Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
169/07.3JAAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
AGRAVANTE QUALIFICATIVA
Data do Acordão: 09/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA -JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL DE AVEIRO – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 171º, N.º 1 E 177º, N.º 1, ALÍNEA A) DO CP (REDACÇÃO DA LEI N.º 59/2007 DE 4/9)
Sumário: 1. O direito criminal, como ultima ratio, implica que só seja tutelada a liberdade sexual contra acções que revistam certa gravidade. Em tais termos, actos como o coito oral e a masturbação devem aqui ser incluídos; o mesmo não sucederá, em regra, com os beliscões e os beijos, que só o deverão ser em casos extremos, ou seja naqueles em que existem grande intensidade objectiva e intuitos sexuais atentatórios da autodeterminação sexual.

2. Acto sexual só pode ser considerado aquele que tem relação com o sexo (relação objectiva) e em que, além disso haja por parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais.

Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

1. No processo comum colectivo n.º 169/07.3JAAVR do Juízo de Média Instância Criminal de Aveiro (comarca do Baixo Vouga), por acórdão datado de 18 de Novembro de 2009, foi condenado o arguido P... pela prática de um crime continuado de abuso sexual de criança agravadoAparece no DISPOSITIVO a palavra «gravado» em vez de «agravado», o que é manifestamente um lapso material, que se corrigirá a final. p. e p. pelos artigos 30º, n.ºs 2 e 3, 171º, n.º 1 e 177º, n.º 1, alínea a) do CP (redacção da Lei n.º 59/2007 de 4/9), na pena de cinco anos e seis meses de prisão

2. Inconformado, o arguido recorreu do acórdão, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«I- OS FACTOS
1- O facto provado como n° 1 não pode ser dado por provado na sua globalidade porque o documento de fls. 14 (certidão de nascimento) só refere a filiação no que à mãe diz respeito. E tal prova só documentalmente pode ser feita.
2- Os factos provados como n° 2, 3 e 4 deveriam ter sido dados por não provados porque da prova produzida resulta essa conclusão.
3- A tal propósito, temos o depoimento do arguido da ofendida Íris, os relatórios da medicina legal, ginecológico e psicológico com esclarecimentos escritos na parte ginecológica quanto à I...e o relatório psicológico realizado ao arguido.
4- Quanto ao interrogatório do arguido o mesmo nega tais factos por completo, quanto ao depoimento da I...e um depoimento que não está espaço temporalmente enquadrado, com escassos pormenores acerca dos factos, diz mesmo que não se lembra do que diz ter sido a 1a vez e faz situar essa tal 1ª vez com uma cena em que o pai bateu na mãe quanto tal facto ocorreu um ano antes (Abril de 2003 e consta dos autos).
5- Quanto ao relatório médico-legal psicológico e de ADN não se pode retirar já que dos mesmos não há qualquer lesão recente ou antiga.
6- Quanto ao relatório psicológico à menor o mesmo refere nas suas conclusões que “o relato dos factos poderá corresponder à sua efectiva ocorrência mas ficamos pela forma verbal, poderá ou não.
7- A Senhora Perita em audiência que elaborou o relatório da I...relatou que a menor tem um nível intelectual acima da média e que no questionário de Eysenk revelou estabilidade emocional, o que não é compatível com criança abusada.
8- O relatório psicológico feito ao arguido revela “não ser possível concluir pela compatibilidade dos factos com a personalidade do arguido” e tal relatório foi completamente desatendido e desconsiderado pelo Tribunal.
9- O facto provado como n° 5 não deveria ter sido dado por provado.
10- Temos a tal propósito o depoimento do arguido que negou tal comportamento e o da ofendida I...que começa por situar tal actuação em Aveiro para depois dizer que a final é Gafanha da Nazaré, bastante escasso no qual a menina diz sempre: “não sei”, “não me lembro”.
11- Aliás, o que resultou provado como n° 5 não é sequer acto sexual de relevo.
12- Factos provados n° 6, 7 e 8 - tais factos não podiam ter sido considerados provados.
13- A este propósito temos o depoimento do arguido, o depoimento da ofendida Íris, os relatórios de medicina legal ginecológico e psicológico com esclarecimentos adicionais na parte ginecológica quanto à I...e no relatório psicológico realizado ao arguido.
14- Quanto ao depoimento do arguido o mesmo negou os factos não tendo maneira de provar o que não fez, o depoimento da I...é escasso em pormenor, desde logo não se entende porque se vai (a pedido da mãe e para tomar conta de um bebé) deitar na cama dos pais, sem a mãe, quando o pai está lá a dormir.
15- Dos relatórios médico-legais ginecológicos e de ADN nada se pode retirar para prova dos factos em questão. O mesmo conclui não haver quaisquer lesões recentes ou antigas, nem sequer vestígios de equimoses quando o exame foi feito nas 24/48 horas (exame dia 30, queixa na madrugada de 29 para 30).
16- De resto o relatório psicológico feito ao arguido revela “não ser possível concluir pela compatibilidade dos factos com a personalidade do examinado.
17- O Tribunal recorrido não tomou este relatório em consideração.
18- O facto provado como o n° 9 é conclusivo dando-se por reproduzido tudo o que antes se disse.
19- O facto provado como n° 10 também ele conclusivo dá-se por reproduzido o alegado a propósito da prova do facto 1°.
20 - Quanto ao facto n° 11 também conclusivo, nada como se vem dizendo permite dá-lo por provado.
21- O facto dado por NÃOHá aqui um manifesto «lapsus calami» pois tal facto foi dado como NÃO PROVADO e não como PROVADO. provado como X devia ter sido dado por provado já que há documentos juntos aos autos e as testemunhas abundantemente o referiram (testemunha L..., M..., A..., J..., S... e B... , gravados através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal).
22- Em 20 e 21 da contestação o arguido refere dois factos aos quais as testemunhas (testemunha L..., M..., A..., J..., S... e B..., gravados através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal) se pronunciaram e o acórdão nada refere.
Sem prescindir,
II - MEDIDA DA PENA
23- Na determinação da medida da pena o Tribunal recorrido ponderou designadamente o seguinte:
- ao grau elevado da ilicitude dos factos, tendo em conta as circunstancias em que os mesmos ocorreram, em situações de particular vulnerabilidade da menor Íris, que se encontrava na cama em duas das ocasiões além de ocorrer nessa altura contacto entre os órgãos sexuais, além de que se tratou de três actos separados no tempo, à elevada intensidade do dolo, na modalidade de directo, com que o arguido actuou querendo satisfazer os seus desejos sexuais como conseguiu; à existência de antecedentes criminais por parte do arguido, encontrando-se agora a cumprir pena de prisão; a sua integração laboral e social; não o beneficia a sua postura em audiência negando os factos não revelando assim arrependimento.
24. Não cuidou o Tribunal, a dar-se por provados, todos os factos, que como tal aparecem no acórdão, das reais circunstancias em que os factos terão decorrido designadamente que o arguido não ordenou à I...qualquer conduta, como constava da acusação, considerou o elevado grau de ilicitude quando esse grau já faz parte do tipo, esquece que não se tratou de três actos como diz, mas dois já que o facto provado como n° 5 não se traduz em acto sexual de relevo, ao dolo que é de mediana gravidade, não cuidou que os antecedentes criminais são antigos, de nenhum relevo (v.d. condução ilegal pelo qual cumpre pena) e sem qualquer semelhança com os actuais factos, está socialmente integrado, tem trabalho, tem uma nova família e filhos que de si dependem.
25. A pena na qual foi condenado, não é proporcional, não se conforma com a Lei, não se revelando justa, nem adequada às circunstâncias do caso.
26. De acordo com o artigo 40 do Código Penal “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” e nos termos do n° 2 do artigo 71 do mesmo Código “na determinação concreta da medida da pena o Tribunal atende a todas as circunstâncias que depuserem a favor do agente, pelo que deveria ter sido fixada a medida concreta da pena de prisão perto do seu limite mínimo.
III- SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
27- No pressuposto de que a medida concreta a aplicar é bem inferior à que vier a ser aplicada por este Tribunal diga-se que a pena de prisão aplicada em medida não superior a (5) cinco anos deve ser suspensa na sua execução nos termos do artigo 50º do código Penal, sempre que, atendendo à personalidade do agente às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstancias deste, for de concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizem de forma adequada as finalidades da punição.
28. Não são considerações de culpa que influem na questão da suspensão da execução da pena mas razões ligadas às finalidades preventivas da punição sejam as de prevenção geral positiva ou as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto em questão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral.
29. Existe, em nossa opinião, um Juízo de prognose positiva que pode ser feito neste momento, o da decisão, e assim beneficiar do instituto em questão.
30. O arguido recorrente está socialmente inserido, tem uma nova família, tem trabalho e tem filhos menores que de si dependem. Os antecedentes criminais que tem, são antigos e por factos completamente diversos dos que aqui se trata (v.d. condução sem habilitação).
31. A perspectiva de integração e de socialização de uma pessoa, nas condições do arguido, aconselham a que a realização de tais finalidades seja procurada em liberdade com eventual acompanhamento por parte dos serviços de reinserção social.
32. Sendo possível formular um juízo de prognose positivo, concluir-se que a censura do facto e a ameaça da prisão eventual acompanhada de um plano de reinserção social serão suficientes. Plano esse que poderá ser o regime de prova nos termos conjugados dos artigos 50° e seguintes do Código Penal.
Termos em que, se pede a Vossas Excelências considerem:
a) Diversos os factos provados, divergência essa no sentido agora apontado, e absolvição do arguido
b)- Houve factos na contestação que não foram considerados pelo que há omissão de pronúncia.
Sem prescindir,
c)- A medida da pena é exagerada e deve ser situada perto do limite mínimo, atenta a moldura penal
Depois,
d) Deve a mesma ser suspensa na sua execução,
Como é de Justiça».

3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, assim dissertando (em transcrição):
«1ª- O facto provado sob n°1 respeita o conteúdo de documento de fls.
14, pois no verso do mesmo vem registada, por averbamento, a paternidade da ofendida Íris, atribuída ao arguido, ora recorrente.
2ª- Os factos julgados sob n°2 a 8 são o reflexo, da abundante prova produzida em audiência de julgamento, do depoimento directo prestado pelo menor ofendida, em audiência de julgamento, cuja imediação transmitiu aos julgadores elementos para o tornar credível, credibilidade essa apoiada também no relatório psicológico da menor junto dos autos.
3ª- o facto julgado não provado sob al.) x) é o reflexo, como se refere no Acórdão, da ausência de prova a esse respeito, sendo que é possível ainda vislumbrar, na fundamentação, a fls. 6 do Ac., elementos de que o arguido nem sempre trabalhava, ficava muitas vezes em casa com os filhos, quando a mulher e testemunha D...ia trabalhar.
4ª- Os factos provados sob n° 9 a 11 não são meramente conclusivos: neles estão vertidos os elementos subjectivos do crime, como o dolo, e o conhecimento que o arguido tinha da idade da sua filha.
5ª- QUANTO ÀS QUESTÕES DE DIREITO:
A pena fixada observa a personalidade do agente, a intensidade do dolo, e as circunstâncias em que os factos ocorreram, observando escrupulosamente o disposto no artigo 71º. do Código Penal, e mesmo que a pena de prisão possa ser fixada abaixo dos 5 (cinco) anos, nunca a mesma deverá ser suspensa na sua execução, pois desse modo não se atingiriam de forma suficiente e adequada as finalidades da punição (cfr. artigo 50º, n°1 CP).
Nestes termos, improcedendo totalmente o presente recurso, será feita JUSTIÇA».

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, a fls. 559-564, aderindo à argumentação do Colega de 1ª instância, peticionando a final a total improcedência do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.
Aqui se consigna que o processo foi redistribuído ao presente relator em 17/6/2010.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Assim, balizados pelos termos das conclusões Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringi8r o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões»).
formuladas em sede de recurso, as questões a decidir prendem-se com o seguinte:
a)- houve ou não erro de julgamento quanto aos n.ºs 1 a 11 do rol de factos provados?
b)- houve ou não erro de julgamento quanto ao facto x) do rol de factos não provados?
c)- no caso de improcedência das questões a) e b), foi a medida da pena excessiva, devendo a mesma reduzir-se a um «quantum» próximo do mínimo legal?
d)- no caso de se fixar a pena de prisão em medida inferior a 5 anos, deverá a mesma ser suspensa na sua execução?

2. DO ACÓRDÃO RECORRIDO
2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição):
«1)- A I... nasceu no dia 06 de Julho de 1995, sendo filha do arguido P... e de D....
2) Em dia indeterminado do ano de 2004, na residência da família, que ambos partilhavam, sita na Quinta do XX..., ..., 1º A, em Aveiro, quando a I... tinha 9 (nove) anos de idade, o arguido P..., pretendendo satisfazer a sua lascívia e os seus desejos sexuais, aproveitando o facto de estarem sozinhos e aquela se encontrar deitada na cama, retirou as cuecas à menor Íris.
3) Acto contínuo, o arguido P... procurou introduzir o pénis erecto na vagina da menor Íris, o que não conseguiu.
4) Logo após, face àquela impossibilidade, o arguido P... friccionou o pénis erecto na região vulvar da Íris.
5) Em dia indeterminado do ano de 2005, na residência familiar, que ambos partilhavam, então sita na Gafanha da Nazaré, Ilhavo, quando a I... tinha 10 (dez) anos de idade, o arguido P..., pretendendo satisfazer a sua lascívia e os seus desejos sexuais, aproveitando a ausência da sua esposa e mãe daquela, estando a menor na sala, aproximou-se desta e tentou retirar-lhe as cuecas.
6) Em dia indeterminado de finais de Abril de 2007, anterior ao dia 30, durante a manhã, na residência familiar, que ambos partilhavam, novamente na Quinta do XX..., ..., 1° A, em Aveiro, quando a I... tinha 11 (onze) anos de idade, o arguido P..., pretendendo satisfazer a sua lascívia e os seus desejos sexuais, aproveitando a ausência da sua esposa e o facto de a I...se encontrar deitada na cama do quarto do casal, aproximou-se dela e retirou-lhe as cuecas.
7) Acto contínuo, procurou introduzir-lhe o pénis erecto na vagina, o que não conseguiu.
8) Logo após, face àquela impossibilidade, friccionou o pénis erecto na região vulvar da I...até ejacular.
9) O arguido P... quis agir do modo supra descrito, com o propósito de manter com a I.... coito vulvar, no período de tempo compreendido entre os 9 e os 11 anos de idade daquela.
10) O arguido P..., sendo pai da I...conhecia a sua idade e sabia que molestava a honra e a dignidade moral e sexual da menor, o que quis.
11) Mais sabia serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
12) O arguido P... e a mãe da menor tiveram um relacionamento conflituoso, tendo, por alguns períodos, deixado de coabitar, ficando aquele, temporariamente, a viver sozinho na Gafanha da Nazaré.
13) A I...é muito próxima da sua mãe, andando frequentemente juntas.
14) O arguido P... encontra-se, desde 14 de Maio de 2008, em cumprimento de uma pena de prisão, por falta de carta de condução.
15) Antes de preso trabalhava como serralheiroNeste facto corrigiram-se dois lapsos materiais cometidos pelo relator da decisão de 1ª instância. mecânico e viva com uma companheira, Júlia, em casa e com os filhos desta.
16) Tem cinco filhos, da relação com a referida D..., os quais vivem com esta.
17) A sua companheira trabalha como empregada de limpeza, num Stand.
18) O arguido concluiu o 6° ano de escolaridade.
19) É tido, por aqueles que com ele convivem mais de perto, como pessoa séria e por todos considerado.
20) O mesmo foi condenado pelos crimes e nas penas seguintes:
· em 02-03-1999, por dois crimes de furto qualificado, na pena única de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos;
· em 04-06-1999, por condução sem habilitação legal, na pena de 180 dias de multa, à taxa de 700$00 por dia;
· em 11-05-2000, por ofensas à integridade física simples, na pena de 90 dias de multa, à taxa de 900$00 por dia;
· em 26-06-2000, por condução sem habilitação legal, na pena de 100 dias de multa, à taxa de 500$00 por dia;
· em 10-10-2001, por condução sem habilitação legal e desobediência, na pena única de 150 dias de multa, à taxa de 1.000$00 por dia;
· em 08-01-2004, por condução sem habilitação legal, na pena de 5 meses de prisão, suspensa por 18 meses;
· em 17-05-2005, por condução sem habilitação legal, na pena de 4 meses de prisão, suspensa por 2 anos;
· em 02-11-2005, por condução sem habilitação legal, na pena de 7 meses de prisão, suspensa por 3 anos;
· em 13-07-2006, por condução sem habilitação legal, na pena de 14 meses de prisão, suspensa por 4 anos, com regime de prova;
· em 25-05-2005, por desobediência, na pena de 90 dias de multa, à taxa de € 05,00 por dia;
· em 17-10-2007, por um crime de furto simples, na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano;
· em 12-02-2008, por condução sem habilitação legal, na pena de 18 meses de prisão, e
· em 15-07-2008, por condução sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa, à taxa de € 05,00 por dia.

2.2. Quanto A FACTOS NÃO PROVADOS, temos os seguintes:
«Não se provaram outros factos, nomeadamente os seguintes:

· a)- Que na altura referida em 2) supra o arguido P... partilhava a cama com a I....;
· b) Que nessa mesma altura o arguido P... também se despiu;
· c) Que na altura referida em 4) supra o arguido P... ejaculou;
· d) Que na altura referida em 5) supra o arguido P... ordenou à I...que se deslocasse para a sala;
· e) Que nessa ocasião o arguido P... retirou-lhe as cuecas, ao que também se despiu;
· f) Que em acto contínuo, procurou introduzir-lhe o pénis erecto na vagina, o que não conseguiu;
· g) Que, logo após, face àquela impossibilidade, friccionou o pénis erecto na região vulvar da I...até ejacular;
· h) Que os factos descritos em 6) a 8) supra ocorreram no dia 26 desse mês e ano, cerca das 10.00 horas, e que o arguido P... ordenou à I...que se deslocasse para o seu quarto de dormir e também ele se despiu;
· i) Que o arguido P... é pessoa com princípios morais sólidos, que sempre tentou transmitir aos filhos, sendo incapaz de cometer as atrocidades referidas na acusação;
· j) Que o relacionamento entre o arguido P... e a mãe da menor terminou definitivamente em 01 de Maio de 2006, tendo, nessa data, deixado de coabitar;
· l) Que, desde então, algumas vezes pediu à mãe dos seus filhos que permitisse que os contactasse;
· m) Que raramente a Senhora autorizava e poucas vezes esteve com os menores;
· n) Que a última vez que viu a I...foi em Agosto de 2006, na sua casa da Gafanha, já separado da mãe;
· o) Que, depois disso, não mais esteve com a menor I…;
· p) Que contribuía para os alimentos dos menores com géneros alimentícios, porquanto pretendia evitar que a mãe gastasse o dinheiro em bebidas alcoólicas, o que era habitual;
· q) Que houve um processo de regulação de poder paternal e foi fixada uma pensão de € 250,00, que o arguido sempre cumpriu até à data da sua prisão, 13-05 (por razões relativas a condução sem carta);
· r) Que uma única vez na vida e no ano de 2005, o arguido teve um conflito com a I…, a propósito do comportamento que estava a ter com os irmãos e deu-lhe uma bofetada;
· s) Que a menor ficou sentida, mas desde então não houve qualquer outra questão com a menina;
· t) Que a menor I...sofreu influência materna para imputar ao arguido os factos descritos na acusação;
· u) Que a I...e a sua mãe mudam frequentemente de credo religioso e aquela faz tudo o que esta lhe pede;
· v) Que a vivência do arguido P... com a sua companheira Júlia ocorre desde o início de 2007 e
· x) Que o arguido P... sempre trabalhou».

2.3. Para formar a sua convicção, argumentou assim o tribunal «a quo»:
«Na formação da convicção do Tribunal Colectivo foi considerada a globalidade de prova produzida, em conjugação e confronto, particularmente os elementos seguintes:
- quanto aos factos descritos em 1) supra, foi considerada a certidão do assento de nascimento da menor Íris, junta aos autos (fls. 14), sendo que tal relação de parentesco foi também por ela referida e pelos progenitores, o arguido P... e a testemunha D...;
- quanto aos factos descritos em 2) a 11) supra, foi valorado, com especial relevo, o depoimento da menor I..., particularmente o prestado em audiência (para a qual foi convocada, com vista ao melhor esclarecimento dos factos), a qual referiu a idade aproximada que tinha na altura, os locais onde residiam e onde ocorreram os factos (referindo a última vez ter sido imediatamente antes de contar à avó e esta ir à polícia, sendo que a denúncia é de 29-04-2007 — cfr. fls. 24 e 44), descrevendo como tudo se passou em cada uma das situações (embora referindo que ocorreram muitas outras, mas que apenas essas três relatou inicialmente e das quais melhor se recordava), bem como o comportamento do arguido, se pai, e a sua reacção perante tais actos, sendo que não confirmou que tenha ocorrido penetração (o que também não é confirmado pelo relatório do INML — cfr. fls. 120 a 124, 209 e 210), sendo que depoimento similar, particularmente quanto à idade em que ocorreram os actos (referindo ai c.mente os 9 anos como sendo a idade da ocorrência da experiência relatada) e descrição destes, já havia prestado perante o Juiz de Instrução, sem variações assinaláveis, muito embora aí notoriamente com linguagem mais “infantil” quanto à referência aos órgãos genitais (cfr. dec.ções para memória futura que prestaram nos autos, lidas em audiência — fls. 145 e 150 a 161). Foi também valorado o depoimento da testemunha D... (mãe da ofendida Íris), que referiu a relação matrimonial com o arguido P... e posterior separação, bem como os locais onde habitaram, além de mencionar as circunstâncias em que a I...relatou o sucedido, em primeiro lugar à avó G... (também testemunha, mas que não foi possível inquirir, devido ao seu estado de doença), e credibilidade que lhe mereceu tal relato, mencionando o estado da menor na altura (dizendo que “estava mal e chorava”), aludindo ainda ao facto de o arguido P... ficar muitas vezes em casa com os filhos, já que ela ia trabalhar. Pese embora a negação do arguido P... e do abono em seu favor de algumas das testemunhas de defesa inquiridas (dizendo que seria incapaz de fazer isso), da conjugação de todos estes elementos probatórios, resultou a convicção de que os factos ocorreram dessa maneira, revelando-se credível o relato da menor I…, bastante pormenorizado e emocionado (chegou a soltar lágrimas e a entrar em choro, o que levou até a interromper o depoimento e a audiência), afastando-se qualquer cenário de efabulação ou instrumentalização da menor, designadamente por parte da sua mãe, como o arguido invocou (apesar de a mãe aparentar alguma instabilidade emocional, nada nos levou a equacionar que a menor tivesse sido levada a inventar estes factos para incriminar o pai). Aliás, o relatório dos exames psicológicos efectuados à menor I...aponta-lhe, além do mais, um “nível intelectual acima dos padrões normais”, “estabilidade emocional” e um “grau de maturidade superior ao esperado para a sua idade”, além de que “não lhe foi detectada qualquer patologia comportamental”, nem “indícios que coloquem em causa a credibilidade do seu discurso”, “não parecendo (à Perita Médica) ter sido induzida por terceira pessoa”, já que “não revela tendência para se deixar influenciar” (cfr. fls. 70 a 75 e esclarecimentos prestados em audiência pela sua subscritora, a Drª N...). Em contrapartida, o relatório da perícia psiquiátrica efectuada ao arguido P..., embora não lhe diagnosticando “doença ou perturbação de personalidade”, revelando o mesmo “uma inteligência normal e um perfil de personalidade normal”, refere “não ser possível concluir pela compatibilidade dos factos com a personalidade do examinado”, não dando, por isso, resposta à questão fundamental, já que tal personalidade poderá ser ou não compatível com a prática de tais factos (fls. 425 a 428). Relativamente à consciência da ilicitude desses actos e actuação livre e consciente por parte do arguido P..., tal resulta da sua actuação e comportamentos nessa altura, relatados pela menos Íris, e da sua postura em audiência, revelando-se ser pessoa capaz de distinguir o bem do mal e de se determinar em função da avaliação que faz dos seus actos, além das regras da experiência comum, nada tendo sequer resultado indiciado em sentido contrário;
- quanto aos factos descritos em 12) e 13) supra, foram valoradas as dec.ções do arguido P... e também os depoimentos da menor I...e da sua mãe D..., que referiram essa relação de conflito frequente, como separações, bem como o reatamento da vivência em comum e a mudança de residência, além da relação entre elas duas. Quanto à conflitualidade existente, tal resulta também das denúncias policiais recíprocas e da assistência médica à D..., conforme elementos juntos aos autos, embora em data anterior aos factos em discussão (fls. 175 a 197);
- quanto aos factos descritos em 14) a 19) supra, foram valoradas as dec.ções do arguido P..., que assim descreveu a sua situação pessoal e familiar (tendo negado os factos que lhe são imputados), bem como o teor do relatório social junto (fls. 306 a 308), tendo-se ainda considerado, quanto à personalidade e condições de vida, o depoimento das testemunhas C… (irmã do arguido), L… (irmã da mãe do arguido), A… (conhecido do arguido há vários anos), J… (ex-companheira do arguido), S… (filha da anterior) e B… (antigo encarregado do arguido), que se referiram a tais factos;
- quanto aos factos descritos em 20) supra, foi considerado o CRC do arguido (fls. 254 a 264);
- quanto aos factos não provados, referidos em a) a x) supra, tal foi consequência da total ausência de elementos probatórios que os sustentem, sendo que a própria ofendida I... não os confirmou desse modo, além de que as testemunhas inquiridas ou não tinham conhecimento directo dos mesmos ou nem sequer sobre eles em concreto se pronunciaram, não havendo nos autos outros elementos, susceptíveis de valoração, que os comprovem por si sós».

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1. Vem o arguido interpor recurso do acórdão em que foi condenado pela prática de UM crime continuado de abuso sexual de criança agravado, previsto e punível pelos artigos 171º, n.º 1 e 177º, n.º 1, alínea a) do C.Penal revisto em 2007, na pena de cinco anos e seis meses de prisão efectiva.
Recorre de facto e de direito.

3.2. RECURSO DE FACTO
3.2.1. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem:
· primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada;
· e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal (a chamada impugnação restrita ou revista alargada da matéria de facto).
Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.

3.2.2. O erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 - ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Como bem acentua Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt)».
E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412.º, n.º 3, do CPP.
A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Conforme jurisprudência constante, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, antes constituindo um remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados Cf. Acórdão da Relação do Porto de 11/7/2001, processo n.º 01110407, lido em www.dgsi.pt/trp..
A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº 3 do mesmo diploma – tal não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas apenas um remédio jurídico votado a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente.
Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova.
E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.

3.2.3. A este propósito, sempre se dirá que as conclusões do recurso do arguido estão incorrectamente formuladas, se esse tivesse sido o seu objectivo.
Incidindo este recurso sobre matéria de facto, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP, incumbe ao recorrente o ónus de especificar
a)- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)- as provas que devam ser renovadas.
Acentua depois o n.º 4 desse normativo que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do artigo 364º, n.º 2, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Sobre este último requisito importa ainda referir que ao recorrente é exigível que quando efectue a indicação concreta da sua divergência probatória, fazendo-o para os suportes onde se encontra gravada a prova, faça a remissão para os concretos locais da gravação que suportam a tese do recorrente (neste sentido, de forma claríssima cf. o Ac desta Relação de 24.02.2010, e Relação do Porto de 14.02.2000 in www. dgsi.pt). É essa imposição que decorre do artigo 412º, nº 4 do Código de Processo Penal refere que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º”.
O artigo 417º, n.º 3 do CPP (na versão revista de 2007, levada a cabo pela Lei n.º 48/2007 de 29/8) permite o convite ao aperfeiçoamento da respectiva peça processual se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 desse mesmo normativo.
Temos entendido o seguinte: se analisada a peça do recurso constatarmos que a indicação das especificações legais constam do corpo da motivação de forma assaz suficiente para se compreender o móbil do recorrente, não deveremos, assim, ser demasiado formalistas ao ponto de atrasar a tramitação de um processo quando existem conclusões e se consegue das mesmas deduzir, mesmo que parcialmente, note-se, as indicações previstas no n.º 2 e no n.º 3 do citado artigo 412º.
Convém lembrar que as “conclusões aperfeiçoadas” têm de se manter no âmbito da motivação apresentada, não se tratando de uma reformulação do recurso ou da apresentação de um novo recurso - por outras palavras: o convite ao aperfeiçoamento, estabelecido nos n.º 3 e 4 do artigo 417.º, do C.P.P., pode ter lugar quando a motivação não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do artº 412º do mesmo código, mas sempre sem modificar o âmbito do recurso.
Pelo que se o corpo da motivação não contém as especificações exigidas por lei, já não estaremos perante uma situação de insuficiência das conclusões, mas sim de insuficiência do recurso, insusceptível de aperfeiçoamento.
Ora, no nosso caso, em lado algum da motivação e das conclusões faz o recorrente uso do ónus de impugnação especificada, pois em lado algum indica com rigor as partes dos depoimentos gravados que crê terem sido mal valorados pelo tribunal (fala do depoimento do arguido e do depoimento da vítima) – refere apenas o que eles disseram, sem identificar o local exacto da gravação….
Ao estabelecer que o recorrente tem que indicar as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto o legislador quer sublinhar que «o recurso não é um novo julgamento, [mas] sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma c. e evidente da prova indicada. É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico (conforme se refere no Ac. RC de 3.2.2010, relator Gomes de Sousa).
Como tal, a solução mais formal seria não conhecer da impugnação da matéria de facto, quando isso implicasse audição da prova gravada.
Tomaremos, contudo, neste caso uma solução salomónica.
Dada a gravidade dos factos imputados ao arguido e à delicadeza da questão, não nos ancoraremos em argumentos formais e ouviremos a prova gravada, no que diz respeito aos depoimentos do arguido e de sua filha.
E tal faremos até ancorados em recente e sábia decisão do STJ, datada de 1/7/2010 (Pº 241/08.2GAMTR.P1.S1).
Nesse aresto, assim se escreveu:
«O Tribunal da Relação, perante as falhas que apontou ao recurso quanto à impugnação da matéria de facto por confronto com as provas produzidas na audiência e documentadas em acta, falhas essas que revelariam um alegado mau cumprimento do disposto nos n.°s 3 e 4 do art.° 412.° do CPP, deveria ter mandado aperfeiçoar as conclusões do recurso antes de se pronunciar, corno tem sido jurisprudência constante deste STJ e do Tribunal Constitucional, para permitir um segundo grau de recurso em matéria de facto.
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a considerar inconstitucional, por violação dos direitos a um processo equitativo e do próprio direito ao recurso, as normas dos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP na interpretação segundo a qual o incumprimento dos ónus aí fixados, conduz à rejeição do recurso, sem a possibilidade de aperfeiçoamento (cfr. Acs de 26-9-01, proc. n.° 2263/01, de 18-10-01, proc. n.° 2374/01, de 10-4-02, proc. n.° 153/00, de 5-6-02, proc. n.° 1255/02, de 7-10-04, proc. n.° 3286/04-5, de 17-2-05, proc. n.° 4716/04-5, e de 15-12-05, proc. n.° 2951/05-5).
Assim decidiu que “(5) se o recorrente não deu cabal cumprimento às exigências do n.° 3 e especialmente do nº 4 do art. 412º do CPP, a Relação não pode sem mais rejeitar o recurso em matéria de facto, nem deixar de o conhecer, por ter por imodificável a matéria de facto, nos termos do art. 431º do CPP. (6) Este último artigo, como resulta do seu teor, não toma partido sobre o endereçar ou não do convite ao recorrente, em caso de incumprimento pelo recorrente dos ónus estabelecidos nos n. s 3 e 4 do art. 412º, antes vem prescrever, além do mais, que a Relação pode modificar a decisão da 1ª instância em matéria de facto, se, havendo documentação da provei, esta tiver sido impugnada, nos termos do artigo 412º, n.º 3, não fazendo apelo, repare-se, ao n.º 4 daquele artigo, o que no caso teria sido infringido. (7)- Saber se a matéria de facto foi devidamente impugnada à luz do n.º 3 do art. 412º é questão que deve ser resolvida à luz deste artigo e dos princípios constitucionais e de processo aplicáveis, e não à luz do art. 431º, al. b), cuja disciplina antes pressupõe que essa questão foi resolvida a montante. (8) Entendendo a Relação que o recorrente não forneceu os elementos legais necessários para reapreciar a decisão de facto nos pontos que questiona, a solução não é “a improcedência”, por imodificabilidade da decisão de facto, mas o convite para a correcção das conclusões. (Acs de 7-11-02, proc. n.º 3158/02-5 e de 15-5-03, proc. n.º 985/03-5)”.
E que, face à dec.ção com força obrigatória geral da inconstitucionalidade da norma do art. 412.°, n.° 2, do CPP, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas ais. a), b) e e) tem corno efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência (Ac. n.° 320/2002 do T. Constitucional, DR-IA, 07.10.2002), não pode manter-se a decisão da Relação que decidiu não tomar conhecimento dos recursos no que se refere à decisão de facto, por não terem os recorrentes dado cumprimento ao imposto nos n.° 3 e 4 daquele art. 412.°.
Em tal caso a Relação deve tomar posição sobre a suficiência ou insuficiência das conclusões das motivações e ordenar, se for caso disso, a notificação do recorrente para corrigir/completar as conclusões das motivações de recurso, conhecendo, depois, desses recursos. (Acs. de 12-12-2002, proc. n.° 4987/02-5, de 7-10-04, proc. n.° 3286/04-5, de 17- 2-05, proc. n.° 47 16/04-5, e de 15-12-05, proc. n.° 295 1/05-5).
Só não será assim se o recorrente não tiver respeitado, de todo, as especificações a que se reporta a norma legal em causa, pois o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correcção das conclusões da motivação (cfr. os Acs. do STJ de 11-1-01, proc. n.° 3408/00-5, de 8-1 1-01, proc. n.° 2453/01-5, de 4-12-03, proc. n.° 3253/03-5 e de 15-12-05, proc. n.° 295 1/05-5).
Mas, se o recorrente, como é o caso dos autos, tendo embora indicado os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa, com a indicação, nomeadamente, das testemunhas cujos depoimentos incidiram sobre tais pontos, que expressamente indicou (v.g., falta de vestígios de sangue na roupa, hora cm que ocorreu o homicídio e permanência do arguido no local de trabalho entre determinadas horas), só lhe faltando indicar “as concretas passagens das gravações em que funda a impugnação que imporia decisão diversa”, não se pode dizer que há uma total falta de especificações, mas, quanto muito, uma incorrecta forma de especificar. Tanto mais que, se o recorrente tem o ónus de indicar as concretas passagens das gravações, o tribunal tem o dever de atender a outras que considere relevantes para a descoberta da verdade (art.° 412.°, n.° 6, do CPP), sob pena do recorrente “escolher” a passagem que mais lhe convém e omitir tudo o mais que não lhe interessa, assim se defraudando a verdade material.
A Relação, ao proceder da forma como transcrevemos, não conheceu da impugnação da matéria de facto, já que a rejeitou por razões meramente formais e não deu oportunidade ao recorrente de corrigir os pequenos desvios em que, alegadamente, incorreu.
Portanto, omitiu pronúncia sobre questão de que deveria conhecer e incorreu na nulidade a que se reportam os art.°s 379.°, n.° 1, al. e) e 425.°, n.° 4, do CPP».
Não queremos cair neste vício formal, tanto mais que o depoimento da menor dura pouco mais de uma hora!
E nem sequer se justifica um convite a um aperfeiçoamento de conclusões, quando é certo que este processo está parado nesta Relação há demasiado tempo…

3.2.4. Vejamos então os vários pontos de facto invocados na motivação de recurso do arguido.
a)- Antes de mais, há que dizer que a filiação da menor está bem provada por via documental (constando de fls 14-v o averbamento a tal certidão, de onde resulta que o pai da I...é o arguido).
Como tal, não foi só a prova testemunhal que serviu para provar tal factualidade sujeita a registo.
Não se deixará de assinalar a nossa perplexidade perante esta invocação em sede de recurso – afinal, este arguido nem sequer considera esta menina como sua filha, apesar do que alega no artigo 20º da contestação («sempre se esforçou por ser um bom pai»).
Como tal, improcede a 1ª conclusão, improcedendo também a n.º 22, na medida em que consideramos que tais factos são absolutamente irrelevantes para a dinâmica do processo e para a aferição da culpabilidade do arguido, nos moldes prescritos no artigo 368º do CPP.
Como se sabe, a actividade cognitiva do juiz está limitada aos factos descritos na acusação ou na pronúncia, na contestação, nas peças atinentes ao pedido de indemnização civil, caso haja sido deduzido, e aos factos resultantes da discussão da causa relevantes para a decisão das questões enumeradas nas alíneas a) a f), do n.º 2, do art.368º do Código de Processo Penal, sem prejuízo do disposto nos artigos 358º e 359º.
E tais alegações são irrelevantes in casu (mesmo o maior «criminoso» pode sofrer com um processo criminal em que seja sujeito e mesmo aquele que sempre tentou ser – e se esforçou para tal - um bom pai pode, uma vez na vida, portar-se contra o interesse do filho que gerou).

b)- Os factos 9, 10 e 11 não são conclusivos pois representam o elemento subjectivo do tipo legal de crime a que se subsume o comportamento do arguido, tal tendo resultado da livre apreciação d aprova feita pelo Colectivo de Aveiro, não ignorando o arguido a real idade daquela menina relativamente à qual sempre «tentou ser um bom pai» - e bom pai é aquele que sabe a exacta idade dos filhos que procriou….
Improcedem, assim, as conclusões n.ºs 18 a 20.

c)- Improcede também a 21ª conclusão, na medida em que tal factualidade não resultou apurada, assente que é legado que o arguido sempre trabalhou, o que equivale a dizer que nunca esteve em momento algum desempregado, sem emprego – ora, resulta da fundamentação do acórdão (fls 487-v) que muitas vezes o arguido ficava em casa com os filhos enquanto a mulher ia trabalhar.
Como tal, não poderia nunca o Colectivo de Aveiro dar como 100 % provado que o arguido sempre trabalhou, apesar do que, de forma abonatória e genérica, as testemunhas possam ter vindo dizer em julgamento.

d)- E quanto à factualidade-base dos crimes apontados no Acórdão?
Ou seja, quanto aos 3 episódios de abuso sexual?
Nestas situações de abuso sexual de crianças, a prova é difícil.
Por sistema, quer-se sempre atacar o depoimento da própria vítima que, neste caso, e muito bem, foi previamente ouvida em sede de dec.ções para memória futura.
E, por isso, anda-se em busca de incongruências, de pouco rigor, de inverdades…
Sabemos que quanto mais vezes uma testemunha fala sobre o mesmo facto, mais dele se afasta (na sua realidade objectiva), pela reelaboração mental do mesmo que, consciente ou inconscientemente, vai fazendo.
É normal que uma criança que fala em tribunal quando tem 14 anos pode deixar de ser exacta quando recorda factos passados quando tinha 9, 10 ou 11 anos de idade.
Os estudos científicos lançam luz sobre este assunto.
É normal a vítima revelar grandes inibições e dificuldades em relatar os factos, quer pelo esforço que, certamente, fez ao longo do tempo para arredar da memória os abusos de que foi vítima, quer pelas reacções emocionais que sua memória lhe provocava, quer pelo prejuízo que dos mesmos resulta para a sua auto-imagem.
Todas estas condicionantes contribuem de forma decisiva para que as referidas dec.ções contenham as imprecisões, contradições, omissões e inconsistências apontadas pelo arguido, de tal forma que estranho seria que não padecessem dessas características.
Como tal, concluímos que de tais imprecisões, contradições, omissões e inconsistências não resulta, por si só, que a I...mentiu.
É certo que essas imprecisões, contradições, omissões e inconsistências fragilizam o valor indiciário de tais depoimentos, como se afirmou no Ac. da Relação de Lisboa de 08/10/2003, in www.dgsi.pt, processo 7002/2003-3, mas não mais do que isso.
Como é complicado lidar com crianças violentadas na sua própria inocência.
«Nessas situações, quão difícil também se torna perceber o que realmente se passou no silêncio dos quartos. Quão delicado é falar com estes menores que nos aparecem assustados e titubeantes e a quem é penoso pedir explicações sobre actos tão vilipendiantes. O interrogatório de um menor deve, assim, revestir, uma extrema delicadeza, havendo que tentar perceber os silêncios, os esgares, os sorrisos nervosos, as hesitações, os olhares, as entrelinhas no discurso de um menor nesta situação.
O menor violentado na sua sexualidade deixa de poder ser sujeito do seu próprio destino, da sua própria história sonhada, projectada ou construída. A história que lhe vão impor ultra-passa-o em velocidade e substância, deixa de ser "sua" para passar a ser aquela que não lhe ensinaram, para a qual não pediram sequer um assentimento seu que fosse. De si, apenas um murmúrio surdo, um grito abafado na calada do quarto dos fundos, no canto recôndito da garagem mal iluminada, um "não" ouvido nas paredes da sua alma que não tinha voz suficiente para soar. De si, apenas urna imagem de um corpo usado como vazadouro de néctares infelizes, numa toada de lamento e dor, tantas vezes silenciada em nome de um amor maior...» (Paulo Guerra, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, respectivamente, p. 61 e 62 e 43).
Restam apenas, em muitas situações os depoimentos das vítimas, face à inconcludência dos exames científicos feitos.
«E aí restam os depoimentos sofridos, contidos, às vezes infantil e naturalmente contraditórios e incoerentes, das vítimas dos abusos e as demais provas testemunhais circunstanciais – há que dizer, neste jaez, que à Justiça de Menores basta a denúncia séria e minimamente fundamentada para que se despoletem os mecanismos necessários à imediata protecção da vítima, ficando para a Justiça Penal o apuramento de todo um conjunto de pormenores relevantes à descoberta da verdade material. É por demais evidente a prudência que se deve ter na condução do interrogatório de uma vítima de abuso sexual, assente que para ela é doloroso denunciar quem lhe é querido ou uma situação que ainda não compreendeu muito bem, imbuída por sentimentos de preconceituosas moralidades, herdadas de uma sociedade que ainda não aprendeu a lidar de forma saudável como corpo e com o sexo. Para essa vítima, é sempre um segredo que tem de ser revelado” (Paulo Guerra, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, p. 79 e 80).
Por isso, é que se tem de ter muito cuidado na inquirição feita a uma criança nesta sede.
«Importa equacionar a necessidade de existirem regras específicas para a inquirição dos menores vítimas, para o registo e validade dos seus depoimentos, bem como para o modo de os poder contraditar, num adequado balanceamento entre a exigência do apuramento da verdade, os direitos da criança e os direitos do arguido; investir na formação dirigida a magistrados e membros dos órgãos de polícia criminal; assegurar uma adequada assessoria técnica. … Tenho para mim que esta (a valoração da prova) tem de ser encarada como uma questão maior da nossa prática judiciária, importando que seja promovido o conhecimento actualizado sobre as técnicas de entrevista e inquirição das crianças sobre o estado das investigações quanto a alguns frequentes pré juízos, como sejam: que as crianças não são tão boas como os adultos na observação e relato dos acontecimentos que lhes respeitam; que têm propensão para fantasiar acerca das questões sexuais; que são altamente sugestionáveis; que têm dificuldade em distinguir a realidade da fantasia; que têm propensão para confabular» (Rui do Carmo, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, p. 74 e 96, nota 39).
E continua Isabel Alberto.
«Perante estas considerações, o contexto físico e pessoal da inquirição deve ser cuidadosamente trabalhado. Deve ser um espaço aconchegante e confortável, longe da agitação e da conotação policial, que não favoreça o encontro e o cruzamento com o agressor, podendo o menor estar acompanhado de um adulto da sua confiança, por ele escolhida para a audição, embora esta pessoa tenha de ser neutra (Carmo, 2000; Hamom,1988; Somers & Vandermeersch,1998). A entrevista não pode assumir um aspecto inquisitório, que retrai a vítima, e deve conter desde logo a referência a todos os elementos informativos essenciais: "o primeiro exame convém que seja minucioso, o que igualmente permitirá a recolha de vestígios susceptíveis de desaparecerem ou se atenuarem com o decurso do tempo" (CEJ, 1991, p.12). O recurso ao registo em vídeo das inquirições (Carmo, 2000), com aviso do registo e aceitação da vítima, e uma entrevista bem conduzida evitam a sucessão e a repetição de inquirições, servindo um único registo para todas as fases do processo.”. (Isabel Alberto, na mesma obra a p. 81 e 82).
E voltamos ao relator deste acórdão.
«Daí que haja a necessidade das entidades que procedem aos interrogatórios destas vítimas estarem munidas de cautelas e de conhecimentos bastantes sobre a arte de interrogar uma criança, de forma a que consigam interpretar esgares, silêncios, hesitações, monossílabos, um simples "sim" ou um simples "não", a construção frásica, a clareza do discurso, as pausas, as interrupções, as emoções e sentimentos que a criança evidencia (vergonha, culpa, tristeza, alegria, alívio, ansiedade), a labilidade e o distanciamento emocionais, o olhar, a postura, o sorriso, a colocação das mãos, o grau de sugestionabilidade, os seus desenhos, o seu comportamento com os brinquedos, o seu comportamento sexualizado, o tipo de pressão ou coerção a que pode estar sujeito, o contexto da sua revelação inicial...
Tais interrogatórios não se devem repetir para que a criança não tenha de injustificadamente reviver as cenas de um passado que quer definitivamente esquecer, sem prejuízo da tomada complementar de dec.ções sempre que o seu interesse superior o demandar, embora se considere, tal como o faz Razon (Laure Razon, in “Famille incestueuse et confrontation à la justice; de l’acte à la parole. Dialogue – Recherches cliniques et sociologiques sur le couple et la famille”, 1999, p.10) que "o primeiro depoimento é a maior parte das vezes o mais desenvolvido, argumentado, logo credível» (Paulo Guerra, na mesma obra a p. 83 e 84).
Concluímos assim que a prova da verificação nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova directa, e regra geral só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima.
Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, pois só nesse caso é susceptível de formar a convicção do julgador.
E ouvindo a prova gravada, o depoimento da I...é absolutamente credível.
Também o considerou o Colectivo de Aveiro, lançando ainda mão de outros meios de prova para concluir que ocorreram, de facto, os 3 abusos sexuais.
A propósito, ouçamos o acórdão:
«Quanto aos factos descritos em 2) a 11) supra, foi valorado, com especial relevo,
- o depoimento da menor I..., particularmente o prestado em audiência (para a qual foi convocada, com vista ao melhor esclarecimento dos factos),
· a qual referiu a idade aproximada que tinha na altura,
· os locais onde residiam e onde ocorreram os factos (referindo a última vez ter sido imediatamente antes de contar à avó e esta ir à polícia, sendo que a denúncia é de 29-04-2007 — cfr. fls. 24 e 44),
· descrevendo como tudo se passou em cada uma das situações (embora referindo que ocorreram muitas outras, mas que apenas essas três relatou inicialmente e das quais melhor se recordava),
· bem como o comportamento do arguido, seu pai, e a sua reacção perante tais actos, sendo que não confirmou que tenha ocorrido penetração (o que também não é confirmado pelo relatório do INML — cfr. fls. 120 a 124, 209 e 210), sendo que depoimento similar, particularmente quanto à idade em que ocorreram os actos (referindo ai c.mente os 9 anos como sendo a idade da ocorrência da experiência relatada) e descrição destes, já havia prestado perante o Juiz de Instrução, sem variações assinaláveis, muito embora aí notoriamente com linguagem mais “infantil” quanto à referência aos órgãos genitais (cfr. dec.ções para memória futura que prestaram nos autos, lidas em audiência — fls. 145 e 150 a 161).
- Foi também valorado o depoimento da testemunha D... (mãe da ofendida Íris), que referiu a relação matrimonial com o arguido P... e posterior separação, bem como os locais onde habitaram, além de mencionar as circunstâncias em que a I...relatou o sucedido, em primeiro lugar à avó G... (também testemunha, mas que não foi possível inquirir, devido ao seu estado de doença), e credibilidade que lhe mereceu tal relato, mencionando o estado da menor na altura (dizendo que “estava mal e chorava”), aludindo ainda ao facto de o arguido P... ficar muitas vezes em casa com os filhos, já que ela ia trabalhar.
- Pese embora a negação do arguido P... e do abono em seu favor de algumas das testemunhas de defesa inquiridas (dizendo que seria incapaz de fazer isso), da conjugação de todos estes elementos probatórios, resultou a convicção de que os factos ocorreram dessa maneira»
O Colectivo valora mesmo a forma de depor da menina.
Entende que o seu depoimento se revelou credível, «bastante pormenorizado e emocionado (chegou a soltar lágrimas e a entrar em choro, o que levou até a interromper o depoimento e a audiência), afastando-se qualquer cenário de efabulação ou instrumentalização da menor, designadamente por parte da sua mãe, como o arguido invocou (apesar de a mãe aparentar alguma instabilidade emocional, nada nos levou a equacionar que a menor tivesse sido levada a inventar estes factos para incriminar o pai)».
E que menina é esta?
O relatório psicológico é claro.
Indica que ela possui um nível intelectual acima dos padrões normais, estabilidade emocional e um grau de maturidade superior ao esperado para a sua idade, além de que não lhe foi detectada qualquer patologia comportamental, nem indícios que coloquem em causa a credibilidade do seu discurso, não parecendo (à Perita Médica) ter sido induzida por terceira pessoa, já que “não revela tendência para se deixar influenciar” (cfr. fls. 70 a 75 e esclarecimentos prestados em audiência pela sua subscritora, a Drª N...).
Note-se que o relatório de perícia psiquiátrica feita ao arguido é inconclusivo (não prova o que a ilustre mandatária do arguido pretende na conclusão 8ª e na conclusão 16ª – ali não está a prova de que ele não fez, apenas que não se conseguiu apurar se fez).
Sentencia o acórdão, e bem, que «o relatório da perícia psiquiátrica efectuada ao arguido P..., embora não lhe diagnosticando “doença ou perturbação de personalidade”, revelando o mesmo “uma inteligência normal e um perfil de personalidade normal”, refere “não ser possível concluir pela compatibilidade dos factos com a personalidade do examinado”, não dando, por isso, resposta à questão fundamental, já que tal personalidade poderá ser ou não compatível com a prática de tais factos (fls. 425 a 428)».
O relatório do IML à menor é inconclusivo – e tal não é de admirar pois não terá havido penetração vaginal, inexistindo, compreensivelmente, sinais de lesões.
Falemos agora das gravações.
O depoimento do arguido é irrelevante pois apenas nega as acusações, de forma absolutamente fria, como é aliás seu direito.
Refere que a mãe dos seus filhos não tem escrúpulos e que não olha a meios para atingir os seus fins.
Diz que a sua relação com a filha I...nunca foi a melhor, por causa da mãe.
E que enquanto viveu com a P…, havia «cenas todos os dias», bebendo para esquecer…
Mais refere que quando a D...se viu sem o seu dinheiro, teve de arranjar dinheiro de outro modo. Contudo, não se vê razão para esta vil acusação, pois dinheiro é algo que esta mãe não vai obter com esta denúncia (que até aparecer pelas mãos da avó e da tia da menor – cfr. fls 3)…
E aqui não convenceu o Colectivo e não nos convenceu a nós (nem sequer na tentativa de nos fazer convencer que nunca mais tinha vivido com a D...após Novembro de 2005 A data de 2005 foi dita pelo arguido em julgamento. Contudo, em contestação, já se refere a data da separação como sendo Maio de 2006. Muitas incongruências temporais, portanto! ).
E isto porque falou mais alto o depoimento sofrido da Íris, menina que não nos conste que sofra do chamado «síndrome de alienação parental Identificado por R. Gardener nos anos 80, não é um conceito consensual e não integra nem a CID nem a DSM, não sendo consensualmente considerado como «síndrome». Por definição, a SAP consiste em denegrir o vínculo entre uma criança e um dos pais e aparece quase exclusivamente nas disputas, pela guarda de uma criança, associadas ao divórcio.
O processo é desencadeado por um dos pais, usualmente pelo que detém a guarda, numa tentativa para atacar e ferir, de forma indirecta, o outro progenitor. Apesar desta destrutibilidade ter como alvo o outro progenitor (alienado), a principal vítima desta «síndrome» é a criança que acaba por ser explorada, enquanto voz involuntária do processo de alienação. Alguns autores sustentam que este processo consiste numa espécie de lavagem cerebral progressiva, ou mesmo numa espécie de programação da criança envolvida no processo de alienação parental.
Como resultado desta programação, a criança acaba por participar activamente na aniquilação do seu vínculo com o progenitor alienado.
», assente que nem em fase de divórcio ou separação estavam os seus pais em Abril de 2007 quando pela 1ª vez ela fala da história dos abusos.
Mas também o depoimento da D..., mãe da menor, embora titubeante no início e alegando sofrer de uma depressão, acabou por ser convincente no essencial, suficientemente sofrida pelo que passou com o marido e sobretudo com a filha I...(e a imediação feita pelo tribunal de 1ª instância constatou as lágrimas que tombou, cabendo-nos a nós, foro de recurso, apenas ouvir a voz embargada pela dor).
Apesar de ter havido separações intermitentes, ela é veemente em dizer que o marido só saiu de casa definitivamente quando há a denúncia dos autos – logo, em Abril de 2007.
E passemos a cena para a menor Íris, peça essencial para estes autos.
Foi ouvida por dec.ções para memória futura em 26/3/2008 (fls 145).
E em julgamento, corria o dia 3 de Novembro de 2009 (fls 481).
Ouçamo-la, nos seus 14 anos de idade, em diálogo com o Mº Juiz da causa que, diga-se, se portou de forma exemplar na «arte de bem cuidar de uma criança, mesmo que testemunha».
Nunca a menor foi peremptória no sentido de que tivesse havido penetração vaginal, apenas que sentiu alguma dor, compatível com os factos 4 e 8.
Manteve sempre a mesma história no essencial.
Na perspectiva desta criança, terá havido mais episódios de abuso de seu pai (e daí ela situar um dos abusos em Abril de 2003, no dia em que o pai agrediu a mãe, não se concordando com a defesa quando refere que o seu depoimento não esteve temporalmente enquadrado).
Teremos, por lei, que nos ater aos 3 episódios narrados na acusação, depois corrigidos, em termos de factualidade, no acórdão de Aveiro.
Vejamos o primeiro episódio «oficial» (em 2004).
Situa o incidente por volta dos seus 9/10 anos de idade, tendo o mesmo acontecido na residência que era da família (Quinta do XX...), o que confere com a factualidade dada como provada – não se recorda com exactidão do mês (nem tal seria exigível, pois uma criança com esta idade, mesmo que seja marcante um 1º abuso, acaba por bloquear os acontecimentos traumáticos que vive).
Refere que o pai lhe baixou as calças e lhe retirou as cuecas. Adianta que o pai tentou «pôr a pila dele na sua pipi» (12:00) e que sentiu alguma dor, acontecendo, depois, o friccionar do facto 4.
Como tal, não conseguimos perceber como é que se pode afirmar que esta criança não se recorda do incidente em causa, já que ela foi peremptória no essencial.
Passemos ao segundo (em 2005).
Não se recorda do tempo que mediou entre o 1º e o 2º incidente (note-se que foi reincidente em dizer que houve mais abusos do que estes que foram dados como provados), mas situa-o por volta do 3º período escolar do seu 5º ano em 2005 (foram viver para a Gafanha depois do Natal de 2004, época essa ainda vivida em Torres Novas).
É verdade que não é peremptória em dizer se tal evento se passou na Gafanha da Nazaré (numa altura em que os pais se terão reconciliado) ou na Quinta do XX... – começou por o situar na Quinta do XX... para mais tarde dizer que foi na Gafanha – 28:47 - [a verdade é que a criança continuou sempre a dizer que foi várias vezes – muitas vezes (24:44) – abusada pelo pai]. E tal não é de valorar contra este depoimento, atentas as consequências traumáticas que estes episódios sempre acarretam para a vítimaAo minuto 2:52 da 2ª parte do seu depoimento, esta criança diz em surdina «ai senhor», cansada das perguntas que lhe eram feitas e do esforço de se ter de recordar de algo que gostaria de esquecer… (se nem os adultos são rigorosos, porque a memória por vezes os trai, como é que se pretende que uma criança violentada seja exacta, isenta de lapsos?).
Note-se que para esta criança esta 2ª vez dos autos não corresponde necessariamente à sua 2ª vez…
Referiu, no essencial, que o pai lhe tentou retirar as cuecas e que, face à presença da sua irmã C..., o pai terá parado e interrompido os seus avanços libidinosos.
Tal basta para ter dado como provado o facto 5.
E finalmente vejamos o terceiro (em Abril de 2007).
Situa o evento na Quinta do XX..., onde voltaram a viver todos juntos (ambos os pais e todos os filhos), tendo sido a última vez que foi abusada pelo pai, acontecida nos seus 11 anos (o que confere com a data de 2007).
Fala que ocorreu de manhã, numa altura em que a I...estava deitada ao lado do irmão bebé, na cama do casal (a mãe terá pedido à filha para ir tomar conta da criança, pois tinha medo que ela caísse da cama, estando o pai deitado também) – e neste particular, não achamos assim tão estranho que esta menina tenha obedecido a uma ordem da mãe, sabendo que o pai estava a dormir e que eram 5 e meia da manhã…
Para a I...o que passou nessa altura foi o seguinte: o pai terá tentado repetir o acontecido na 1ª vez, colocando-se em cima dela, tendo feito os mesmos movimentos, sentindo a fricção da «pila» do pai, magoando-a.
Pela descrição que a I...fez, o pai terá ejaculado desta vez, pois ela foi c. nesse ponto (7:03 da 2ª parte do seu depoimento de 3/11/2009 Esclarece-se que no 2º CD – pois no 1º não era audível o testemunho da I...- que foi pedido, na sequência do nosso despacho de fls 570, o depoimento da I...foi levado a cabo em dois momentos: assim, quando nos referimos à 2ª parte, estamos a falar da parte do mesmo que decorreu entre as 16:65:50 e as 17:20:14.), tendo-a o pai mandado lavar.
E sempre referiu que o pai a terá sempre ameaçado nessas ocasiões, caso ela viesse a denunciar os abusos!
E é natural que esta criança tenha denunciado os acontecimentos à avó e não à mãe, ciente do medo que tinha que o pai se vingasse na mãe (a tal «sua melhor amiga»), se ela lhe tivesse contado tudo.
Como tal, também a nós nos mereceu inteira credibilidade este depoimento sofrido – e naturalmente choroso - da vítima dos inenarráveis actos levados a cabo por seu próprio pai ao longo de longos e demasiados anos, improcedendo, assim, a pretensão da defesa em ver como não provados os factos 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8.
É falso que a menor tenha dito tantas vezes que não se recordava dos incidentes – apenas tal terá respondido a algumas perguntas pontuais que lhe eram feitas (a generalização feita na motivação de recurso é assaz abusiva).
Pelo exposto, por este lado, não temos nada que alterar à matéria dada como provada na 1ª instância, improcedendo as conclusões 2 a 17.

3.2.5. Resta a outra impugnação de facto – a possibilidade de recurso que resulta da restrita aplicação estabelecida no artigo 410º nº 2 referente à correcção dos vícios aí referenciados por simples referência ao texto da decisão recorrida.
Esses VÍCIOS são de conhecimento oficioso.
Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
Vejamos o nosso caso.
Lendo a decisão recorrida, fácil é de concluir que a mesma está elaborada de forma muito equilibrada, lógica, encadeada e assaz fundamentada.
O Tribunal valorou devidamente o depoimento da vítima para concluir pela culpabilidade do arguido no que tange ao domínio do facto criminoso.
E, portanto, provou, para além de qualquer dúvida razoável, pelas circunstâncias da acção provada, que a intenção do arguido não poderia ser outra senão aquela provada.
Melhor do que isto não se pode pedir.
Tudo bate certo, tudo estando devidamente explicado e elucidado.
O registo do acórdão é encadeado e lógico.
Desta forma, inexistem vestígios de erros notórios na apreciação da prova.
Ou de qualquer um dos outros vícios do artigo 410º do CPP.
O tribunal decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a devidamente.

3.2.6. Quanto à livre apreciação da prova, diremos ainda o seguinte:
O artigo 127.º do C.P.P. consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP.
Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido.
Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:
os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;
Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;
Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência
Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de dec.ções e depoimentos.
A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das dec.ções e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por dec.ções, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cf. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205).

3.2.7. Uma palavra sobre o princípio «in dubio pro reo».
No fundo, o que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida.
O recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das dec.ções e depoimentos prestados e da credibilidade que devem merecer uns e outros, exercício que no entanto é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova.
Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso.
Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte:
«Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das dec.ções e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das dec.ções e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum».
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
«Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253).
Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada.
Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira.
O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo.
Não está em causa a igual valoração de dec.ções ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam.
As dec.ções e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam.
Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009:
«Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição c. e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando c. e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal.».
Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal.
Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado (e foi o que se fez nesta sede de recurso), fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela.
Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas dec.ções ou depoimentos prestados.
E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só dec.ção), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido.
Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados.
É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade.
Atente-se que o art.º 412/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa.
Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.
Ao reapreciar-se a prova por dec.ções, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos.
Quer isto significar que não vemos que deva ser alterada a decisão de facto.
Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa».
O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.
Não ficou o Tribunal de Aveiro em estado de dúvida.
E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).
Por tal razão, não faz sentido fazer aqui valer e funcionar o princípio constitucional in dubio pro reo.

3.2.8. Por todos estes motivos, mantém-se na íntegra o elenco dos factos provados e o elenco dos não provados, só havendo agora que subsumir os factos ao Direito tido por aplicável.

3.3. RECURSO DE DIREITO
3.3.1. O Colectivo de Aveiro considerou que o arguido cometeu um crime de continuado de abuso sexual de criança agravado p. e p. pelos artigos 30º/2, 171º/1 e 177/1 a) do CP revisto.
E fê-lo correctamente.
Invoca o arguido, na sua motivação de recuso, que o facto 5 não pode ser considerado como «acto sexual de relevo».
Nada de mais errado.
Não nos define o CP “acto sexual de relevo”.
Recorramos a Maia Gonçalves, a propósito do tema (in Código Penal Português Anotado, 18ª ed., pág. 624):
«Trata-se de um conceito novo a que se faz apelo em outros preceitos; por vezes sem o mesmo alcance em todos eles. Saliente-se, a propósito, que sendo a coacção sexual o tipo fundamental de crime, a violação não deixa de ser também uma coacção sexual, precisamente uma coacção sexual especial e qualificada. Tanto a cópula como o coito anal e o oral são actos sexuais de relevo, precisamente os mais graves.
Dentro da orientação já traçada para os limites que se devem estabelecer em moldes hodiernos para a criminalidade sexual, estava sendo inconveniente, como já foi acentuado, a referência na versão originária do Código à moralidade sexual. A referência a acto sexual de relevo ajusta-se melhor ao novo posicionamento e vinca ainda mais o pensamento legislativo de restringir o tipo. Assim se erradica, acentua-se uma vez do direito criminal todo o dogmatismo moral, ficando no entanto dele somente condutas sexuais que ofendam bens jurídicos fundamentais das pessoas no que concerne à sua livre expressão do sexo.
Não é porém possível estabelecer em parâmetros exactos o que se deve entender por condutas ou actos sexuais. E saliente-se a propósito que as dificuldades na definição destes parâmetros sempre serão mais facilmente superadas do que as que surgiram na definição do abandonado conceito de atentado ao pudor. O conceito tem gerado alguma polémica, designadamente no que concerne à relevância que nele devem desempenhar os elementos objectivos e subjectivos. Parece-nos, porém, certo que acto sexual só pode ser considerado aquele que tem relação com o sexo (relação objectiva) e em que, além disso haja por parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais. Existem, assim, casos duvidosos e mistos, v.g. o exemplo de escola do médico que examina órgãos sexuais de um cliente com fins curativos, mas aproveitando para se excitar sexualmente.
Esta definição do conceito de acto sexual, em que entra uma conotação subjectiva, que supomos predominante, não é porém unânime. Entre nós o Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, I, 448, sustenta uma interpretação objectivista, resolvendo depois os casos de escola como o do médico que examina o corpo de uma paciente ou do pai que beija uma filha através de causas de justificação ou de não correspondência è teleologia hodierna dos crimes sexuais.
De qualquer modo, o tipo está limitado pelo uso de expressão restritiva de relevo.
O direito criminal, como ultima ratio, implica que só seja tutelada a liberdade sexual contra acções que revistam certa gravidade. Em tais termos, actos como o coito oral e a masturbação devem aqui ser incluídos; o mesmo não sucederá, em regra, com os beliscões e os beijos, que só o deverão ser em casos extremos, ou seja naqueles em que existem grande intensidade objectiva e intuitos sexuais atentatórios da autodeter­minação sexual.
Trata-se, afinal, de afloramento do princípio bagatelar - de minimis non curat praetor. Deve em todo o caso anotar-se que não é indispensável o contacto mútuo com o corpo da vítima. Actos de introdução de objectos e acções como ejacular ou urinar sobre a vítima podem ser considerados actos sexuais de relevo. Mesmo o comportamento por omissão, como permanecer nu perante a vítima, pode eventualmente ser considerado acto sexual de relevo, tudo dependendo das circunstâncias em que esse comportamento tem lugar. Neste sentido, Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conim­bricense, I, 447».
Ora, em dia incerto de 2005, este pai, procurando satisfazer a sua lascívia e os seus desejos sexuais (sendo essa c.mente a sua intenção, assim se valorou em 1ª instância), aproveitando a ausência da mulher, acercou-se da filha, de quem tinha já abusado em 2004, note-se, retirando-lhe as cuecas.
Estaremos com o STJ (Acórdão de 5 de Julho de 2007 CJSTJ 2/07, 242), quando sentencia que «acto sexual de relevo é todo aquele que assume uma natureza ou significado directamente relacionado com a esfera da sexualidade de quem o sofre ou pratica, que pela sua gravidade contende com a liberdade de determinação sexual da vítima».
Continua tal aresto:
«No abuso sexual de crianças será sempre relevante qualquer actuação objectivamente libidinosa, por mais simples que ela seja ou pareça ser, em virtude de tais menores não disporem do discernimento suficiente para se relacionarem sexualmente em liberdade».
Para que é que este pai quis tirar umas cuecas a uma filha de 10 anos?
A intenção era c., não duvidamos um segundo, atentando-se ainda que, sendo um crime continuado, estas 3 atitudes em anos diferentes servem para sedimentar a prova do abuso sexual agravado que se consumou (agravação porque se trata de abuso de pai a filha).
Trata-se uma acção de conotação sexual de uma certa gravidade objectiva realizada na vítima, sabendo nós a intenção com que este pai o fez e os antecedentes.
Já quanto aos actos mencionados em 2-4 e em 6-8, eles são c.mente actos sexuais de relevo (cfr. Acórdão do STJ de 24/10/1996, in CJ STJ, 1996-III-174 e Mouraz Lopes, Os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual no CP, 4ª edição revista e modificada, 2008, Coimbra Editora, p.45).
Daí que não nos mereça censura o enquadramento jurídico feito no tribunal recorrido.

3.3.2. E QUANTO À PENA?
Foi o arguido condenado em 5 anos e seis meses de prisão efectiva.
Entende o arguido que deveria ter sido fixada em quantum próximo do mínimo legal.
A moldura penal abstracta do crime é a seguinte:
- um ano e 4 meses a 10 e 8 meses de prisão.
Na apreciação das penas aplicadas, o ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar prende-se com o disposto no art. 40.º do Código Penal, nos termos do qual toda a pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1) e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (n.º2).
Ab initio afastada a questão da escolha da pena nos termos do artigo 70.º do Código Penal – por não serem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade a este crime –, há que sindicar o veredicto do tribunal a quo quanto ao mesmo.
Tem a jurisprudência reiteradamente afirmado, seguindo a doutrina de Figueiredo Dias (in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005, págs. 227 e ss), que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar”; será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social; quanto à culpa, para além de suporte axiológico-normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar (vide, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2008.04.24, Recurso n.º 3057/06 e de 2008.10.16, Recurso n.º 2851/08, ambos sumariados in www.stj.pt).
Nos termos do artigo 71.º do Código Penal, a determinação da medida da pena é feita dentro da moldura penal abstracta, em função da culpa do agente e tendo em conta as exigências de prevenção de futuros crimes (n.º 1), ponderando-se as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, vg. as referenciadas nas várias alíneas do n.º 2 do preceito.
No que diz respeito ao crime de abuso sexual de crianças agravado, na forma continuada (factos ocorridos entre os 9 e 11 anos da menor), subscrevemos inteiramente a ponderação efectuada pelo tribunal a quo, não se vendo razões para alterar este juízo.
Foi observada a orientação base ditada pelo artigo 40º do Código Penal, em matéria de fins das penas, que estabelece como finalidades da punição só propósitos de prevenção (geral e especial), e que atribui à culpa, uma função apenas garantística, de medida inultrapassável pela pena (n.ºs 1 e 2).
A pena aplicada reflecte o elevado desvalor da acção, não ultrapassa a medida da culpa (que é intensa, assumindo a forma de dolo directo e reiterando-se em comportamentos múltiplos e sucessivos que revelam uma personalidade com um elevado grau de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico penal, maxime atendendo ao tipo de actos que o arguido praticou com uma criança com 9 a 11 anos) e são adequadas a responder às necessidades de prevenção geral (prementes) e especial (muito prementes) que no caso se verificam.
E foram devidamente atendidos e ponderados os demais factores da determinação da medida da pena enunciados no artigo 71.º do Código Penal.
Devem aqui sublinhar-se os factores relativos à personalidade do arguido manifestada na matéria de facto, de onde ressaltam os seus antecedentes criminais em matéria de crimes rodoviários e contra o património e que demonstram, quer a sua baixa susceptibilidade para ser influenciada pela pena, quer a falta de preparação para manter uma conduta lícita que veio também a manifestar nos factos aqui em análise, aproveitando-se da sua própria filha para satisfazer com ela os seus instintos libidinosos e roubando-lhe (sem possibilidade de restituição) a possibilidade de viver a inocência da sua infância a partir dos 9 anos, bem como colocando-a na angústia de não poder contar à própria mãe um facto tão relevante de que estava a ser vítima…
O que nos reconduz a salientar, também, o enorme peso das consequências da conduta do arguido na pessoa da menor – pode parecer esta menina muito estável, em termos emocionais (e daí que não se aceite a conclusão 7ª, parte final, quando refere que uma criança que revela estabilidade emocional não pode ser uma criança abusada, assente que uma criança abusada, por muitos traumas que tenha tido, pode revelar discurso assertivo sobre o que lhe aconteceu, «permitindo-lhe lidar de uma forma racional com situações penosas» - cfr. exame de fls 75), mas sabemos que a imagem destes 3 inenarráveis abusos vai perdurar para sempre na sua mente e na geometria da memória do seu corpo, por muito que não se note!
Note-se ainda que está ínsito no recurso que esta atitude não é assim tão grave pelo facto de o arguido não ter ordenado á I...qualquer conduta (cfr. fls 501).
Na conclusão 15ª chega-se ao ponto de se escrever que não se compreende muito bem «porque se vai deitar na cama dos pais, sem a mãe, quando o pai está lá a dormir».
Pasme-se!
Equivale isto a dizer que foi a I...que consentiu neste comportamento, que embarcou nesta história de pesadelo por vontade própria!
Equivale isto a insinuar que a menor se colocou voluntariamente no leito do predador, procurando algo mais do que carinho paternal…
Isto é ignorar por inteiro a filosofia inerente a estes crimes (o tal «não sei o que me aconteceu, mesmo que digam que eu colaborei»).
Deve ainda salientar-se, relativamente à muito elevada censurabilidade do comportamento do arguido, que este não foi sensível, sequer, ao natural escrúpulo que deveria para si decorrer da tenra infância da menor e da relação de natureza familiar que tinha com a menor.
E, relativamente ao acentuado grau de ilicitude dos factos, o longo tempo por que perdurou a conduta do arguido no que diz respeito ao abuso sexual e a gravidade relativa daquela conduta entre os diversos comportamentos descritos no tipo do artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal.
As necessidades de prevenção especial são prementes no caso “sub-judice”, por força do passado criminal do arguido e perante as características da personalidade que revelou quando praticou os factos, pelo não respeito dos motivos inibitórios do crime que aos laços de proximidade familiar devem andar ligados.
Também as exigências de prevenção geral, em face do aumento e visibilidade pública dos crimes relacionados com a liberdade e autodeterminação sexual e à coacção sobre crianças, que geram sentimentos de repulsa na comunidade, sobretudo quando são praticados em meio familiar, demandando uma intervenção punitiva com peso suficiente para repor no espírito comunitário a confiança na validade e vigência da norma violada.
Neste contexto circunstancial, subscrevemos inteiramente a ponderação efectuada pelo tribunal a quo, tendo por justa e adequada a pena de cinco anos e seis meses de prisão para o crime de abuso sexual de crianças agravado, na forma continuada.

3.3.3. Assim situada a pena de 5 anos e seis meses, não há que a suspender, por impedimento legal (cfr. artigo 50º/1 do CP), assente que apenas podem ser suspensas na sua execução as penas de prisão não superiores a 5 anos.
Por tal motivo, não há que conhecer desta questão suscitada no recurso (conclusões 27º a 32º).

3.4. Face ao exposto, só resta fazer improceder na sua globalidade o recurso intentado pelo arguido.

3.5. Urge, contudo, fazer três correcções no acórdão, emendando-se 3 lapsos materiais cometidos [artigo 380º/1 b) e n.º 2 do CPP].
Assim,
· a fls 485, quando se lê no facto 15) «Entes de preso trabalhava como serralehiro (…)»,
Dever-se-á ler:
Antes de preso trabalhava como serralheiro (…)”.
· a fls 489-v, no DISPOSITIVO (III), quando se lê «(…) crime continuado de abuso sexual de criança gravado (…)»,
Dever-se-á ler:
«(…) crime continuado de abuso sexual de criança agravado (…)».


III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em
1º- corrigir o texto da sentença recorrida, determinando-se que
· a fls 485, quando se lê no facto 15) «Entes de preso trabalhava como serralehiro (…)»,
dever-se-á ler:
Antes de preso trabalhava como serralheiro (…)”.
· a fls 489-v, no DISPOSITIVO (III), quando se lê «(…) crime continuado de abuso sexual de criança gravado (…)»,
dever-se-á ler:
«(…) crime continuado de abuso sexual de criança agravado (…)».

2º- julgar não provido o recurso intentado por P..., mantendo na íntegra o acórdão recorrido.

3º- determinar que se envie ao Tribunal de Família e Menores de Aveiro certidão deste acórdão, com nota de trânsito em julgado, para os efeitos tidos por convenientes, nomeadamente, os relacionados com a possível providência tutelar cível que poderá vir a ser intentada (artigo 1915º do Código Civil).

Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça fixada em 6 UCs [artigos 513º, n.º 1 do CPP e 87º, n.º 1, alínea b) do CCJ ainda aplicável aos autos].

Coimbra, _______________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


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(Paulo Guerra)


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(Vieira Marinho)