Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
65/21.1T9PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO SISTEMA DE PONTOS
CONSTITUCIONALIDADE
NE BIS IN IDEM
ADEQUAÇÃO
PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE POMBAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 148.º, N.ºS 1, 2, 3 E 4.º, AL. C), DO CÓDIGO DA ESTRADA (REDACÇÃO DA LEI N.º 116/2015, DE 28-08; ARTS. 18.º E 30.º, N.º 4, DA CRP
Sumário: I – A cassação do título de condução prevista na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada não constitui uma penalidade acessória ou uma medida de segurança, mas antes uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de uma pena de inibição de conduzir.

II – É diversa a natureza jurídica das infracções determinantes da perda de pontos e da cassação do título de condução; esta não é efeito directo da prática de um crime ou de uma contra-ordenação, mas sim do cometimento reiterado daquelas infracções.

III – Deste modo, o regime previsto na norma referida não ofende os princípios constitucionais da proporcionalidade e da adequação, nem tão pouco o princípio ne bis in idem.

Decisão Texto Integral:

            Nos autos de impugnação judicial de decisão administrativa que, sob o nº 65/21.1T9PBL, correram termos pelo Juízo Local Criminal de Pombal, J2, Comarca de Leiria, o arguido J. impugnou judicialmente a decisão administrativa proferida pelo Senhor Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) no processo autónomo de cassação n.º (…), que determinou a cassação do título de condução n.º (…) de que é titular.

            Admitida tal impugnação judicial, viria a ter lugar audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença decidindo nos seguintes termos (transcrição):

Em face do exposto este Tribunal Judicial julga a impugnação judicial da decisão administrativa proferida pelo Senhor Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) a 24 de setembro de 2020, no processo autónomo de cassação de carta n.º (…), que determinou a cassação do título de condução n.º (…) de que o arguido é titular, improcedente por não provada.

Condena o impugnante em taxa de justiça individual que se fixa em 1 (uma) UC, levando-se em consideração a que se mostra liquidada (cfr. artigo 93.º, n.º 3, do Regime Geral de Contraordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10, e do art.º 8.º, n.º 7, do RCP por referência à Tabela III anexa).

Deposite, notifique e arquive em pasta própria.

Após trânsito:

- Liquide julgado;

- Comunique à autoridade recorrida (art. 70.º n.º 4 do RGCO)

           

Não se conformando com tal decisão, o arguido interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

I. O Arguido foi julgado e condenado nos autos em epígrafe na cassação do título de condução, por preenchimento dos pressupostos previstos no artigo 148.º, n.ºs 4, 10 a 12 do Código da Estrada.

II. Viola o ne bis in idem (previsto no art. 29.º, n.º 5, da CRP e consagrado no art. 54.º da CAAS como princípio de preclusão e verdadeira proibição de cúmulo de ações penais) a presente sentença.

III. O arguido cumpriu as penas aplicadas no âmbito dos processos citados na sentença a quo.

IV. Ora, o Tribunal a quo ao aplicar a norma 148.º do Código da Estrada, viola a Constituição da República Portuguesa.

V. Nos termos do artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), deveria antes tê-la desaplicado, revogando o despacho da Autoridade Administrativa, por a sua aplicação determinar a violação da CRP e portanto, há uma irregularidade prevista no 123.º n.º 1 do Código Processo Penal, não podendo por isso manter-se a decisão recorrida.

VI. Quer assim dizer-se que caso se entendesse que a lei processual estaria cumprida, a norma que determina a cassação do título de condução deverá ser considerada inconstitucional designadamente por violação de caso julgado e por inconstitucionalidade das normas 148.º e 149.º do Código da Estrada.

VII. E, assim teria de julgar, de acordo com o artigo 204.º da CRP que refere “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.”. Devemos entender que nesta norma da CRP se prevê a competência exclusiva dos Tribunais para o conhecimento de questões de constitucionalidade colocadas nos processos judiciais.

VIII. O Tribunal Constitucional apenas conhecerá da inconstitucionalidade das normas em segunda instância, isto é, depois de devidamente suscitadas no Tribunal Recorrido.

IX. Como tem referido o Tribunal Constitucional, a esta aplicação subjaz a ideia segundo a qual a cada infração corresponde uma só punição, não devendo o agente ser sujeito a uma repetição do exercício do poder punitivo do Estado.

X. Materialmente, à sua conduta já se fizera corresponder uma “punição” (em sentido amplo).

XI. No caso sub judice, o arguido não incumpriu as injunções aplicadas.

XII. O art. 29º, nº 5 da CRP preceitua que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, assim se impedindo que uma mesma questão seja de novo apreciada.

XIII. Do ne bis in idem resulta que o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes, isto é, a mesma conduta ilícita não pode ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez.

XIV. Se se entender que a perda de pontos poderá preencher o elemento formal da pena acessória ou efeito da pena, já não preenche qualquer elemento ou pressuposto material.

XV. Com efeito como pressuposto material da aplicação da pena acessória deveria averiguar-se da especial censurabilidade do condutor no caso concreto.

XVI. Contudo, na verdade, tal instituto de subtração de pontos aplica-se de forma automática, não se ponderando a necessidade prática de aplicação ao arguido, ou seja, não há valoração de qualquer elemento ligado à prevenção especial, nem tão pouco uma graduação da culpa.

XVII. O princípio da necessidade, subprincípio do princípio da proibição do excesso que “proíbe que a restrição [de direitos, liberdades e garantias] vá além do que o estritamente necessário ou adequado para atingir um fim constitucionalmente legítimo”, “impõe que se recorra, para atingir esse fim, ao meio necessário, exigível ou indispensável, no sentido do meio mais suave ou menos restritivo que precise de ser utilizado para atingir o fim em vista” (Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Ed. 2004, p. 167).

XVIII. Nestas situações, qualquer condenação posterior numa pena representaria uma violação do princípio da necessidade, consagrado no art. 18º, nº 2, da CRP. Constituição que o juiz de julgamento não pode deixar de aplicar. A sentença recorrida, ao condenar o arguido numa pena, não só manteve a violação do ne bis in idem, como afrontou o princípio constitucional da necessidade (da pena).

XIX. O despacho de recebimento da acusação, o julgamento e a sentença são, por tudo, nulos.

XX. Apresentam-se como constitucionalmente insustentáveis e o primeiro (o despacho de recebimento da acusação) deverá ser substituído por outro que, fazendo aplicação do ne bis in idem, rejeite a acusação do Ministério Público.

XXI. Sem conceder, sempre se defende que se deve ter por excessiva a pena de aplicada, uma vez que o Arguido não tem antecedentes criminais, é pessoa bem-educada, bem considerada e com estima dos familiares, amigos e colegas, pacífica e completamente cumpridora dos seus deveres em sociedade, pelo que atendendo à factualidade resultante da produção de prova, às circunstâncias e ao facto de ser trabalhador e precisar do veículo para exercer a sua atividade profissional.

XXII. Por todo o exposto deve o presente recurso vir a ser julgado procedente por provado e a douta sentença revogada, decidindo-se que pela não aplicação da sanção de cassação da carta de condução.

XXIII. Sempre teremos que reconhecer que, em nenhuma das duas vezes o agente atuou com intenção de violar normas jurídicas, resultando em ambas as situações o não preenchimento de um pressuposto, absolutamente essencial, para toda e qualquer responsabilidade, o elemento subjetivo.

XXIV. Ora, em ambos os acontecimentos, verifica-se a omissão do elemento subjetivo, isto é, inexistiu qualquer intenção do respondente de agir dolosamente, em violação das disposições penais.

XXV. Pelo que se considera como proporcional e adequado a imposição de obrigação de frequência de ações de formação ou tão somente a obtenção de novo título de condução, mas de forma imediata, pressupondo sempre que o respondente é um excelente condutor, tanto mais que o faz profissionalmente, e do seu título de condução tem necessidade para o exercício da sua atividade profissional.

NORMAS VIOLADAS

XXVI. O Tribunal fez incorreta interpretação e aplicação do que vem disposto nos artigos 18.º, 29º, 204.ºda CRP e 123.º do CPP.

PEDIDO

XXVII. Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso vir a ser julgado procedente por provado e a douta sentença revogada, decidindo-se que: O ora arguido/recorrente cumpriu as injunções que lhe foram cometidas, sendo que o processo deveria existindo uma clara violação do princípio ne bis in idem, artigo 29.º, nº 5 e 18.º, n.º 2 da CRP, anulando-se o despacho de recebimento da acusação e, consequentemente, o julgamento e a sentença, devendo aquele despacho ser substituído por outro que, aplicando o ne bis in idem, rejeite a acusação do Ministério Público.

XXVIII. Se assim não se considerar, sempre se deverá considerar que:

XXIX. Deverá ao Arguido, aqui, Recorrente, ser aplicada a oportunidade de frequência de formação sobre as regras estradais, ou ainda a retirada de título de condução com possibilidade imediata de obter novo título de condução.

NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

Respondeu o MP em primeira instância, retirando dessa sua peça as seguintes conclusões:

1. A factualidade consignada como provada impunha a prolação de decisão de cassação do título de condução do recorrente, por perda total de pontos, nos termos dos artigos 121.º-A e 148.º, n.os 4, al. c) e 10 do Código da Estrada, conforme determinado pela Autoridade Administrativa e confirmado na decisão recorrida, que deve ser mantida.

2. É legalmente inadmissível, no contexto fáctico consignado como provado, a sanção alternativa propugnada pelo recorrente.

3. Não se mostram violados, de forma alguma, quaisquer preceitos legais ou princípios, processuais e/ou constitucionais, designadamente os referidos pelo recorrente.

Face ao exposto, e ao abrigo das disposições legais supra citadas, não nos merecendo qualquer censura o decidido pelo tribunal recorrido, somos de parecer que o presente recurso deverá ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se, na íntegra, a decisão judicial recorrida.

V. Ex.as, porém, decidirão como for de JUSTIÇA

         Nesta Relação, o Dig.mo PGA emitiu douto parecer no sentido da confirmação do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FACTOS PROVADOS:

2.1.1. O arguido é titular da carta de condução n.º (…) para as categorias B e B1.

2.1.2. Foi condenado no âmbito dos seguintes processos:

a) por sentença proferida neste Juízo Local Criminal de Pombal (processo n.º …), transitada em julgado, o arguido J. foi condenado, para além do mais, numa pena acessória de inibição de conduzir por 5 meses e 15 dias, pelo cometimento em 13.01.2019 de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

b) por sentença proferida neste Juízo Local Criminal de Pombal (processo n.º 69/10.4GBPBL), transitada em julgado a 05.04.2019, o arguido foi condenado, para além do mais, numa pena acessória de inibição de conduzir por 5 meses pelo cometimento, em 17.02.2019 de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

c) por decisão proferida no processo contraordenacional n.º (…), transitada em julgado a 03.12.2019, foi o arguido condenado pela prática de uma contraordenação muito grave (excesso de velocidade, dentro de localidade, quando seguia a 116 km/h em local cujo limite de velocidade eram 60 Km/h) em sanção acessória de inibição de conduzir por 30 dias.

2.1.3. As decisões mencionadas nas alíneas a) a c) do ponto 2.1.2) implicaram a dedução de 16 (dezasseis) pontos [6 x 2 + 4 pontos] à carta de condução titulada pelo arguido (artigo 148º, n.º 2 do Código da Estrada).

2.1.4. Aquelas penas acessórias mostram-se cumpridas nesta data.

2.1.5. O arguido é casado e operário fabril e carece da carta de condução no seu dia a dia.

2.1.6. Não constam averbadas no RIC e CRC do arguido outras infrações e crimes que não os mencionados em 2.1.2).

Factos não provados

a) Os crimes cometidos pelo arguido e elencados em 2.1.2) tenham resultado apenas de mera negligência ou que tenha agido sem culpa.

b) A cassação da sua carta de condução iniba o arguido de exercer a sua atividade profissional, ainda que com esforço redobrado.

DECIDINDO:

Analisadas as conclusões que o arguido retira da motivação do seu recurso, logo se constata que, não obstante a sua multiplicidade, a sua pretensão se reduz, em via principal, a que se decida que ele «cumpriu as injunções que lhe foram cometidas, existindo uma clara violação do princípio ne bis in idem, artigo 29.º, nº 5 e 18.º, n.º 2 da CRP, anulando-se o despacho de recebimento da acusação e, consequentemente, o julgamento e a sentença, devendo aquele despacho ser substituído por outro que, aplicando o ne bis in idem, rejeite a acusação do Ministério Público».

Subsidiariamente pede «a oportunidade de frequência de formação sobre as regras estradais, ou ainda a retirada de título de condução com possibilidade imediata de obter novo título de condução».

            Começaremos por dizer que a sentença recorrida procedeu a um exame detalhado da natureza jurídica do instituto da cassação do titulo de condução e bem assim das suas eventuais implicações em termos de violação das garantias constitucionais; por isso, a seguiremos de perto.

Assim, a cassação do título de condução há-de traduzir-se numa decisão fundamentada que decreta a perda definitiva do título de condução do infractor em causa, e na interdição, de o mesmo, num período de 2 anos, poder realizar um novo exame de condução para obtenção de novo titulo.

Tal medida tem natureza essencialmente administrativa e cariz sancionatório e traduz-se num sistema de perda ou adição de pontos, conforme as situações legalmente previstas.

Dispõe o artigo 121.º-A do Código da Estrada aditado pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, “1- A cada condutor são atribuídos doze pontos. 2 - Aos pontos atribuídos nos termos do número anterior podem ser acrescidos três pontos, até ao limite máximo de quinze pontos, nas situações previstas no n.º 5 do artigo 148.º. 3 - Aos pontos atribuídos nos termos dos números anteriores pode ser acrescido um ponto, até ao limite máximo de dezasseis pontos, nas situações previstas no n.º 7 do artigo 148.º”.

Já a subtração de pontos terá lugar nas situações previstas no artigo 148.º, que tem a seguinte redacção:

“1- A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos: a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, utilização ou manuseamento continuado de equipamento ou aparelho nos termos do n.º 1 do artigo 84.º, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves; b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves. 2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor”.

A alínea c) do n.º 4 respectivo atribui à ANSR a instauração de procedimento tendente à cassação do título de condução “sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor”.

Assim sendo, devemos concluir que não estamos perante uma penalidade acessória ou uma medida de segurança, mas antes face a uma medida de diversa natureza.

Segundo o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 260/2020, de 13 de maio, citado na sentença recorrida, a cassação da carta de condução surge nestes casos não como uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes como uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de uma pena de inibição de conduzir. Fundada num juízo do legislador sobre o significado da perda de pontos que associa à perda de condições mínimas exigíveis para a manutenção da concessão do título de condução. Designadamente por revelar uma ineptidão normativa para o exercício da condução, que acarreta que se ponha termo à concessão da autorização administrativa para conduzir. Sujeita, assim, tal como a carta provisória, a um regime legal de revogação. Nos termos do n.º 10 do artigo 148.º do CE “a cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 (como no caso sucede) é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução”. E a carta de condução caduca (art.129.º n.º 1 al. d) do CE).

No mesmo sentido vai o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 260/2020 quando afirma que “O regime tem, assim, um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar, de uma forma facilmente percetível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infrações cometidas pelos condutores bem como os respetivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma. Com efeito, a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública.”

            Na análise a que procederemos, relativa à implicação constitucional da aplicação do instituto em causa, teremos em consideração que «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição» conforme dispõe o artº 18º, 2, da CRP.

            Invoca o recorrente uma pretensa violação da norma do artº 29º, 5, CRP, que em absoluto proíbe uma dupla condenação de alguém, pela prática do mesmo crime.

Segundo o princípio constitucional e processual penal ‘ne bis in idem’, é interdita aos Tribunais a condenação de um agente que, relativamente aos mesmos factos, haja já sido objecto de julgamento penal.

Como escreveu o Prof. Eduardo Correia (Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Coimbra, 1983, pág. 302, «o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias».

Inexistindo, no âmbito da lei processual penal, norma regulamentadora deste instituto e dos respectivos efeitos jurídicos, e verificada a ocorrência de tal lacuna, o respectivo regime integrador há-de ser o que resulta das normas do processo civil «que se harmonizem com o processo penal», e, na falta delas, os princípios gerais do processo penal (artº 4º, CPP).

Assim, esta excepção, que pressupõe a repetição de uma causa idêntica a uma outra anteriormente julgada e transitada em julgado (artº 580º, 1, CPC), visa evitar que o tribunal «seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior» (nº 2).

Mas, da análise a que atrás já procedemos, resulta à evidência que não está em causa uma dupla punição pela prática dos mesmos factos com relevância criminal ou contraordenacional.

Uma coisa são as penas aplicadas ao arguido nos processos atrás referidos e que resultaram da prova da prática, no exercício da condução automóvel, de crimes ou contraordenações e outra, conexa, mas distinta, a aplicação do regime da cassação, resultante da sucessiva subtracção de pontos em virtude da prática desses delitos. A natureza jurídica de uns e outra é diversa e a cassação não é consequência directa da prática de um crime ou contra-ordenação, antes de um acumular de práticas dessa natureza.

Assim sendo, não pode falar-se de uma repetição do julgado ou de uma dupla penalização pela prática dos mesmos factos.

Por isso, não ocorre a pretendida violação de caso julgado anterior, na perspectiva em que a analisamos (nem, reflexamente, ocorre qualquer violação da garantia constitucional ínsita no artº 29º, 5, da CRP, nem tão pouco do seu nº 6, ou nos artºs 202º, 1 e 2, 3º, 3, 9º, b) ou 2º, todos da CRP).

No sentido de que a decisão sobre a cassação da carta, no âmbito das competências do Presidente da ANSR, não constitui uma pena acessória, v. entre ouros o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10.11.2020, citado na sentença recorrida.

No mesmo sentido do aqui por nós decidido, v. o ac. desta Relação, de 6/11/2019, do qual, entre o mais, resulta que:

 “I – O sistema de carta por pontos [artigo 148.º do Código da Estrada (redacção conferida pela Lei n.º 116/2015, de 28-08)] respeita os princípios da proporcionalidade e necessidade, encontrando justificação numa maior perigosidade do condutor. II – O dito sistema, constituindo embora uma reacção automática – ocorre como efeito da(s) infracção(ões) cometidas, sem que, por si mesmo, assuma natureza sancionatória –, não isenta a administração de verificar se o titular do título de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar do mesmo. III – A cassação do título de condução prevista no artigo 148.º, n.ºs 4, al. c), 10, 11 e 12, do Código da Estrada consubstancia, em relação às condenações determinantes da perda de pontos, um novo sancionamento, axiologicamente motivado pela inidoneidade entretanto revelada pelo condutor e, em última ratio, por imperativos de segurança rodoviária. IV – Deste modo, não viola o princípio constitucional ne bis in idem a cassação de título de condenação decorrente, nomeadamente, de duas condenações do agente pela prática de crimes de condução em estado de embriaguez.”

(v. tb. no mesmo sentido, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 10.02.2021 e da Relação de Coimbra de 15.01.2020, amplamente citados, entre outros, na decisão recorrida).

Postos estes pressupostos, resultantes da análise do regime jurídico do instituto da cassação da licença de condução, teremos de concluir que dada a sua natureza, não belisca o os princípios da proporcionalidade e da adequação, nem tão pouco o principio ne bis in idem.

Está assim constatada a conformidade constitucional das decisões aqui postas em causa.

Quanto ao pedido subsidiário formulado pelo recorrente (ser aplicada a oportunidade de frequência de formação sobre as regras estradais, ou ainda a retirada de título de condução com possibilidade imediata de obter novo título de condução) como ele muito bem sabe, não é sequer possível equacionar a sua aplicabilidade, por falta de lei expressa que o preveja para o caso. Com efeito, estando nós no âmbito do direito público, deve ser aplicada a lei estrita, já que o que não é permitido é proibido.

Termos em que, nesta Relação, se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra a douta sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 4 UC’s.

Coimbra, 10 de Novembro de 2021

Jorge França (relator)

Paulo Guerra (adjunto)