Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
15/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
CRIME PARTICULAR
Data do Acordão: 03/01/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 285º, N.º 3, 287º, N.º 1, AL. B), 311, N.º 1 E 2 E379º., N.º1, AL. A), DO C. P. PENAL
Sumário: I- Não cabe ao M.º P.º promover a fiscalização judicial da acusação particular. Ela é oficiosa (art.º 311º, n.º 1 e 2. Al. a) ou requerida pelo arguido (art.º 287º, n.º 1, al. a), do CPP)
II- É vedado ao assistente requerer a abertura de instrução relativamente a crimes de natureza particular

III- A decisão instrutória que decida sobre tais crimes pratica um excesso de pronúncia a integrar a nulidade referida no art.º 379º, n.º 1, al. c), do CPP

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. Junto dos competentes Serviços do Ministério Público de Leira (1.ª Secção) correram termos uns autos de inquérito crime findos os quais (despacho constante de fls. 206 e segs.) se determinou, além do mais e ao que por ora releva:
a) O seu arquivamento – e cumprimento do estatuído pelo artigo 277.º, n.º 3 do Código de Processo Penal [doravante CPP] – relativamente a um denunciado crime de ofensa à integridade física simples (previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal [vulgo CP]) cometido por um tal A...;
b) A notificação dos assistentes assim constituídos B... e C..., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 285.º, n.º 1 do CPP, concernentemente a uns também por si denunciados crimes de injúrias (previstos e punidos estes pelo artigo 181.º, n.º 2 do CP) sendo igualmente denunciado aquele mesmo A... (e outros);
c) A acusação respeitante a três destes arguidos pela co-autoria material, em concurso de infracções, de dois crimes de ofensa à integridade física dos ditos assistentes (arguidos D... e E...) e de um tal tipo de ilícito (arguido F...), p.p.p. citado artigo 143.º, n.º 1.
Cumpridas as ordenadas notificações dos denunciantes, alegando conforme, respectivamente, fls. 235 e segs. e 266 e segs., vieram os assistentes em causa:
a) Deduzir contra a totalidade de tais denunciados (logo aí se incluindo o referenciado A...) acusação particular relativamente aos alegados crimes de injúrias; bem como,
b) Apresentar pedido para realização de instrução tendo em conta a mencionada decisão de não acusar do Ministério Público relativamente ao participado crime de ofensa à integridade física alegadamente cometido pelo citado A....
O Ministério Público acompanhou, entretanto, a acusação particular assim deduzida com excepção da parte em que a mesma se reportava a este último arguido (fls. 241).
1.2. Na subsequente tramitação processual da instrução, veio a ser proferida decisão instrutória (fls. 462 e segs.) que:
a) Não pronunciou o arguido A... pelos crimes de ofensa à integridade física, bem como de injúrias; e,
b) Pronunciou os demais arguidos D... e E... (pela co-autoria cada um deles, em concurso real de infracções, de dois crimes de ofensa à integridade física e de dois crimes de injúrias), bem como F... (pela co-autoria, em idêntico concurso, de um de cada um de tais crimes).
Sobre tal decisão incidiu o despacho de aclaração que se mostra proferido a fls. 536 e v.º, sendo que mesmo antes de ele ser exarado já os assistentes haviam interposto recurso de cujo requerimento extraíram as conclusões seguintes tendentes a lograr obter a submissão a julgamento do identificado arguido A... pela prática dos dois falados crimes de ofensa à integridade física e ainda igual sujeição por virtude da manutenção da acusação particular que já deduziram:
1.2.1. Os assistentes requereram a abertura da instrução apenas relativamente à não acusação pelo Ministério Público do arguido A... pela prática dos crimes de ofensa à sua integridade física, crime este que assume natureza semi-pública.
1.2.2. E, não na parte respeitante ao cometimento pelo mesmo arguido dos crimes de injúrias os quais, por seu lado, têm natureza particular.
1.2.3. Ora, considerando-se a natureza deste ilícito não era admissível a abertura de instrução, como decorre do artigo 287.º, n.º 1, alínea a) do CPP.
1.2.4. Sendo a acusação particular que define o objecto do processo, independentemente da posição do Ministério Público, deve manter-se a sujeição do arguido A... a julgamento enquanto co-autor dos crimes particulares denunciados.
1.2.5. Também a prova coligida nos autos impõe igual submissão a julgamento desse arguido pela co-autoria dos crimes de ofensa à integridade física denunciados, uma vez que se mostra provável a sua condenação.
1.2.6. Na verdade, nomeadamente o assistente B... nas declarações prestadas em sede de inquérito (fls. 49) disse: « (…) estando à entrada da aludida casa A..., pediu-lhe explicações e apareceram todos, E... agarrou-se à camisa do lesado tendo-a rasgado. Os denunciados identificados e outros dirigiram-se ao aqui depoente, agarraram-no e agrediram-no (…)».
1.2.7. Ora, tendo o arguido A... sido identificado como um dos presentes pelo assistente B..., este ao dizer que os identificados e outros se dirigiram a ele, o agarraram e agrediram, está a implicar tal arguido por o ter também agarrado e agredido.
1.2.8. Em sede de instrução o mesmo assistente referiu que foi agredido indistintamente por um grupo de 10 a 12 pessoas que saíram da residência, « (…) tendo um deles aparecido como cabecilha e que conseguiu apurar ser o Arguido A...».
1.2.9. O facto de o arguido A... ter sido o primeiro a aparecer à porta e depois de questionado sobre o sucedido terem surgido os restantes, determinou o assistente B... a identificá-lo como sendo o cabecilha, por ele ter dado “palavra de ordem” ao ataque realizado por si e pelos seus companheiros.
1.2.10. O assistente C... foi agredido por um grupo de indivíduos, tendo identificado alguns deles, entre os quais o arguido A... como autor dos murros e pontapés de que foi vítima.
1.2.11. Também os depoimentos das testemunhas Silvério Murta e João Vieira, em sede de inquérito e de instrução, relataram actos de violência e de agressão que vitimaram ambos os assistentes, apenas não logrando identificar os nomes por os desconhecerem.
1.2.12. Os assistentes mantiveram sempre a sua versão dos factos.
1.2.13. O arguido A... agrediu os assistentes nomeadamente através de empurrões, arranhadelas, principalmente na face e braços, bem como, de pontapés e de socos, nomadamente nas costas, que vitimaram o assistente C....
1.2.14. O arguido A... empurrou, ainda, o assistente B... contra uma parede e participou nas agressões a soco e pontapé que o vitimaram, rasgando-lhe a roupa.
1.3. Admitido o recurso, apenas respondeu o Ministério Público (fls. 541) defendendo a subsistência do decidido.
1.4. Remetidos os autos a este Tribunal, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer sufragando o entendimento de que a decisão recorrida padece de excesso de pronuncia relativamente ao ponto em que decidiu não pronunciar o recorrido pelos apontados crimes de injúrias, pois que lhe era vedado apreciar tal questão, além de que no mais se deve manter a mesma, dado que não resultam dos autos elementos indiciários suficientes à submissão daquele a julgamento pela alegada autoria dos crimes de ofensa à integridade física.
1.5. Cumpriu-se o disposto pelo artigo 417.º, n.º 2 do CPP.
No exame a que alude o n.º 3 deste mesmo preceito considerou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.
Colhidos os vistos dos M.mos Adjuntos cabe, então, apreciar e decidir.
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II – Fundamentação.
2.1. Como flúi das conclusões da motivação do recurso, que balizam o objecto do mesmo (artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do CPP), as questões postas à apreciação deste Tribunal, prendem-se, fundamentalmente, com:
a) Sabermos se a decisão recorrida padece do vício de excesso de pronuncia quando apreciou os factos constantes da acusação particular apresentada pelos assistentes relativamente aos indiciados crimes de injúrias pretensamente cometidos pelo co-arguido A....
b) Apurarmos se dos autos constam elementos indiciários suficientes para a submissão a julgamento deste mesmo arguido pela alegada prática dos crimes de ofensa à integridade física dos recorrentes (tarefa que igualmente se imporá na parte respeitante aos apontados crimes de injúrias, caso se não comine a decisão recorrida com aquele primeiro vício).
Vejamos, pois.
2.2. Do relatório que antecede resulta já suficientemente delineada a tramitação processual concretamente seguida nos autos, e, atento o regime jurídico aplicável, tem-se que relativamente à primeira das suscitadas questões se mostra facilmente perceptível a solução a dever sufragar-se.
Na verdade, a instrução, fase judicial de natureza facultativa, estando em causa crime de natureza particular, não pode ser requerida pelo assistente como decorre do disciplinado pelo artigo 287.º, n.º1, alínea b) do CPP. É que a acusação do Ministério Público, nos crimes particulares, se tiver lugar, segue a do assistente, sendo por esta limitada substancialmente (artigo 285.º, n.º 3 do CPP); o assistente pode, pois, promover sempre o julgamento, formulando a sua acusação e que é independente da posição que o Ministério Público venha a adoptar.
Como anota Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III Volume, Verbo, 1994, pág. 133 «Contrariamente ao que sucede nos crimes públicos e semi-públicos em que o assistente se discordar da posição do MP e quiser formular acusação autónoma, substancialmente diversa da do MP, terá de a submeter a comprovação na fase de instrução, nos crimes particulares a acusação pública é condicionada nos seu exercício e no seu conteúdo pela acusação particular (arts. 50.º, 51.º e 285.º, n.º 3) pelo que qualquer divergência entre o assistente e o MP é nesta fase do processo juridicamente irrelevante. Não cabe ao MP promover a fiscalização judicial da acusação particular; essa fiscalização é oficiosa [art. 311.º, n.ºs 1 e 2, alínea a)] ou requerida pelo arguido através da instrução [art. 287.º, n.º 1, alínea a)].»
Esta solução tem vindo a merecer crítica no sentido em que pode questionar a estrutura acusatória do processo penal, constitucionalmente garantida (vd. artigo 32.º, n.º 5 da CRP), pois que mesmo nos crimes de natureza particular se deveria permitir o controlo judicial sobre a acusação particular do assistente que sustenta o julgamento. Por isso que, de jure condendo, se sufrague o entendimento de poder o Ministério Público requerer sobre a acusação particular do assistente em tal tipo de crimes a abertura da instrução (cfr. A Acusação Particular, de Cecília Santana, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, págs. 323/4).
Revertendo ao caso dos autos.
Denunciado o cometimento de alegados crimes de injúrias (com típica natureza particular – cfr. artigos 181.º e 188.º, n.º 1, ambos do CP -) pelo arguido A... e formulada competente acusação contra o mesmo pelos assistentes, o Ministério Público não acompanhou tal acusação.
Entretanto, foi requerida instrução pelos ditos assistentes visando comprovar judicialmente a decisão de não acusar assumida pelo mesmo Ministério Público relativamente a denunciados crimes de ofensa à integridade física dos assistentes e alegadamente cometidos também por aquele mesmo co-arguido. Nenhuma instrução foi requerida pelo arguido.
Na decisão instrutória, o M.mo JIC apreciando (como devido) a instrução requerida pelos assistentes, acabou, porém, também por apreciar a acusação particular oferecida.
Ora, do que vem de dizer-se logo se intui que o fez indevidamente.
Na verdade, e como começou por dizer-se, mostra-se vedado ao assistente requerer a abertura da instrução relativamente a crimes de natureza particular como os em causa (aliás, uma tal possibilidade permitiria a situação paradoxal dos autos em que por tal facto veria denegada a pretensão punitiva que imediatamente antes exercitara!).
Como assim e apontado pelo Exmo. PGA, a conclusão de conter a decisão instrutória nessa parte um excesso de pronuncia a integrar a nulidade referida no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP, preceito aplicável por a decisão de não pronuncia, tal como a sentença (a que se reporta), pôr termo ao processo.
2.3. A solução adoptada já permite concluir que a segunda das questões a apreciar se reportará tão somente a determinarmos, então, se existem os indícios suficientes para que o apontado arguido seja submetido a julgamento enquanto também co-autor dos dois denunciados crimes de ofensa à integridade física dos assistentes.
Dispõe o artigo 308.º, n.º 1 do CPP que se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Por outro lado, estabelece o artigo 283.º, n.º 2 do mesmo diploma, para o qual remete o apontado artigo 308.º, seu n.º 2, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. Pelo contrário, o despacho de não pronúncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constante dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento (cfr. Germano Marques da Silva, ob. cit., Vol. III, pág. 205).
Nos autos, como pretendem os recorrentes existem tais indícios para que o co-arguido A... seja submetido a julgamento enquanto co-autor dos dois apontados crimes de ofensa à integridade física daqueles?
Neste ponto, com o despacho recorrido, propendemos a uma resposta negativa.
Na verdade, como aí se demonstra exaustivamente e em termos que nos permitimos não repetir, porquanto seriam meramente redundantes, e de que assim nos apropriamos, na consideração do que deve ser a valoração da prova, no caso por declarações (dos assistentes e dos co-arguidos) e testemunhal (testemunhas João Paulo e Silvério Murta), tanto durante o inquérito, quer durante a instrução; as contradições entre as declarações dos ofendidos em ambas; a dependência da testemunha João relativamente ao assistente B... e a generalidade dos demais depoimentos a conclusão a extrair é a de que se torna mais provável a não aplicação ao recorrido, se submetido a julgamento, de qualquer pena, antes do que a sua condenação.
Ora, isto traduz-se na sua não pronúncia, como decretado no despacho sindicado.
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III – Decisão.
São termos em que perante o exposto, no mais se mantendo o despacho recorrido, apenas se decide revogá-lo na parte em que ordenou a não pronuncia do arguido A... relativamente aos apontados crimes de injúrias constantes da acusação particular deduzida a qual tão somente deve ser agora apreciada nos termos e para os efeitos do artigo 311.º do CPP.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça devida por cada um deles, em 5 UCs.
Notifique.
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Coimbra, 1 de Março de 2006