Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
604/08.3TBALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: ARRENDAMENTO
PRÉDIO RÚSTICO
DEPÓSITO
VENDA
SALVADOS
DIREITO DE PREFERÊNCIA
ARRENDATÁRIO
Data do Acordão: 04/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALBERGARIA-A-VELHA - 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 47º E 110º DO RAU
Sumário: I – O contrato de arrendamento de prédio rústico que tem por objecto não só o depósito ao ar livre de sucata de automóveis, mas também a venda de peças dos mesmos (comercialização de salvados) deve ser qualificado como contrato de arrendamento para comércio (artº 110º do RAU) e não como contrato de arrendamento de prédio rústico para outros fins.

II – Nesse caso, o arrendatário tem direito de preferência na venda a terceiro do prédio rústico arrendado – artº 47º do RAU.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I – RELATÓRIO

         1.1. - Os Autores – A... e mulher B... – instauraram (em 23/7/2008) na Comarca de Albergaria–a-Velha acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra a Ré – C...

         Alegaram, em resumo:

         Por escrito particular de 6/11/1995, o Autor marido tomou de arrendamento à D... um terreno com área útil de 750 m2, sito no Areeiro e inscrito na matriz da freguesia da Branca sob os arts 2961 a 2964, destinado à comercialização de peças de salvados de ligeiros (doc. fls.26).

         Por escritura pública de 30/12/2005, a senhoria vendeu à Ré os referidos prédios rústicos, pelo preço global de € 50.300,00, sem lhe comunicar tal facto, assistindo-lhe, por isso, o direito de preferência, nos termos do art.47º do RAU.

         Pediram que seja reconhecido aos Autores o direito de haverem para si, como preferentes, o prédio identificado no art.1º, condenando-se a Ré a abrir mão dele, entregando-o aos Autores.

         Contestou a Ré, defendendo, em síntese:

         Por excepção, invocou a ilegitimidade activa da Autora mulher, a ilegitimidade passiva por não ser demandada a vendedora D..., a caducidade por haverem depositado o preço apenas em singelo, sem as despesas da escritura, registo e do IMT, bem como a renúncia ao direito de preferência.

         Por impugnação, diz não assistir aos Autores o direito de preferência.

         Replicaram os Autores, contraditando a defesa por excepção, e requereram a intervenção principal da sociedade “D...”.

         1.2. - No saneador/sentença, afirmou-se tabelarmente a validade e regularidade da instância e julgou-se a acção improcedente, absolvendo-se a Ré do pedido.

         1.3. – Inconformados, os Autores recorreram de apelação, com as seguintes conclusões:

         1º) - O arrendamento em causa tem natureza unitária que é comercial, compra e venda de salvados de veículos ligeiros, conforme consta do clausulado do contrato

         2º) – O direito de preferência funda-se no facto da proprietária ter celebrado com o Autor um contrato no qual lhe dá de arrendamento os prédios vendidos

         3º) – O arrendamento em causa é um contrato oneroso, cujo elemento essencial, além da renda, consta como fim expressamente declarado e pretendido pelas partes o depósito e comércio de salvados de veículos automóveis sinistrados.

         4º) – Aplica-se o direito de preferência previsto no art.47º do RAU, vigente à data do contrato.

         5º) – Foram violados os arts.1022º, 1067º, 1089º, 1410º CC e art.47º do RAU.

        

Não foram apresentadas contra-alegações.


II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. - O Tribunal deu como provados os seguintes factos:

1) - Por escritura pública outorgada no dia 30/12/05, no Cartório Notarial, sito em Aveiro, sendo Notário E... , a firma D..., pessoa colectiva n.º 501 927 751 declarou vender, na pessoa do seu legal representante à aqui Ré os seguintes prédios:

a) Prédio Rústico, composto de eucaliptal, sito no Fural, inscrito na matriz sob os arts. 2961 e 2962, descrito na Conservatória sob o 1379, registado a favor da vendedora pela inscrição G-três ao qual cabe o preço de treze mil e setecentos euros;

b) Prédio rústico, composto de eucaliptal, sito no Fural, inscrito na matriz sob o art. 2963, descrito na Conservatória sob o número 1380, registado a favor da vendedora pela inscrição G-três;

c) Prédio rústico, composto de pinhal, sito no Fural, inscrito na matriz sob o art. 2964, descrito na Conservatória sob o número 1378, registado a favor da sociedade vendedora pela inscrição G-3, ao qual cabe o preço de doze mil e quatrocentos euros (cf. certidão de fls. 6 e ss).

2) - A 06 de Novembro de 1995 a D... celebrou um contrato com o aqui A e no qual declararam, a primeira como senhoria e o segundo como arrendatário, que “fazem o presente contrato de arrendamento relativo a um terreno, com a área útil de + 750 m2, sito no Areeiro e inscrito na matriz da freguesia da Branca, concelho de Albergaria-a-Velha sob os n.s 2961 e 2964.

Este arrendamento é feito pelo prazo de um ano, a começar no dia 154 de Novembro de 1995 e a terminar a 14 de Novembro de 1996, considerando-se prorrogado por sucessivos períodos iguais e nas mesmas condições, enquanto, por qualquer das partes não for denunciado, nos termos da lei.

Integram-se no arrendamento, e para seu uso, para comercialização de peças salvados de ligeiros (cf doc junto a fls. 26 e não impugnado).

         2.2. – A qualificação do contrato de arrendamento e o direito de preferência:

A sentença recorrida qualificou o contrato como de arrendamento de prédio rústico para outros fins, inserido no âmbito geral da locação (arts.1022º a 1063º do CC), para o qual não está previsto qualquer direito de preferência.

         Em contrapartida, os Autores/Apelantes fundam o direito de preferência no art.47º do RAU, visto tratar-se de um contrato de arrendamento para comércio.

         Quid iuris?

         Em primeiro lugar, há que aquilatar da modalidade do arrendamento predial, aferida pela lei vigente à data da celebração do contrato.

         O Autor marido (arrendatário) e a D..., celebraram, em 6 de Novembro de 1995, o contrato de arrendamento constante do doc. de fls.26, pelo que se aplica o RAU ( aprovado pelo DL nº321-B/90 de 15/10).

         O arrendamento predial pode ser urbano ou rústico conforme a natureza do prédio sobre que incide, face ao critério estabelecido no art.204 nº2 do CC.

         Tratando-se de prédio rústico, o arrendamento rústico assume a natureza de rural (agricultor autónomo e empresário agrícola) e não rural.

         Por sua vez, o arrendamento rústico não rural pode ser para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, ou para outros fins.

         As partes outorgantes consignaram no contrato, além do mais, o seguinte – “Integram-se no arrendamento e para seu uso, para comercialização de Peças Salvadas de Ligeiros”.

         Interpretar uma declaração negocial é actividade tendente a determinar o que as partes quiseram ou declararam querer. E, como se viu, esta vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (art.236º CC). Nos negócios formais, se o sentido da declaração não tiver reflexo ou expressão no texto do documento, ele não pode ser deduzido pelo declaratário e não deve por isso ser-lhe imposto (art.238 do CC).

         A interpretação do contrato, face aos critério dos arts.236º e 238º do CC, com um mínimo de correspondência no texto, leva a considerar que a sua finalidade é a comercialização de salvados, ou seja, o arrendamento foi tomado para um fim directamente relacionado com uma actividade comercial.

         De resto, como a própria Ré alegou, embora fazendo incidir o local arrendado apenas sobre uma parte do terreno, o Autor (arrendatário) sempre destinou a depósito ao livre de sucatas de automóveis e à venda de peças dos mesmos ( cf. arts.16 a 16-D da contestação ).

         Dispõe o art.110 do RAU “ Considera-se realizado para comércio ou indústria o arrendamento de prédios ou parte de prédios urbanos ou rústicos tomados para fins directamente relacionados com uma actividade comercial ou industrial”.

         Pressupondo a actividade comercial ou industrial uma actividade de mediação nas trocas ou uma actividade de produção (extracção ou transformação) ou circulação de riqueza (cf. PEREIRA COELHO, Arrendamento, 1988, pág.41 ), verifica-se que o prédio arrendado é destinado à comercialização de salvados, ou seja, à actividade de compra e venda, logo ao exercício do comércio.

         Não se trata aqui de um arrendamento que tem apenas por objecto o depósito ao ar livre de sucatas de automóveis, caso em que se configuraria como de arrendamento para outros fins (cf. Ac STJ de 3/2/99, C.J. ano VII, tomo I, pág.78), mas de um arrendamento para comercialização de salvados.

         Sendo assim, o arrendamento terá que se considerado como de prédio rústico para o comércio (art. 110 do RAU) e não para outros fins.

         O art.6 nº1 do RAU manda aplicar aos “ arrendamentos rústicos não sujeitos a regimes especiais” o regime geral da locação civil (arts.1022º a 1063º do CC) e, com as devidas adaptações, determinadas normas mencionadas do RAU, mas não a do art.47 (preferência).

         Contudo, o art.6 nº1, deve ser interpretado restritivamente, no sentido de se aplicar apenas aos arrendamentos rústicos não rurais, nem florestais, “para outro fim “ (que não seja o exercício de comércio, indústria ou profissão liberal do arrendatário) - (confronte PEREIRA COELHO, “ Breves Notas ao regime do Arrendamento Urbano”, RLJ ano 125, pág.259, CARNEIRO DA FRADA, ROA ano 51 (1991), pág.163 e segs.).

Por isso, os arrendamentos rústicos não rurais, nem florestais para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal continuam sujeitos às mesmas regras por que se regem os arrendamentos urbanos para aqueles fins, ou seja, às disposições gerais do arrendamento urbano (arts.1º a 73º), com as especialidades constantes dos arts.110º a 116º ou 117º e 118º do RAU.

         Como o direito de preferência se rege pela lei em vigor à data da venda (30/12/2005), face ao art.12 nº1 do CC (cf., por ex., Ac do STJ de 28/1/97, C.J. ano V, tomo I, pág.77), aplica-se aqui o RAU, cujo art.47 confere ao arrendatário o direito de preferência e porque inserido nas disposições gerais do arrendamento urbano é aplicável ao contrato de arrendamento em causa.

         Posto isto, o tribunal a quo não podia conhecer imediatamente do pedido no saneador e absolver a Ré do pedido (art.510 nº1 b) e 288 nº3 do CPC), impondo-se antes o prosseguimento do processo com apreciação da requerida intervenção de terceiros, bem assim do conhecimento das excepções invocadas na contestação.

         2.3. – Síntese conclusiva:

         1. O contrato de arrendamento de prédio rústico que tem por objecto não só o depósito ao ar livre de sucata de automóveis, mas também a venda de peças dos mesmos (comercialização de salvados) deve ser qualificado como contrato de arrendamento para comércio (art.110º do RAU), e não como contrato de arrendamento de prédio rústico para outros fins.

         2. – Nesse caso, o arrendatário tem direito de preferência (art.47º do RAU) na venda a terceiro do prédio rústico arrendado.


III – DECISÃO

         Pelo exposto, decidem:


1)

         Julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida, determinando-se o prosseguimento do processo.

2)

         Custas pela parte vencida a final.