Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1676/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. HERDER ROQUE
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 06/08/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ARTIGO 456.º CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:


1. A má fé substancial ou material directa, quer dolosa, quer com culpa grave ou erro grosseiro, esta última designada por lide temerária, diz respeito ao fundo da causa, à relação substancial deduzida em juízo;
2. Afirmando a juridicidade da pretensão a um determinado montante pecuniário que o embargante negou, o exequente acabou por reduzir o seu crédito que aquele, entretanto, reconheceu e aceitou, desistindo do direito de o impugnar, pela via dos embargos, mas cuja dualidade de atitudes só será reveladora de má fé quando se toma uma posição que se sabe ser contrária à lei ou aos factos, e não quando se expõem factos, que se consideram exactos, e, depois, se articulam factos contrários, porque se veio a averiguar que aqueles não correspondem à verdade.
3. A existência de transacção a que as partes chegaram, em embargos de executado, ainda antes do julgamento da matéria de facto, não obstante aquelas apenas ser lícito deduzir, em Tribunal, pedidos ou contestações, objectivamente fundados, impede a apreciação do mérito da causa e, portanto, o conhecimento sobre se o pedido era, conscientemente, injusto, ou seja, o conhecimento dos factos, eventualmente, enquadráveis no conceito de má fé substancial.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


BB interpôs recurso de agravo da decisão que, nos autos de embargos de executado, por si instaurados contra a exequente-embargada “CC”, ambos, suficientemente, identificados, condenou aquele, como litigante de má fé, na multa de 15 UC´s, por ter apresentado uma versão dos factos, completamente afastada da verdade, no único propósito de entorpecer a justiça e de não assumir as suas responsabilidades, perante a lei, terminando as suas alegações, onde sustenta a revogação da decisão em recurso, com as seguintes conclusões:
1ª - O comportamento do agravante não se enquadra nos requisitos exigidos para a litigância de má fé como os define o artigo 456º do CPC.
2ª - O agravante ter assumido o pagamento da dívida não significa que os factos alegados na oposição deduzida sejam falsos e que tenham sido alegados para entorpecer a acção da justiça e para não assumir as suas responsabilidades perante a lei,
3ª - tanto mais que o agravante assumiu o pagamento de uma dívida por ele contestada.
4ª - O ter alegado não ser responsável pelo pagamento da mesma e a falsidade da assinatura no título executivo não significa que a final se viesse a julgar os embargos procedentes independentemente da razão ou não do agravante e em nada ficava prejudicada a possibilidade de acordo.
5ª - Ao não apurar-se da veracidade ou não dos factos alegados pelo agravante uma vez que não foi proferida uma sentença, não se pode concluir com segurança pela existência da má fé.
6ª - E, mesmo admitindo-se uma lide temerária, o que só por mera hipótese se admite, e portanto negligente esta teria de ser suficientemente grave para justificar a condenação como litigante de má fé.
7ª - O que se traduziria numa defesa disparatada e sem sentido, o que não é o caso.
8ª - O agravante pôs termo ao processo por sua livre vontade sem discutir a sua defesa.
9ª - Não tendo de modo algum posto em causa ou ofendido a imagem da justiça.
10ª - O agravante não faltou deliberadamente à verdade com o propósito de lograr os seus intentos na presente acção porque se assim fosse nunca teria acordado no pagamento da quantia peticionada,
11ª - bem antes pelo contrário teria deixado a acção prosseguir e quiçá a final, ver julgados os embargos deduzidos procedentes.
12ª - Questões pertinentes ficaram por decidir e que por sua vez poderiam dar razão à posição assumida pelo agravante nos embargos.
13ª - Dos elementos constantes dos autos não nos permitem concluir a existência de uma real má fé.
14ª - Violou, assim, o Mº Juiz a quo o disposto no artigo 456º do CPC.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Exº Juiz sustentou a decisão, entendendo não ter causado qualquer agravo ao recorrente.
Com interesse relevante para a apreciação do mérito do agravo, importa reter a seguinte factualidade, para além daquela que já consta da parte introdutória deste acórdão:
1 – O agravante, no requerimento de embargos de executado, alegou que, “à data da subscrição do contrato de penhor mercantil junto aos autos com o requerimento de execução já não era sócio gerente da firma, conforme aliás se vê do documento que se protesta juntar”, e que “as assinaturas apostas no documento junto com o requerimento de execução, concretamente o contrato de penhor mercantil, apesar de conter o nome do oponente exactamente a seguir ao nome do seu irmão Raulino, não foram efectuadas pelo seu punho, nem sequer sabe quem ali colocou a sua assinatura, e que, aliás, não fazia sentido que as assinaturas dos restantes subscritores do documento fossem reconhecidas notarialmente, e não tivesse sido reconhecida a assinatura do oponente, talqualmente da correspondência trocada entre a Maginor e a embargada em lado nenhum aparece o nome ou a assinatura do oponente, pelo que, em suma, o oponente não subscreveu qualquer obrigação, não é sócio nem gerente da executada Maginor, não assumiu solidariamente obrigações desta e, por isso, nenhuma responsabilidade lhe poderá ser assacada” – Documento de folhas 19 a 29.
2 – Posteriormente, a exequente e o executado-agravante requereram a suspensão da instância executiva, acordando no pagamento da dívida exequenda, que aquela reduziu para o valor de € 35000, o que o executado aceitou, reconhecendo ser devedor desse montante e comprometendo-se a pagá-lo, em trinta e uma prestações, desistindo do pedido constante dos embargos, o que foi aceite pela exequente – citado documento de folhas 19 a 29.
3 – Foi homologado o plano de pagamento apresentado pela exequente e pelo executado, sem que o Tribunal tenha chegado a conhecer do mérito dos embargos ou a realizar o julgamento sobre a matéria de facto.

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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
A única questão a decidir, no presente agravo, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), consiste em saber se é admissível a condenação em litigância de má fé do embargante que, declinando a sua responsabilidade pela dívida exequenda, subscreve um plano de pagamento do seu montante, reduzido, conjuntamente com o exequente, em acordo de suspensão dos termos da instância.

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DA CONDENAÇÃO EM LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ

Diz-se litigante de má fé, segundo o disposto pelo artigo 456º, n.º 2, do CPC, quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar [a)], tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa [b)], tiver praticado omissão grave do dever de cooperação [c)] ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso, manifestamente, reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão [d)].
Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização, a favor da parte contrária, se esta a pedir, nos termos do disposto pelo artigo 456º, n.º 1, do CPC.
A má-fé traduz-se, em última análise, na violação do dever de cooperação que os artigos 266º, nº 1, 266º-A e 456º, nº 2, c), do CPC, impõem às partes.
Aliás, no intuito de moralizar a actividade judiciária, o artigo 456º, nº 2, do CPC, oriundo da revisão de 1995, alargou o conceito de má fé à negligência grave, enquanto que, anteriormente, a condenação como litigante de má fé pressupunha uma actuação dolosa, isto é, com consciência de se não ter razão, motivo pelo qual a conduta processual da parte está, hoje, sancionada, civilmente, desde que se evidencie, por manifestações dolosas ou caracterizadoras de negligência grave.
Com efeito, a má fé substancial ou material directa, quer dolosa, quer com culpa grave ou erro grosseiro, esta última designada por lide temerária, a que se reporta a alínea a), diz respeito ao fundo da causa, à relação substancial deduzida em juízo, não acontecendo, frequentemente, desacompanhada da outra modalidade, a que alude a alínea b), ambas do nº 2, do artigo 456º, do CPC, ou seja, da má fé substancial indirecta, que se verifica, quando se “tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa” Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 355 a 358, o qual, porém, entende que esta modalidade de má fé tem natureza instrumental; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, II, 1981, 258 e ss..
Resta, por fim, realçar que as duas restantes modalidades de má fé, já referidas, a que aludem as alíneas c) e d), do nº 2, do artigo 456º, do CPC, têm natureza instrumental.
Descendo ao caso em apreço, importa considerar que o executado, após ter sustentado nos embargos que não tinha assumido qualquer responsabilidade perante a exequente, juntamente com esta requereu a suspensão da instância executiva, desistindo do pedido, contra a redução da quantia exequenda, que se propôs pagar em prestações mensais, não tendo o Tribunal, que homologou o plano de pagamento acordado pelas partes, nos termos do preceituado pelo artigo 882º, do CPC, apreciado e decidido sobre o mérito da causa.
Assim sendo, a factualidade apurada permite afastar, liminarmente, do elenco das modalidades de má fé susceptíveis de configurar o caso concreto, precisamente, aquelas a que se reportam as alíneas c) e d), referidas, ou seja, a prática de omissão grave do dever de cooperação [c)] ou a adopção do processo ou dos meios processuais para um uso, manifestamente, reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão [d)], isto é, as duas modalidades de má fé instrumental.
Por seu turno, não obstante a revogação do nº 3, do artigo 456º, do CPC, operada pelo DL nº 180/96, de 25 de Setembro, deve continuar a entender-se que o dolo substancial só pode verificar-se na parte vencida, enquanto que o dolo instrumental pode ocorrer, igualmente, na parte vencedora.
Efectivamente, o embargante assumiu no processo, aparentemente, duas posições contraditórias, declinando a responsabilidade pelo pagamento da quantia exequenda, num primeiro momento, para, em seguida, reconhecendo a dívida, embora em montante inferior ao do pedido formulado pela exequente, se obrigar ao seu pagamento, em prestações mensais, desistindo do requerimento de embargos de executado.
Porém, esta dualidade de atitudes só será reveladora de má fé quando se toma uma posição que se sabe ser contrária à lei ou aos factos, mas não quando se expõem factos, que se consideram exactos, e, depois, se articulam factos contrários, porque se veio a averiguar que aqueles não correspondem à verdade Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 3º, 1946, 5, nota 1.
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E, sendo certo que às partes apenas é lícito deduzir, em Tribunal, pedidos ou contestações, objectivamente fundados, tão-só, na altura da prolação da sentença, ou, no mínimo, da decisão proferida sobre a matéria de facto, é que vem a saber-se se a pretensão do autor é fundada, ou se a defesa do réu é conforme ao Direito Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, II, 1981, 258 e 259.
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Ora, na hipótese em análise, a acção terminou antes de o Tribunal chegar a conhecer do mérito dos embargos de executado, em consequência de desistência do pedido que envolveu uma genuína transacção entre as partes, com recíprocas prestações Vaz Serra, RLJ, Ano 100º, 18..
E a transacção, segundo a definição do artigo 1248º, nº 1, do Código Civil (CC), traduz-se num contrato que pressupõe uma controvérsia entre as partes, pelo qual estas previnem ou terminam um litígio, de natureza sinalagmática, face ao correspectivo das recíprocas concessões, e onerosa.
Afirmando a juridicidade da pretensão a um determinado montante pecuniário que o embargante negou, o exequente acabou por reduzir o seu crédito que, aquele, entretanto, reconheceu e aceitou, desistindo do direito de o impugnar.
Por isso, não se verificou uma desistência plena, por parte do embargante, nem um reconhecimento total do exequente, em relação à posição sustentada por aquele, mas antes uma concessão mútua, sem fixação rígida dos termos reais da situação controvertida Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 1997, 4ª edição, revista e actualizada, 930 e 931..
E, tendo as partes feito terminar o litígio, mediante recíprocas concessões, tal impediu a apreciação do mérito da causa e, portanto, o conhecimento sobre se o pedido era, conscientemente, injusto, sendo esta injustiça que constitui o dolo da actuação do agente, cuja impossível verificação determina a inviabilidade da afirmação da injustiça, com a consequente ausência de base para a condenação por litigância de má fé, sob pena de, a entender-se de modo diferente, se vir a classificar como, conscientemente, injusto um pedido quando, por força da transacção, o Tribunal está impedido de o apreciar.
Com efeito, se isto é assim, quanto à má fé substancial, já a questão poderia mudar de figura, quanto à má fé instrumental, se tivesse sido formulado pedido de indemnização pela parte contrária Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 358; Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, II, 2000, 222; STJ, de 8-11-49, BMJ nº 16, 184. , não obstante ser, em sede de má fé material directa, a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 456º, do CPC, que a factualidade apontada na decisão recorrida é susceptível de subsunção.
Como assim, a existência de transacção a que as partes chegaram, em embargos de executado, ainda antes do julgamento da matéria de facto, impede a apreciação de factos, eventualmente, enquadráveis no conceito de má fé substancial.
Assim sendo, não se tendo demonstrado que o embargante tenha deduzido, dolosamente ou com negligência grave, pretensão cuja falta de fundamento bem conhecia, a sua conduta não é determinante de responsabilidade processual subjectiva, pelo que carece de base legal a sua condenação como litigante de má fé, nos termos do disposto pelo artigo 456º, nºs 1 e 2, do CPC.
CONCLUSÕES:
I – A má fé substancial ou material directa, quer dolosa, quer com culpa grave ou erro grosseiro, esta última designada por lide temerária, diz respeito ao fundo da causa, à relação substancial deduzida em juízo
II - Afirmando a juridicidade da pretensão a um determinado montante pecuniário que o embargante negou, o exequente acabou por reduzir o seu crédito que, aquele, entretanto, reconheceu e aceitou, desistindo do direito de o impugnar, pela via dos embargos, mas cuja dualidade de atitudes só será reveladora de má fé quando se toma uma posição que se sabe ser contrária à lei ou aos factos, e não quando se expõem factos, que se consideram exactos, e, depois, se articulam factos contrários, porque se veio a averiguar que aqueles não correspondem à verdade.
III - A existência de transacção a que as partes chegaram, em embargos de executado, ainda antes do julgamento da matéria de facto, não obstante aquelas apenas ser lícito deduzir, em Tribunal, pedidos ou contestações, objectivamente fundados, impede a apreciação do mérito da causa e, portanto, o conhecimento sobre se o pedido era, conscientemente, injusto, ou seja, o conhecimento dos factos, eventualmente, enquadráveis no conceito de má fé substancial.

DECISÃO:
Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar provido o agravo e, em consequência, revogam a decisão recorrida.
Sem custas, nos termos do disposto pelo artigo 2º, nº 1, o), do Código das Custas Judiciais.