Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2466/20.3T8VIS-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: BENS À PENHORA
BENS DE TERCEIROS DADOS EM GARANTIA DA OBRIGAÇÃO
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE VISEU – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 54º, Nº 2 DO NCPC.
Sumário: I - Indicados à penhora bens dados em garantia da obrigação, de terceiros e da Executada, a execução deve iniciar-se com a penhora desses bens, presumidamente suficientes.

II - A penhora só deverá alargar-se a outros bens não onerados da Executada quando, depois daquele acto, vier a ser reconhecida a insuficiência dos indicados inicialmente.

Decisão Texto Integral:









Sumário:

Indicados à penhora bens dados em garantia da obrigação, de terceiros e da Executada, a execução deve iniciar-se com a penhora desses bens, presumidamente suficientes.

A penhora só deverá alargar-se a outros bens não onerados da Executada quando, depois daquele ato, vier a ser reconhecida a insuficiência dos indicados inicialmente.


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Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            Está em causa a seguinte decisão:

O Banco S..., S.A. propôs a presente execução ordinária, para pagamento da quantia de €3.446 651,14 € (Três Milhões Quatrocentos e Quarenta e Seis

Mil Seiscentos e Cinquenta e Um Euros e Catorze Cêntimos) contra U... - Investimentos Imobiliários e Turísticos, S.A.

“No requerimento executivo indicou que a dívida está titulada por contrato de mútuo com hipoteca, celebrada a 27/12/2017, montante de €3.500.000,00 (três milhões e quinhentos mil euros) e que a Executada e os intervenientes A... e M... constituíram a favor do Banco ora Exequente hipotecas sobre 13 (treze) imóveis, identificados na Escritura do aludido contrato, mantendo-se em vigor, na presente data hipotecas sobre os seguintes prédios:” (…)

No anexo ao Requerimento executivo, para indicação de bens à penhora, o exequente indicou os supra discriminados em i. a x. (tendo omitido a indicação do indicado em xi).

“Concretizada a citação da executada, comunicou o exequente ao Exmo.(a) Sr.(a) Agente de Execução, em 27.10.2020, que pretendia ver penhorados, como prioritários, todos os depósitos bancários existentes em nome da executada, bem como a penhora de quaisquer créditos de que esta seja titular ou que lhe sejam devidos, devendo proceder-se ainda à penhora dos seguintes bens imóveis em nome da executada: (…)

Nessa sequência, o Exmo.(a) Sr.(a) Agente de Execução penhorou os seguintes Depósitos Bancários da executada (cf. Auto de Penhora de 04.11.2020): (…)

Tendo penhorado os imóveis aludidos em a) a i) e as frações (DN e DU) do imóvel discriminado em x.), conforme auto lavrado em 04.12.2020.

“Em face dessa penhora, a executada reclamou do acto praticado, alegando, muito resumidamente, que as penhoras requeridas em 27.10.2020 (depósitos bancários e dos imóveis) são ilegais porquanto violam o disposto no artigo 752.º, n.º 1 do CPC. Pede, assim, a executada que sejam levantadas as penhoras requeridas pelo exequente na aludida data.

“Em resposta, o exequente sustenta que a penhora se iniciou, precisamente, com os bens dados em garantia que pertencem ao devedor, seguindo-se apenas para os restantes após a conclusão da manifesta insuficiência daqueles para fazer face à quantia exequenda.

“Ouvido o Sr. Agente de execução sobre a matéria de reclamação, informou que só dois dos imóveis indicados à penhora são da propriedade da executada (frações DN e DU), sendo que os demais imóveis são propriedade de terceiros, pelo que, considerando o valor tributário desses imóveis (61.750,80 +85.139,40), deu cumprimento ao disposto no artigo 752.º, n.º 1 do CPC e penhorou os bens, pertencentes à executada, indicados pelo exequente.

“Notificado para o efeito, o exequente veio esclarecer que pretendia, efetivamente, acionar as garantias reais de que dispunha sobre bens de terceiro.

“Cumpre decidir:

“Pretende-se executar, nestes autos, dívida garantida por hipoteca constituída sobre bens da devedora/executada, mas, sobretudo, sobre bens de terceiro que, ao que parece por lapso, o exequente decidiu não demandar (ou pelo menos não o fez de modo claro no RE).

“Conforme supra enunciado, o exequente indicou os bens que garantiam a dívida exequenda, nomeou-os à penhora, tendo o Sr. Agente de Execução concluído que a maior parte deles estava inscrito em nome de terceiro e, como tal, embora garantam a dívida exequenda, não os pôde penhorar...

“Ora, estatui o artigo 54.º, n.º 2 do CPC que a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia (com expressão material no artigo 818.º do Código Civil).

Significa isto que o exequente, manifestando vontade de fazer valer a garantia, estava (está) obrigado a demandar os terceiros garantes hipotecários da sua dívida, A... e M...

“Em anotação à citada norma legal, questionam Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo se poderá o credor demandar apenas o devedor estando a dívida garantida por bens de terceiro? Atendendo ao que resulta do normativo em análise, afigura-se-nos que a resposta deverá ser negativa, designadamente pelo facto de, por um lado, no n.º 2 apenas se permitir a opção quanto à demanda do devedor e, por outro lado, no n.º 3, se exigir o reconhecimento da insuficiência dos bens onerados com a garantia para que possa ser executado também o devedor. Por isso deve concluir-se que o credor está obrigado a intentar a execução contra o possuidor dos bens dados em garantia, salvo se tiver renunciado a esta, o que poderá fazer de forma expressa no requerimento executivo.

“Sendo esse também o nosso entendimento, julgamos que o exequente deveria indicado no requerimento executivo quem eram os proprietários da maior parte dos bens dados em garantia e, naturalmente, requerer a sua citação na qualidade de executados.

“Não o tendo efeito, terá de os fazer intervir, através do incidente de intervenção principal provocada, sob pena de, não o fazendo, se reconhecer que ocorre ilegitimidade passiva para a execução.

“Quanto ao mérito da reclamação entendemos, ressalvando sempre melhor juízo, que, em face do que ficou exposto, as penhoras realizadas em bens que não tenham sido indicados pelo exequente no RE, no vertente caso, se mostram ilegais.

“Efetivamente, neste caso, a penhora teria de se iniciar sobre os bens dados em garantia, conforme nomeação feita pelo exequente e em respeito da indicação feita pelo exequente e, só se esses imóveis não tivessem um valor pecuniário adequado a liquidar o crédito exequendo é que a penhora poderia ser reforçada, com penhora de bens da executada (que não fazem parte das garantias reais prestadas).

“O facto de não estarem em juízo os titulares dos imóveis que garantem a dívida permitiu que se penhorassem outros bens, o que constituiu, no nosso juízo, uma inadmissível e ilegal alteração da ordem de realização da penhora, configurando a prática de um acto nulo (cf. artigo 195.º do CPC).

“Destarte, nos termos do artigo 734.º, n.º 1 do CPC, decide-se convidar a exequente a fazer intervir nos autos os terceiros garantes hipotecários do seu crédito, para que se possa avançar com a penhora dos bens dados em garantia e indicados no RE.

“Mais se decide julgar procedente a reclamação apresentada pela executada, embora com base noutra argumentação jurídica e determinar o levantamento das penhoras realizadas pelo agente de execução na sequência do requerimento do exequente de 27.10.2020, em concreto, dos imóveis constantes do auto de penhora de 04.12.2020 aludidos em a) a i), e dos Depósitos Bancários da executada constante do Auto de Penhora de 04.11.2020. (Fim da citação.)


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            Inconformado, o Exequente recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

...

Nestes termos e nos melhores de Direito roga-se mui respeitosamente aos Venerandos Desembargadores do Tribunal que concedam provimento a este recurso e revoguem a decisão recorrida por douto acórdão que: a) decida que a execução prossiga apenas contra a Executada e que os bens indicados à penhora sejam os bens pertencentes a esta, dessa forma prescindindo dos bens dados em garantia por terceiros, apenas indicados pela Exequente por lapsus calami. b) que se revogue a decisão de levantamento da penhora sobre os bens pertencentes à Executada.


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            A Executada contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

            Questões a decidir:

            A nulidade da decisão recorrida;

            A justificação para o levantamento das penhoras.

            Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e das considerações infra exaradas, sendo ainda certo (por estar documentado):

Em 02-12-2020 foi proferido o seguinte despacho:

Notifique o exequente para esclarecer (discriminando), em 05 dias, quais são afinal os bens que servem de garantia hipotecária à divida exequenda e, havendo bens de terceiro que estejam hipotecados a seu favor para esse desiderato, informar porque razão não foram essas garantias acionadas.

Em 15.12.2020 respondeu a Exequente:

(…) 3. Esclarece a Exequente, para efeitos do requerido no Despacho que antecede, que os imóveis identificados no n.º 2 do presente - à exceção dos constantes das alíneas j), k), l), m) e n) são propriedade de A... e mulher M...

4. Pelo que, consequentemente, e tendo sido indicados à penhora todos os aludidos bens, sempre se deve concluir que foram, efetivamente, acionadas as garantias de que o Exequente dispunha.

            A decisão recorrida é de 07.01.2021.

            Só depois desta, em 19.01.2021, o Exequente veio declarar:

(…) “12. Importa ter presente que os referidos imóveis dados em hipoteca por terceiros, também foram dados em garantia de um outro contrato de mútuo e estão penhorados no âmbito do processo executivo ..., Juízo de Execução de Viseu, Juiz 2, no qual a quantia exequenda ascende a €3.617.644,54 (três milhões seiscentos e dezassete mil seiscentos e quarenta e quatro euros e cinquenta e quatro cêntimos), o que faz com que os mesmos sejam manifestamente insuficientes e inócuos para a presente execução.

“A Exequente tendo em conta a factualidade acima mencionada optou por prescindir da garantia - dada por terceiros - relativa aos imóveis dados como hipoteca e sitos em ..., freguesia de ... ( ...), concelho de ....

“Nestes termos e nos mais de Direito, deve manter-se a execução apenas contra a devedora U..., S.A., prescindindo o Exequente dos bens prestados em garantia por terceiros por manifestamente insuficientes e inócuos para a presente execução.” (Fim da citação.)

            Não se prova, ao contrário da conclusão G deste recurso, que em requerimento de 10/11/2020, dirigido ao Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo de Execução de Viseu Juiz 1, a Exequente volta a manifestar uma vez mais a vontade em que os bens a serem indicados à penhora sejam os que pertencem à Executada, e, a vontade em que a execução prossiga somente contra a Executada e não contra terceiros.

            Nulidade da decisão recorrida.

A Recorrente sustenta que os fundamentos da decisão estão em oposição com esta.

Entendemos que não tem razão, uma vez que os factos descritos no requerimento executivo e reforçados no requerimento apresentado em 15.12.2020, onde a Exequente declarou pretender acionar as garantias hipotecárias prestadas por terceiros, conduzem à conclusão extraída pelo tribunal – de que deve fazer intervir esses terceiros, e de que, nesse pressuposto, a penhora teria de se iniciar sobre os bens dados em garantia, conforme nomeação feita pelo Exequente e, só se esses imóveis não tivessem um valor pecuniário adequado a liquidar o crédito exequendo, é que a penhora poderia ser reforçada, com penhora de bens da executada (que não fazem parte das garantias reais prestadas).

Se a decisão recorrida verificou que a Exequente indicou no seu requerimento executivo os bens dados em garantia, nomeou à penhora os referidos bens, se a Exequente, notificada para o efeito, veio esclarecer que “sempre se deve concluir que foram, efetivamente, acionadas as garantias de que o Exequente dispunha, mas não foram penhorados tais bens dados em garantia, mas sim outros bens da Executada, não onerados, a conclusão de que as penhoras realizadas enfermam de nulidade por violação de norma imperativa (art.º 54, nº 2, do Processo Civil) não é ilógica.

Podendo estar errada, o vício não é então o da nulidade.


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A justificação para o levantamento das penhoras.

No caso, o Exequente indicou os bens onerados por terceiros à penhora (cfr. requerimento executivo) e declarou pretender acionar as garantias (requerimento de 15.12.2020).

Só em 19.1.2021, depois da decisão recorrida, o Exequente informa a existência da outra execução e declara prescindir das garantias de terceiros.

Assim, no momento da decisão em reapreciação (cfr.art.611º do Código de Processo Civil (CPC)), o Tribunal lidava apenas com a expressa vontade de acionar as garantias de terceiros.

Por isso, é correta a decisão de convidar o Exequente a chamar os terceiros ao processo (pois neste não estavam).

Indicados à penhora bens onerados, de terceiros e da Executada, a execução deve iniciar-se com a penhora desses bens, que serão presumidamente suficientes, não devendo incidir logo sobre outros bens não onerados da Executada, pois que, por um lado, a Executada goza do benefício da excussão real (arts. 697º do Código Civil (CC) e 752º, nº 1, do CPC) e, por outro lado, a indicação de querer acionar as garantias de terceiros, sem qualquer menção em contrário, leva também à consideração da sua suficiência (é ainda o sentido do art.54º, nº 3, do CPC).

Só depois de reconhecida a insuficiência de todas as garantias indicadas à penhora é que é possível avançar contra outros bens da devedora.

No caso, apenas está reconhecida, pelo Agente de Execução, a insuficiência dos bens onerados previamente pela Executada, sem consideração do conjunto constituído com os bens dos terceiros.

Diga-se que esse reconhecimento parcial foi declarado pelo Agente de Execução só depois de suscitado o problema pelo Tribunal recorrido.

A existência da outra execução apenas foi dada a conhecer depois da decisão recorrida e a mesma, só por si, não conduz à conclusão da insuficiência das garantias, que deverá estar reconhecida pelo Agente de Execução no momento anterior às novas penhoras (acórdão da Relação de Évora de 19.5.2016, proc. 4428/14, em www.dgsi.pt).

Pelo exposto, faltando os pressupostos necessários (o chamamento dos terceiros, a penhora dos bens onerados indicados e o reconhecimento da insuficiência de todos estes bens), no momento relevante em questão, não podia realizar-se a penhora de outros bens da Executada.

(Nota final: a alteração dos pressupostos, por vontade do Exequente, só poderá ter efeitos, se os tiver, em momento processual posterior ao trânsito da decisão em crise.)

Decisão.

Julga-se improcedente o recurso e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pelo Recorrente, vencido (art.527º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Coimbra, 2021-11-09


(Fernando Monteiro)

(António Carvalho Martins)

(Carlos Moreira)