Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3804/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME CARLOS FERREIRA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
CONCEITO DE CONFINÂNCIA
CONCURSO DE PREFERÊNCIAS RESULTANTES DOS ARTºS 1380º
Nº 1 E 1555º DO C. CIV. .
Data do Acordão: 02/01/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SEIA - 2ª JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1380º, Nº 1 , E 1555º DO C. CIV. .
Sumário: I – Os proprietários de terrenos confinantes apenas gozam do direito de preferência consagrado nos artºs 1380º, nº 1, do C. Civ., e 18º do DL nº 384/88, de 25/10, em caso de venda, dação em cumprimento ou aforamento, caso o adquirente do prédio transmitido não seja ele mesmo proprietário de outro prédio confinante com o transmitido .
II – Com o conceito de “ terrenos confinantes “ do artº 1380º do C. civ. , a lei visa o chamado emparcelamento agrícola ou acto de juntar prédios vizinhos, limítrofes ou confinantes entre si, ou parcelas de terrenos agrícolas com estremas comuns , de tamanho reduzido, em propriedades maiores, com vista a evitar-se o chamado minifúndio e a tornar mais fácil e economicamente viável o amanho conjunto dessas terras, a fim de se melhorar as condições técnicas e económicas da exploração agrícola .
III – Nos casos de concurso de direitos de preferência entre dois prédios, em que um deles é confinante com o prédio transmitido e o outro tem sobre si um ónus de servidão de passagem a favor do prédio transmitido, mas sem haver confinância ente ambos, a lei conferiu prioridade na preferência ao dono do prédio confinante .
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra :
I

No Tribunal Judicial da Comarca de Seia, a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A..., representada pelos herdeiros B..., C... e mulher D..., e por E..., todos devidamente identificados nos autos,
instaurou contra F... e mulher G..., residentes no lugar de Malta, Pinhel; e contra H... e mulher I..., residentes na Rua da Fonte, Eirô, Santa Marinha, Seia,
a presente acção declarativa, com processo sumário, pedindo a condenação dos R.R. a reconhecerem à A. o direito de preferência na venda do prédio que identificam, sendo os 2ºs R.R. substituídos pela herança autora nessa compra e no lugar do comprador, com condenação a largarem mão do prédio a favor da autora .

Alegou , muito em resumo, que a autora é dona e legítima possuidora de um prédio rústico sito às Fontainhas, composto de terra de cultura com oliveiras, árvores de fruto e vinha, com a área de 2454 m2, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Santa Marinha sob o artigo 1213, prédio esse que adveio à dita herança por sucessão de J..., pai da autora da herança .
Que por escritura pública de 27/11/95 os 1ºs R.R. venderam aos 2ºs R.R. um prédio rústico composto de terra de cultura com vinha e pastagem, sito nas Fontaínhas, com a área de 1000 m2, o qual confronta pelo poente com o prédio da herança autora supra referido, inscrito na matriz rústica da freguesia de Santa Marinha sob o artigo 1214, venda essa efectuada pelo preço de Esc. 700.000$00 .
Que devido à referida confinância a herança autora tem direito de preferência na aludida compra e venda, nos termos do artº 1380º, nº 2, al. b), do C. Civ., dado que em ambos os prédios estão implantadas culturas arvenses e hortícolas .
Que não sendo os R.R. compradores proprietários de outro prédio confinante com o prédio alienado, nada obsta ao exercício do apontado direito de preferência, dado que não foram comunicas as condições da aludida venda aos agora interessados no prédio vendido , o que apenas chegou ao seu conhecimento há cerca de um mês antes da propositura da acção .

Pela autora foi efectuado o depósito nos autos de Esc. 771.920$00 .

II
Contestaram apenas os 2ºs R.R., alegando, muito em resumo, que são donos de um prédio rústico confinante com o prédio objecto da acção, prédio esse composto de terra de cultura com videiras, inscrito na matriz rústica da freguesia de Santa Marinha sob o artigo 1238, o qual confronta pelo lado sul com o prédio em causa .
Que, por isso, carece a autora de qualquer direito de preferência na compra e venda havida, nos termos do nº 1 do artº 1380º do C. Civ. .
Que, além disso, o prédio objecto da acção é encravado, com um único acesso através de uma carreteira que na sua maior extensão se desenvolve através de outro prédio rústico dos R.R., a que corresponde o artigo 1251 da freguesia de Santa Marinha, o que confere o direito de preferência na sua aquisição aos R.R. .
Terminaram pedindo a improcedência da acção .
III
Respondeu a herança autora, onde mantém a sua pretensão e negando a situação de prédio encravado ao prédio objecto da preferência .
IV
Terminados os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi reconhecida a regularidade adjectiva da acção, com selecção da matéria de facto alegada e tida como relevante para efeito de instrução e de discussão da causa .

Essa selecção foi objecto de reclamação por parte da autora, o que foi atendida em parte .

Seguiu-se a realização da audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova testemunhal nela produzida , finda a qual foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, o que não foi objecto de qualquer reclamação .

Proferida a sentença sobre o mérito da causa, nela foi decidido julgar a acção procedente, com o consequente reconhecimento do direito de preferência invocado pela herança autora .
V
Dessa sentença interpuseram recurso os R.R. contestantes, recurso esse que foi admitido como apelação .
Em acórdão desta Relação de 12/10/1999 – fls. 119 a 129 - , que apreciou esse recurso, foi decidido anular a sentença proferida e que fosse repetido o julgamento em relação a novos quesitos que foram mandados aditar à base instrutória .

Aditados os novos quesitos – fls. 143 - , procedeu-se à realização de uma peritagem, seguida da realização da nova audiência de discussão e julgamento, com gravação dos depoimentos testemunhais produzidos, finda a qual foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante dos quesitos aditados, o que não mereceu qualquer reclamação das partes .

Seguiu-se nova sentença sobre o mérito da causa, na qual foi decidido julgar a acção improcedente, por não provada, com a consequente absolvição dos R.R. dos pedidos .

VI
Desta sentença recorreu a autora, recurso este que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo .
Em acórdão desta Relação de 11/02/2003 – fls. 218 a 224 - , que apreciou esse recurso, foi decidido ( voltar a ) anular a ( segunda ) sentença proferida e que fosse repetido o julgamento em relação a matéria alegada e não anteriormente quesitada e que foi mandada aditar à base instrutória .
Elaborado um novo quesito – fls. 258 - , procedeu-se a uma terceira audiência de discussão e julgamento, com realização de uma inspecção judicial ao local, conforme fls. 256 a 261, com gravação dos depoimentos então prestados, finda a qual foi proferida nova decisão sobre o quesito aditado, com indicação da respectiva fundamentação , o que não mereceu qualquer reclamação das partes .

Proferida nova (a terceira ) sentença sobre o mérito da causa, foi decidido julgar a acção improcedente, por não provada, com a consequente absolvição dos R.R. dos pedidos .
VII
Desta sentença voltou a recorrer a autora, recurso admitido como apelação e com efeito devolutivo , recurso este que está pendente de reapreciação por esta Relação.

Nas alegações que apresentou a agora Apelante concluiu da seguinte forma :
1ª - Há contradição entre a fundamentação da matéria de facto provada e a conclusão que dela se tira .
2ª - As propriedades 1238 e 1214 são separadas por uma levada, como se depreende da fundamentação .
3ª - Podendo a simples leitura do quesito levar em erro .
4ª - A conjugação da matéria de facto provada e da sua fundamentação leva a que se interprete pela declaração inequívoca de que entre as duas propriedades há uma levada de 30 cms de largura e com uma passagem a pé que a acompanha .
5ª - O levantamento topográfico é claro na descrição do único ponto que o 1238 e o 1214º se aproximam .
6ª - Mesmo esse ponto é separado pela levada .
7ª - A existência de uma levada não afasta por si só a confinância .
8ª - Esta será afastada pela levada e pela impossibilidade económica de se proceder ao verdadeiro emparcelamento, provado também pelo levantamento topográfico .
9ª - Este é o objectivo do artº 1380º do C. Civ. .
10ª - Esse emparcelamento, tendo em conta o objectivo do artº 1380º, é inatingível, dada a separação pela levada, a impossibilidade de passagem de veículos agrícolas e da impossibilidade legal de se cobrirem passagens de cursos de água não navegáveis sem a devida licença .
11ª - Tal situação não foi alegada, quanto à licença, nem provada quanto à viabilidade económica do emparcelamento .
12ª - A situação que releva é a de 27 de Novembro de 1995, data em que essas autorizações não existiam e em que a configuração das propriedades era a que se relatou posteriormente no levantamento topográfico, levantamento este que nunca foi impugnado .
13ª - Não sendo ele economicamente viável, a separação física pela levada é, conjugada com a questão económica, suficiente para excluir a confinância .
14ª - Pelo que, não sendo confinante, a preferência dos A.A. tem que proceder .
15ª - Foi violado o artº 668º, 1, c), do CPC, e o artº 1380º do C. Civ. , tendo a sua aplicação sido errada, no que diz respeito aos factos dados como provados .
16ª - Termos em que deve ser alterada a decisão de 1ª instância e ser declarada procedente a acção .
VIII
Contra-alegaram os Apelados, onde defendem que é de manter a sentença recorrida, dado que o prédio objecto da preferência é confinante com um outro de que é proprietário o adquirente – apelados .
IX
Nesta Relação foi aceite a última apelação deduzida, tal como foi admitida em 1ª instância, tendo-se procedido à recolha dos necessários “ vistos “ legais, sem qualquer observação, pelo que nada obsta ao conhecimento do objecto do dito recurso, objecto esse que se pode resumir às seguintes questões , tendo-se em conta as conclusões formuladas pela Apelante :
A – Deve ou não ser considerado que os Apelados são proprietários de um prédio confinante com o prédio objecto do exercício do direito de preferência por parte da Apelante ?
B- Consequências jurídicas daí resultantes para o exercício do direito de preferência pela Apelante ?

Considerando que a matéria de facto dada como assente em 1ª instância, depois dos sucessivos aditamentos de quesitos à base instrutória, não voltou a ser impugnada, nem se alcançam razões sérias para modificar tal matéria oficiosamente, há que considerar como definitivamente resolvida a definição dessa matéria, o que se assume, a qual é constituída pelos seguintes pontos, tal como resulta da sentença recorrida :
1 – Por escritura pública de 27/11/1995, os R.R. F... e mulher G... declararam vender ao R. H..., e este declarou aceitar tal venda, pelo preço de Esc. 700.000$00, um prédio rústico sito nas Fontaínhas, freguesia de Santa Marinha, concelho de Seia, composto de terra de cultura com vinha e pastagem, com a área de 3.469 m2, prédio esse inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1214, o qual se acha descrito na Conservatória do Registo Predial de Seia sob o nº 000385/940126 .
2 – O acesso a esse prédio bem como a um outro pertença de Manuel Madeira, faz-se unicamente através de uma carreteira em terra batida, com a largura de cerca de 2 metros, desprovida de vegetação, a qual se desenvolve, na sua maior extensão, através de um prédio rústico inscrito na matriz da freguesia de Santa Marinha sob o artigo 1251, a qual partindo de um caminho público situado a nascente deste último se desenvolve para sul desse mesmo caminho, através do referido prédio e até à sua estrema, por ela circulando as pessoas que se dirigem ou retomam dos referidos prédios , quer a pé quer com animais, bem como com tractores agrícolas, o que fazem na convicção de exercerem um direito próprio e de não lesarem direitos alheios, o que vem acontecendo há mais de 30 anos e de forma ininterrupta e sem oposição de quem quer que seja .
3 – Os R.R. H... e mulher são ainda donos do prédio rústico sito às Fontaínhas, limite de Santa Marinha, composto de terra de cultura com oliveiras, macieiras e videiras, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1251 .
4 – O prédio identificado no ponto 1 supra foi adquirido pelo R. F... por adjudicação em partilha extrajudicial havida por óbitos de Manuel da Cruz Fonseca e mulher Maria de Lurdes Correia .
5 – Em 27 de Novembro de 1995 e ainda hoje existia e existe, imediata e a norte do prédio rústico descrito no ponto 1 supra, uma levada de água corrente, no sentido nascente-poente, cujo leito tinha e tem cerca de 30 cms de largura, destinada ao abastecimento de água dos campos de cultivo por onde passa, entre os quais figura o prédio rústico inscrito na matriz respectiva sob o artigo 1238 .
6 – Encontra-se inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Santa Marinha, concelho de Seia, sob o artigo 1213, um prédio rústico sito às Fontaínhas, composto de terra de cultura com oliveiras, árvores de fruto e vinha, com a área de 3340 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Seia sob o nº 000551/960716, e com inscrição em nome da herança autora, sem determinação de parte ou direito .
7 – O prédio referido no ponto 6 supra adveio a A... por sucessão de J..., pai daquela .
8 – Antes da herança autora já a falecida Maria Alice e seu marido B... , e antes deles os pais e avós da dita Maria Alice vinham praticando culturas no referido prédio, frutificando-o, pagando as contribuições e fazendo as benfeitorias necessárias, de forma continuada, há mais de 50 anos, na convicção de exercerem um direito próprio, sem qualquer oposição e à vista de toda a gente .
9 – Os R.R. H... e mulher são proprietários de um prédio rústico sito às Fontaínhas, freguesia de Santa Marinha, composto de terra de cultura com videiras, inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo 1238, com a área de 754 m2 .
10 – Os R.R. H... e mulher herdaram o prédio referido no ponto 9 supra , sendo eles quem, desde há mais de 20 anos, vem retirando todas os frutos, as utilidades e rendimentos do referido prédio, quem o vem cultivando, quem o semeia, de forma ininterrupta, com o conhecimento de toda a gente, sem qualquer oposição e na convicção de exercerem um direito próprio e de não estarem a lesar direitos alheios .
11 – Só cerca de 30 dias antes da entrada em juízo da presente acção é que a herança autora soube da venda referida no ponto 1 supra .

***
Conforme resulta dos anteriores dois acórdãos desta Relação, o facto ou questão mais importante a apurar, e para o que foram ordenadas já duas repetições do julgamento, reside em determinar-se se existe ou não confinância entre o prédio objecto da preferência exercida na causa ( com o artigo rústico nº 1214 ) e algum prédio dos R.R. seus adquirentes, designadamente aquele com o artigo matricial rústico nº 1238 - veja-se o Ac. de 12/10/1999, a fls. 127; e o Ac. de 11/02/2003, a fls. 221vº .
Isto porque, tal como se acentua nesses anteriores acórdãos, também nós entendemos que os proprietários de terrenos confinantes apenas gozam do direito de preferência consagrado nos artºs 1380º, nº 1, do C. Civ. ; e 18º do DL nº 384/88, de 25/10, em caso de venda, dação em cumprimento ou aforamento, caso o adquirente do prédio transmitido não seja ele mesmo proprietário de outro prédio confinante com o transmitido .
Se assim não acontecer, isto é, se a venda for efectuada a proprietário de outro prédio também ele confinante com o prédio objecto do exercício do direito de preferência, deixa de ter lugar o apontado direito de preferência a favor de qualquer outro proprietário igualmente confinante .
Já o defendemos nos Ac.s desta Relação proferidos nas Apel. nºs 3258/03 e 3899/03, respectivamente de 25/11/03 e de 20/01/04, e foi assim entendido, entre muitos outros arestos, nos seguintes : R.C. de 17/2/78, in C. J. 1978, 3º, pg. 687; Ac. STJ de 18/11/93 e de 7/07/94, in, respectivamente, C.J. STJ ano I, tomo III pg. 141 e BMJ 439, 562; da Rel. Év. de 14/03/2002, C.J. ano XXVII, tomo II, pg. 267 .
Importa, pois e antes de mais, que nos procuremos esclarecer sobre o conceito de “terrenos confinantes” previsto no artº 1380º do C. Civ., isto é, o que se deva entender por terrenos confinantes .
Tendo presente o que também se dispõe no nº 2 do citado preceito, afigura-se que o que a lei visa é o chamado emparcelamento agrícola, ou acto de juntar prédios ou parcelas de terreno agrícolas de tamanho reduzido em propriedades de maiores dimensões, com vista a evitar-se o chamado minifúndio e a tornar-se mais fácil e economicamente viável o amanho das terras ( a fim de melhorar as condições técnicas e económicas da exploração agrícola ), o que é dificultado pela pulverização do solo agrícola – artº 1382º, nº 1, do C. Civ..
O que também se pode retirar do disposto no artº 1376ºdo C. Civ., onde se proíbe o fraccionamento dos terrenos aptos para cultura agrícola com áreas ditas mínimas .
E do nº 3 desse preceituo resulta que a proibição de tal fraccionamento abrange mesmo os prédios ditos contíguos pertencentes ao mesmo proprietário, isto é, os chamados prédios vizinhos, limítrofes ou imediatos, confinantes entre si, no sentido de terem fronteiras ou estremas comuns, pois que essa situação permite o referido amanho conjunto, passando de um prédio para outro, designadamente com máquinas agrícolas e fazendo um cultivo racional conjunto, o que diminui os respectivos custos e permite uma colheita mais eficiente e lucrativa - vejam-se, entres outros, os Ac.s Rel. Po. de 16/7/1985, in C.J. 1985, tomo 4º, pg. 239; e do STJ de 3/7/1986 , de 11/7/1991 e de 15/12/1998, in, respectivamente, BMJ 359, 706 , BMJ 409, 803, e BMJ 482,235 .
Analisando o que nos é fornecido pelo presente processo, verificamos que houve um grande empenho e cuidados na 1ª instância em ordem a se poder esclarecer a posição relativa entre o prédio objecto da preferência e algum prédio dos R.R. adquirentes, o que no caso nos remete para o prédio rústico inscrito na matriz respectiva sob o artigo nº 1238 .
Ora, dos elementos constantes dos autos, designadamente do levantamento topográfico de fls. 155 e do auto de inspecção ao local de fls. 256 e 257, resulta que na estrema norte do prédio com o artigo 1214 existe uma levada de água manilhada, cujo leito tem uma largura de cerca de 30 cms., correndo no sentido nascente-poente, onde também existe uma rampa inclinada entre essa estrema e o lado sul do prédio do artigo 1238 .
Além de que este prédio termina em bico ou ponta no seu lado sul, onde se situa a estrema norte do 1214 .
Daí que aquando da realização da última audiência de julgamento, na qual se procurou colher uma resposta a um único quesito ( resultante do acórdão desta Relação de 11/02/2003, conforme fls. 218 a 224 ), no qual se indagava se “ o prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Santa Marinha sob o artigo 1238 confronta ( ou não ) a sul com o prédio inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia sob o artigo 1214 “, haja sido obtida a seguinte decisão : provado que “ em 27 de Novembro de 1995 e ainda hoje existia e existe, imediata e a norte do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Santa Marinha sob o artigo 1214, uma levada de água corrente, no sentido nascente-poente, cujo leito tinha e tem cerca de 30 cms de largura, destinada ao abastecimento de água dos campos de cultivo por onde passa, entre os quais figura o prédio rústico inscrito na matriz respectiva sob o artigo 1238 “ - ponto 5 supra .
Donde resulta que nenhuma confinância ou contiguidade foi apurada entre esses dois prédios, isto é, não ficou demonstrado que tenham alguma estrema comum, por forma a dar-se ou a permitir-se o emparcelamento entre esses dois prédios, nos termos supra enunciados .
Por outras palavras e sendo certo que era aos R.R. que cabia o ónus da prova dessa referida confinância – nos termos do artº 342º, nº2, do C. Civ. - , não resulta provado que sejam eles donos de qualquer prédio rústico confinante ou com estremas conjuntas ou comuns com o prédio objecto da preferência, bem pelo contrário, pois antes resulta que situando-se o único prédio dos R.R. com essa possibilidade ( com o artigo 1238 ) a norte do prédio objecto da preferência, este termina, por esse lado, numa levada de água corrente, cujo leito mede cerca de 30 cms. de largura, correndo no sentido nascente-poente, onde também existe uma rampa inclinada entre tal estrema norte do prédio objecto da preferência e o lado sul do prédio 1238, lado este onde este prédio termina em bico ou ponta, o que bem revela a não confinância entre ambos, no sentido antes exposto, isto é, por forma a permitir o efectivo emparcelamento desses dois prédios , diremos mesmo que nem sequer ficou demonstrado que seja sequer possível passar-se ou circular entre esses dois prédios e muito menos com máquinas agrícolas, por forma a permitir o amanho conjunto , racional e economicamente proveitoso dos mesmos .
Ao contrário, e como bem resulta do levantamento topográfico de fls. 155, entre os prédio rústicos 1213 ( este pertença da herança autora, como bem resulta dos pontos 6, 7 e 8 supra e assim foi reconhecido quer na sentença recorrida quer entre as partes, e resulta da presunção do artº 7º do C. Reg. Predial ) e 1214 existe uma extensa linha de estrema conjunta, de sentido norte-sul, através da qual é viável e pode ser efectivo o emparcelamento de ambos esses prédios – o que confere à herança autora o direito de preferência na compra do prédio do artigo 1214, nos termos dos artº 1380º, nº 1, do C. Civ., e 18º do DL nº 384/88, de 25/10 , uma vez que a área do prédio 1214 é de 3469 m2 , o que significa que é inferior à unidade de cultura fixada para a zona pela Portaria 202/70, de 21/4, tal como sucede com o prédio 1213, que tem uma área de 3340 m2, donde a atribuição do citado direito de preferência .
Donde importe concluir que os R.R. não são donos de qualquer prédio confinante com o prédio objecto da compra e venda havida entre os R.R., pelo que nada obsta a que se reconheça à A. o direito de preferência na compra e venda havida entre os R.R., nos termos do artº 1380º, nº 1, do C. Civ.

***

Porém, pelos R.R. foi também alegado que são donos de um outro prédio rústico ( artigo 1251 ), não confinante com o 1214, mas pelo qual se desenvolve uma carreteira em terra batida, com a largura de cerca de 2 metros, a qual partindo de um caminho público dá acesso ao prédio em causa na acção, e sem o que este ficaria encravado , o que também lhes confere o direito de preferência na aquisição do prédio encravado – o do artigo 1214 .
A apreciação desta questão já está relacionada com a segunda questão equacionada como sendo objecto do recurso, uma vez que na abordagem da primeira questão que colocámos como objecto de apreciação foi reconhecido o direito de preferência à herança autora .
Uma vez que ficou demonstrada a existência dessa carreteira sobre o referido prédio dos R.R., servindo de única forma de acesso ao prédio do artigo 1214 – pontos 2 e 3 supra -, dúvidas não restam de que também os R.R., por esse facto, gozam do direito de preferência na aquisição do prédio objecto da compra e venda a seu favor, nos termos dos artºs 1550º e 1555º do C. Civ., isto é, por serem proprietários de um prédio onerado com uma servidão de passagem a favor do dito prédio, ao qual apenas se pode aceder pela dita, têm eles também direito de preferência na aquisição do prédio encravado .
Donde resulta um concurso de direitos de preferência sobre o mesmo prédio ( o do artigo 1214 ) e a favor de ambas as partes, o que importa derimir, com a atribuição da preferência a apenas uma das partes beneficiária do citado direito de preferência .
Na sentença inicialmente proferida neste processo – fls. 88 – entendeu-se já que considerando a “ ratio “ do artº 1380º do C. Civ. o direito de preferência aí estabelecido prevalece sobre o do artº 1555º do C. Civ. .
E afigura-se que assim deva acontecer, porquanto os dois tipos de hierarquias que resultam das alíneas a) e b) do nº 2 do artº 1380º do C. Civ. afigura-se que apenas são aplicáveis quando a concorrência entre preferentes se verifica em relação a prédios simultaneamente confinantes com o prédio alienado e por isso simultaneamente concorrentes no exercício do direito de preferência, como resulta no nº 1 desse mesmo preceito .
Por outras palavras, entende-se que a lei – nesse preceito da al. a) do nº 2 do artº 1380º do C. Civ. - apenas confere prioridade na atribuição do direito de preferência aos proprietários de terrenos onerados com uma servidão de passagem a favor de prédio encravado em relação a outros prédios sem esse ónus, desde que os prédios em concorrência sejam todos eles confinantes com o prédio objecto da preferência – nº 1 do artº 1380º - , isto é, ali apenas se faz ressaltar a existência de servidão de passagem para efeito de concurso entre proprietários de prédios simultaneamente confinantes com o prédio objecto da preferência, quando um destes possa estar onerado com esse encargo - neste sentido podem ver-se, p. ex., os Prof. Pires de Lima e A. Varela, in C. Civ. anotado, vol. III, edição de 1987, pg. 273 / 274 .
Já quanto à preferência apenas resultante do referido encargo de servidão de passagem ( sem mais ), nos casos em que exista concorrência entre um proprietário de prédio dominado pelo encargo de passagem legal que não seja simultaneamente confinante com o prédio objecto da preferência e um proprietário de prédio confinante com o prédio vendido , este último tem prioridade sobre aquele - artºs 1380º, nº 1, e 1555º do C. Civ.
É esta, afigura-se, a interpretação possível da conjugação do disposto nos citados preceitos .
Com efeito, e tal como bem se acentua no Ac. da Rel. do Porto de 31/3/1981, in C. J. ano VI, tomo 2, pg. 96, “ a preferência fixada no nº 1 do artº 1380º do C. Civ. tem prioridade sobre a estabelecida no artº 1555º do mesmo código, porquanto a vantagem do emparcelamento de pequena propriedade , que está na base da preferência do artº 1380º do C. Civ. ... deve prevalecer e afastar a concorrência a concorrência dos proprietários dos prédios servientes que não sejam simultaneamente confinantes e servientes do prédio alienado ... “ .
E quanto às razões de tal entendimento remetemo-nos para o que se escreve nesse acórdão, com o que concordamos, e ao que acrescentamos o seguinte : além das razões aí apontadas, afigura-se que o emparcelamento entre prédios confinantes, sendo um deles dominante em relação a outros prédios com relação a uma dada serventia de passagem existente nestes, poderá muito bem conduzir à extinção de tal encargo, por desnecessidade, já que o acesso e o amanho do prédio objecto do dito emparcelamento com outro prédio com acesso directo à via pública de certo vai tornar desnecessária a utilização da anterior serventia, libertando, assim, os prédio onerados com esta, conduzindo à sua extinção, por força do disposto no artº 1569º, nºs 2 e 3, do C. Civ. .
Donde que, dessa forma, se lucra não só através da figura do emparcelamento que está subjacente ao direito de preferência do artº 1380º do C. Civ., como através da figura da extinção das servidões, por desnecessidade .
No mesmo sentido se pronunciou esta Relação por acórdão de 10/07/2001, in Rec. Apelação nº 1619/2001, do qual foi relator o Ex.mº Juiz Desembargador Artur Dias, e no qual também foi defendida a posição do citado Ac. da Rel. do Porto .

Donde a conclusão de que o facto de os R.R. serem donos de um prédio não confinante com o prédio objecto da preferência exercida nesta acção, sobre o qual se encontra constituída uma servidão de passagem a favor deste prédio, em nada colide ou afronta o direito de preferência da herança autora, na medida em que este direito é-lhe reconhecido ao abrigo do artº 1380º, nº 1, do C. Civ., o que prevalece sobre o direito de preferência dos R.R., apenas resultante do artº 1555º do mesmo código .

Assim sendo, há que julgar a acção procedente, por provada, e bem assim a apelação deduzida, com a revogação da sentença ultimamente proferida .

Espera que, finalmente, as partes tenham ficado convencidas sobre a prioridade dos seus direitos em relação ao prédio objecto do exercício do direito de preferência, depois de uma tão longa e árdua tarefa na busca de uma solução justa, o que se procurou conseguir através do que se deixa exposto, para que, assim, volte a reinar a paz entre elas, tendo havido todo o empenho quer do Tribunal ( através das suas diversas intervenções, como antes se deixou referido ) quer dos ilustres mandatários das partes nesse sentido .

X

Decisão :

Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação deduzida, com a revogação da sentença recorrida, e julgar a acção procedente, por provada, condenando os R.R. a reconhecer à herança autora o direito de preferência na aquisição do prédio que foi objecto de compra e venda através da escritura identificada no ponto 1 supra, sendo os R.R. adquirentes substituídos nessa compra pela herança autora .
Mais se condenam os 2ºs R.R. a largarem mão desse prédio, fazendo dele entrega imediata á herança autora .
Adjudica-se aos R.R. H... e mulher o montante do depósito de fls. 20, com juros respectivos .

Custas da acção e do recurso pelos R.R. .

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Tribunal da Relação de Coimbra, em / /