Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7471/15.9T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
TRESPASSE
RESOLUÇÃO
ABUSO DE DIREITO
SUPRESSIO
Data do Acordão: 09/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JC CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.334, 1049 CC
Sumário: 1 – Ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante.

2 – Uma das modalidades que dogmaticamente se tem considerado configurar abuso do direito é a supressio, que se traduz no não exercício do direito durante um lapso de tempo de tal forma longo que crie na contraparte a representação de que esse direito não mais será exercido, conduzindo o exercício tardio a uma desvantagem injustificada para esta.

3 – À luz deste instituto jurídico, constituiria um abuso do direito por parte da Autora/recorrente (na modalidade da dita supressio) vir a mesma invocar a invalidade do trespasse, quando a mesma sucedeu na posição dos primitivos locadores, que já haviam reconhecido a ora Ré na qualidade de nova arrendatária, por virtude de um contrato de trespasse.

Decisão Texto Integral:







           Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

CONSTRUÇÕES C (…), L.da”, sociedade comercial com sede no (...) Mira propôs acção declarativa com processo comum contra “T (…), L.da”, sociedade comercial com sede no referido (...) , Mira, pedindo a condenação da ré a reconhecer que é ilegítima detentora do estabelecimento comercial denominado café O (...) , por nulidade do referido trespasse e a entregar à A. livre e desocupado, o rés-do-chão do prédio onde funciona, melhor identificado no artigo 2º da petição, bem como a pagar à A. a indemnização diária de 14,25 €, pela demora que a sua atitude ocasione à A., a partir do momento em que seja aprovado pela Câmara Municipal de Mira o projeto da nova construção que a A. ali pretende edificar.

 Para fundamentar a sua pretensão alega que:

- Adquiriu aos titulares da herança aberta por óbito de M (…) um prédio urbano, sito no referido largo (...) de Mira, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº 138 e inscrito na matriz predial da referida freguesia sob o artigo nº 6867.

- No rés-do-chão do identificado prédio funcionou durante muitos anos um estabelecimento de café, conhecido pela denominação de Café O (...) , de que, nos últimos tempos, foi rosto mais conhecido, até 2006, M (…) solteira, maior, residente em Mira.

- Em virtude de o ter adquirido, juntamente com A (…) por escritura de trespasse celebrada com F (…) e esposa A (…), a 11 de Agosto de 1983, no Cartório Notarial de Vagos. Doc. 5

- Trespasse esse que viria, depois, a ser ratificado e alteradas as cláusulas contratuais do arrendamento, através de termo de transação celebrado, aos 09/04/1985, na Ação de Despejo nº 90/84, que correu termos pelo extinto Tribunal Judicial de Vagos, em que foram autores (…)  na qualidade de titulares da herança aberta por óbito de M (…), então indivisa e RR os trespassantes acima identificados e a A e referidos associados. Doc. 6

- Entretanto, os demais arrendatários foram cedendo, ao longo dos anos, a sua posição contratual à referida M (…) que, a partir dos anos 90 ficou sozinha a explorar o dito estabelecimento.

- Aos 24/04/2006, a mencionada M (…) e L (…) no Cartório do Centro de Formalidades de Empresas, em Coimbra, celebraram um contrato de constituição da sociedade a que deram o nome de “T (…), Lda”, aqui Ré. Doc. 7.

- A partir dessa altura a sociedade Ré passou a comportar-se como se dona fosse do dito estabelecimento.

- Porém, não foi celebrado qualquer documento que formalizasse o trespasse do estabelecimento da mencionada M (…), para a referida sociedade.

- Nem o dito estabelecimento fez parte do valor aportado por essa sócia para a constituição da dita sociedade.

- Pelo que o trespasse do estabelecimento é nulo por falta de forma.

                                                           *

Devidamente citada a Ré, contestou alegando que a referida M (…)notificou os herdeiros a fim de exercerem direito de preferência no trespasse do estabelecimento comercial em causa e que este direito não foi pelos mesmos exercido. Mais alega que os mesmos herdeiros passaram a receber as rendas da sociedade ré, reconhecendo-a como beneficiária do trespasse apesar de este não ter sido formalizado por escritura pública. Além disso a herança notificou a ré para exercer o seu direito de preferência na venda. Finalmente alega que pagou à identificada M (…) € 60.000,00 pelo trespasse e realizou obras no estabelecimento cujo montante ascendeu a € 69.604,08.

Por isso conclui que, a julgar-se procedente os pedidos formulados pela A., o que não se concebe, deverá o pedido reconvencional ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser a A. Reconvinda condenada a pagar à R. reconvinte a quantia global de 129.604,08€uros (cento e vinte e nove mil seiscentos e quatro euros e oito cêntimos), acrescida de juros de mora legais desde a citação até efetivo e integral pagamento.

A autora replicou alegando que os titulares da herança terão acreditado que o trespasse se teria concretizado e foi nessa convicção que receberam rendas e notificaram a ré para eventual exercício do direito de preferência na venda.

                                                           *

Em despacho pré-saneador (cf. fls. 142-147), foi julgada a Ré parte ilegítima e, por via de tal, absolvida da instância, e bem assim julgado extinto o pedido reconvencional por inutilidade superveniente da lide.

Na sequência imediata, requereu a Ré a intervenção provocada de M (…) solteira, maior, residente na Rua (...) Mira, contribuinte nº (...) , o que foi admitido ao abrigo do disposto no art. 261º do n.C.P.Civil (intervenção principal provocada do lado passivo), considerando-se renovada a instância extinta.

                                                           *

Veio, subsequentemente, a ser proferido despacho saneador, afirmando-se a verificação tabelar dos pressupostos processuais (designadamente a legitimidade das partes verificada a intervenção na causa de M (…)), determinado o objeto do litígio e elencados os temas de prova sem quaisquer reclamações.

Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, conforme consta da respectiva ata.

Na sentença, considerou-se, em suma, que face à factualidade apurada, importava concluir no sentido de que, sendo certo que a invalidade do trespasse e a sua ineficácia em relação ao senhorio são fundamento da resolução do contrato de arrendamento relativa ao local onde está instalado o estabelecimento trespassado, sucedia que, por força do disposto no art. 1049º do C.Civil, o locador não tinha direito à resolução do contrato se tivesse reconhecido o beneficiário da cedência como tal, pelo que, independentemente de os primitivos senhorios terem agido no convencimento de que, de facto, havia sido celebrado um válido contrato de trespasse com a nova arrendatária, reconheceram esta nessa qualidade, donde, não podia agora a Autora, que sucedeu na posição dos primitivos locadores, vir opor à locatária a invalidade do trespasse, termos em que improcedia a acção, e ficava prejudicado o pedido reconvencional, o que tudo se concretizou no seguinte concreto “dispositivo”:

« DECISÃO

Pelo exposto, julgo a ação totalmente improcedente por não provada e em conformidade, absolvo a ré do pedido, ficando prejudicada a apreciação do pedido reconvencional.

*

Custas da ação a cargo da autora (artº 527º, nº 1 e 2 do CPC) e da reconvenção a cargo da ré.

Registe e notifique.»

                                                           *

Inconformada com essa sentença, apresentou a Autora recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

                                                                       *

Contra-alegou a Ré, extraindo do respetivo articulado as seguintes “conclusões”:

(…)

                                                           *

            O Exmo. Juiz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

            Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, as questões são:

 - desacerto da decisão de improcedência da acção, fundada na aplicação do art. 1049º do C.Civil, na medida em que este normativo apenas retira ao locador o direito de resolver o contrato quando tenha reconhecido o beneficiário da cedência como tal, o que não ocorreu na situação dos autos, atento o facto “não provado” retirado do art. 12º da contestação?

- desacerto dessa mesma decisão, fundada na aplicação do art. 1049º do C.Civil, porque o instituto do abuso do direito apenas impede que se invoque a nulidade formal quando, se tenha aceite essa nulidade, criando na parte contrária a convicção séria e fundamentada de que tal situação se manterá, o que não ocorreu na situação dos autos?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade que interessa ao conhecimento do presente recurso, é a que foi alinhada na decisão recorrida (e que não foi expressamente alvo de impugnação nas alegações recursivas), a saber:

«Discutida a causa considero provados os seguintes factos:

1º A A. é uma sociedade que se constituiu recentemente, com a finalidade de desenvolver a atividade de construção civil e compra e venda de propriedade, como se alcança da certidão permanente que se junta e dá por reproduzida. Doc. 1 [art1PI].

2º E com a intenção de desenvolver essa atividade, dias depois da sua constituição, adquiriu aos titulares da herança aberta por óbito de M (…) um prédio urbano, sito no referido largo (...) de (...) , descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº 138 e inscrito na matriz predial da referida freguesia sob o artigo nº 6867. Doc.s 2, 3 e 4 [art2PI].

3º Aquisição que fez registar a seu favor, como se alcança da certidão acima junta como Doc. 3 [art3PI].

4º Há mais de 20, 30 e 40 anos que a sociedade A. e referidos antecessores vêm usando e fruindo do dito prédio, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, ininterrupta e continuadamente, na convicção de usarem e fruírem coisa exclusivamente sua, adquirida de anterior proprietário, habitando-o, ou dando-o de arrendamento a terceiros, colhendo todos os frutos e suportando os correspondentes encargos [art4PI].

5º No rés-do-chão do identificado prédio funcionou durante muitos anos um estabelecimento de café, conhecido pela denominação de Café O (...) , de que, nos últimos tempos, foi rosto mais conhecido, até 2006, M (…), solteira, maior, residente em Mira [art6PI].

6º Em virtude de o ter adquirido, juntamente com A (…) e D (…)por escritura de trespasse celebrada com F (…) e A (…), a 11 de Agosto de 1983, no Cartório Notarial de Vagos. Doc. 5 [art7PI].

7º Trespasse esse que viria, depois, a ser ratificado e alteradas as cláusulas contratuais do arrendamento, através de termo de transação celebrado, aos 09/04/1985, na Ação de Despejo nº 90/84, que correu termos pelo extinto Tribunal Judicial de Vagos, em que foram autores (…), em representação da herança aberta por óbito de M (…), então indivisa e RR. os trespassantes acima identificados e a A e referidos associados. Doc. 6 [art8PI]

8º Nesse acordo as partes estipularam que o arrendado se destinava ao desenvolvimento da atividade que os ditos trespassantes já ali exerciam e que era o comércio de café e bebidas [art9PI].

9º O dito contrato de arrendamento foi celebrado por um prazo de um ano com início no dia um daquele mês, e fim aos 31/03/1986, supondo-se sucessivamente renovável por iguais períodos, nos termos legais [art10PI].

10º A renda anual convencionada foi de cento e oitenta mil escudos, pagável em duodécimos de quinze mil escudos cada um, no mês anterior ao que respeitasse, no domicílio da mencionada herança [art11PI].

11º Os arrendatários ficaram autorizados a fazer no imóvel “quaisquer obras de beneficiação da parte do imóvel arrendada tendo em vista o fim a que a mesma se encontra adstrita e pelas quais, porém, findo o contrato, não poderão reclamar qualquer indemnização, carecendo de autorização escrita de quem de direito para quaisquer obras que não sejam de beneficiação” [art12PI].

12º Entretanto, os demais arrendatários foram cedendo, ao longo dos anos, a sua posição contratual à referida M (…) que, a partir dos anos 90 ficou sozinha a explorar o dito estabelecimento [art13PI].

13º Aos 24/04/2006, a M (…) e L (…) no Cartório Notarial do Centro de Formalidades de Empresas, em Coimbra, celebraram um contrato de constituição da sociedade a que deram o nome de “T (…), Lda”, aqui Ré. Doc. 7 [art14PI].

14º Com o capital social de 5.000,00 € (cinco mil euros) correspondente à soma de uma quota com o valor nominal de 4.900,00€ (quatro mil e novecentos) euros, pertencente ao sócio L (…) e uma quota com o valor nominal de 100,00 € (cem euros) pertencente à sócia M (…) [art15PI].

15º O objeto da sociedade era a exploração de café e comércio de jornais, revistas e agência de jogos autorizados pela Santa Casa da Misericórdia [art16PI].

16º A sede da sociedade foi fixada no (...) ¸ ou seja, no local onde funcionava o estabelecimento Café O (...) [art17PI].

17º Onde a dita sociedade passou a exercer a atividade comercial de café e bebidas utilizando, para isso, os equipamentos, que a sócia M (…) vinha utilizando [art18PI].

18º A partir dessa altura a sociedade Ré passou a comportar-se como se dona fosse do dito estabelecimento [art19PI].

19º Não foi celebrado qualquer documento que formalizasse o trespasse do estabelecimento da mencionada M (…), para a referida sociedade [art20PI].

20º Nem o dito estabelecimento fez parte do valor aportado por essa sócia para a constituição da dita sociedade (como se alcança da escritura junta como Doc.7) [art21PI].

21º Nessa sequência, a referida M (…) por cartas datadas de 26/05/2006, notificou os herdeiros de (…)proprietários do imóvel e do locado onde funciona o dito estabelecimento comercial, a fim de eventualmente exercerem o direito de preferência no trespasse do estabelecimento comercial em causa, “Café O (...) ”, tendo a mesma comunicado os elementos essenciais do negócio e prazo para o exercício do aludido direito (cfr. docs. 1 a 7 juntos com a contestação cujo conteúdo se dá aqui integralmente por reproduzido) [art9contestação].

22º Decorrido o prazo de 15 dias para o eventual exercício do direito de preferência, o mesmo não foi exercido [art10contestação].

23º Entretanto e após aquela constituição da sociedade R., o estabelecimento continuou a ser explorado pelo referido L (…), sendo que o fazia já em nome da sociedade ora R., tendo os referidos herdeiros de (…)  passado a receber as rendas da sociedade R., o que vem acontecendo até 19/08/2015 (Cfr. docs. 8 e 9 de fls. 49 a fls. 50) [art11contestação].

24º Aquando da venda do imóvel em questão, a herança ilíquida e indivisa por óbito de (…)por carta de 31/07/2015, notificou a R. para querendo, exercer o direito de preferência na venda/aquisição do imóvel, tendo-lhe sido feita a notificação a que se refere o artigo 416º do C.C.-Cfr. doc.58 a fls 80 vs. [art24contestação].

25º Em 2014 os mesmos herdeiros haviam reunido com a R., na pessoa e legal representante desta, L (…)l, a fim de se chegar a acordo para pagamento de uma compensação para o poderem alienar devoluto de pessoas e bens [art25contestação].

26º A R. efetuou depósito do valor da renda mensal no valor de 168,40€, em conta titulada pela A. Banco (...) , Agência de (...) (cfr. doc.59 a fls. 81) [art28contestação].

27º O sócio da Ré, L (…), pagou à sócia da R. M (…), a quantia de 60.000,00€ a título de trespasse do estabelecimento comercial em causa, tendo pago o valor de 55.000,00€ através de cheques e 5.000,00€ em numerário (cfr. docs. 60,61 e 62 de fls. 120 e 121) [art30e31contestação].

28º Procedeu a R. à remodelação do estabelecimento comercial denominado “Café O (...) ”, nele realizando obras, com equipamentos, arranjo do chão, paredes, substituição de materiais, colocação de portas novas, tudo conforme melhor consta dos documentos 63 a 107 de fls. 83 a 117 e 121 vs. a 128que aqui se dão por integralmente reproduzidos [art36e39contestação].

29º Os titulares da dita herança terão acreditado que o anunciado trespasse se teria concretizado [art8resposta].

30º E nessa convicção, receberam as rendas que lhe foram pagas e, por sua vez, notificaram a Ré para eventual exercício de direito de preferência na venda que projetavam fazer à A. [art9resposta].                                                                                                          ¨¨

Não se provaram os seguintes factos:

Da contestação:

11º … o estabelecimento continuou a ser explorado pela referida M (…)

12º Os herdeiros de M (…) reconhecerem expressamente e desde logo a Ré como a beneficiária do trespasse como tal.

25º …para alienação do imóvel…

32º E o restante valor de trespasse foi pago pelo sócio da Ré L (…), na realização de projetos, legalização do estabelecimento, regularização de pagamentos e obras no estabelecimento comercial. »                                                                              *

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1– Cumpre então proceder à apreciação da questão supra enunciada, directamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, haver desacerto da decisão de improcedência da acção, fundada na aplicação do art. 1049º do C.Civil, na medida em que este normativo apenas retira ao locador o direito de resolver o contrato quando tenha reconhecido o beneficiário da cedência como tal, o que não ocorreu na situação dos autos, atento o facto “não provado” retirado do art. 12º da contestação

Será assim?

Recorde-se que a decisão recorrida assentou no seguinte entendimento:

«A invalidade do trespasse e a sua ineficácia em relação ao senhorio são fundamento da resolução do contrato de arrendamento relativa ao local onde está instalado o estabelecimento trespassado.

Acontece que “O locador não tem direito à resolução do contrato com fundamento na violação do disposto nas alíneas f) e g) do artigo 1038.º, se tiver reconhecido o beneficiário da cedência como tal, ou ainda, no caso da alínea g), se a comunicação lhe tiver sido feita por este”, conforme dispõe o artº 1049º do CC.

Significa isto que o reconhecimento pelo senhorio do novo inquilino conforme determinado na citada norma legal, afasta o direito de resolução, mesmo que não tenha ocorrido a notificação do trespasse[2].

Ora no caso vertente resultou provado que foi no (...) ¸ ou seja, no local onde funcionava o estabelecimento Café O (...) que a ré passou a exercer a atividade comercial de café e bebidas, passando a comportar-se como se dona fosse do dito estabelecimento.

Mais se provou que entretanto e após aquela constituição da sociedade R., o estabelecimento continuou a ser explorado pelo referido L (…), sendo que o fazia já em nome da sociedade ora R., tendo os referidos herdeiros de M (…) passado a receber as rendas da sociedade R., o que vem acontecendo até 19/08/2015, data da aquisição pela autora do imóvel em questão.

Além disso aquando da venda do imóvel em questão, a herança ilíquida e indivisa por óbito de M (…)  por carta de 31/07/2015, notificou a R. para querendo, exercer o direito de preferência na venda/aquisição do imóvel, tendo-lhe sido feita a notificação a que se refere o artigo 416º do C.C..

Em 2014 os mesmos herdeiros haviam reunido com a R., na pessoa e legal representante desta, L (…), a fim de se chegar a acordo para pagamento de uma compensação para o poderem alienar devoluto de pessoas e bens.

Procedeu a R. à remodelação do estabelecimento comercial denominado “Café O (...) ”, nele realizando obras, com equipamentos, arranjo do chão, paredes, substituição de materiais, colocação de portas novas, tudo conforme melhor consta dos documentos 63 a 107 de fls. 83 a 117 e 121 vs. a 128que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

De todos estes factos se retira indubitavelmente que, independentemente de os primitivos senhorios terem agido no convencimento de que, de facto, havia sido celebrado um válido contrato de trespasse com a nova arrendatária, reconheceram esta nessa qualidade.

Por isso não pode agora a autora, que sucedeu na posição dos primitivos locadores, vir agora opor à locatária a invalidade do trespasse.

A ação deve por isso improceder.»

Isto é, muito claramente assenta a decisão recorrida no entendimento de que foi pelos então senhorios reconhecida a ora Ré na qualidade de nova arrendatária, por via de um válido contrato de trespasse em que a mesma teria figurado como trespassária.

Contra-argumenta a Autora/recorrente que tal configura uma errada (“incompreensível”) interpretação do acervo factual dos autos, na medida em que resultou outrossim como “não provado” esse reconhecimento!

É certo que entre os factos “não provados”, figura o seguinte dos retirados do articulado de “contestação”: «12º Os herdeiros de M (…) reconhecerem expressamente e desde logo a Ré como a beneficiária do trespasse como tal.»

Acontece que, em nosso entender, a apontada contradição é apenas aparente.

Atente-se que deste apontado facto “não provado” consta literalmente “reconhecerem expressamente e desde logo”, e, efectivamente, é essa concreta situação e particularismo que seguramente determinou que este facto fosse elencado entre os “não provados”…

Na verdade, não consta dos factos “provados”, mais especificamente dos que foram invocados na sentença recorrida para se concluir pelo reconhecimento [cf. factos provados sob “13º” a “18º”, “23º” a “25º” e “28º”], que o mesmo se deva qualificar como “expresso”, isto é, em termos definitivos e sem reservas…[3]

Antes pelo contrário, o que quanto a nós se extrai precisamente desse apontado conjunto de factos, é que se tratou de um processo que se foi desenrolando no tempo, sendo da sua conjugação, onde avulta esse decurso do tempo, que se torna legítimo concluir que ocorreu o apontado reconhecimento!

O que tudo serve para dizer que não se trata de uma situação que ocorreu “desde logo”…

Isto mesmo é, quanto a nós, o que se extrai da “motivação” enunciada na decisão recorrida.

Ademais, a existir a invocada contradição entre os factos “provados” e o “não provado”, o que competia em primeira linha à Autora ora recorrente era pugnar pela anulação da decisão sobre a matéria de facto, ex vi do previsto no art. 662º, nº2, al.c) do n.C.P.Civil, pois que nesse plano a questão devia primeiramente ser colocada.

Ora, não foi assim que a Autora ora recorrente a configurou, e, mesmo que o tivesse feito, já se viu que não obteria acolhimento.

Donde, também oficiosamente ao abrigo desse normativo não vislumbramos que algo deva neste particular ser determinado!

Termos em que, sem necessidade maiores considerações, improcede este primeiro argumento recursivo.

                                                           *

4.2– Cumpre para finalizar proceder à apreciação da segunda das questões igualmente supra enunciada, a da invocação do desacerto dessa mesma decisão, fundada na aplicação do art. 1049º do C.Civil, porque o instituto do abuso do direito apenas impede que se invoque a nulidade formal quando, se tenha aceite essa nulidade, criando na parte contrária a convicção séria e fundamentada de que tal situação se manterá, o que não ocorreu na situação dos autos

De referir que a Autora/recorrente fundamenta em temos jurídicos esta invocação que faz, com apelo aos ensinamentos doutrinários de MENEZES CORDEIRO e BAPTISTA MACHADO, sustentando que ao invocar a nulidade do trespasse não estava a actuar em abuso do direito, donde, estava afastada a aplicabilidade do art. 1049º do C.Civil.

Sucede que, salvo o devido respeito, não interpreta adequadamente os ensinamentos de tais insignes Mestres.

Senão vejamos.

Consabidamente, MENEZES CORDEIRO sintetiza em seis tipologias as situações em que tem sido colocada a ocorrência do abuso do direito, sendo que estas tipologias nos permitem, igualmente, enquadrar parâmetros de actuação aptos a concretizar os conceitos jurídicos indeterminados em que está ancorado o instituto do abuso do direito [em relação às referidas tipologias segue-se de perto o texto do referido autor].[4]

As referidas tipologias são as seguintes: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

Em primeiro lugar, a exceptio doli traduzia-se numa actuação dolosa do titular na formação da sua situação jurídica ou no momento da própria discussão da causa.

Em segundo lugar, no venire contra factum proprium está em causa uma actuação do titular contraditória com um comportamento passado.

Trata-se, em suma, de tutelar a confiança gerada numa das partes pelo comportamento anterior da outra.

Em terceiro lugar, verifica-se uma inalegabilidade formal quando alguém alega de forma desconforme com a boa-fé, designadamente por lhe ter dado causa, a nulidade formal de um negócio.

Em quarto lugar, referem-se a supressio e a surrectio que são figuras baseadas nos mesmos fenómenos – decurso do tempo, boa-fé e tutela da confiança – mas de sentido inverso.

No primeiro caso, o decurso de um longo período de tempo sem o exercício de um direito faz com que o seu titular perca a faculdade do seu exercício.

No segundo caso, a manutenção de uma situação durante um longo período de tempo faz surgir numa pessoa uma faculdade jurídica que de outro modo não teria.

Em quinto lugar, o tu quoque traduz-se na inadmissibilidade do titular do direito aproveitar-se de uma violação de uma norma jurídica exigindo a outrem que actue em consonância com as consequências resultantes dessa violação.

Por fim, em sexto lugar, temos o desequilíbrio, ou seja, o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objectivo).

Temos presente que todas estas situações não são mais do que tipologias de comportamento em que historicamente se tem ancorado o raciocínio do abuso do direito, sendo que nem todas têm atual justificação e muitas delas se reconduzem, no fim de contas, a outras figuras, designadamente ao venire contra factum proprium, mas de qualquer forma permitem deixar mais claros os parâmetros em que se move o instituto invocado.

Dito isto, logo ressalta, quanto a nós, que a modalidade do abuso de direito que tem maior adesão com o caso dos autos é a da supressio.

A supressio traduz-se no não exercício do direito durante um lapso de tempo de tal forma longo que crie na contraparte a representação de que esse direito não mais será exercido, conduzindo o exercício tardio a uma desvantagem injustificada para esta – situação que cremos paradigmaticamente verificada no caso vertente.

É que os primitivos senhorios não foram desconhecedores do trespasse perspetivado entre a Interveniente principal M (…) e a ora Ré, “T (…), L.da”.

Dele lhes foi oportunamente dado conhecimento, para exercício da preferência, pela então arrendatária (a dita Interveniente principal (…)), em Maio de 2006, não a tendo querido exercer.

Ademais, comportaram-se na sequência de tal situação – comunicação do perspetivado trespasse – relativamente à “trespassária”, leia-se a ora Ré/recorrida, como se fosse esta a nova arrendatária: dela receberam rendas e a ela passaram recibos de renda, a ela viram fazer obras no locado e nada opuseram, em face da perspectivada venda à ora Autora, notificaram a Ré para exercício da preferência …

Ou seja, durante um período de cerca de 9 anos (de Maio de 2006 até Agosto de 2015 – data da venda à ora Autora pelo que se extrai da escritura pública correspondente, que é o “doc. 2”, a que se reporta o facto provado sob “2º”[5]), os primitivos senhorios administraram o prédio sem nunca terem posto em causa a situação do café em funcionamento no rés-do-chão, nomeadamente a legitimidade de quem explorava o estabelecimento ali instalado.

Daqui se extrai uma conclusão: ou não averiguaram tais factos, ou se os averiguaram e deles tomaram conhecimento, não reagiram aos mesmos.

Mas se não tiveram esse conhecimento foi só porque não quiseram, já que, pelo menos desde Maio de 2006 até data recente, nunca deixaram de acompanhar a  situação do prédio.

Assim, ao administrarem o prédio sem reagirem à ocupação do estabelecimento comercial instalado na sobredita loja, os primitivos senhorios criaram na ora Ré a convicção de que a consideravam como sua nova arrendatária e que aceitavam como legítima a ocupação por esta daquela parte do prédio.

Foi nessa posição jurídica que sucedeu a ora Autora.

A qual, aliás, outro tanto fez “ab initio”: após a aquisição do imóvel, com a Ré intentou negociar um valor monetário para resolução por mútuo acordo do arrendamento…

Ocorre que, independentemente de tudo o demais, o decurso daquele período de tempo sem que os primitivos senhorios exercessem o seu direito, criou justificadamente na Ré a expetativa de que aqueles não o exerceriam mais.

Pelo que, o seu exercício tardio por parte da ora Autora/recorrente, que naquela posição jurídica sucedeu, acarreta uma desvantagem injustificada para a Ré que, tendo adquirido por negociado “trespasse” um estabelecimento comercial e cumprido as obrigações emergentes de tal contrato (quer perante quem lhe cedeu o estabelecimento – a dita Interveniente principal – quer perante os senhorios – designadamente com o pagamento de rendas), ficaria agora privada do uso e fruição da loja e, consequentemente dos lucros provenientes da exploração do estabelecimento…

O que tudo serve para dizer que ao atuar desta forma – invocar a invalidade formal do trespasse – a Autora excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, e, por isso, agiu com abuso de direito, enquadrando-se o seu comportamento numa das manifestações típicas daquela figura jurídica: a supressio.[6]

Termos em que improcedem as “alegações” da Autora/recorrente nesta base.

O mesmo se diga relativamente ao pensamento doutrinário do segundo dos invocados Mestres.

Na verdade, tendo por referência o disposto no art. 334º do C.Civil, «o abuso do direito pressupõe um excesso ou desrespeito dos respectivos limites axiológico-materiais, traduzido na violação qualificada do princípio da confiança, sendo que, para que tal aconteça, não se torna necessário que o agente tenha consciência do carácter abusivo do seu procedimento, bastando que este o seja na realidade».[7]

Situação que logo se configura quando o titular do direito se deixa cair numa longa inércia sem a respectiva exercitação, susceptível de criar na contraparte a convicção ou expectativa fundada de que esse direito não mais será exercido, e que a sua posição jurídico-substantiva se encontra já consolidada, nela investindo, em conformidade, as suas expectativas e até o seu capital; violação drástica do princípio da confiança, que a doutrina sintetiza na máxima - venire contra factum proprium - .

Nesta linha de entendimento, sublinha o apontado BAPTISTA MACHADO, que, para se concluir por tal ilegitimidade se torna necessária a verificação cumulativa de três pressupostos: uma situação objectiva de confiança digna de tutela jurídica e tipicamente consubstanciada numa conduta anterior que, objectivamente considerada, seja de molde a despertar noutrem a convicção de que o agente no futuro se comportará coerentemente de determinada maneira; que, face à situação de confiança criada, a outra parte aja ou deixe de agir, advindo-lhe danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada; ou seja, frustrada a boa-fé da parte que confiou.[8]

Ora se assim é, não vislumbramos porque é que se há-de entender que a ora Ré não se encontrava na circunstância de boa fé, assim como insofismavelmente nos parece que deve ser tutelada a confiança que a mesma firmou no caso.

Não vemos, assim, como legitimamente sustentar – em linha com o que consta das alegações recursivas! – a inaplicabilidade do artigo 1049º do C.Civil, na medida em que o locador só estaria impedido de invocar a nulidade formal do trespasse (por falta de forma), se o mesmo tivesse reconhecido o beneficiário da cedência como tal…, o que não teria sucedido!

Antes pelo contrário, reiteramos o já antes afirmado, no sentido de que teve lugar um tal reconhecimento, donde, ao abrigo e por força do disposto no art. 1049º do C.Civil, não pode proceder a resolução do contrato.

Neste sentido, também o constante de douto aresto:

«O recebimento das rendas pelo senhorio, pagas pelo cessionário do trespasse, como reconhecimento deste na qualidade de inquilino, faz-lhe perder o direito à resolução do contrato de arrendamento, nos termos do art.º 1049.º, Cód. Civil.»[9]

Sendo certo, em todo o caso, que constituiria um abuso do direito por parte da  Autora/recorrente (na modalidade de supressio) vir a mesma invocar a invalidade do trespasse, quando a mesma sucedeu na posição dos primitivos locadores, que já haviam reconhecido a ora Ré na qualidade de nova arrendatária, por virtude de um contrato de trespasse!

Assim sendo e sem necessidade de maiores considerações, naufraga inapelavelmente este argumento recursivo.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante.

II – Uma das modalidades que dogmaticamente se tem considerado configurar abuso do direito é a supressio, que se traduz no não exercício do direito durante um lapso de tempo de tal forma longo que crie na contraparte a representação de que esse direito não mais será exercido, conduzindo o exercício tardio a uma desvantagem injustificada para esta.

III – À luz deste instituto jurídico, constituiria um abuso do direito por parte da Autora/recorrente (na modalidade da dita supressio) vir a mesma invocar a invalidade do trespasse, quando a mesma sucedeu na posição dos primitivos locadores, que já haviam reconhecido a ora Ré na qualidade de nova arrendatária, por virtude de um contrato de trespasse.

*

6 – DISPOSITIVO

            Pelo exposto, decide-se a final, pela improcedência da apelação, mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos.

            Custas do recurso pela Autora/recorrente.

                                                                       *

            Coimbra, 12 de Setembro de 2017   

                       

            Luís Filipe Cravo ( Relator )

            Fernando Monteiro

            António Carvalho Martins)


[1] Relator: Des. Luís Cravo
   1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
   2º Adjunto: Des. Carvalho Martins

[2] Fernando de Gravato Morais, Novo Regime do Arrendamento Urbano, Almedina 2006, p. 153. 
[3] Neste sentido vide o acórdão do T.Rel. de Coimbra de 15.05.2007, no proc. nº 575/05.8TBILH.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[4] Assim em “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., Coimbra, Livª Almedina, págs. 249-269.
[5] Cf. fls. 7 a 11.
[6] Nesta linha de entendimento, vide o acórdão do T. Rel. de Évora de 15.12.2005, no proc. nº 0535984, acessível em www.dgsi.pt/jtre.   
[7] Cf., neste sentido, GALVÃO TELES, in “Obrigações”, 3ª ed, a págs. 6.
[8] Assim in “Tutela de Confiança”, RLJ, Anos 117º e 118º, a págs. 322 e 323 e 171 e 172, respetivamente.
[9] Citámos agora o acórdão do T. Rel. de Évora de 07.12.2012, no proc. nº 3809/10.3TBPTM, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtre.