Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4046/17.1T8VIS.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: LIQUIDAÇÃO
EQUIDADE
Data do Acordão: 07/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL A COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ART.º 566.º, N.º 3, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. - Faltando, em processo incidental de liquidação quanto a sentença condenatória, depois de produzidas as provas, pontos de sustentação fáctica que permitam uma fixação exata, em sede reparatória, do volume de empobrecimento patrimonial do lesado/empobrecido, deve o tribunal julgar equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.

2. - Ao relegar para ulterior fase incidental de liquidação o apuramento do valor que o credor tem a receber, o tribunal da condenação já deixou reconhecida a existência de um direito de crédito, que apenas não foi quantificado, devendo sê-lo na posterior liquidação, ficando vedada nesta a discussão sobre a existência do crédito e da correspondente obrigação, o que ofenderia o trânsito em julgado da decisão condenatória em obrigação ilíquida.

3. - Nada obsta a que a equidade funcione como último critério na fase de liquidação, se também em tal fase se mostrou impossível proceder à quantificação do dano/empobrecimento exato/concreto, caso em que a fixação respetiva segundo juízos de equidade constitui matéria de direito, fazendo apelo a bitola jurídica.

4. - A equidade, como justiça do caso, mostra-se apta a colmatar as incertezas do material probatório, bem como a temperar o rigor de certos resultados de pura subsunção jurídica, na procura da justa composição do litígio, fazendo apelo a dados de razoabilidade e equilíbrio, tal como de normalidade, proporção e adequação às circunstâncias concretas, sem cair no arbítrio ou na mera superação da falta de prova de factos que pudessem ser provados.

5. - Perante decisões recorridas fundadas na equidade, é adequado um critério de revogação apenas das soluções que excedam manifestamente determinada margem de liberdade decisória, sendo então de verificar o padrão de equidade aplicado em concreto, pelo que, a situar-se a indemnização no quadro de um exercício razoável e equilibrado do juízo de equidade, não se justificará, em regra, a revogação.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

Em autos incidentais para liquidação de obrigação pecuniária,

que Fundação ..., com os sinais dos autos,

intentou contra

AA e BB, também com os sinais dos autos,

pediu aquela que a quantia que os AA./Reconvindos (aqui Requeridos) foram condenados a pagar à R./Reconvinte (aqui Requerente), por decisão transitada em julgado, seja liquidada no montante de € 15.844,60, acrescido de juros, contados desde 16/10/2017.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

- no âmbito da decisão proferida – já transitada em julgado –, aqui a liquidar, foram os agora Requeridos (ali AA./Reconvindos) condenados a pagar à Reconvinte (aqui Requerente) a quantia, a liquidar ulteriormente, correspondente ao valor da pintura e restauro do chassis do veículo, das peças usadas em tal restauro e da mão de obra, tendo, por limites máximos os valores peticionados;

- aquele montante de € 15.844,60 justifica-se por ter sido esse o total que despendeu e contabilizou quer em peças quer em mão-de-obra e deslocações de funcionários seus no restauro, a que procedeu, no veículo que foi condenada a devolver.

Os Requeridos contestaram, alegando – quanto ao essencial – procurar a contraparte cobrar valores que não lhe são devidos, não resultarem os valores pedidos justificados e especificados, aceitando, todavia, os contestantes que algum trabalho foi prestado na reparação do veículo, mas concluindo pela sua absolvição do pedido e, bem assim, pela condenação da Requerente, por litigância de má-fé, em multa e indemnização nunca inferior a € 2.000,00.

Efetuada a subsequente tramitação processual – com enunciação do objeto do litígio e da temática da prova –, procedeu-se à audiência final, com produção de prova pessoal, a que se seguiu a sentença (datada de 02/03/2022), liquidando «a quantia a arbitrar, a ser paga pelos reconvindos à reconvinte, no montante de € 7.500,00».

Inconformados, recorrem os Requeridos – recurso admitido como de apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo –, apresentando motivação e as seguintes

Conclusões ([1]):

«A – A sentença objecto de recurso carece de fundamento por se basear numa incorrecta aplicação do Direito à realidade do caso em apreço.

B – Não ter a A. face à despesa reclamada suprido o ónus probatório a que se encontrava adstrita demonstrando incongruências evidentes entre a argumentação aduzida, a prova testemunhal e a prova documental apresentada.

C - O valor inicialmente solicitado pela A. junto do público para intervencionar o veículo em questão no presente processo foi considerado como a si pertencente não incorrendo igualmente aos dias de hoje a Fundação ... em qualquer prejuízo face à intervenção de que foi alvo podendo até, de futuro e naturalmente, entender-se que a A. poderá ser ressarcida duplamente por conta da intervenção que realizou num veículo da qual sempre soube não ser proprietária.

D - De uma intervenção originalmente prevista para um tecto máximo de 5.000,00€ (Cinco Mil Euros), a ora A., já accionada judicialmente pelos proprietários do veículo, dizia ter afinal despendido qualquer coisa na ordem dos 17.126,00€ (Dezassete Mil Cento e Vinte e Seis Euros).

E – Tal índole e postura falaciosa e fraudulentas evidenciadas pela A. e desmascaradas pelo douto Tribunal ... relativamente aos argumentos aduzidos relativos quanto à propriedade do veiculo foram pela verdade dos factos expostos, permanecendo ainda assim presentes aos dias de hoje no espirito dos responsáveis pela gestão da Fundação ... quando, com base na prova documental e/ou testemunhal, peticionam os valores em questão.

F - Não se encontra presente no espirito dos RR. a pretensão de fazer passar ao Venerando Tribunal, a percepção de que a intervenção que a ora A. alega não se verificou relativamente ao veiculo em questão, outrossim, o que pretendem os RR. nesta sede é que seja apreciada a verdadeira dimensão da mesma em todos os seus aspectos e que se fixe com maior grau de certeza o valor efectivamente despendido pela Fundação ....

G – Não é crível ou verosímil que uma instituição com décadas de dedicação relativamente a tudo o que concerne veículos antigos, se engane de forma tão gritante face ao valor de intervenção por si a despender num triciclo com 200 Kgs de peso e com um motor de 190 Cc.

H - A vindicação e reconhecimento de tais valores como devidos à A. é totalmente injustificada e nada mais significa do que uma forma de retaliação perante os legítimos proprietários de um veiculo que foi intervencionado sem a sua concordância o que se materializa em nada mais do que um exemplo gritante de enriquecimento sem causa a que a Lei alude.

I - Era sobre a A. que impendia o ónus da prova quanto à questão principal, ou seja, é sempre a A. que cabe demonstrar de forma categórica, inequívoca, concisa e clara com base na prova testemunhal e documental apresentada de que o veículo em questão foi objecto do profundo dispêndio de material humano e mecânico que hipoteticamente e segundo o critério da Fundação ... carecia e lhe foi alegadamente aplicado.

J - Cabe a A. fazer prova de que um veiculo triciclo destas características, (Peso de 200Kgs e motor de 191Cc conforme figura no livrete do mesmo), carece da mesma quantidade de horas de intervenção, 424 horas para o caso, como se de um “vulgo” automóvel de colecção se tratasse.

K - Se em tudo o mais goza a A. de uma presunção quanto à sua qualidade de pessoa idónea, proficiente e diligente, deve esse mesmo critério deve ser reconhecido linearmente, não se consentido pois a ideia de que face ao valor a empregar futuramente no veiculo se equivocou como se de forma insignificante e irrelevante o tivesse feito.

L – [Suprimida, por se tratar de mera repetição, certamente por lapso, da conclusão anterior (K)].

M – Deve manter-se o entendimento presente na Douta Sentença de que “regra geral, não houve, com rigor, registo de todos os trabalhos, muito menos contabilidade organizada como seria necessário no caso de tudo se passar como sendo em proveito de terceiros chamados a pagar. Os documentos existentes, em muitos dos casos, não comprovam mais do que a ordem da direcção da Fundação no sentido de ser passado um documento a dizer “isto e aquilo”, porque, na altura, tal, por manifestamente desnecessário, não foi documentado.”

N - Não é bastante como tal, um mero juízo de verosimilhança e prognose face à despesa que a A. alega ter despendido, com base em testemunhos dúbios e questionáveis e facturas passadas efectivamente à Fundação ... durante o período em que alega que o restauro decorreu, mas nas quais não se pode retirar que as mesmas tenham conexão real ao veiculo triciclo em questão por não aludirem directa ou até, não raras vezes, indirectamente ao mesmo.

O - Obviamente que a essencialidade do necessário rigor na apreciação das mencionadas facturas é indispensável tanto mais que é legítimo e razoável neste âmbito questionar se não poderão as mesmas reportar a um qualquer distinto serviço alocado durante aquele período a qualquer outro dos mais de 200 veículos que a Fundação ... tem a seu cargo.

P – Deve ter-se por garantido que um triciclo destas proporções não pode manifestamente ser alvo de tão demorada e despesista intervenção, tal como se retira da Douta Sentença: “ (…) não se pode aferir o trabalho gasto no ... com o que seria para um Cadilac Eldorado descapotável, cujo motor e superfície de chapa são mais de dez vezes superiores em peso e envergadura.”

Q – O referido caderno de apontamento onde eram apontadas toda a mão de obra e horas despendidas, e que foi dado como existente por todas as testemunhas arroladas pela A. acabou por ser dado como inexistente, como a própria reconheceu em requerimento elaborado a 6/1/2022 em que mencionou: “as notas em questão eram descartadas logo que remetidas à direcção do Museu e por esta registadas” sendo que “a Requerente não dispõe actualmente de tais anotações”, o que não deixa de ser insólito, ainda para mais numa altura em que a Fundação ... sabia existir já contra si um processo judicial em que o mesmo caderno seria vital na defesa dos seus interesses..

R – De onde se retira que é através da palavra da Fundação ... de que todos estes documentos existiram em tempos e de que as facturas, embora não o mencionem expressamente, reflectem serviços alocados ao veículo em questão que deve o Douto Tribunal apoiar-se na elaboração da sentença.

S – Ora tal entendimento não é de todo consubstanciado e/ou apoiado pelo Direito.

T - Até porque como é apanágio do comportamento da Fundação ... desde o início do corrente processo, logo no Doc. 1, é descrito e cobrado o valor de pintura correspondente a 92 horas e 25 minutos durante o período temporal que intermedeia o dia 30 de Setembro e o dia 6 do mês de Outubro de 2015 seguinte, período que integrou um fim-de-semana e um feriado, lapso de tempo que não cabe em 3 dias, o que só encontra justificação no total laxismo e soberba de que a A. julga usufruir.

U – A Testemunha CC fez denotar que no fim de contas, outros veículos, logicamente foram intervencionados por parte da Fundação ... no mesmo espaço temporal em que decorria a intervenção no veículo em apreço, podendo obviamente as facturas relativas a materiais alocadas às primeiras terem sido juntas enquanto prova documental no presente processo, havendo apenas e só a menção de serem dirigidas à Fundação ... e sem menção ao veiculo M....

V – Devem as Testemunhas DD e EE ser consideradas como credíveis e essenciais na descoberta da verdade, não só pelo seu currículo e prestigio ligado ao sector dos veículos motorizados mas, desde logo por serem peritos independentes e não possuírem, ao contrário das testemunhas arroladas pela A., qualquer laço profissional ou de amizade com a parte que as trouxe a juízo.

Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência, ser a Sentença recorrida revogada e substituída por decisão que:

A - Altere a decisão sobre a matéria de facto no sentido acima propugnado;

B – Julgue a acção parcialmente improcedente, por não provada;

C – Reconheça que por imperativo legal o ónus da prova impende sobre a A. devendo ser consideradas nulas todas as facturas que não façam alusão directa ao veículo intervencionado.

D – Julgue procedente o entendimento de que, face ao facto de se tratar de um microcarro, vulgo triciclo, o limite máximo a entregar a A. se fixa naquele que ela primeiramente referiu, de 5.000,00€ (Cinco Mil Euros).

E – Não se baseie em critérios de prognose ou verosimilhança para atingir um valor a atribuir à intervenção de que o veiculo foi alvo, mas a contrario, aplique critérios legais fixos e seguros com base na prova produzida e factos efectivamente dados como provados.

F – Absolva os RR. de todos os demais pedidos da A. considerando que estes não são devedores do valor peticionado.

Assim se fará, JUSTIÇA!».


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A Requerente/Apelada contra-alegou, pronunciando-se sobre as questões suscitadas em sede de recurso, e concluindo pela inadmissibilidade/rejeição da pretendida impugnação da decisão relativa à matéria de facto – por inobservância de imperativos ónus legais a cargo dos impugnantes – e pela total improcedência da apelação.

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Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, foram mantidos o regime e o efeito fixados ao recurso.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


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II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([2]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, importa saber ([3]):

a) Se deve ser rejeitada a pretendida impugnação da decisão relativa à matéria de facto, por inobservância de imperativos ónus legais a cargo dos impugnantes (cfr. art.º 640.º, n.º 1, do NCPCiv.);

b) Se, ainda nesse âmbito, deve ser rejeitada a pretensão de ampliação, pela Relação, da matéria de facto (aditamento de nova factualidade, não ajuizada pela 1.ª instância);

c) Se, inversamente, em caso de admissão, deve proceder, por erro de julgamento, a impugnação da decisão de facto, alterando-se tal decisão;

d) Se ocorreu errada fixação do valor objeto de liquidação, devendo os Requeridos ser absolvidos do peticionado, por nada deverem.


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III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

1. - Na 1.ª instância foi considerada a seguinte factualidade como provada:

1 –

A pintura e restauro do veículo M... acarretou, para a Requerente, custos e despesas que não foi possível apurar com rigor e em pormenor.

13 –

Em mão de obra para restauro do M... a Requerente despendeu, ao longo dos anos de 2015 a 2018, número de horas de trabalho dos seus funcionários (nomeadamente em trabalhos avaliação e seriação dos trabalhos e peças necessários, de busca de fornecedores apropriados, de transporte, desmontagem, remontagem e reparação, pintura e polimento do motor e do chassis, de ensaios e testes) que não foi possível apurar com rigor e em pormenor.

14 –

O trabalho de avaliação e restauro do automóvel em causa é de valor médio, em termos de mercado, de cerca de 15,00 €.”.

2. - E foi considerado não provado:

2 –

Os custos dos serviços de pintura e soldadura encomendados à empresa P..., Lda., foram de 1.823,49 €, titulados pelas facturas nºs ...95, ...62 e ...65, respectivamente de 13-10-2015, 11-11-2015 e 31-01-2016.

3 –

Os custos com a aquisição de peças ao M... Club – ... (...), incluindo as peças necessárias para restauro do chassis e do motor, tais como peças para motor e mecânica, peças da carroçaria, frisos e símbolos, cabo do selector de velocidades, foram de 3.756,60 €.

4 –

Os custos com a aquisição de peças à M... Service, incluindo borrachas para diversas partes do chassis, suportes para o motor, cabos de acelerador, travão e embraiagem, anilhas, porcas, buchas, e outras peças específicas do veículo M..., foram de 2.168,22 €.

5 –

A Requerente despendeu ainda 194,34 € em serviços de decapagem e pintura com primário na oficina Metalofelícia.

6 –

E despendeu 28,71 € em rolamentos, adquiridos na Casa dos Rolamentos e Parafusos.

7 –

Mais despendeu 252,15 € em serviços de cromagem de tampões de rodas e peças.

8 –

E despendeu 270,60 € em serviços de reparação de bancos e estofagem, prestado pela firma J... Unipessoal, Lda.

9 –

Despendeu ainda 45,26 € na aquisição de uma bateria para o veículo, fornecida pela firma E..., Lda.

10 –

E despendeu 67,65 € em serviços de reparação eléctrica do veículo, fornecidos pela ....

11 –

Nos transportes – em veículo de transporte de automóveis – para as oficinas e fornecedores de serviços, situadas em ..., no ... e em ..., nos quais foram percorridos um total de 288 quilómetros, e tendo em conta o valor de 1,20 € por quilómetro correspondente ao dispêndio de combustível e desgaste de veículos deste tipo, a Requerente despendeu 345,60 €.

12 –

Os custos incorridos pela Requerente com a campanha de crowdfunding que lhe permitiu levar por diante a realização de parte das despesas incorridas montam em 344,46 €.

13 –

Em mão de obra para restauro do M... a Requerente despendeu, ao longo dos anos de 2015 a 2018, 424,33 horas de trabalho dos seus funcionários, nomeadamente em trabalhos avaliação e seriação dos trabalhos e peças necessários, de busca de fornecedores apropriados, de transporte, desmontagem, remontagem e reparação, pintura e polimento do motor e do chassis, de ensaios e testes.

14 –

(…) nunca inferior a 15,00 € / hora (…) o valor de 15,00 € por hora é manifestamente reduzido – porquanto os valores horários de serviços mecânicos e de reparação de automóveis, mais ainda tratando-se de veículos antigos e não convencionais, não são em média inferiores a 30,00 €.

15 –

A mão de obra aplicada pela ora Requerente na pintura e restauro do veículo M... se traduz num valor de 7.828,92 €, IVA incluído.”.


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B) Da rejeição da impugnação da decisão de facto e da ampliação da matéria de facto

1. - Pugna a Apelada, no seu acervo conclusivo, em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, pela rejeição de tal impugnação, ante a manifesta inobservância de ónus legais a cargo dos impugnantes, os previstos no art.º 640.º, n.º 1, al.ªs a) a c), do NCPCiv..

Terá razão?

Os Recorrentes invocam, reiteradamente, que o ónus probatório quanto aos factos de que depende a liquidação cabia à Requerente, com o que não poderemos deixar de concordar, visto o disposto no art.º 342.º, n.º 1, do CCiv..

Por outro lado, tecem também diversas críticas quanto a provas invocadas/oferecidas nos autos pela Requerente/Recorrida, designadamente faturas ou «caderno de apontamento», assim como se reportam a depoimentos testemunhais, tudo para concluir, pela alteração da «decisão sobre a matéria de facto no sentido acima propugnado» (al.ª A do petitório recursivo).

Ora, o Tribunal recorrido procedeu à decisão da matéria de facto, com elenco demarcado de factos provados, seguido dos factos julgados não provados, tudo na parte fáctica da sentença, a que se seguiu a fundamentação/justificação da respetiva convicção probatória.

Por isso, era perante esse quadro fáctico explicitado na sentença – referencial com âmbito bem demarcado – que os Recorrentes, enquanto impugnantes da decisão de facto, haveriam de se mover, de molde a mostrar onde radicam e em que se traduzem as suas divergências, bem como o diferente sentido decisório pretendido para cada concreto facto ou conjunto homogéneo de factos objeto da discordância.

É que aquele art.º 640.º, n.º 1, do NCPCiv., é muito claro quanto aos imperativos ónus legais a cargo do impugnante, mormente os elementos a especificar na impugnação, sob pena de rejeição: a) especificação dos concretos factos considerados incorretamente julgados e a ser, por isso, objeto de sindicância recursiva; b) especificação dos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa; c) especificação da diversa decisão a proferir (a alteração fáctica pretendida, o diverso sentido decisório a adotar, quanto a cada um dos factos concretamente impugnados).

Assim, esperava-se que os Apelantes esclarecessem devidamente – especificando-os –, não só quais os factos que, na sua ótica, foram julgados erradamente, como ainda, para além das concretas provas que, uma vez criticamente analisadas/valoradas, obrigavam a uma decisão diversa da adotada, o sentido decisório pretendido (a decisão que, a seu ver, deve ser proferida sobre cada uma das questões de facto impugnadas, como tudo resulta do n.º 1 daquele art.º 640.º do NCPCiv., que dispõe quanto aos obrigatórios ónus a cargo do recorrente impugnante da decisão de facto).

É que, em sede de impugnação da decisão de facto, cabe ao Tribunal de recurso verificar se o juiz a quo julgou ou não adequadamente a matéria litigiosa, face aos elementos a que teve acesso, tratando-se, assim, da verificação quanto a um eventual erro de julgamento na apreciação/valoração das provas (formação e fundamentação da convicção), aferindo-se da adequação, ou não, desse julgamento.

Para tanto, se o Tribunal de 2.ª instância é chamado a fazer o seu julgamento dessa específica matéria de facto, o mesmo é comummente restrito a pontos concretos questionados – os objeto de recurso, no mesmo delimitados, necessariamente no plano conclusivo –, procedendo-se a reapreciação com base em determinados elementos de prova, concretamente elencados.

Como bem explicita Abrantes Geraldes ([4]):

“(…) a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;

(…) d) O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto; (…)”.

Para depois concluir que a rejeição do recurso quanto à decisão de facto deve verificar-se, para além do mais, nas situações de falta “de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, tal como de falta “de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, constituindo, aliás, exigências que “devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que afinal devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram pela atenuação do princípio da oralidade pura e pela atribuição à Relação de efectivos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto como instrumento de realização da justiça. Rigor a que deve corresponder o esforço da Relação quando, debruçando-se sobre pretensões bem sustentadas, tenha de reapreciar a decisão recorrida …” ([5]).

Ante este quadro referencial, parece notório – salvo o devido respeito por diverso entendimento – que os Apelantes não observaram os ónus, a seu cargo, estabelecidos no art.º 640.º do NCPCiv., especificamente nas al.ªs a) e c) do respetivo n.º 1 – em conjugação com o art.º 639.º do mesmo Cód. –, pois que omitiram, nas conclusões oferecidas (e também na antecedente alegação), a necessária indicação dos concretos pontos de facto (os constantes da parte fáctica da sentença, nesta claramente discriminados, eleitos pelo Tribunal a quo e em que este se baseou para decidir o litígio subsistente) a sindicar, por erradamente julgados, e, bem assim, a concreta decisão (diversa) a dever ser proferida sobre as questões de facto que identificassem como impugnadas.

Na verdade, deve a parte recorrente apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão (art.º 639º, n.º 1, do NCPCiv.), donde que, ao ónus de alegar, sempre acresça o ónus de concluir – sendo as conclusões que definem o objeto e delimitam o âmbito recursivo ([6]) –, com os fundamentos a terem de ser, primeiramente, expostos e desenvolvidos no corpo da alegação, para, depois, serem enunciados e resumidos, em jeito conclusivo, de molde a fundamentar a pretensão recursória (de alteração ou a anulação da decisão).

            Assim, como vem sendo entendido ([7]), o Tribunal ad quem tem de cingir-se às conclusões recursórias para determinar o objeto do recurso: só deve conhecer das questões ou pontos compreendidos nas conclusões, pouco importando a extensão objetiva dada ao recurso no antecedente corpo alegatório, sendo que tudo o que conste das conclusões sem corresponder a matéria explanada nas alegações propriamente ditas, não pode ser considerado e não é possível tomar conhecimento de qualquer questão que não esteja contida nas conclusões das alegações, ainda que versada no corpo alegatório prévio.

          No caso, todavia, nem nas conclusões, nem na antecedente motivação, os Recorrentes observam os ónus daquelas al.ªs a) e c) do n.º do art.º 640.º do NCPCiv., visto, por um lado, não especificarem os concretos factos que entendessem erradamente julgados, nem, por outro lado, a diversa decisão a dever ser proferida sobre cada um deles (o diferente sentido decisório a adotar).

Assim, por falta de observância desses ónus legais, estabelecidos em preceito de natureza imperativa, a impugnação de facto não pode, salvo o devido respeito, ser admitida, posto o vício determinar a imediata rejeição do recurso na respetiva parte ([8]) ([9]).

2. - Ainda no mesmo âmbito da empreendida impugnação da decisão de facto, pretendem os Apelantes que seja aditada nova factualidade, não contemplada no quadro fáctico da decisão recorrida. Isto é, pretendem ampliação da matéria de facto pela Relação, pela via da impugnação recursiva da decisão de facto e perante a prova produzida ([10]).

          Ora, cabe dizer, desde logo, que não pode a Relação, por tal via de recurso, proceder – por si própria, nos moldes pretendidos – a essa ampliação da matéria de facto.

Com efeito, como entendido no recente acórdão desta Relação de 10/05/2022 ([11]), e consta do respetivo sumário:

«I- O dever de reapreciação, pela Relação, da prova produzida, sindicando a decisão de facto, só existe em relação aos factos objeto de pronúncia pelo tribunal recorrido.

II- Se o tribunal de 1.ª instância não se pronunciou sobre uma determinada questão de facto, cuja resposta seja indispensável para a decisão da causa, a consequência de tal omissão é a da anulação da decisão recorrida, seguida da repetição do julgamento sobre tal questão.

III- Esta é a solução que resulta da conjugação das als. c) do n.º 2 e c) do n.º 3 do art. 662.º do CPCiv., só assim não sendo se a matéria em questão estiver admitida por acordo, provada (plenamente) por documentos ou por confissão reduzida a escrito.».

Isto é, por regra, não pode a Relação, no âmbito da impugnação da decisão de facto, proceder, por si mesma, à ampliação da matéria de facto, apenas podendo – a mais da sindicância do juízo proferido quanto a factos dados como provados ou não provados (âmbito de efetiva pronúncia da decisão recorrida) – anular, a requerimento ou oficiosamente, a decisão impugnada para que o Tribunal a quo proceda, após baixa do processo para esse efeito, à dita ampliação do quadro fáctico relevante.

No caso, todavia, nem a parte recorrente pediu a anulação da sentença para baixa do processo e ampliação, nem esta Relação, por sua vez, vista a natureza dos autos, a factualidade apurada e os interesses em jogo, bem como os contornos da questão decidenda e os critérios decisórios a convocar, entende ser necessária tal anulação (art.º 662.º, n.º 2, citado).

Donde que tenham de improceder as conclusões dos Apelantes em contrário.

Com o que se queda inalterada a parte fáctica da sentença em crise e, assim, resulta fixado definitivamente o factualismo provado – tal como o dado por não provado –, o único a atender para decisão do recurso.


***

C) Da alteração da decisão de direito

Sustentam, por fim, os Apelantes, confiados na alteração da decisão de facto, que ocorreu errada fixação do valor indemnizatório, determinando a alteração da decisão de direito, no atinente ao quantum da liquidação, que pretendem ver afastado, pugnando, ao invés, pela sua absolvição do pedido.

Ora, como visto, permanece inalterada a aludida decisão da matéria de facto.

E, ante o conjunto fáctico disponível – o único que resultou apurado –, não se vê como possa, diga-se desde já, alterar-se, para valor inferior, aquele quantum da liquidação operado em 1.ª instância. E menos ainda em termos de absolvição do pedido, o que corresponderia à negação da existência/subsistência do crédito, aliás, já judicialmente estabilizado/reconhecido.

Com efeito, é sabido que, ao relegar para ulterior fase de liquidação de sentença o apuramento do valor que o credor tem a receber, o tribunal da condenação já reconheceu a existência de um direito de crédito, que apenas não foi quantificado, devendo sê-lo na posterior liquidação ([12]). Assim, já não pode discutir-se na fase da liquidação a existência (ou não) do crédito – matéria já a coberto do caso julgado formado –, mas apenas o seu quantum.

Por outro lado, é seguro que já vem provado na decisão condenatória, como enfatizado na sentença agora em crise, que: a R. encomendou e pagou as peças necessárias, tendo suportado valor cuja grandeza não foi possível apurar (5.22); em pintura e chassis, a R. suportou valor cuja grandeza não foi possível apurar (5.23);  afetou o trabalho dos seus mecânicos ao restauro de tal veículo (5.21); após tal restauro, o veículo apresentava um valor superior ao que tinha no momento anterior ao mesmo (5.26). Donde que seja indiscutível, como já assinalado, que “a indemnização deve ponderar o valor das peças adquiridas pela ré, assim como da mão de obra necessária para o restauro».

E em matéria de quantificação do crédito, refere o Tribunal a quo:

“(…) importa, à face dos factos provados, liquidar as importâncias devidas, que o Tribunal superior manteve, e que se podem subdividir em três categorias: peças, pintura e chassis, mão de obra. Contudo, e nesta fase, é impossível deixar de considerar que, finda a produção de prova, não resulta possível fixar, com rigor, um valor líquido, sequer relativamente a cada uma das referidas três categorias. Que fazer nestas situações? Certeza primeira é que é inviável uma decisão de tipo non liquet. (…) Importa, pois, alcançar um valor líquido. (…) na ausência de factos a esse mister provados, o recurso à equidade como, aliás, permitido – senão mesmo imposto pela alínea a) do art.º 4º do código civil.

(…)

Atendendo aos limites permitidos pelos factos provados – dentro daqueles que, anteriormente, foram fixados pela sentença ilíquida – tenho por adequado e razoável, logo, por equitativo, fixar a quantia em liquidação no montante total de € 7.500,00.».

Quer dizer, mesmo no âmbito do incidente de liquidação – fase derradeira das tarefas processuais quantificadoras –, não foi possível apurar o quantum exato a atender, por permanecerem ainda incertos, depois de todas as diligências probatórias, os custos e despesas exatos da pintura e restauro, o mesmo ocorrendo relativamente a mão de obra para restauro e número de horas de trabalho despendido, apenas se sabendo, concretamente, que o valor médio, em termos de mercado, do trabalho de avaliação e restauro daquele veículo era de cerca de € 15,00 (por hora).    

No caso dos autos, é manifesta, por isso, a falta de factualidade apurada que permita, de per si, uma imediata e adequada quantificação do montante a pagar. É que a factualidade essencial destinada a suportar essa quantificação resultou, ainda aqui, não provada (cfr. os diversos pontos do factualismo não provado).

Por isso, e como refere a 1.ª instância, apenas resta a procura da bitola da equidade, tendo de ser fixada a quantia a pagar, no já estabelecido âmbito do enriquecimento sem causa, com restituição do valor correspondente ao despendido na restauração da viatura, restituição essa que, todavia, se não pode levar ao enriquecimento injustificado da Apelada (se excessiva), também não deve conduzir à ausência ou insuficiência de devolução patrimonial. O que se pretende é, afinal, a parificação patrimonial, removendo – mas só isso – o enriquecimento sem causa que, doutro modo, ficaria intocado.

Daí, pois, a pertinência do recurso ao preceituado no art.º 566.º, n.º 3, do CCiv., segundo o qual, “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”, nada impedindo que o recurso à equidade ([13]) tenha lugar, se necessário, na própria fase de liquidação ([14]).

Ficam, pois, os critérios a que haverá de lançar mão o julgador no âmbito do juízo de equidade ([15]).

Ora, “a equidade que atravessa todo o juízo valorativo para o calculo possível de um dano que corresponde, afinal, à situação virtual da diferença entre o antes e o depois da verificação do evento (artigo 562.º) – a equidade, dizíamos – e para que assuma verdadeiramente essa natureza de justiça do caso, na conhecida definição aristotélica, tem de funcionar nos dois sentidos, como é disso afloramento o que diz o artigo 494.º, do Código Civil. Deve tratar-se igual o que é igual; e diferente o que é diferente!” ([16]).

E, noutra formulação, «“a equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo. E funciona em casos muito restritos, algumas vezes para colmatar as incertezas do material probatório; noutras para corrigir as arestas de uma pura subsunção legal, quando encarada em abstracto… A equidade, exactamente entendida, não traduz uma intenção distinta da intenção jurídica, é antes um elemento essencial da jurisdicidade… A equidade é, pois, a expressão da justiça num dado caso concreto… não equivale ao arbítrio; é mesmo a sua negação… é uma justiça de proporção, de adequação às circunstâncias, de equilíbrio. Quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se somente encontrar aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal” (Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 2.ª ed., págs. 103/105)» ([17]).

No caso, não se tratará de recorrer à equidade para contornar questões de falta de prova de factos que pudessem ser provados, mas antes, dentro dos limites que foi possível ter por provados, encontrar a justa compensação para um dano/empobrecimento que é incontornável, mas cuja extensão/intensidade exata, em termos de volume de empobrecimento real, não foi possível delimitar com todo o rigor, o que pode, no limite, ser suprido com parâmetros de razoabilidade, adequação e justa proporção, fazendo apelo à justiça do caso, tendo em conta os dados da experiência comum e um padrão de normal diligência.

Não vale, pois, aqui invocar – como fazem os Apelantes, com todo o respeito devido – as regras do ónus da prova, dispondo o art.º 342.º, n.º 1, do CCiv. que àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.

É que os factos constitutivos do direito já foram anteriormente provados no âmbito da ação condenatória – daí a condenação ocorrida, estabelecendo o direito e a correspetiva obrigação, tornados, aliás, indiscutíveis, por ter ocorrido trânsito em julgado.

Por isso, foi observado o disposto naquele art.º 342.º, n.º 1, não tendo deixado de ocorrer a condenação que se pretende liquidar.

Agora, porém, estamos numa fase diversa, para a qual a solução está, a jusante, no art.º 566.º, n.º 3, do CCiv., a abrir as portas da equidade, por verificada impossibilidade de quantificação exata do dano/empobrecimento a compensar/reparar.

Assim, ponderando, neste âmbito, o factualismo apurado, de si expressivo daquele empobrecimento, e a grande exiguidade de outros elementos para a sua quantificação, mas importando não privar a parte lesada/empobrecida da necessária reparação, não vemos, no âmbito do imprescindível juízo de equidade – que não é injustiça, para nenhuma das partes, nem “salto no escuro”, mas justa proporção, justiça possível do caso –, outro critério a sufragar que não seja o adotado pelo Julgador a quo, que se socorreu do já apurado em sede condenatória e do adquirido na liquidação.

Salvo, pois, o devido respeito, não se descortina como minorar ou suprimir o quantum indemnizatório arbitrado sem se incorrer – passe a expressão – no dito “salto no escuro”, que já não é equidade mas indesejável atuação temerária, potencial fonte de injustiça para alguma das partes.

Se vem provado que a pintura e restauro do veículo acarretou, para a Requerente, custos e despesas (embora não tenha sido possível apurar com rigor e em pormenor o seu montante); que em mão de obra para restauro a Requerente despendeu, ao longo dos anos de 2015 a 2018, número de horas de trabalho dos seus funcionários (em trabalhos avaliação e seriação dos trabalhos e peças necessários, de busca de fornecedores apropriados, de transporte, desmontagem, remontagem e reparação, pintura e polimento do motor e do chassis, de ensaios e testes) que não foi possível apurar com rigor e em pormenor; sendo que o trabalho de avaliação e restauro do automóvel em causa é de valor médio, em termos de mercado, de cerca de € 15,00/h.; então seria manifestamente injusto julgar improcedente o incidente – como defendem, a final, os Apelantes –, nada atribuindo a quem se encontra notoriamente empobrecido, como já definido com trânsito em julgado, trânsito esse a ter de ser respeitado.

Mas será o montante atribuído – de € 7.500,00 –, nestas circunstâncias, manifestamente excessivo, à luz da bitola da equidade?

Cabe dizer que não se nota a invocada exorbitância.

O pedido formulado pela Requerente ascendia a mais do dobro deste montante fixado, o que implica o decorrente decaimento desta nessa escala de proporção.

Os trabalhos executados pela Requerente – de pintura e restauro, peças aplicadas e inerente mão de obra – têm, obviamente, os seus custos, não negligenciáveis.

E têm de ser compensados, não se vendo que a sentença em crise o determine de forma imoderada, irrazoável ou arbitrária.

Atendendo ao tipo de trabalhos e à natureza do veículo intervencionado, a respetiva execução não deixava de demandar especiais cuidados, para preservar o veículo, escolhendo-se os materiais próprios, a terem de ser localizados e adquiridos (com previsível grau de dificuldade, atenta a antiguidade e raridade do veículo), e a mão de obra especializada, que desse garantias quanto ao resultado dos trabalhos de restauro e pintura, sob pena de prejuízos avultados para uma viatura como aquela.

Neste contexto, havendo de julgar-se sem factos exatos em termos de montantes – por jamais ter sido possível alcançá-los –, resta dizer que o juízo de equidade adotado pela 1.ª instância não parece fora da margem de adequação que é possível nestes casos, afastando – reitera-se – qualquer juízo de arbítrio.

Ademais, concorda-se, quanto à equidade, que pode emergir uma dimensão subjetiva inerente a cada julgador, potenciadora de soluções divergentes para casos similares, razão pela qual a aplicação, em concreto, da equidade obriga a especial ponderação, de molde a, numa perspetiva objetivista do juízo equitativo, evitar soluções que, afetando a certeza e segurança do direito, sejam portadoras de injustiça.

Neste âmbito, pode entender-se que os tribunais superiores devem adotar um critério prudencial que apenas considere como censurável e suscetível de revogação uma solução que, de forma manifesta e intolerável, exceda certa margem de liberdade decisória que permite considerar como ainda ajustado e razoável um montante reparatório situado dentro de determinados limites.

Haverá, pois, de sindicar-se o critério de equidade concretamente aplicado, pelo que, a situar-se a reparação fixada no quadro de um exercício razoável do juízo de equidade, designadamente à luz da prática jurisprudencial e atendendo às diferenças nas circunstâncias de cada caso, não será caso de revogar a decisão recorrida ([18]).

In casu, não se vê, ante os dados disponíveis, que tenha o Julgador a quo divergido daquele exercício razoável do juízo de equidade, num âmbito em que não poderia deixar, em derradeiro acertamento, de fixar um determinado quantum, o que fez de forma equilibrada.

Nada, pois, a alterar à decisão recorrida, assim improcedendo as conclusões em contrário dos Apelantes.


***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Faltando, em processo incidental de liquidação quanto a sentença condenatória, depois de produzidas as provas, pontos de sustentação fáctica que permitam uma fixação exata, em sede reparatória, do volume de empobrecimento patrimonial do lesado/empobrecido, deve o tribunal julgar equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (art.º 566.º, n.º 3, do CCiv.).

2. - Ao relegar para ulterior fase incidental de liquidação o apuramento do valor que o credor tem a receber, o tribunal da condenação já deixou reconhecida a existência de um direito de crédito, que apenas não foi quantificado, devendo sê-lo na posterior liquidação, ficando vedada nesta a discussão sobre a existência do crédito e da correspondente obrigação, o que ofenderia o trânsito em julgado da decisão condenatória em obrigação ilíquida.

3. - Nada obsta a que a equidade funcione como último critério na fase de liquidação, se também em tal fase se mostrou impossível proceder à quantificação do dano/empobrecimento exato/concreto, caso em que a fixação respetiva segundo juízos de equidade constitui matéria de direito, fazendo apelo a bitola jurídica.

4. - A equidade, como justiça do caso, mostra-se apta a colmatar as incertezas do material probatório, bem como a temperar o rigor de certos resultados de pura subsunção jurídica, na procura da justa composição do litígio, fazendo apelo a dados de razoabilidade e equilíbrio, tal como de normalidade, proporção e adequação às circunstâncias concretas, sem cair no arbítrio ou na mera superação da falta de prova de factos que pudessem ser provados.

5. - Perante decisões recorridas fundadas na equidade, é adequado um critério de revogação apenas das soluções que excedam manifestamente determinada margem de liberdade decisória, sendo então de verificar o padrão de equidade aplicado em concreto, pelo que, a situar-se a indemnização no quadro de um exercício razoável e equilibrado do juízo de equidade, não se justificará, em regra, a revogação.

***
V – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas da apelação a cargo dos Apelantes (vencidos no recurso).

Coimbra, 12/07/2022

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (Relator)

          Luís Cravo

                                      

Fernando Monteiro


([1]) Que se deixam transcritas, com destaques subtraídos.
([2]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([3]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão de outras.
([4]) Cfr. Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 126 e seg., com destaques aditados.
([5]) Cfr. op. cit., ps. 128 e seg., com sublinhado aditado.
               ([6]) Vide, Abrantes Geraldes, op. cit., p. 118.
([7]) Cfr., inter alia, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V (reimpressão), Coimbra Editora, Coimbra, 1984, ps. 308 e segs. e 358 e segs., e Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 33.

([8]) Como vem entendendo a jurisprudência dominante do STJ, “no âmbito do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, não cabe despacho de convite ao aperfeiçoamento das respectivas alegações” – cfr. Ac. STJ de 09/02/2012, Proc. 1858/06.5TBMFR.L1.S1 (Cons. Abrantes Geraldes), disponível em www.dgsi.pt, com itálico aditado, bem como demais jurisprudência ali citada. No mesmo sentido, à luz do NCPCiv., cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., ps. 127 e seg..
([9]) Especificamente sobre os ónus legais em causa e consequências da respetiva omissão, veja-se ainda, entre outros, o Ac. STJ de 19/02/2015, Proc. 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Cons. Tomé Gomes), disponível em www.dgsi.pt. Efetivamente, pode ler-se no respetivo sumário:
«1. Para efeitos do disposto nos artigos 640.º, n.º 1 e 2, e 662.º, n.º 1, do CPC, importa distinguir, por um lado, o que constitui requisito formal do ónus de impugnação da decisão de facto, cuja inobservância impede que se entre no conhecimento do objeto do recurso; por outro, o que se inscreve no domínio da reapreciação daquela decisão mediante reavaliação da prova convocada.
2. A exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem impugnar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto.
(…)
4. É em vista dessa função que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso (…).
5. Nessa conformidade, enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.».
([10]) Cfr. ponto II- B., da motivação de recurso (sob a epígrafe «Omissão de factos relevantes»), sempre no âmbito da «impugnação da decisão sobre a matéria de facto», que encima o ponto II.
([11]) Proc. 1932/19.8T8FIG.C1 (Rel. Emídio Francisco Santos), disponível em www.dgsi.pt.
([12]) Cfr., inter alia, o Ac. TRL de 01/10/2014, Proc. 2656/04.6TVLSB-A.L2-6, bem como o anterior Ac. do mesmo TRL de 06/06/2013, Proc. 6730/07.9TMSNT.L2-6, ambos subscritos pelo aqui Relator, disponíveis em www.dgsi.pt, podendo ainda ler-se neste último: «Ao relegar para ulterior fase de liquidação de sentença o apuramento do valor que o credor tem a receber, o Tribunal da condenação já reconheceu a existência de um direito de crédito, que apenas não foi quantificado, devendo sê-lo na posterior liquidação, onde não se discute, por isso, a existência do crédito» (destaque aditado).  
([13]) Como referido no Ac. do STJ de 11/12/2012, Proc. 549/05.9TBCBR-A.C1.S1 (Cons. Fernando Bento), in www.dgsi.pt., “a fixação dos danos segundo juízos de equidade constitui matéria de direito”.
([14]) Cfr., por todos, o Ac. do STJ de 03/02/2009, Proc. 08A3942 (Cons. Mário Cruz), in www.dgsi.pt, cujo sumário, por pertinente, em parte se transcreve: “I. Quando fiquem provados danos mas não tenha sido possível estabelecer a sua quantificação, a opção entre equidade e liquidação prévia em fase posterior, deve obedecer àquela que dê mais garantias de se mostrar ajustada à realidade.
II. Assim, se apesar de provado o dano, não foi possível atingir-se na fase que vai até à Sentença um valor exacto para a sua quantificação, mas seja admissível que ainda é possível atingi-lo com recurso a prova complementar sobre o montante exacto ou muito próximo dos danos reais, não deve passar-se para a fase executiva na parte em que a condenação ainda não esteja líquida, sendo o instrumento adequado o incidente de liquidação previsto nos arts. 378.º-2 e 47.º-5, na redacção que lhes foi dada pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março. III. Se, pelo contrário, apesar de provado o dano, não foi possível atingir-se a determinação do seu montante exacto, nem se veja forma de o poder atingir com prova complementar sobre a quantificação dele, o meio adequado para o estabelecer é utilizar desde logo a equidade – art. 566.º-3 do CC. (entre outras razões por racionalidade de meios), dentro dos limites que o tribunal tenha disponíveis para o efeito. (…) V. Nada obsta que a equidade funcione como último critério no incidente de liquidação (arts. 47.º-5 e 378.º-2 do CPC) se nem nessa fase foi possível determinar a quantificação do dano concreto. VI. A equidade tem de ser justificada, sob pena de a atribuição de uma indemnização a esse título corresponder a uma indemnização arbitrária”.

([15]) Esta, como escrito no Ac. do STJ de 07/07/2009, Proc. 704/09.9TBNF.S1 (Cons. Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt, «é um “Termo de procedência latina (aequitas) com o significado etimológico e corrente de “igualdade”, “proporção”, “justiça”, “conveniência”, “moderação”, “indulgência”, é utilizado na linguagem da ética e das ciências jurídicas sobretudo para designar a adequação das leis humanas e do direito às necessidades sociais e às circunstâncias das situações singulares (a equidade é, por assim dizer, a “justiça do caso concreto”)».

([16]) Assim o Ac. STJ de 04/04/2002, Proc. 02B205 (Cons. Neves Ribeiro), in www.dgsi.pt.

([17]) Cfr. Ac. TRL de 29/06/2006, Proc. 4860/2006-6 (Rel. Carlos Valverde), in www.dgsi.pt.
([18]) V. Ac. TRE, de 22/10/2015, Proc. 378/10.8TBGLG.E1 (Rel. Mário Mendes Serrano), em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “Os tribunais superiores devem apreciar as decisões de 1ª instância sobre a fixação de montantes indemnizatórios com apelo à equidade segundo uma perspectiva de intervenção que assente na aferição da calibragem do critério de equidade concretamente aplicado. Daqui decorre que quando a indemnização fixada se situar ainda dentro do quadro de um exercício razoável do juízo de equidade, não assiste ao tribunal ad quem razão para revogar a decisão da 1ª instância: só o deverá fazer quando haja uma concretização flagrantemente desajustada ou arbitrária do juízo de equidade pelo tribunal a quo.”. Veja-se também sobre a matéria o Ac. STJ de 29/06/2017, Proc. 976/12.5TBBCL.G1.S1 (Rel. Lopes do Rego), disponível igualmente em www.dgsi.pt.