Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
315/08.0YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: ESCUSA
Data do Acordão: 10/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGOS 43.º, E 45.º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: É motivo de escusa a presidência à conferência no processo de regulação do poder paternal, no qual terá assistido a factos que poderão estar na base da acusação.
Decisão Texto Integral: O Ex.mo Juiz de Direito, a exercer funções no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede, veio ao abrigo do disposto nos art.s 43.º, e 45.º, do Código de Processo Penal , formular pedido de escusa de forma a não intervir no julgamento a realizar no processo comum singular n.º 390/07.4GBCNT, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede.
Alega para o efeito o seguinte:
- Ao preparar-se para proferir o despacho a que alude o art.311.º do C.P.P. verificou que o ofendido JP acusa a arguida CM de lhe ter dirigido , para além do mais, as seguintes expressões: “ Tu não tens palavra, na frente do Dr. dizes uma coisa e começas logo a fazer outra.”
- Lendo a cópia da missiva que a arguida dirigiu ao assistente verifica que a mesma se refere a um compromisso assumido pelo assistente durante uma conferência de pais a que presidiu, em que os progenitores chegaram a acordo quanto ao pagamento por cada um de metade das despesas escolares, sendo que o ofendido, ao que recorda, disse que iria pagar todas as despesas escolares com o filho mas sem pretender que isso ficasse consignado no referido acordo.
- Para além de eventualmente poder vir a ser arrolado pela arguida na qualidade de testemunha , o conhecimento da situação não deixaria de induzir sério risco da minha intervenção no julgamento ser vista como suspeita, gerando um sentimento de desconfiança da sua imparcialidade.

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da concessão da escusa requerida pelo Ex.mo Juiz.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

*

A independência dos tribunais, consagrada constitucionalmente no art.203.º, implicando a sujeição dos juízes apenas à lei, bem como a inamovibilidade e a irresponsabilidade, com as excepções previstas na lei, é complementada com a imparcialidade dos juízes, pois só assim fica assegurada a confiança geral na objectividade da jurisdição.
Neste sentido se pronuncia expressamente o art.6.º, n.º1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ao estabelecer que « Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada , equitativa e publicamente , num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial , estabelecido pela lei...».
As garantias dessa imparcialidade, geradoras de abstenção de julgar, são estruturadas no art.39.º e seguintes do Código de Processo Penal , de três modos :
- impedimentos , taxativamente enumerados na lei ;
- recusa , desencadeada pelo Ministério Público , arguido , assistente ou pelas partes civis ; e
- escusa , desencadeada pelo próprio juiz .
Sobre recusas e escusas estatui o art. 43.º do Código de Processo Penal, nomeadamente, o seguinte :
“1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita , por existir motivo sério e grave , adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1 , a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art.40.º.
4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2.”
Nos termos deste preceito legal é conferida ao juiz a faculdade de pedir escusa quando , por circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se , duvidar-se , da sua imparcialidade.
Não basta um convencimento subjectivo por parte do juiz para que seja deferida a escusa .
É objectivamente que, na escusa, tem de ser considerada a seriedade e gravidade do motivo de suspeição invocado , causador da desconfiança sobre a imparcialidade do juiz .
De um modo geral , pode dizer-se que a causa da suspeição há-de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com alguns dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o processo.
Enquanto os motivos de impedimento mencionados nos art.s 39.º e 40.º do C.P.P. afectam sempre a imparcialidade do juiz , que deve declará-lo imediatamente nos autos por despacho irrecorrível, ficando-lhe vedada a intervenção no processo , no caso de escusa tudo depende das concretas razões de suspeição invocadas pelo juiz que admite o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade no processo.
Os motivos ou circunstâncias que constituem o fundamento do pedido de escusa podem consistir em extensão das causas de impedimento. – Cfr. Prof. Lebre de Freitas , “Código de Processo Civil anotado” , Coimbra Editora , Vol. I, pág.230.
Vejamos.

Resulta dos presentes autos que a arguida CM foi pronunciada pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.181.º do Código Penal, porquanto em 2 de Agosto de 2007 enviou ao assistente uma carta registada, escrita pelo próprio punho onde, escreveu, designadamente, a afirmação seguinte: “ Tu não tens palavra, na frente do Dr. dizes uma coisa e começas logo a fazer outra.”.

Consignou-se na decisão instrutória, designadamente, que a arguida alegou que a dita expressão era um facto ocorrido, sem um valor associado, vindo na sequência da palavra dada pelo assistente na Conferência de pais nos autos de regulação do poder paternal n.º 720/07.9TBCNT, pendentes no 1.º Juízo, onde na presença do Meritíssimo Juiz e do Digno Procurador-Adjunto do Ministério Público, assumiu o pagamento da totalidade das despesas escolares do menor, pese embora no acordo se consignasse apenas metade de tais despesas e, depois, recusou pagar a totalidade daquelas despesas.

Mais se menciona ali que no âmbito da instrução foram inquiridas quatro testemunhas - que identifica – e que todas foram peremptórias em referir que, na sequência da separação da arguida e do assistente, existiu um acordo de regulação do poder paternal, em que o assistente se comprometeu a pagar a totalidade das despesas com o menor e não o fez.

No caso em apreciação o Ex.mo Juiz , que presidiu à Conferência no processo de regulação do poder paternal, não foi inquirido como testemunha no presente processo penal. Alega, porém, o requerente da escusa, que eventualmente pode vir a ser arrolado.

Esta situação não pode deixar de trazer à colação o disposto no art.39.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal, que estatui que nenhum juiz pode exercer a sua função num processo penal «Quando, no processo, tiver sido ouvido ou dever sê-lo como testemunha.», pois se é evidente que o Ex.mo Juiz não foi ouvido no processo já implica alguma ponderação saber se estamos perante um caso em que o requerente da escusa deve ser ouvido no processo como testemunha..

Se se entender que deve ser ouvido no processo como testemunha então deveria o Ex.mo Juiz ter declarado o impedimento legal no processo, por despacho irrecorrível, e não vir requerer a escusa.

Dos elementos trazidos aos autos não resulta que o Ex.mo Juiz foi a única pessoa a presenciar a conversa ocorrida entre os pais do menor na Conferência que teve lugar no âmbito da regulação do poder paternal e, por outro lado, haverá outras testemunhas que terão conhecimento sobre o acordado entre os pais do menor sobre o pagamento total das despesas escolares.

Não temos assim por claro o dever de testemunhar por parte do Ex.mo Juiz e consequente obrigatoriedade de declarar o seu impedimento para exercer a sua função no presente processo penal.

Já na óptica do cidadão médio, é perfeitamente natural a existência de receio sério de que o requerente da escusa tenha uma predisposição a decidir a questão antes mesmo da produção de prova em audiência de julgamento relativamente à expressão em causa tida como injuriosa pelo assistente, uma vez que terá assistido aos factos que poderão estar na base da expressão.

Não interessa se na realidade das coisas o Ex.mo Juiz não permanece imparcial. - Cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal” , Vol. I , pág.237.
Em suma, entendemos que existe motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do requerente da escusa na realização do julgamento. Como tal deve a escusa, que o mesmo requereu, ser deferida.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os Juízes do Tribunal da Relação em julgar procedente o pedido de escusa do Ex.mo Juiz de Direito, de forma a não intervir no processo comum singular n.º 390/07.4GBCNT, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede.
Sem custas.

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Coimbra,