Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
107/17.5PBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: RECURSO
IMPUGNAÇÃO
GRAVAÇÃO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
INJÚRIA
Data do Acordão: 02/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (J L CRIMINAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 127.º, 163.º E 412.º, DO CPP; ART. 181.º DO CP
Sumário: I – A reprodução da gravação dos depoimentos, no tribunal de recurso, como instrumento de garantia/comprovação da genuinidade dos mesmos e da eventual divergência entre o conteúdo material do depoimento prestado em audiência e o pressuposto na decisão recorrida, apenas tem sentido no caso de, segundo a motivação do recurso, a decisão recorrida ter atribuído, aos depoimentos prestados oralmente em audiência, conteúdo/afirmações relevantes, materialmente diversas daquelas que foram efectivamente produzido em audiência.

II – Como instrumento de reprodução, a gravação apenas permite corrigir erros de “audição” do tribunal recorrido.

III – A gravação (como instrumento de garantia da genuinidade dos depoimentos) nada adianta quando o fundamento do recurso radica na violação de critérios de valoração – não reproduzidos pela gravação. Pois que, pela sua natureza, apenas reproduz e comprova o teor dos depoimentos gravados.

IV – Em termos de valoração material da prova, apesar da minuciosa regulamentação das provas efectuada pelo CPP, salvos os casos em que a lei define critérios legais de apreciação vinculada (v.g. prova documental, prova pericial) vigora princípio geral de que a prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador - art. 127º do CPP.

V – O princípio da livre apreciação da prova, conjugado com o dever de fundamentação das decisões dos tribunais, exige uma apreciação motivada, crítica e racional, fundada nas regras da experiência mas também nas da lógica e da ciência. Devendo ser objectivada e motivada, únicas características que lhe permitem impor-se a terceiros.

VI – Mais do que uma limitação da livre convicção pela dúvida razoável, o critério da livre apreciação e o critério da dúvida razoável é idêntico, constituindo o cerne da decisão judicial sobre a prova do facto: a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio in dubio pro reo impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável.

VII – A expressão “puta”, trata-se de expressão comumente aceite como ofensiva da honra e consideração de qualquer mulher, conotando-a como socialmente desqualificada ao mais baixo nível, que vende o corpo por dinheiro.

VIII - Tendo em vista o teor, objectivo, e conotação da expressão em causa, quando dirigida a uma mulher, a expressão em causa, no contexto em que foi proferida, é manifestamente ofensiva.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

I RELATÓRIO

Nos autos, após a audiência pública de discussão e julgamento, com exercício amplo do contraditório, foi proferida sentença com o seguinte DISPOSITIVO: 

- decide-se condenar o arguido, .., pela prática de um crime de injúrias, previsto e punido pelo artigo 181 º n.º 1 do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco) euros, num total de € 300,00 (trezentos euros); e - na parcial procedência do pedido cível, condena-se o arguido/demandado a pagar à demandante a quantia de € 300,00 (trezentos euros), a título de compensação por danos não patrimoniais.


*

Inconformado com a sentença, dela recorre o arguido.

Na motivação do recurso formula as seguintes CONCLUSÕES:

1 – Reprodução do dispositivo da sentença, já enunciado supra

2 - O presente recurso tem subjacente a discordância quanto à matéria de facto e quanto à matéria de direito e pedido de indemnização cível.

3 - Salvo o devido respeito pelo digníssimo Tribunal a quo, que é muito, sempre se dirá que, o mesmo não teve em consideração toda a prova produzida em sede de audiência e discussão de julgamento, aquando da sua decisão.

4- Porquanto, e como já ficou dito em sede de contestação, o arguido, no dia 16 de março de 2017 encontrava-se em sua casa à semelhança dos restantes dias, a fazer o almoço, não se encontrando, portanto, naquele local.

5 – Dos depoimentos das testemunhas não se pode concluir que o Arguido tenha proferido a expressão pela qual foi condenado, nem que a tenha dirigido diretamente à Assistente, naquela data e local, por tudo o que ficou explanado e transcrito supra.

10 – Assim, os factos transcritos e em análise, artigos 1 e 2 da douta sentença, foram incorretamente julgados, devendo em consequência, em sede de recurso, serem considerados como não provados, o que desde já se requer, devendo, em consequência o Arguido ser absolvido pela prática do crime de injúrias.

13 – Admitindo a presença do arguido naquele local, o que apenas por mera cautela e dever de patrocínio se refere, do depoimento prestado pela única testemunha que alega ter presenciado os factos, apenas se inferem palavrões, “asneiras” concretizadas na expressão “puta que pariu”.

15 - No mais, a expressão constitui a utilização de linguagem desbragada, manifestação de alguma falta de educação por parte de quem a profere, contudo, esse tipo de comportamento, socialmente desconsiderado, visto como ordinário e violador das normas consuetudinárias da ética e da moral, é destituído de relevância penal.

18 - Pelo que, os pressupostos em que assenta o crime de injúria não se encontram preenchidos, tendo em consequência, o Arguido, de ser absolvido pela prática do mesmo.

19 - Sem prescindir sempre se dirá que, entre nós, funciona a presunção de inocência, porquanto, não sendo a prova produzida cabal no que se refere aos factos dados como provados, a douta Sentença revela uma tomada de posição à revelia da mesma e em claro desrespeito do princípio constitucionalmente consagrado da presunção de inocência do Arguido,

21 - Devendo a mesma, em consequência, ser modificada, absolvendo-se o Recorrente por ausência de prova que permita concluir sem margem para dúvida os factos consubstanciadores de um crime de injúria.

22 - De tudo o que atrás se expôs e que aqui se dá por reproduzido, resulta claro não impender sobre o Recorrente qualquer obrigação de indemnizar a Assistente.

23 - Mesmo que assim não se entenda, sempre se dirá que o valor fixado a título de indemnização civil é excessivo, porquanto, e como o Arguido declarou, o mesmo não tem rendimentos próprios, apenas recebendo o valor de 291 euros a título de pensão de reforma.

Termos em que e nos demais de direito aplicável, deve ser dado provimento ao presente recurso e ser revogada a douta sentença recorrida tendo, em consequência, o Recorrente, de ser absolvido pelo crime de injúria de que vem acusado, p.p. pelos artigo 181º do C. Penal.


*

Admitido o recurso, respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido, alegando em síntese conclusiva, que o tribunal a quo apreendeu com exactidão os factos que constituem objecto deste processo e, nessa sequência, bem andou ao condenar o recorrente como autor de um crime de injúria, não padecendo tal decisão de qualquer reparo.

No visto a que se refere o art. 416º do CPP o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer concordante com a resposta apresentada em 1ª instância. 

Corridos vistos cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Vistas as conclusões, que definem o objecto do recurso, temos como questões a decidir:

- reapreciação da prova relativamente aos pontos 1 e 2 da matéria dada como provada e daí retirar conclusões em termos de direito quanto à responsabilidade penal e cível conexa;

- em caso de improcedência do recurso da matéria de facto, apurar se a conduta provada assume relevância penal ou é atípica, constituindo apenas linguagem desbragada e má educação.

Para proceder à apreciação, importa ter presente a decisão do tribunal recorrido em matéria de facto.

2. A decisão a matéria de facto é a seguinte:

A) Matéria de facto provada:

1. No dia 16 de Março de 2017, aproximadamente pelas 12.00 horas, o arguido dirigiu-se à assistente, nas imediações do local de trabalho desta, no Jardim … desta cidade (da …), apelidando-a de "puta".

2. Com o referido em 1., o arguido, quis ofender à assistente, como ofendeu, dirigindo-lhe palavras que atentam contra a sua honra e consideração.

3. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

4. A assistente sentiu-se envergonhada e triste.

5. O arguido está reformado por invalidez, auferindo € 291,00 de pensão de reforma e vive numa casa que lhe foi cedida pelo irmão.

6. Do CRC do arguido nada consta.

B) Matéria de factos não provada:

Não resultaram "não provados" quaisquer factos com relevância para a discussão da causa.

C) Motivação da matéria de facto / análise crítica da prova

A decisão sobre a matéria de facto que antecede, apoiou-se na consideração conjunta das declarações e depoimentos ouvidos.

Com efeito, o arguido negou a prática dos factos que lhe são imputados na acusação. Contudo, nas suas declarações a assistente …, de forma coerente, com o depoimento da testemunha …, reportou-se às palavras que lhe foram dirigidas pelo arguido, reportando-se também ao processo que correu termos entre o ora arguido e o irmão da testemunha.

Mais, reportou-se à assistente ao incómodo por si sentido na sequência do sucedido.

Com efeito, também a testemunha …, de cujo depoimento resultou encontrar-se no local em causa nos autos próximo do arguido e da assistente, resultou ter o mesmo ouvido o arguido a apelidar a assistente de "puta".

Por seu turno, a testemunha …, irmão da assistente, reportou-se essencialmente ao que lhe foi transmitido pela assistente.

Por fim, atendeu o Tribunal ao CRC junto aos autos.


***

3. Apreciação

3.1. Matéria de facto

Como foi equacionado supra, o recorrente questiona a decisão da matéria de facto fazendo apelo à reapreciação da prova.

Relativamente ao recurso com base na reapreciação da prova, postula o art. 431º do CPP: Sem prejuízo do disposto no art. 410º, a decisão do tribunal e 1ªinstância sobre matéria de facto pode ser alterada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do art. 412º n.º3 do CPP.

Incide assim sobre o recorrente não só o ónus de identificar o erro apontado á decisão recorrida, como ainda o ónus de especificação do conteúdo dos meios de prova tido por não valorado ou valorado erradamente pela decisão posta em crise, capaz de, numa apreciação conforme aos critérios legais em vigor, “impor” a revogação e/ou a substituição da decisão recorrida em conformidade com a pretensão formulada.

O recurso não constitui meio para realizar um novo ou segundo julgamento da mesma coisa - como se vê sustentar na praxe diária. Constituindo antes o instrumento para obter a correcção de erros de procedimento ou de julgamento – concretos, identificados e comprovados, com base numa argumentação minimamente persuasiva – cometidos numa decisão jurisdicional.

Ora a sentença judicial é fundamentada (além do mais com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal – cfr. art. 374º, nº2 citado), sob pena de nulidade, nos termos do art. 379º do CPP. De onde que, para vê-la revogada o recorrente tem que, além de identificar o erro apontado, rebater a fundamentação da sentença que levou a esse erro, propondo uma motivação probatória capaz de, num critério minimamente persuasivo, impor a decisão alternativa que pretende. 

Com efeito, parafraseando Cunha Rodrigues (Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, p. 387) “Como remédios jurídicos os recursos não podem ser utilizados com o único objectivo de melhor justiça. O recorrente tem que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida. A motivação dos recursos consiste exactamente na indicação daqueles vícios que se traduzem em erros in operando ou in judicando. A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação de direito material. Esta natureza dos recursos justifica, por outro lado, que se lhes aplique o princípio dispositivo e que se reconheça às partes um importante papel conformador”.

Por outro lado, a reprodução da gravação dos depoimentos, no tribunal de recurso, como instrumento de garantia/comprovação da genuinidade dos mesmos e da eventual divergência entre o conteúdo material do depoimento prestado em audiência e o pressuposto na decisão recorrida, apenas tem sentido no caso de, segundo a motivação do recurso, a decisão recorrida ter atribuído, aos depoimentos prestados oralmente em audiência, conteúdo/afirmações relevantes, materialmente diversas daquelas que foram efectivamente produzido em audiência. Afinal quando o fundamento do recurso é o de que a testemunha ou o depoente produziu, em audiência, declarações com conteúdo materialmente diverso daquela que é reportado/valorado como suporte da decisão recorrida e que, como tal, inquinou essa decisão, impondo, por isso, a sua correcção pelo tribunal de recurso. Como instrumento de reprodução a gravação, apenas permite corrigir erros de “audição” do tribunal recorrido. Não erros de valoração do conteúdo, não questionado do depoimento.

A gravação (como instrumento de garantia da genuinidade dos depoimentos) nada adianta quando o fundamento do recurso radica na violação de critérios de valoração – não reproduzidos pela gravação. Pois que, pela sua natureza, apenas reproduz e comprova o teor dos depoimentos gravados. E os critérios (legais) de ponderação/avaliação/valoração da prova, resultando da lei e dos princípios gerais de direito processual penal, não resultam da gravação.

Como pondera criteriosamente Germano Marques da Silva (in Revista Julgar, n.º1, Janeiro-Abril 2007 p.150) “Nem sequer parece importante o registo audiovisual da prova, porque no recurso não está em causa o princípio da livre convicção do julgador, mas apenas a correcção de julgamento em função das provas produzidas em audiência. Não se trata tanto da interpretação de provas produzidas, mas da comprovação de que o juízo se fundou nas provas produzidas ou examinadas em audiência”.

Em termos de valoração material da prova, apesar da minuciosa regulamentação das provas efectuada pelo CPP, salvos os casos em que a lei define critérios legais de apreciação vinculada (vg. prova documental, prova pericial) vigora princípio geral de que a prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador - art. 127º do Código de Processo Penal.

Liberdade de convicção não pode nem deve significar o impressionista-emocional arbítrio ou a decisão irracional “puramente assente num incondicional subjectivismo alheio à fundamentação e a comunicação” – cfr. Castanheira Neves, citado por Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 1, 43.

Pelo contrário, o princípio da livre apreciação da prova, conjugado com o dever de fundamentação das decisões dos tribunais, exige uma apreciação motivada, crítica e racional, fundada nas regras da experiência mas também nas da lógica e da ciência. Devendo ser objectivada e motivada, únicas características que lhe permitem impor-se a terceiros.

Não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente — aqui relevando, de forma especialíssima, os princípios da oralidade e da imediação — e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” - cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss..

Sendo certo que a certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica – crf. Climent Durán, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch, p. 615.

No que toca à prova produzida oralmente em audiência – campo privilegiado de aplicação do critério do art. 127º do CPP - assume a maior relevância o princípio da oralidade e imediação, na plenitude da discussão cruzada, no exercício amplo do contraditório. Princípio que enfatiza a constatação de que o tribunal de recurso não procede a um novo julgamento mas apenas procede à sindicância de um julgamento previamente realizado em 1ª instância, na plenitude da audiência, nos termos supra identificados. Pelo que os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, apenas poderão afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1ª instância, naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 347º, n.º2 do CPP – Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 126 e 127, que por sua vez cita o Prof. Figueiredo Dias – jurisprudência uniforme desta Relação, designadamente acórdãos 19.06.2002 e de 04.02.2004, nos recursos penais 1770/02 e 3960/03; 18.09.2002, recurso penal 1580/02; 13.02.2008, recurso 76/05.4PATNV.C1 2º Juízo Torres Novas. Como decidiu, entre outros, o Acórdão da Relação de Coimbra de 06.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, II, 44.... “quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face ás regras da experiência comum”.

Por último, o princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto. Princípio atinente ao direito probatório, como tal relevante em termos da apreciação da questão de facto e não na superação de qualquer questão suscitada em matéria de direito – cfr. entre outros Cavaleiro Ferreira, Direito Penal Português, 1982, vol. 1, 111, Figueiredo Dias Direito Processual Penal, p. 215, Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-1968, p. 58. Constituindo um princípio geral de direito (processual penal) cuja violação conforma uma autêntica questão-de-direito – Cfr. Medina Seiça, Liber Discipulorum, p. 1420; Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1974, p. 217 e segs.), criticando o entendimento contrário do STJ.

No entanto a dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável – neste sentido, Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1966), p. 25.

Assim, mais do que uma limitação da livre convicção pela dúvida razoável, o critério da livre apreciação e o critério da dúvida razoável é idêntico, constituindo o cerne da decisão judicial sobre a prova do facto: a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio in dubio pro reo impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. Em ambos os casos, após a produção de toda a prova e da sua valoração em conformidade com os critérios de apreciação vinculada e, na falta deles, numa apreciação motivada, razoável, objectiva e racional.

Daí que somente quando, após a discussão da causa e da reflexão, exaustiva, sobre toda a prova produzida, apreciada de forma crítica, objectiva e racional, devidamente traduzida na motivação, persistem várias soluções razoáveis, é legítimo convocar o princípio in dubio pro reo. Também ele sujeito, não só à discussão em audiência, como ainda ao dever de fundamentação na sentença, como ainda, materialmente, à razoabilidade da dúvida perante mais do que uma perspectiva admissível. Somente quando após a produção e discussão de todos os meios de prova pertinentes e da sua apreciação à luz dos critérios legais em vigor, permanece mais do que uma perspectiva probatória razoável cabe invocar a dúvida razoável.

No caso o recorrente critica a decisão recorrida com fundamento na proba produzida oralmente em audiência. Não o faz, porém, por ter atribuído, a qualquer meio de prova, conteúdo diverso daquele que é revelado pela respectiva gravação, mas pela valoração do material probatório produzido.

Ora a testemunha …, ouvida e contraditada em audiência, afirmou, como resulta da motivação probatória da decisão recorrida, que o recorrente proferiu as expressões dadas como provadas nas circunstâncias de tempo e lugar referenciados. Aliás, dos excertos do depoimento da testemunha … que reproduz resulta que a mesma afirmou, sem qualquer dúvida, a prática dos factos a que assistiu.

A motivação do recurso omite ainda o depoimento da assistente, também afirmativo dos factos dados como provados, também invocado na motivação da sentença como suporte probatório da matéria impugnada.

Apenas contrapõe a sua versão de que naquelas circunstâncias de tempo e lugar “estava a fazer o almoço”. Mas sem fundamentá-la minimamente em termos probatórios. Como que reconvertendo a presunção de inocência do arguido em presunção de verdade da sua negação dos factos da acusação.

Com efeito as declarações do arguido apenas têm força probatória de “confissão”, nos termos do art. 344º do CPP relativamente aos “factos que lhe são imputados”. O mesmo é dizer, quanto aos factos descritos na acusação, constitutivos do crime ou crimes imputados. Como tal factos “desfavoráveis” ao arguido, a quem assiste o direito à não auto-incriminação.

Em conformidade não só com elementares regras da experiência comum mas ainda com o princípio geral sobre a confissão enunciado pelo artigo 353º do C. Civil: Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

Ora, no caso, além da sua própria negação da prática dos factos pelo arguido, não foi produzido qualquer outro meio de prova que de alguma forma pudesse corroborar o seu depoimento negatório.

Por outro lado não é aduzida qualquer razão, muito menos plausível, para que a assistente e a testemunha, cujos depoimentos concordantes suportam a decisão recorrida, pudessem ter faltado à verdade, muito menos alterado conscientemente a verdade dos factos, inventando-os.

A asserção de que as expressões se dirigiriam à testemunha e não à assistente, além de contraditória com a negação dos factos, sem o menor suporte probatório. Sendo manifesto que o autor das expressões se referia à pessoa contra a qual tinha razões, também presente, que queria ofender, ainda que sendo ouvido, como foi, pela testemunha ou outras pessoas que se encontrassem por perto.

Em conclusão, o recorrente não aduz fundamentos capazes, sequer em abstracto, de inquinar a decisão recorrida, muito menos impor, em concreto, decisão diversa da recorrida.

3.2. Matéria de direito

Na qualificação jurídica da matéria provada invoca o recorrente a atipicidade penal das expressões dadas como provadas, qualificando de “meros palavrões as asneiras concretizadas na expressão «puta que pariu»”. Sustentando que constitui apenas linguagem desbragada e má educação.

Pratica o crime de injúria (art. 181º, 1 do C. Penal) quem, dirigindo-se a outra pessoa “imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras ofensivas da sua honra ou consideração”.

O bem jurídico protegido pelo tipo de crime é, assim, constituído pela honra ou a consideração. “HONRA é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz assim respeito ao património pessoal e interno de cada um - o próprio eu. A CONSIDERAÇÃO será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão – a opinião pública.” - cfr. Simas Santos /Leal Henriques, Código Penal Anotado, Volume II, 2000, página 469).

Atenta a tutela subsidiária do direito penal, não se pode confundir a injúria com a mera indelicadeza, falta de educação ou mesmo a grosseria.

Por outro lado se há palavras e expressões cujo significado, primeiro e último, é entendido por toda a comunidade como ofensivos da honra e consideração, outras palavras e expressões existem que ganham conteúdo ofensivo consoante o contexto em que são proferidas ou no relacionamento existente entre o agente e a vítima.

Como refere Beleza dos Santos (R.L.J. 92º, p. 168) que «não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem aquilo que o queixoso entende que o atinge, de certo ponto de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais».

Na mesma linha, pondera Faria Costa (in Comentário Conimbricence ao Código Penal, tomo I, p. 612): “O cerne da determinação dos elementos objectivos (do crime de injúria) tem sempre de se fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização. Residindo aqui um dos elementos mais importantes para, repete-se, a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo”.

Tudo está em saber se determinada conduta se apresenta, no contexto ou circunstâncias concretas em que ocorre ou do conhecimento do agente, como adequada a ofender a honra ou consideração de outra pessoa. Aplicando-se ao crime de injúria o princípio do nexo de causalidade adequada entre a acção e o resultado típico subjacente a toda a responsabilidade criminal.

Com efeito, nos termos do art. 10º, n.º1 do C. Penal “Quando o tipo de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo, como a omissão da acção adequada a evitá-lo”.

Consagrando tal disposição – à semelhança do que sucede para a responsabilidade civil, no art. 563º do C. Civil – a doutrina da causalidade adequada. Ou seja, na formulação de Eduardo Correia, Direito Criminal, I vol., p. 257: “para que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e una acção não basta que a realização concreta daquele se não possa estabelece sem esta; é necessário que, em abstracto, a acção seja idónea para causar o resultado; que o resultado seja uma consequência normal, típica, da acção. O processo lógico deve ser de prognose póstuma, ou seja, de um juízo de idoneidade referido ao momento em que a acção se realiza, como se a produção do resultado não se tivesse ainda verificado, isto é de um juízo ex ante. Este juízo deve ser feito segundo as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas da situação (…) segundo as regras da experiência normais e as circunstâncias concretas em geral conhecidas, não se devendo porém abstrair, para a sua determinação, das circunstâncias que o agente efectivamente conhecia”.

Ora, no caso

Antes de mais, a conotação atribuída pelo recorrente à expressão (puta que pariu) não corresponde aquela que resulta da matéria provada. Com efeito, uma coisa seria proferir a dita expressão, em abstracto, como impropério ou desabafo sem destinatário definido, como sustenta o recorrente. Outra, diversa, é dirigir a expressão a determinada pessoa, num contexto de animosidade ou de enxovalho – tal como consta da matéria provada: “dirigiu-se à assistente (…) apelidando-a de «puta» (…) quis ofender à assistente, como ofendeu, dirigindo-lhe palavras que atentam contra a sua honra e consideração»".

Por outro lado trata-se de expressão comumente aceite como ofensiva da honra e consideração de qualquer mulher, conotando-a como socialmente desqualificada ao mais baixo nível, que vende o corpo por dinheiro.

Assim, tendo em vista o teor, objectivo, e conotação da expressão em causa, quando dirigida a uma mulher, a expressão em causa, no contexto em que foi proferida, é manifestamente ofensiva.

Acresce, naturalmente, a exigência de verificação dos pressupostos do tipo subjectivo, no caso dolo direto, nos termos previstos no art. 14º, nº1 do C. Penal – previsão vontade de realização da conduta típica, ou seja, de ofender a pessoa visada na sua honra ou consideração. O que, no caso, não sofre dúvida, perante a matéria de facto provada.

Impõe-se, assim, a improcedência do recurso.

III - DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso com a consequente manutenção integral da decisão recorrida. ---

Custas pelo arguido/recorrente (artigo 513º do CPP, nº1 do CPP), fixando-se a taxa de justiça, nos termos da Tabela III anexa ao RCP - reapreciação da prova e matéria de direito – em 5 (cinco) UC.

Coimbra, 27 de fevereiro de 2019

    

Belmiro Andrade (relator)

     

Abílio Ramalho (adjunto)