Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
181/04.4TBSRE.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS
LIVRE APLICAÇÃO DO DIREITO
RESPEITO PELA CAUSA DE PEDIR
PROIBIÇÃO DA CONVOLAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
NULIDADE DE SENTENÇA
Data do Acordão: 07/01/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 661º, 664º E 668º CPC; E 64º, Nº 1, ALS. B) E C), DO RAU
Sumário: I – O juiz não está obrigado a aceitar o enquadramento jurídico que as partes oferecem para os factos alegados e provados, sendo livre na aplicação do direito – artº 664ºCPC.

II – Porém, este poder sofre de um limite fundamental: o tribunal é livre na qualificação jurídica dos factos contando que não altere a causa de pedir (o juiz só pode servir-se dos factos articulados pelas partes – artº 264º, nºs 1 e 2, CPC).

III – Sendo a causa de pedir invocada pelos autores integrada pela alegação do contrato de arrendamento e dos factos que, de acordo com a norma do artº 64º, nº 1, al. b), do RAU, constituem fundamento de resolução desse contrato, não é legítimo que o julgador convole tais factos para a hipótese contemplada na al. c) do nº 1 do dito artº 64º (diferente causa de pedir).

IV – É que embora ambas essas normas se enquadrem no uso indevido do prédio arrendado, são diferentes as ratios desses preceitos: - o da al. b) reside no interesse do senhorio na conservação do imóvel contra os riscos de deterioração ou mesmo de destruição, quando utilizado para determinado fim ou ramo de negócio; - o da al. c) reside na gravidade da violação do princípio da boa fé contratual, cometida pelo arrendatário no exercício do seu direito (dever de boa fé com que deve ser gozado o prédio alheio cedido por via do arrendamento).

V – Ao julgar-se procedente a pretensão dos autores de resolverem o contrato de arrendamento, com fundamento em causa de pedir diferente daquela por eles invocada, conheceu-se de questão não submetida à apreciação do tribunal – artº 661º, nº 1, CPC -, incorrendo essa sentença no vício de nulidade previsto no artº 668º, nº 1, al. d), do CPC.

Decisão Texto Integral:          ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

         I- RELATÓRIO

         I.1- A... e mulher B..., intentaram em 1.4.04 acção declarativa sob a forma de processo sumário, contra «C...», D... e E..., pedindo se decrete a resolução do contrato de arrendamento e se condene a primeira ré a despejar o r/c do prédio urbano que identificam e a entregá-lo com os bens móveis que descrevem, bem como a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 2.992,80, correspondente a uma das rendas em falta e à indemnização pela mora dos meses de Agosto de 2003 a Março de 2004.

Alegaram, para tanto e em síntese, que por contrato escrito, celebrado entre autores e réus (a primeira na qualidade de arrendatária e os segundo de fiadores), deram de arrendamento à 1ª ré, o rés-do-chão, do prédio urbano sito em Soure, com a duração de um ano e início em 1 de Junho de 2003, renovável por iguais e sucessivos períodos de tempo; que a renda mensal acordada foi de € 598,56; que o local arrendado se destinava ao exercício da actividade comercial da arrendatária, mais concretamente ao exercício de actividade hoteleira, designadamente cafetaria; que de acordo com o estipulado entre autores e 1ª ré, no local apenas poderia funcionar um café; que a 1ª ré vem dando ao local um destino diverso do acordado, tendo vindo a utilizá-lo de forma usual e sistemática à realização de concertos ao vivo de grupos de rock, de festas temáticas, sessões de «karaoke» e espectáculos de variedades; que tais espectáculos e festas se prolongam até cerca das 6 e 7 horas da manhã, num barulho de tal forma alto e insuportável que até as paredes do tecto trepidam, impedindo quem habita no mesmo prédio e prédios vizinhos de gozar os seus direitos ao sono, repouso e sossego, o que originou já várias queixas junto das autoridades competentes; que a 1ª ré estava obrigada a pagar aos autores a renda mensal nos primeiros oito dias do mês anterior àquele que dissesse respeito, através de depósito bancário, sendo que entre os meses de Agosto de 2003 a Março de 2004, não procedeu ao pagamento nas datas acordadas, nem procedeu ao pagamento de qualquer renda durante o mês de Janeiro de 2004; que a 1ª ré se constituiu em mora, pelo que os autores têm direito a receber dela, para além das rendas, uma indemnização igual a 50% do devido.

A 1ª ré contestou, alegando, em síntese, que o locado lhe foi cedido para nele ser exercida a actividade hoteleira, designadamente cafetaria; que tal actividade compreende uma panóplia de serviços que nos dias de hoje, vão muito além da mera pernoita, nomeadamente serviços de refeições (ainda que ligeiras), de bar (venda de bebidas) e entretenimento diverso, com recurso a profissionais e/ou a aparelhos de reprodução de registos magnéticos/digitais; que só assim se justifica a inclusão no estabelecimento de mobiliário e outro material usualmente afecto a um contexto de «Pub/Bar»; que a vontade real e efectiva das partes aquando da celebração do contrato consistia na afectação do locado ao giro de estabelecimento de Bar, ou seja, um espaço de convívio, tertúlia e entretenimento em que, simultaneamente, são vendidas bebidas e servidas refeições aligeiradas (cachorros, tostas, pastelaria, etc.), razão pela qual os autores garantiram à 1ª ré um período de funcionamento até às 4 horas da manhã; que, nessa medida, desde o primeiro dia de funcionamento a 1ª ré tem efectuado no local, a título de entretenimento, reprodução de registos musicais e, ora quinzenal, ora mensalmente, espectáculos ao vivo, tipo «piano-bar» ou «karaoke» (não tolerando a dança), coincidentes com a organização de festas temáticas para atracção extraordinária de clientela; que os autores sempre tiveram conhecimento de tais festas, chegando mesmo a comparecer; que tais actividades não implicam qualquer agravamento ao desgaste infligido ao locado, tendo, ao invés, aumentado o seu valor locativo; que os autores asseguraram que o imóvel era dotado das condições necessárias ao seu eficaz isolamento acústico; que pagou, sem excepção, todas as rendas reclamadas pelos autores, tendo estes apenas direito a reclamar indemnização moratória relativa às rendas dos meses de Dezembro de 2003, Janeiro de 2004, Fevereiro de 2004 e Março de 2004, num total de € 1.197,12; que, por mera cautela, efectuou o depósito de todas as indemnizações concernentes aos meses de Setembro e Novembro de 2003, no valor de € 1795,68; que a petição inicial é inepta, pois que, não obstante peticionar a resolução do contrato, invocando para o efeito, também, a falta de pagamento de rendas, os autores não se coíbem de demandar aquela indemnização.

         Os 2ºs réus, admitindo a sua qualidade de subscritores do contrato em causa, vieram também contestar a acção, invocando a ineptidão da petição inicial por dela não constarem quaisquer factos de onde decorra qualquer fundamento para a respectiva demanda. Mais, alegaram que na falta de qualquer estipulação em contrário, a fiança apenas abrangerá o período inicial de duração da locação, pelo que o pedido relativo às rendas e/ou indemnizações a partir de 1 de Junho de 2004 é desprovido de qualquer fundamento; e que, por mera cautela, tendo em conta a acessoriedade da fiança, aderem à alegação já vertida na contestação da 1.ª ré.

         Foi designada data para a realização de uma tentativa de conciliação, não tendo sido possível alcançar o acordo das partes quanto à questão em litígio, os autores vieram responder excepção de ineptidão da petição inicial alegada pela 1ª ré, mantendo o pedido de resolução do contrato com fundamento no uso do locado para fim diferente do contratado, julgou-se improcedente a invocada excepção, e a convite do tribunal concretizaram a matéria de facto alegada relativamente aos 2ºs réus.

Seguiu-se despacho saneador e a selecção da matéria de facto assente e controvertida, com reclamação atendida.

         Realizou-se o julgamento em 5 sessões, tendo a matéria de facto controvertida sido decidida, sem reclamações, pela forma constante de fls. 667 a 675.

         Por fim, proferiu-se em 11.9.07 a sentença, a julgar a acção parcialmente procedente, decidindo-se: 1- Declarar resolvido o contrato de arrendamento celebrado aos 01.06.2004 entre os autores relativo ao rés-do-chão, do prédio urbano sito na Rua Dr. João Esteves Simões; 2- Condenar a ré «C...» a despejar, imediatamente, a parte do prédio mencionado, livre de pessoas e bens, à excepção dos bens móveis, pertença dos autores, descritos em 2 da factualidade assente, e a entregá-lo, bem como aos referidos móveis, aos autores; 3- Condenar os réus solidariamente, no pagamento aos autores da quantia de 1.197,12 €, a título indemnização pela mora da arrendatária no pagamento das rendas relativas aos meses de Dezembro de 2003, e de Janeiro, Fevereiro e Março de 2004; 4- Absolver os réus do demais peticionado.

         I.2- Inconformada, recorreu de apelação a ré «C...».

         Restringindo o objecto do recurso à parte decisória que declarou resolvido o contrato de arrendamento e decretou o despejo do locado, termina as suas alegações com estas conclusões:

         1ª- Atenta a factualidade assente e dada como provada, o entendimento preconizado pelo tribunal recorrido, que subsumiu os factos à al.c) do nº1 do art.64º do R.A.U., é de molde a afrontar o regime vinculístico do arrendamento urbano, derrogando a taxatividade daquela norma legal;

2ª- Sufragando a tese do Sr. Juiz Conselheiro Pinto Furtado, entende a recorrente que as “práticas ilícitas”a que se refere a alínea e) do n°1 do art°64° do R.A.U., não abrangem os ilícitos civis não previstos nas demais alíneas da norma, sob pena da sobredita alínea se converter em «válvula de escape» ou «cavalo de Tróia», capaz de demolir a muralha da taxatividade e toda a construção teleológica do art°64 do R.A.U.;

3º- A prática reiterada de conduta nocturna ruidosa, que incomoda os vizinhos, não é caso de resolução, antes constituindo infracção ao artigo 70° do C.C., cujo remédio está previsto no n°2 do mesmo normativo:

4ª- Só as condutas do arrendatário cuja ilicitude apresente gravidade tal que fique irremediavelmente comprometida a relação locatícia, merecem a radical resolução contratual - não é este o caso dos autos (o estabelecimento poderia ser encerrado para a realização de obras no âmbito de providência requerida ao abrigo do art°70°/2, C.C.);

5ª- A ilicitude da alínea c) do n°1 do art°64 do R.A.U. não é uma ilicitude qualquer, antes a ilicitude cuja gravidade seja de molde a causar aquela ressonância ético-jurídica que nos transporta para o domínio da ilicitude penal;

6ª- Todas as condutas do arrendatário adequadas à resolução contratual, como tal previstas no n°1 do art°64 do R.A.U., têm um timbre comum: as acções ou omissões do arrendatário que ali se prevêem só podem ser estancadas pela resolução e despejo, o despejo é o único remédio. In casu, o despejo não era o único remédio para a tutela do direito dos autores ao repouso e sossego, sempre existiriam os meios a que se refere o art°70°/2;

7ª- Não houve alegação nem prova, de factualidade que se prestasse a preencher os conceitos de direito da reiteração e habitualidade das “práticas ilícitas” - os quesitos 3° e 5° encerram, logo na sua formulação, proposições conclusivas e puramente abstractas;

8ª- O Tribunal a quo, decretando a resolução do contrato do arrendamento com base num fundamento cujo conhecimento não lhe foi pedido, violou o princípio do dispositivo e, alterando ex officio o pedido na sentença final, deixou a recorrente sem qualquer possibilidade de exercício do contraditório;

9ª- A factualidade apurada nos autos (v.g. resposta ao quesito 8°-A) é de molde a tipificar toda a conduta processual dos autores como autêntico venire contra factum proprio - abuso de direito que oportunamente se invocou para paralisia da pretensão dos autores e que. Reiteradamente, se invoca nesta instância de recurso;

10ª- Existindo abuso de direito por parte dos autores, nem mesmo para aqueles que sigam na esteira de Antunes Vareja poderá ser decretado o despe ao abrigo da alínea e) do n°1 do art°64°do R.A.U.: falece o requisito da “grave violação da boa fé” por parte da recorrente.

         I.3- Contra-alegaram os AA. pugnando pela manutenção da sentença apelada.

         Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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         II - FUNDAMENTOS

         II.1 - de facto

         Com interesse para a resolução do recurso, e porque não vem impugnada, é esta a factualidade a atender:

1. Nos termos do documento de fls.7 a 10, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, os autores e a ré «C...», acordaram em aqueles cederem a esta a utilização do rés-do-chão, do prédio urbano sito na Rua Dr. João Esteves Simões, Soure, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Soure sob o art.5991, nº12182, confrontando a norte e nascente com Manuel Madeira e Reinaldo Ramos, sul com estrada nacional e poente com Manuel Francisco Pereira - al. A) dos factos assentes.

2. Esse acordo integra os seguintes bens móveis: cinco mesas rústicas de pipas, vinte bancos rústicos de pipas, um bar feito de pipa, vinte copos em madeira, quinze cálices em madeira, um candeeiro de quatro braços em pipa, um relógio feito de pipa, dois bilhares de snocker, um bilhar livre, uma máquina fiambreira, uma arca congeladora, uma vitrina frigorifica, um frigorífico e uma máquina de matar insectos - al. B) dos factos assentes.

3. O arrendamento foi feito pelo prazo de um ano, a contar de 01.06.2003, prorrogável por períodos iguais e sucessivos - al. C) dos factos assentes.

4. A renda mensal acordada foi de € 598,56, a pagar nos primeiros oito dias do mês anterior àquele que disser respeito, através de depósito na conta nº253012710001 do Banco Espírito Santo, agência de Soure - al. D) dos factos assentes.

5. O local arrendado destinava-se exclusivamente ao exercício de actividade hoteleira, designadamente cafetaria - al. E) dos factos assentes e ao quesito 1.º.

6. Os réus D... e E... assumiram-se como fiadores, para garantia de cumprimento das obrigações da 1.ª ré - al. F) dos factos assentes.

7. No estabelecimento em questão pode assistir-se à realização de festas temáticas, sessões de «Karaoke», espectáculos ao vivo - al. G) dos factos assentes.

8. Para além do referido em 7, a 1ª ré tem vindo a utilizar o locado, de forma frequente e sistemática, designadamente aos fins-de-semana, nas noites de sexta para sábado e de sábado para domingo, para a realização de concertos ao vivo de grupos rock e, pontualmente, espectáculos de variedades - resposta ao quesito 3.º.

9. Esses concertos e festas algumas vezes prolongam-se para além das 4 horas da manhã - resposta ao quesito 4.º.

10. Num barulho alto e insuportável - resposta ao quesito 5.º.

11. E impedindo que quem habita no mesmo prédio e prédios vizinhos possam dormir, repousar e estar em sossego - resposta ao quesito 6.º.

12. O estabelecimento explorado pela 1ª ré tem um horário de funcionamento autorizado até às 4 horas da manhã - resposta ao quesito 8.º.

13. As festas referidas em 7 foram sendo do conhecimento dos autores, que chegaram a comparecer nos primeiros meses de funcionamento do estabelecimento às sessões de «Karaoke» - resposta ao quesito 8.º-A.

14. Tais festas têm implicado um desgaste acrescido do locado - resposta ao quesito 8.º-B.

15. Nos dias em que tinham lugar concertos ao vivo havia consumo mínimo obrigatório no valor de € 1,00 - resposta ao quesito 8.º-C.

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II.2 - de direito

         Conforme atrás se referiu, a apelante restringe o objecto do recurso ao segmento decisório que declarou resolvido o contrato de arrendamento e decretou o despejo.

         Os autores assentaram o pedido de resolução contratual na hipótese prevista na al.b) do nº1 do art.64º do R.A.U. do DL nº321-B/90, de 15.10, diploma a aplicar ao caso em exame e de que serão os artigos a citar, uma vez que a acção foi instaurada antes de 27.6.06, data em que passou a vigorar o N.R.A.U. (Lei nº6/06, de 27.2).

         Perante a factualidade inserta no item II.1- 5,7 a 14, considerou a 1ª instância que as actividades que a apelante arrendatária vem exercendo no r/c locado são instrumentais à actividade de hotelaria prevista no contrato. Neste contexto, julgou improcedente a pretensão dos AA. quando fundamentada na causa de resolução invocada, ou seja, a prevista na al.b) do nº1 do art.64º.

         Porém, servindo-se dos mesmos factos concretos apurados, e fazendo apelo à regra enunciada no art.664º/C.P.C., deu-lhes outro enquadramento legal, para assim concluir pela existência do fundamento admitido pela al.c) do nº1 do art.64º para a resolução do contrato que veio a declarar.

         A controvérsia desde logo sujeita à nossa apreciação, e que a apelante levanta na conclusão 8ª, começa por saber se o tribunal fez uso legítimo do poder conferido pelo apontado art.664º. Segundo este preceito, o juiz não está obrigado a aceitar o enquadramento jurídico que as partes oferecem para os factos provados, sendo, pois, livre na aplicação do direito.

Este poder sofre de um limite fundamental: o tribunal é livre na qualificação jurídica dos factos, contando que não altere a causa de pedir.

         Com efeito, na segunda parte do art.664º diz-se que o juiz só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no art. 264º.

         Assim, de harmonia com o que dispõem os nº1 e 2 desse art.264º, ás partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir, e o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes.

         Resulta também do art.467º/1, C.P.C., que o autor deve expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção e formular o pedido.

         O pedido é o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor, e a causa de pedir é o facto concreto que serve de base ao efeito jurídico pretendido (art.498º/4,C.P.C.).

         Estando os limites objectivos da sentença condicionados pelo objecto da acção, integrado não só pelo pedido formulado mas, ainda, pela causa de pedir, optando o legislador pela teoria da substanciação (art.498º/4), o preenchimento da causa de pedir, independentemente da qualificação jurídica apresentada, supõe a alegação de factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas definidoras do direito cuja tutela jurisdicional se busca através do processo civil. A necessidade da invocação dessa materialidade ancora-se ainda no respeito pelo princípio do contraditório, impondo-se que ao rei seja dado conhecimento dos factos fundamentadores da pretensão.[1]

         Revertendo ao caso em apreço, e assente que a causa de pedir é integrada pelo facto ou factos produtores do efeito jurídico pretendido, que não deve confundir-se com a valoração jurídica atribuída pelo autor, temos que a causa de pedir invocada pelos autores é integrada pela alegação do contrato de arrendamento e dos factos que, de acordo com a norma do art.64º/1-b), constituem fundamento de resolução.

         Na realidade, assentando o fundamento de resolução na al.b) do nº1 do art.64º, alegam os autores, no essencial, que deram de arrendamento à ré o r/c de um prédio urbano, com destino ao exercício da actividade de hotelaria, designadamente cafetaria, e que a ré vem dando ao locado um destino diverso do acordado, visto que o vem utilizando, de forma usual e sistemática, à realização de concertos ao vivo de grupos de «rock», de festas temáticas, sessões de «karaoke» e espectáculos de variedades, tudo até altas horas da manhã, num barulho alto e insuportável perturbador dos direitos de sono, repouso e descanso dos vizinhos.  

         Ainda que se verificassem outras violações por parte do inquilino, o R.A.U. previa para os arrendamentos urbanos que os senhorios só podiam resolver o contrato nos casos expressamente previstos nesse art.64º.

         Assim, pela referida al.b), o senhorio podia resolver o contrato se o arrendatário “usar ou consentir que outrem use o prédio arrendado para fim ou ramo de negócio diverso daquele ou daqueles a que se destina”.

         Consoante antes se salientou, a 1ª instância considerou que os factos apurados não enquadravam aquele fundamento de resolução, julgando assim improcedente a pretensão dos autores. Este julgamento, embora integre os fundamentos da decisão final, não vem discutido. O que se questiona é a convolação feita na sentença dos mesmos factos para a hipótese contemplada na al.c) do nº1 do art.64º. Integra a previsão deste normativo, a conduta do arrendatário que “aplicar o prédio, reiterada ou habitualmente, a práticas ilícitas, imorais ou desonestas”.

         Embora se enquadrem no uso indevido do prédio arrendado, são diferentes a ratio dos preceitos em referência. O da al.b) reside no interesse do senhorio na conservação do imóvel contra os riscos de deterioração ou mesmo destruição quando utilizado para determinado fim ou ramo de negócio; o da al.c) reside na gravidade da violação do princípio da boa fé contratual, cometida pelo arrendatário no exercício do seu direito. Está em causa o dever de boa fé com que deve ser gozado o prédio alheio cedido por via do arrendamento.[2]

         Não está em apreciação o acerto ou desacerto da decisão à luz das normas que tutelam os direitos de personalidade e as que defendem o direito a um ambiente são bem como as regras da responsabilidade por factos ilícitos do art.483º/C.C. , para concluir pela verificação de práticas ilícitas levadas a cabo pela apelante/arrendatária e assim caberem no condicionalismo inscrito na mencionada al.c). Como antes se referiu, a dúvida está em saber se o ajustamento a esta norma do caso concreto em litígio correspondeu a uma diferente qualificação jurídica a respeito da qual o tribunal se move livremente, ou se, ao invés, não teria o tribunal julgado procedente a acção com fundamento em causa de pedir diversa da alegada pelos AA., fora, portanto, do limite consentido pelo art.664º citado.

         É que uma coisa é o facto juridicamente qualificado pela parte e que o juiz é livre de alterar, e outra é o facto produtor de efeitos jurídicos (causa de pedir), não sendo lícito ao juiz convolar para outra causa de pedir.

         Ora, um dos efeitos práticos que os AA. pretendem obter nesta acção, é o despejo do r/c arrendado, compaginada com o pedido de resolução do contrato que firmaram com a ré. A resolução foi, pois, pretensão deduzida que, sob o ponto de vista jurídico, está correctamente qualificada.

         Simplesmente, a mesma resultou de determinada causa de pedir definida por uma série de factos apontados pelos AA. integradores do fundamento invocado para resolução –al.b) do nº1 do art.64º. Foi com tal fundamento que se confrontaram os RR. no exercício do direito de defesa.

         Sendo assim, tendo sido essa causa de pedir consubstanciadora do fundamento pedido que veio a ser afastada pelo julgador, com trânsito, formando-se nesta parte caso julgado, e conhecendo-se depois na sentença de outra causa de pedir não accionada com a qual os RR. não se preocuparam, isso implicou, quanto a nós, uma modificação da causa de pedir que o art.664º não consente.

Os AA. basearam o pedido de resolução em harmonia com a previsão da norma da al.b) do nº1 do art.64º, alegando factos integradores da causa de pedir de acordo com essa previsão. O tribunal decretou a resolução com fundamento na al.c) do mesmo artigo. Logo, sobre causa de pedir diversa não alegada. Não se trata, a coberto do princípio estabelecido no citado art.664º, de livremente valorar factos concretos apurados e operar diversa qualificação. Houve, sim, uma inadmissível alteração da causa de pedir.

Desta sorte, temos para nós que, no caso em análise, ao julgar-se procedente a pretensão dos AA. de resolver o contrato mas com fundamento em causa de pedir diferente daquele que invocaram, não podem restar dúvidas de que se conheceu de questão não submetida à apreciação do tribunal. Isto é, de questão de que não devia tomar conhecimento, atento do disposto no art.661º/1, C.P.C., incorrendo portanto a sentença da nulidade prevista no art.668º/1-d) deste mesmo diploma.

Cometida a nulidade de pronúncia indevida, a sentença terá de ser revogada.

O recurso terá, assim, de proceder, sem necessidade de apreciação das demais questões levantadas nas conclusões.

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         III - DECISÃO

         Acorda-se, pelo exposto, na procedência da apelação, em revogar a sentença na parte em que declarou a resolução do contrato de arrendamento e decretou o despejo (pontos 1 e 2 do segmento decisório), no mais se mantendo a sentença (pontos 3 e 4 do mesmo segmento).

         Custas da acção por AA. e RR. na proporção do decaimento.

         Custas da apelação pelos autores.

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                                                                  COIMBRA,


[1]   Cfr. A. Abrantes Geraldes, «Temas da reforma do processo civil», I Vol. – 2ªed., pág.192 e 193
[2]  Cfr. Ac.R.E. de 21.2.91, CJ I/91-303.