocupação originária, se reconduz ao encerramento do estabelecimento.
8 – Tal conclusão, porém, não é um facto típico que possa ser afirmado, por presunção judicial, unicamente a partir do uso que inicialmente foi dado ao arrendado.
9 – Mostrando – se ocupado o arrendado, não pode proceder o despejo com o fundamento da alínea h) do art.º 64 do RAU.
10 – Foram violados os art.ºs 100, 64º/h) do RAU, 1027, 349, e 342 do CC.
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As Rés contra-alegaram, sem requererem qualquer ampliação do objecto do recurso, e pugnando pela manutenção da sentença.
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Colhidos os vistos cumpre decidir.
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São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:
a) Desde Fevereiro de 1981 que a Autora ocupa o rés do chão do prédio situado no largo de Trás da Sé, inscrito na freguesia de Santa Maria, sob o artigo 482 e registado na Conservatória sob o nº 1312, da mesma freguesia, mediante a renda mensal actual de 54,65 euros;
b) As Rés são actualmente as donas do prédio identificado na antecedente alínea, por lhes ter sido adjudicado em inventário;
c) A partir da referida data a Autora ocupa o rés do chão com mercadorias do seu comércio e a transaccioná-las;
d) Durante alguns anos, até 1988, o estabelecimento esteve permanentemente aberto ao público, com trabalhadores a atender os clientes;
e) O locado situa-se em zona pouco frequentada pelas pessoas que passam;
f) E o espaço em causa tem sido usado pela Autora como armazém de mercadorias;
g) A Autora tem um estabelecimento comercial na Rua Direita, e um outro na Rua da Árvore, a escassas dezenas de metros do locado;
h) Nas montras desses estabelecimentos exibe amostras de mercadorias, algumas das quais, dada a sua dimensão – serviços de jantar, por exemplo – estavam no locado;
i) E quando aparecem clientes interessados nessas mercadorias a Autora vai buscar ao locado o restante do conjunto;
j) Desde o início foram passados recibos comprovativos do pagamento das sucessivas rendas;
l) No recibo de renda que consta de fls.9 do apenso a), datado de 6 de Agosto de 1988, consta a assinatura de Alfredo Santos;
m) A fls. 10 do apenso a) e fls. 66 destes autos constam depósitos de rendas, na CGeral de Depósitos, o primeiro relativo à renda do mês de Fevereiro de 2002, efectuado a 24 de Fevereiro, no valor de 54,65€, efectuado pela Autora e a favor de “herdeiros de Maria Nascimento” e o segundo a favor das RR, depósito efectuado pela Autora, no valor de 3.688,88€ em 11 de Outubro de 2002, e à ordem do processo;
n) Há alguns anos a Autora realizou obras no rés do chão, ao nível do chão, paredes e tecto;
o) A fls. 11 do apenso a) consta uma carta dirigida à Autora, encimada pela expressão “herdeiros de José Joaquim do Nascimento, Bairro do Vale Lote 43 2º 3510 Abraveses”, e no qual consta o texto “em José Joaquim dos Santos Nascimento, herdeiro do epigrafado, e por delegação dos herdeiros, venho informar V. Exªs que o imóvel onde se situa o armazém por nós alugado, está à venda pelo preço de Esc. 12.000.000$00 (Doze milhões de escudos), pelo que vimos solicitar que nos informe se está interessado na sua compra…”, e assinado pelo subscritor;
p) Em 11 de Novembro de 2001, as RR arrombaram o locado e mudaram a fechadura;
q) A Autora mudou de novo a fechadura e continuou na posse do locado;
r) Em 2 de Fevereiro de 2002 as RR arrombaram o locado, levaram mercadorias para locais que se desconhece, tendo fechado as portas com um cadeado;
s) Na referida data a Autora tinha no locado mercadoria em valor não apurado;
t) Na data da inspecção judicial realizada, no locado apenas existiam caixotes vazios e degradados;
u) Um comproprietário Alfredo dos Santos, fez uma denúncia à Câmara Municipal de Viseu, na sequência de umas obras que a Autora pretendia fazer no rés do chão;
v) As Rés notificaram judicialmente o detentor das chaves do locado, Horário Simões Luís, em 25 de Maio de 2001, para os efeitos apontados na notificação judicial avulsa junta aos autos a fls. 36 e 37, aqui dada por reproduzida;
x) Por o notificando não ter entregue as chaves, praticaram os factos referidos e descritos em p);
z) A Autora depositou na Caixa Geral de Depósitos, em 11 de Outubro de 2002, o valor das rendas vencidas desde Setembro de 1997 até Agosto de 2001, inclusive, e ainda as vencidas posteriormente, com o acréscimo de 50%;
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Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões – artºs 684, 3 e 690, 1 do CPC – a questão submetida à apreciação desta Relação é tão-só a de saber se deverá ter-se por preenchido o concreto fundamento de resolução do contrato arrendamento acolhido na decisão recorrida face ao acervo fáctico dado como provado.
Não obstante a parte dispositiva da sentença ter optado por não explicitar qual a concreta causa com que declarava resolvido o contrato de arrendamento que considerou vigente entre A. e Rés, certo é que se torna inequívoco da fundamentação precedente que ela se reporta à prevista na alínea h) do art. 64 do RAU, aprovado pelo Dec-Lei 321-B/90 de 15/10, isto é, à conservação do locado encerrado por mais de um ano consecutivo por parte do arrendatário, destinando-se aquele ao comércio, indústria ou profissão liberal.
Está assente que desde Fevereiro de 1981 a Autora ocupa o rés-do-chão do prédio sito no largo de Trás da Sé, inscrito sob o art.º 482 da freguesia de Santa Maria, da cidade e concelho de Viseu, mediante a renda mensal actual de € 54,65; que a partir da referida data a A. o ocupa com mercadorias do seu comércio e a transaccioná-las; que durante alguns anos, até 1988, o estabelecimento esteve permanentemente aberto ao público, com trabalhadores a atender os clientes; e que o espaço tem sido usado pela A. como armazém de mercadorias – cfr. os factos provados em A, C, D e F.
Não se compreende, salvo o devido respeito, a afirmação contida na sentença de que «é elemento essencial que o estabelecimento esteja de porta aberta ao público salvo se se demonstrar que se trata de um local de «retaguarda», isto é que ali funciona um armazém, e em suporte de um outro estabelecimento, esse sim, aberto ao público».
Desde logo o conceito rigoroso de estabelecimento comercial caracteriza-se pela ideia de unidade jurídica, com uma organização de pessoas e meios ao seu serviço, contrapondo-se claramente à vulgar noção de «loja» (Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Lex Edições Jurídicas, 1994, pág. 117 e seguintes) e, portanto, de casa de «porta aberta».
Depois porque nada impede que o comércio tenha lugar sem porta aberta ao público, numa área utilizada para armazenagem pelo comerciante, o que é até corrente nalguns tipos de comércio por grosso (neste sentido o Ac. da Rel de Lx.ª de 23/01/1992, in BMJ 413 – 600). Aliás, o facto descrito em C inculca a ideia de que a A. também nunca deixou de efectuar transacções comerciais no referido local.
Finalmente - «last but not the least» - porque não foi feita qualquer prova sobre o fim do arrendamento, ou seja, sobre o destino que os contraentes quiseram que fosse dado ao locado. Não se ficou a saber se intentaram permitir no locado apenas a venda a público – nem o respectivo ramo –, se esta com a utilização de armazém, ou se só esta última. Nem tão pouco se extrai da matéria apurada se o locado foi arrendado para o comércio em sentido estrito, sendo concebíveis finalidades complementares como reparação de peças, escritório, arquivo, depósito residual, etc.. Era às Rés, invocantes do direito à resolução, que competia alegar e provar aquele específico objecto do contrato ou destino do arrendamento porquanto só dessa forma evidenciariam o principal elemento constitutivo do referido direito: o não exercício pelo locatária de qualquer versão de comércio, e, por essa via, o encerramento do estabelecimento. E, nos termos do nº 1 do art.º 342 do CC, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
Do que fica dito resulta que o tribunal recorrido não dispunha dos imprescindíveis requisitos fácticos que o autorizassem a declarar o contrato de arrendamento resolvido com o fundamento eleito ( alínea h) do art. 64 do RAU).
Procedem, por conseguinte, todas as conclusões da apelante.
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Pelo exposto decidem julgar procedente a apelação e, revogando a sentença na parte em que considerou procedente o pedido reconvencional e resolvido o contrato de arrendamento, declarar improcedente aquele pedido e dele absolver a A., mantendo-se aquela no restante.
Custas na proporção de 1/5 para a A. e 4/5 para as Rés.


Coimbra, / /