Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
137/18.0T9LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: CONCURSO DE CRIME E DE CONTRA-ORDENAÇÃO;
CONHECIMENTO DA CONTRA-ORDENAÇÃO PELA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA;
INCOMPETÊNCIA;
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 10/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRA-ORDENACIONAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 38.º, N.ºS 1 E 3, DO RGCO; ARTS. 119.º, N.º 1, AL. E), E 122.º, DO CPP
Sumário:
I – O artigo 38.º, n.º 1, do RGCO, abrange as situações de concurso, ideal ou real, de ilícitos criminais com as infracções contra-ordenacionais que estejam conexas com aqueles.
II – A remessa prevista no n.º 3 do artigo 38.º do RGCO apenas pode ocorrer quando o Ministério Público arquiva o processo crime mas entende que subiste a responsabilidade pela contra-ordenação.
III – Fora desse quadro, a autoridade administrativa é incompetente para o conhecimento da contra-ordenação.
IV – Conhecendo-a, a decisão respectiva, enfermando de nulidade insanável, é inválida, invalidade que se estende ao processado posterior.
Decisão Texto Integral:

I. Relatório

No âmbito do processo de recurso de contra-ordenação nº 137/18.0T9LRA.C1 que corre termos na no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal de Leiria - Juiz 1, o arguido A., (…), foi condenado em 20 de Novembro de 2017 na fase administrativa, pelo Comando Distrital de Leiria da Policia de Segurança Pública (CDLPSP), numa coima de 500,00 €, acrescido de custas administrativas de 51,00 €, com a consequente perda da sua arma de fogo e demais objectos apreendidos e cassação da sua licença de uso e porte de arma de fogo (artigos 39.º n.º 1 e 2, al. c), 98.º, e 108.º n.º 1 al. f) da Lei 5/2006, de 23.02, e 21.º, 22.º e 24.º do DL 433/82 e 109.º do Código Penal).

O arguido impugnou judicialmente a referida decisão administrativa.
Recebida, em 28-12-17, a impugnação judicial, veio a efectuar-se audiência de julgamento, tendo, em 20-03-2018, sido proferida sentença que julgou improcedente, na totalidade, o recurso.

Inconformado com a referida decisão judicial, dela interpôs recurso o arguido, defendendo que deve ser revogada a sentença recorrida e declarada nula a decisão administrativa, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1. A douta sentença recorrida que negou provimento ao recurso do Arguido, aqui recorrente, não declarando que a decisão administrativa condenatória enferma de diversas nulidades e carece de fundamento de direito e de facto, terá que ser revogada, porquanto a decisão peca dos vícios que lhe foram imputados em sede de impugnação.
2. Em primeiro lugar, por ausência da indicação de meios de prova valorados, já que, da leitura da decisão, apenas resulta que foi valorada como prova uma certidão judicial da acusação que foi formulada no processo crime (crime de ameaças com arma de fogo) e pelo qual o recorrente foi julgado e absolvido, e por isso improcedente, o que é claramente violador do princípio da inocência e carece em absoluta de fundamento de facto e de direito e até de inconstitucionalidade, inquinando a decisão de nulidade;
3. A existirem outros elementos em termos de prova, o certo é que os mesmos deveriam constar da decisão, nos termos do artigo 58º do RGCO, e não constando não poderão ser valorados e jamais poderia uma acusação, por si só, fundar a condenação do arguido Recorrente na prática da contraordenação;
4. Não pode perfilhar-se o entendimento do tribunal recorrido de que houve perícias, declarações nos autos e outras, pois a existirem outros meios de prova que fundaram a decisão teriam que constar da decisão administrativa, (radicando este dever na necessidade de fundamentação das decisões) e como resulta da leitura da mesma não constam, o que inquina a decisão de falta de fundamentação e violação de lei por radicar numa acusação que até foi julgada improcedente;
5. E resulta da decisão que a mesma apenas assenta na certidão, tanto é que se refere “Relata a certidão…” (no ponto dos factos, pág. 1),não indicando qualquer outro elemento que permita fundar a condenação que não a acusação;
6. Servir de base a uma condenação uma acusação sem qualquer outro elemento de prova e que para mais foi julgada improcedente, é claramente violador do principio da inocência e carece em absoluta de fundamento de facto e de direito e de inconstitucionalidade, inquinando a decisão de nulidade;
7. Ainda que existissem outros elementos em termos de prova, o certo é que os mesmos deveriam constar da decisão, nos termos do artigo 58 do RGCO e não constando, não pode ser valorados;
8. Ademais, puniu-se o arguido por ter agido com dolo e da leitura da decisão a única alusão que se faz é que o arguido agiu com dolo porque se fez acompanhar da arma.
9. Nunca só por este facto não se pode imputar a C.O. a título de dolo e ressalta notoriamente que não constam os elementos ou fundamentos necessários para a imputação da contraordenação a esse título (ou até a qualquer outro), pelo que a imputação a nível de dolo sem qualquer alusão à intenção, liberdade e voluntariedade do arguido não pode permitir-se e inquina esta decisão de nulidade por falta de fundamento;
10. Por outro lado, do teor da decisão não há qualquer condenação na prática da contraordenação, mas tão só na condenação em coima e não pode existir condenação em coima, sem previamente se condenar na prática da c.o. Admitir isso seria o mesmo que admitir a condenação em prisão ou pena de multa, sem se ter condenado na prática do crime (vide da decisão – última página);
11.Por outro lado, o arguido foi julgado criminalmente por estes factos (v. factos provados (ponto 2.1.1. dos factos provados da sentença recorrida), e assim sendo, a competência para conhecer desta contraordenação caberia à jurisdição penal e não à autoridade administrativa, nos termos do artigo 38º do RGCO, pelo que a entidade administrativa não pode julgar ou punir pela prática desta c.o.;
12.Sem condescender, a decisão de cassação da licença não opera de forma automática e não se vislumbra pela leitura da decisão os fundamentos para esta cassação, o que inquina esta decisão da decisão que foi notificada ao arguido, ora Recorrente, apenas constando como prova uma certidão judicial da acusação que foi formulada no processo crime e pela qual foi julgado, tendo sido considerada improcedente e por isso absolvido o arguido;
13.Sem condescender quanto a tudo quanto se alegou, a decisão de cassação da licença não opera de forma automática pela prática da contraordenação e não se vislumbra pela leitura da decisão os fundamentos para esta cassação, o que inquina esta decisão de nulidade;
14.E o arguido não praticou os factos de que vem acusado, porquanto não ameaçou ninguém, tanto que foi absolvido do crime e procurou tão só defender a sua integridade física que havia sido posta em causa, por um terceiro que lhe furtou bens de dezenas de milhares de euros.
15.A sentença recorrida não podia ter deixado de declarar tais nulidades, já que foram arguidas pelo recorrente na sua impugnação para o Tribunal a quo.
16.Termos em que deve a sentença recorrida que declarou improcedente a impugnação judicial do arguido/recorrente, ser revogada, declarando-se nula e de nenhum efeito a decisão administrativa e a autoridade recorrida incompetente para conhecer desta contraordenação, tudo com as legais consequências ou, pelo menos, declarar-se que o arguido não praticou os factos que lhe são imputados;
17.Violadas foram, entre outras, as disposições do art. 38, 39, 41, 58º do regime geral das contraordenações, do regime geral Das C.O., arts. 374º e 379º do C.P.P., art. 32 da CRP;
18.Revogando, assim, a sentença recorrida e declarando-se nula e de nenhum efeito a decisão administrativa proferida nos autos,
V. Exªs. a costumada JUSTIÇA.”
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Por despacho de fls. 191 foi o recurso admitido, fixado o respectivo regime de subida e efeito.

Ao recurso respondeu o MP, concluindo:

“1. Vem o recorrente, (…), recorrer da douta sentença, proferida, por ter sido foi julgado improcedente, o respetivo recurso de impugnação judicial, tendo sido mantida a condenação do mesmo, por decisão administrativa, proferida pela Polícia de Segurança Pública, pela prática de contraordenação, p. e p. pelos artigos, 39.º nºs. 1 e 2, alínea c), e 98.º, ambos da Lei nº. 5/2006, de 23/02, mantendo a declaração de perdimento da respetiva arma de fogo e demais objetos apreendidos, bem como a cassação da sua licença de uso e porte de arma de fogo, nos termos aí constantes;
2. Pelos fundamentos alegados, porém, o recorrente vem impugnar a douta sentença proferida, invocando, de novo, os alegados vícios da decisão proferida pela autoridade administrativa competente, a Polícia de Segurança Pública, como já antes havia invocado, em sede de recurso de impugnação judicial;
3. Contrariamente ao alegado, o que serviu de base à condenação do recorrente, por decisão da competente autoridade administrativa, não foi a acusação deduzida (declarada improcedente), mas sim a douta sentença, proferida no âmbito do processo 163/16.3JALRA, do Juízo Local Criminal de Alcobaça, transitada em julgado a 14/07/2017, na medida e tão só, porque da mesma sentença, e como se verifica da certidão respetiva, constam assentes como provados, os factos aí descritos, os quais, em abstrato, integram a prática de contraordenação, p. e p. pelos artigos, 39.º n.º 1 e 2, alínea c), e 98.º, ambos da Lei 5/2006, de 23/02, que aprovou o “Regime Jurídico das Armas e Munições”;
4. Não obstante se mostrar formado caso julgado formal, quanto aos factos dados como provados e não provados, naquela sentença, verifica-se da mesma certidão, a indicação dos meios de prova produzidos, como a pericial, a documental e outros procedimentos, daí que tenha sido considerada, obviamente, pela competente autoridade administrativa, como prova bastante da verificação do aludido ilícito contraordenacional, pelo que a decisão administrativa encontra-se abundante e devidamente fundamentada de facto, face ao teor da mesma certidão, não se verificando qualquer nulidade, inclusive, quanto à prova;
5. Atentos os termos da decisão administrativa, conclui-se que a mesma encontra-se devidamente fundamentada, de facto e de direito, pelo que resultam verificados todos os requisitos constantes do disposto no artigo 58º., do “Regime Geral das Contraordenações”, aprovado pelo Decreto-Lei nº. 433/82, de 27/10, não enfermando de qualquer nulidade ou de qualquer outro vício, inclusive, da alegada inconstitucionalidade, ou de violação do alegado “princípio da presunção da inocência”;
6. Na decisão administrativa, proferida, constam elencados os factos determinantes para se concluir que o arguido, ora recorrente, agiu dolosamente, ao praticar os factos descritos na fundamentação de facto, tal como constam descritos na mesma decisão, nos respetivos pontos I e II, portanto, constando da mesma, os elementos essenciais à punição do recorrente, assim não se verificando da mesma, também nesta parte, qualquer nulidade;
7. Por outro lado, constam referidos, nessa decisão, os pontos respetivos, dos quais resulta claro e expresso, qual o ilícito de mera ordenação social, imputado ao arguido, na respetiva parte III, em “Decisão”, parte composta por quatro pontos, aí constando fundamentos de facto e de direito, e concluindo o Comando Distrital de Leiria da Polícia de Segurança Pública, pela aplicação da coima respetiva, em conformidade legal, na sequência da imputada contraordenação, prevista e punida nos termos das normas legais aí mencionadas;
8. Atento o disposto no artigo, 106.º, n.º 1, do “Regime Jurídico das Armas e Munições”, aprovado pela Lei nº. 5/2006, de 23/02, a instrução dos processos de contraordenação compete à Polícia de Segurança Pública, sendo que, no caso “sub judice”, tendo sido extraída a competente certidão da sentença proferida no identificado processo judicial, o processo contraordenacional iniciou-se nos termos do artigo 38.º, nº. 2, do Decreto-Lei nº. 433/82, de 27/10, não existindo, assim, qualquer impedimento legal a que a autoridade competente, no caso, a Polícia de Segurança Pública, proceda à instrução do competente processo de contraordenação, como procedeu, e proferindo esta, a respetiva decisão administrativa, tal como sucedeu;
9. O recorrente não foi julgado criminalmente pelos factos em apreço, no caso “sub judice”, sendo que tais factos, em sede de processo-crime, não chegaram a ser valorados e qualificados, em sede de direito de mera ordenação social, em seja, como integrantes da prática de ilícito contraordenacional, aquando da referida decisão judicial, proferida no âmbito do identificado processo nº. 163/16.3JALRA, pelo que não se verifica, logicamente, qualquer violação do princípio da proibição “ne bis in idem”;
10. Como resulta da matéria assente como provada, o recorrente, de forma premeditada, fez uso da sua arma de fogo de defesa pessoal, fazendo-se acompanhar da mesma, junto ao corpo, primeiro, de forma oculta e, após, empunhou-a, apontou-a para o ar, sem que nada o justificasse e realizou um disparo, com o propósito de o intimidar, e numa zona habitacional;
11. Assim, e como resulta claro dos fundamentos da respetiva decisão administrativa e consta muito bem explicado, na douta sentença, proferida, a decisão de cassação da referida licença de uso e porte de arma de defesa pessoal encontra-se devidamente fundamentada, não se tratando, obviamente, de funcionamento automático, na cassação da mesma licença, mas da aplicação da lei, ou seja, do disposto no artigo 108º., nº. 1, alínea f), da Lei nº. 5/2006, de 23/02, aplicação devidamente fundada nos factos praticados pelo recorrente, assentes como provados;
12. Pelo que tal decisão administrativa, de cassação da licença de uso e porte de arma de defesa pessoal, de que é titular o recorrente, mostra-se devidamente fundamentada, de facto e de direito, não padecendo, claramente, da invocada nulidade ou de qualquer outro vício;
13. Em suma, não assiste qualquer razão ao recorrente, em nenhuma das questões suscitadas e dos vícios alegados, atenta a decisão administrativa, proferida pela Polícia de Segurança Pública, que vem repetir os argumentos que invocou, em sede do respetivo recurso de impugnação judicial, fazendo “tábua rasa” da douta sentença proferida, já que tal decisão mostra-se devidamente fundamentada, de facto e de direito, não padecendo de qualquer nulidade ou de qualquer outro vício, encontrando-se, assim, em conformidade com as normas legais aplicáveis;
14. Nestes termos, só pode concluir-se, que a douta sentença, proferida, analisou e ponderou, todas as questões suscitadas pelo recorrente, tendo decidido, e bem, de forma clara e muito bem fundamentada, de facto e de direito, e
15. Daí que a mesma sentença não padeça de qualquer vício ou nulidade, e não tendo sido violados, por via mesma, quaisquer princípios ou normas legais, inclusive, os invocados pelo recorrente, pelo que deve ser mantida, na íntegra. Nesta conformidade, e pugnando-se pela improcedência do recurso interposto pelo recorrente, deverá manter-se a sentença recorrida. Vossas Excelências, porém, e como sempre, farão JUSTIÇA!
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Admitido, em 13-04-2018, o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 17/05/2018, emitiu o seguinte parecer:

“No que respeita ao mérito do recurso acompanha-se, em termos gerais, a resposta apresentada pela Exm.a MMP no Juízo Local Criminal de Leiria, comarca de Leiria.
Com efeito, no que se reporta à menção às provas, carece o recorrente de razão, já que os elementos probatórios, referentes à prova testemunhal e à audição do recorrente sobre os factos, constam da aludida certidão para a qual a decisão administrativa remete, não sendo necessária a sua especificação porquanto é perceptível o que, em termos de diligências de prova, da mesma consta. Sendo que ainda foi ouvida e mencionado na decisão o que declarou a testemunha apresentada pelo recorrente, constando assim da mesma, por remissão, a base probatória que lhe serviu de suporte, que aquele bem percebeu, não ocorrendo assim a nulidade invocada.
Quanto ao dolo a decisão administrativa diz algo mais do que o recorrente refere, pois afirma que o recorrente exibiu a arma e acto contínuo efectuou um disparo, concluindo que levou aquela com a intenção de lhe dar uso e com o fim de ameaçar o denunciante, o que veio a concretizar-se.
Ou seja, esclarece-se em que termos o uso da arma ocorreu fora das condições permitidas, que se reforça no item culpa na determinação da medida da coima, daí se concluindo ter havido voluntariedade e conhecimento na actuação, integrante de uma conduta contra-ordenacionalmente punível, o que é suficiente para configurar e afirmar o dolo, também aqui não tendo razão o recorrente.
De igual modo no início do ponto II especifica-se a contra-ordenação imputada, não tendo pois fundamento a não indicação deste ilícito. E, quanto à competência, arquivado que se encontra o processo crime e subsistindo o ilícito contra-ordenacional, a competência caberá, necessariamente, à autoridade administrativa, pois desapareceu a razão que justificava a alteração daquela, como se extraí da leitura do art.° 38° do RGCO, não havendo preceito legal que imponha, nesta fase, que seja outra entidade, designadamente o tribunal que julgou o ilícito penal, a decidir o ilícito em causa nos presentes autos, já que a norma aludida só opera enquanto ambos os processos se encontrarem pendentes, como resulta claramente do n.°2 do preceito aludido e ainda do art.° 40°, n.°2 do mesmo diploma, não podendo assim proceder também a alegada excepção da incompetência.
Finalmente, no que se reporta à cassação, pese embora a aplicação de tal sanção surja isolada no dispositivo final, o que ocorre é que no texto da decisão se mencionam os elementos que a justificam, como sucede na menção ao sancionamento e nas referências à violação de normas de conduta dos portadores de arma e uso para fim não autorizado no item culpa, os quais dão fundamento à decisão de cassação atento o disposto no art.° 108°, n.º l f) da Lei das Armas.
É evidente que não pode deixar de concordar-se com a linearidade, que não insuficiência, fundamentadora de todo o decidido pela autoridade administrativa que a decisão recorrida também refere. Mas, tal como nesta se afirma, não é necessário que aquela seja igual a uma sentença, bastando-se com os requisitos mínimos consignados no art.° 58° no RGCO, o que na situação ocorre, como naquela se afirma e se referiu, não ocorrendo pois as nulidades invocadas e devendo manter-se o decidido.
Pelo que sou de parecer que o recurso não merece provimento.
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Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo o recorrente exercido o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Decisão Recorrida:

I. Relatório
1.1. (…) veio impugnar judicialmente a decisão administrativa que foi proferida pelo Comando Distrital de Leiria da Policia de Segurança Pública (doravante designada pelo acrónimo CDLPSP), datada de 20 de Novembro de 2017, que o condenou numa coima de 500,00 €, acrescido de custas administrativas de 51,00 €, com a consequente perda da sua arma de fogo e demais objetos apreendidos e cassação da sua licença de uso e porte de arma de fogo (artigos 39.º n.º 1 e 2, al. c), 98.º, e 108.º n.º 1 al. f) da Lei 5/2006, de 23.02, e 21.º, 22.º e 24.º do DL 433/82 e 109.º do Código Penal).
Apresentou as seguintes conclusões recursivas:
(i) ausência de indicação dos meios de prova valorados (ponto 1 a 4 das concls);
(ii) do dispositivo da decisão não consta a condenação do recorrente em qualquer coima pela infração de uma concreta infração (ponto 5 e 7);
(iii) não concretização do elemento subjectivo da contraordenação, não sendo esta punível por negligência (ponto 6);
(iv) a autoridade administrativa é incompetente para proferir aquela decisão;
(v) ausência de fundamentação da decisão de cassação da licença de uso e porte de arma.

Junta procuração forense, indica prova e termina pedindo que se declare que a entidade administrativa é destituída de competência para processar a alegada infração, declarando a impugnada decisão nula ou assim não entendendo declarar-se que o arguido não praticou os factos de que se mostra acusado.
1.2. Remetido o processo ao Ministério Público (fls.106), este veio a introduzi-lo em juízo, indicando prova.
1.3. Admitida a impugnação judicial (fls.109), foi designada dia e hora para a realização da audiência de discussão e julgamento, que teve lugar nos termos constantes da respetiva ata, que aqui se dá por reproduzida, após a liquidação da respectiva taxa de justiça (fls.114)
1.4. O presente Tribunal Judicial (Juízo Local Criminal da Comarca de Leiria) é o competente para a apreciação desta impugnação judicial, considerando o local onde alegadamente a contraordenação – Pisões, Leiria- (art. 61.º n.º 1 do RGCO) teve lugar, mantendo-se a instância válida e regular.
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II. Fundamentação da matéria de facto
2.1. Factos provados
2.1.1. Correu termos no Juízo Local Criminal de Alcobaça o processo comum singular com o n.º 163/16.3JALRA, em que o recorrente foi ali arguido e o queixoso era (…), em que foi proferida sentença datada de 13 de Junho de 2017, transitada em julgado a 14 de Julho de 2017, pelo qual o arguido foi absolvido da prática de um crime de ameaça agravada na pessoa do queixoso e de um crime de detenção arma proibida.
2.1.2. No dia 6 de Abril de 2016, pelas 13h00m, (…) deslocou-se em viatura própria à residência de (…).
2.1.3. Aí chegado, saiu da viatura que conduzia, (…) foi ao seu encontro.
2.1.4. Na via pública, o recorrente acusou (…) de lhe ter furtado seis mil euros de alumínios, o que este negou.
2.1.5. Nesse seguimento o recorrente exibe a arma de fogo que trazia à cintura, e,
2.1.6. A dada altura empunhou um revólver de ação dupla com cano de alma estriada com o comprimento de 8 cm, da marca Smith & Wesson, com as inscrições no cano de 32 Mag e do lado esquerdo Smith & Wesson com platinas anatómicas em madeira de cor castanha com o n.º de série (…), à qual corresponde o Livrete n.º (…), de sua propriedade, em razoável estado de conservação e de funcionamento e apontando-a para o ar, sem que nada o justificasse, e realizou um disparo.
2.1.7. Abandonando o local na viatura que se fazia transportar.
2.1.8. Ao proceder da mencionada forma o recorrente tinha conhecimento das disposições legais que regulavam o uso e porte de arma de fogo de defesa pessoal e que estava obrigado a não empunhar e a usar aquela arma de fogo fora dos casos excepcionais tipificados no artigo 42.º n.º 1 e 2 da Lei 5/2006, de 23.02, bem consciente de que incorria em responsabilidade contraordenacional.
2.1.9. O recorrente é titular da licença de uso e porte de arma de defesa tipo B1 com o n.º (…), emitida a (…) e válida até (…).
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2.2. Factos não provados
2.2.1. O recorrente tivesse exibido a mencionada arma de fogo e depois deflagrado uma munição para o ar em virtude de (…) o ter tentado agredir.
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2.3. Motivação
2.3.1. Nos termos preceituados no artigo 127.º do Código de Processo Penal “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, não estando o julgador subordinado a regras rígidas de prova tarifada. A convicção judicial mostra-se norteada por imperativos de busca da verdade material (art. 340.º do Código de Processo Penal), num juízo que não poderá configurar arbitrariedade, devendo apresentar-se racional, ponderado, crítico, e, nessa decorrência, sindicável – artigo 41.º n.º 1 do RGCO que manda aplicar subsidiariamente o Código de Processo Penal.
*
2.3.2. No que se prende com os factos consignados na decisão administrativa a respeito do recorrente ter «proferido ameaças de morte», «exibindo em tom ameaçador e ostensivamente a sua arma de fogo» tendo em vista «reforçar as ameaças», os mesmos não foram consignados como provados ou não provados pelas seguintes ordens de razão.
A primeira, que reputo de essencial, é a de que só podem ser consignados como provados factos (percepções da realidade) e as referidas expressões e frases comportam conceitos indeterminados que se mostram despidos de qualquer concretização factual.
As ameaças de morte alegadamente proferidas pelo recorrente não surgem concretizadas – que palavras é que dirigiu? ou actos que cometeu? – e a exibição adjectivada de ostensiva e ameaçadora de uma arma de fogo pela pessoa do recorrente é também ela uma afirmação manifestamente conclusiva e não um facto.
Tal conclusão teria de ser retirada de outros factos, essenciais ou instrumentais, alegados e apurados, e não da sua pura afirmação. Quanto ao alegado acto de reforçar a ameaça, claro está que não se fazendo prova de qual tenha sido a ameaça proferida, não pode em termos lógicos consignar-se o reforço de uma inexistência.
Razão pela qual tais frases constantes da decisão administrativa impugnada não foram reconduzidas aos factos dados como provados.
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2.3.3. Para dar como provados os factos acima consignados como provados, o Tribunal levou em consideração os elementos documentais constantes dos autos, como seja: auto de apreensão, de fls. 5 a 9; certidão extraída do processo n.º 163/16.3JALRA, de fls.10 a 60, e certidão da sentença ali proferida, de fls.126 a 141 e a decisão administrativa, de fls.80-3.
Foram ainda valorados os depoimentos das testemunhas, (…), queixoso naquele processo-crime, e de (…), amigo do arguido.
Concretizando.
O recorrente não prestou declarações sobre os factos aqui em apreço, apesar de ter marcado presença em audiência de discussão e julgamento, pelo que a dinâmica dos factos que vinha narrada na decisão administrativa provém, em termos essenciais, da inquirição da testemunha (…), que a par com o arguido seria o único com conhecimento direto dos factos sobre apreciação.
No seu depoimento, nem sempre totalmente distanciado - porque numa circunstância emotiva verbalizou que discordava da decisão proferida no processo-crime e tentou entabular conversação com o recorrente à margem do seu depoimento. Compondo-se de seguida - a testemunha relatou os acontecimentos de uma forma que julgámos plausível porque por si vivenciada e em termos similares ao apuramento de facto realizada no processo comum singular n.º (…).
De todo o modo, a mencionada testemunha não concretizou as ameaças que teriam sido verbalizadas pelo recorrente, sedimentando a nossa convicção de que as mesmas não teriam de facto tido lugar, porque de outra forma seriam lembradas pela testemunha e não o foram. Não obstante, toda a actuação do recorrente que por si foi descrita e dada como provado no processo-crime e o seu posicionamento perante a testemunha é idóneo, em termos objetivos, a induzir no espírito da testemunha temor de acordo com as regras da experiência comum.
Vejamos.
O recorrente munido de arma de fogo foi ter com a referida testemunha para o acusar de lhe ter furtado alumínios no valor de 6.000,00 €. Acusação que aquele declinou veementemente, tendo nesse seguimento o recorrente exibido a arma de fogo que trazia à cintura e que até então estaria oculta. Comportamento que que não pode ter outra interpretação que não a de que naquele momento pretendeu dar a conhecer ao seu interlocutor que estaria armado, e este facto é de acordo com as regras da experiência comum idóneo a intimidar aquele interlocutor.
Resultou ainda daquele depoimento que os mesmos mantiveram uma distância entre si e que nunca se tocaram fisicamente.
Não é minimamente plausível a alegação de que nestas circunstâncias tenha sido a testemunha em causa a galvanizar os seus ímpetos no sentido de tentar agredir ou ameaçar o recorrente munido de arma de fogo.
Antes nos parecendo, e foi isso que o depoente declarou, que se tentou recolher para sua casa com medo de poder vir a ser almejado.
Altura em que o recorrente, sem qualquer razão ou justificação efectua um disparo com aquela arma de fogo para o ar.
É certo que também foi apresentada uma testemunha, (…), não indicada como testemunha no processo-crime, que declarou ter assistido há cerca de dois ou três anos um episódio à porta de casa da testemunha (…), em que este teria investido (a correr) sobre uma outra pessoa, do sexo masculino, que ali se encontrava, e que em resposta esta teria dado um tiro para o ar para o afugentar. A referida testemunha não nos mereceu qualquer credibilidade pela manifesta falta de concretização das circunstâncias de tempo e lugar em que se encontraria por referência aos factos que descreveu (v.g. no interior de uma viatura parada?); intitulando-se amigo do recorrente não o contactou de seguida aos factos por si alegadamente percepcionados, e muito menos o reconheceu naquela descrita circunstância; o que nos faz colocar as maiores reservas sobre o que teria de facto visto e/ou o que poderia ver; esclareceu que só há cerca de meio ano é que teria falado com o recorrente sobre o que alegadamente teria visto, o que, atento os factos em questão e o seu relacionamento, surge de igual forma muito pouco convincente; o seu comportamento posterior, de acordo com as suas palavras, é igualmente incomum, uma vez que não chamou as autoridades públicas ao local; revelou ostensiva imparcialidade quando afirmou que o recorrente munido de uma arma de fogo, perante outra pessoa desarmada (que aquele tinha ido acusar de crimes de furto, à margem das autoridades públicas), é que estaria receoso pela sua integridade física.
Sem nunca o equacionar como potencial agressor, não obstante não ter ouvido as palavras que aqueles trocaram, segundo esclareceu.
Perante o que se vem dizendo, e não obstante o recorrente ser titular de licença de uso e porte de arma que legitima a detenção daquela arma de defesa pessoal nas referidas circunstâncias, os factos provados evidenciam que o recorrente fez uso abusivo e como tal proibido daquela arma de fogo com vista a intimidar de facto uma pessoa que acusou de ter furtado bens da sua propriedade, que decidiu confrontar e acusar à laia das forças de autoridade policial e com recurso a uma forma de intimidação decorrente do uso que fez da sua arma de fogo e significado de intimidação que tem para qualquer pessoa colocada naquela posição.
A sua conduta não se mostra justificada por não se demonstrar que tenha sido objeto de qualquer tentativa de agressão, naquela circunstância, por parte de (…), de que tivesse de se defender efectivamente.
Outrossim apresenta-se como mais credível e consentâneo com a dinâmica dos factos em discussão que o mesmo tenha criado e potenciado o confronto de facto com aquela testemunha para poder fazer uso indevido daquela arma de fogo (fora das circunstâncias previstas no art. 42.º da Lei n.º 5/2006, de 23.02) e assim intimidá-lo e dissuadi-lo de novas investidas sobre os bens de sua propriedade.
*
III.
Enquadramento jurídico dos factos
3.1. Constitui jurisprudência constante e pacífica dos nossos tribunais que o âmbito dos recursos, aqui devidamente adoptado ao processo contraordenacional, é delimitado pelas conclusões que são formuladas na motivação, sem prejuízo de outras questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2, 403.º, 410.º, n.º 2 e 412.º, todos do Código de Processo Penal e 59.º, n.º 2 do RGCO; vide, entre outros, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19.10.1995, relatado pelo Juiz Conselheiro Sá Nogueira, publicado em DR, I-S, a 28.12.1995.
Assim, circunscrevendo a nossa apreciação ao teor das conclusões formuladas em sede de impugnação judicial (recurso), concluímos que o recorrente não impugna em termos objetivos a factualidade que foi dada como provada na decisão administrativa com que não se conforma, antes invocando factos adicionais, quando alega improcedentemente que o disparo com a arma de fogo foi realizado para defesa pessoal do recorrente de uma agressão iminente, ou ausência de motivação para sustentar a pena acessória de cassação da licença de uso e porte de arma.
Vejamos.
*
3.2. A título de enquadramento o ilícito de mera ordenação social é regulado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, diploma legal alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro e Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro.
Em princípio o processamento das contra-ordenações e a aplicação de coimas e de sanções acessórias compete às autoridades administrativas, conforme estatui o art.33.º do RGCO.
Nos termos do disposto nos artigos 59.º e ss deste diploma legal as decisões das autoridades administrativas que apliquem coimas ou sanções acessórias são susceptíveis de impugnação judicial, por via de recurso apresentado na autoridade administrativa recorrida e dirigido ao Tribunal Judicial, em cuja área territorial se tiver consumado a infracção.
Prescreve o artigo 1.º do RGCO que constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima. Por outro lado, no artigo 8.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, estabelece-se que só é punível o facto praticado com dolo ou nos casos especialmente previstos na lei com negligência, ficando, porém, ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais, conforme n.º 3 do mesmo preceito. Conclui-se, portanto, que a negligência em geral não é punida, só havendo punição quando aquela estiver expressamente prevista, à semelhança do que sucede, aliás, no direito penal (art. 13.º do Código Penal).
Nesta medida, para que estejamos perante um ilícito contraordenacional torna-se necessário: (i) a ocorrência de um facto que radique na vontade do agente quer por ação, como por omissão, (ii) a existência (prévia ao facto) de um tipo de ilícito contraordenacional que comine com coima um determinado comportamento; (iii) a verificação dos elementos objetivos e subjetivos da ilicitude e da culpa do agente.
Feito este sumário enquadramento, cumpre proceder à análise da questão colocada em sede de recurso.
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3.3. A coima e sanções acessórias em que o recorrente vem condenado têm assento na Lei n.º 5/2006, de 23.02, com as últimas alterações introduzidas pela Lei n.º 50/2013, de 24.07, doravante designada por RJLAM (Regime Jurídico da Lei das Armas e Munições), ao prescrever o seguinte com relevo para o caso dos autos.
Nos termos do artigo 39.º n.º 1 do RJLAM os portadores, detentores e proprietários de qualquer arma obrigam-se a cumprir as disposições legais constantes da presente lei e seus regulamentos, bem como as normas regulamentares de qualquer natureza relativas ao porte de armas no interior de edifícios públicos, e as indicações das autoridades competentes relativas à detenção, guarda, transporte, uso e porte das mesmas.
Diz-nos o n.º 2 deste normativo que os portadores, os detentores e os proprietários de armas estão, nomeadamente, obrigados a:
(…)
c) Não exibir ou empunhar armas sem que exista manifesta justificação para tal;
Por sua vez o artigo 42.º n.º 1 daquele diploma legal, a respeito do uso de arma de fogo, preceitua que se considera uso excepcional de arma de fogo a sua utilização efectiva nas seguintes circunstâncias:
a) Como último meio de defesa, para fazer cessar ou repelir uma agressão actual e ilícita dirigida contra o próprio ou terceiros, quando exista perigo iminente de morte ou ofensa grave à integridade física e quando essa defesa não possa ser garantida por agentes da autoridade do Estado, devendo o disparo ser precedido de advertência verbal ou de disparo de advertência e em caso algum podendo visar zona letal do corpo humano;
b) Como último meio de defesa, para fazer cessar ou repelir uma agressão actual e ilícita dirigida contra o património do próprio ou de terceiro e quando essa defesa não possa ser garantida por agentes da autoridade do Estado, devendo os disparos ser exclusivamente de advertência.
Prescreve o art.93.º n.º 1 do RJLAM que pode ser aplicada a medida de segurança de cassação de licença de detenção, uso e porte de armas ou de alvará a quem:
a) For condenado pela prática de crime previsto na presente lei, pela prática de qualquer um dos crimes referidos no n.º 2 do artigo 14.º ou por crime relacionado com armas de fogo ou cometido com violência contra pessoas ou bens;
b) For absolvido da prática dos crimes referidos na alínea anterior apenas por inimputabilidade, desde que a personalidade do agente e o facto praticado façam recear o cometimento de novos crimes que envolvam tais armas ou o agente se revele inapto para a detenção uso e porte das mesmas. A medida tem nos termos do n.º 2 a duração mínima de 2 e máxima de 10 anos.
Já o art. 94.º n.º 1 do RJLAM, a respeito da perda de arma, preceitua que sem prejuízo de ser declarada perdida a favor do Estado nos termos gerais, qualquer arma entregue na PSP, por força da aplicação ao condenado de uma pena acessória ou medida de segurança, pode ser vendida a quem reúna condições para as possuir.
Por fim, o art. 98.º do RJLAM prevê que quem, sendo titular de licença, detiver, usar ou for portador, transportar arma fora das condições legais, afectar arma a actividade diversa da autorizada pelo director nacional da PSP ou em violação das normas de conduta previstas na presente lei é punido com uma coima de (euro) 400 a (euro) 4000.
*
3.4. Feito este enquadramento sumário, vejamos as concretas questões colocadas.
3.4.1.
Da ausência de indicação dos meios de prova valorados (ponto 1 a 4 das conclusões):
No ponto I da sua motivação de recurso o recorrente insurge-se contra a circunstância de o processo contraordenacional se mostrar fundado numa certidão judicial extraída do inquérito que subjaz ao processo comum singular n.º 163/16.3JALRA, onde foi constituído arguido e viria mais tarde a ser a final absolvido de todas as incriminações deduzidas contra si.
Não assiste qualquer razão ao recorrente, desde já adiantamos.
Os presentes autos decorrem de uma participação à Divisão de Armas da Polícia de Segurança Pública, conforme decorre do despacho proferido pelo magistrado titular do inquérito com o n.º 163/16.3JALRA – cfr fls.48 –, tendo em vista a instauração do respectivo procedimento contraordenacional.
A mencionada participação é acompanhada de cópia do inquérito realizado naquele processo, cuja investigação ficou a cargo da Policia Judiciária, em virtude de se investigar a prática de crime cometido com arma de fogo, e é integrado pelas inquirições realizadas e perícias legais à arma de fogo e que sustentam os termos deste processo.
Se critica lhe pudesse ser feita seria no sentido de que este processo contraordenacional se mostra instruído por excesso e segundo padrões de um processo criminal.
Na mencionada certidão constam as declarações prestadas pelo recorrente, na qualidade de arguido, e do queixoso, sendo que tais elementos de prova podem e devem ser usadas pela entidade instrutora do processo contraordenacional.
A este respeito vejam-se as declarações prestadas pelo recorrente a respeito do sucedido (fls.20). Após confirmar que havia acusado o (…) de lhe furtar alumínios de sua propriedade, acusação que aquele negou. Referiu, e passamos a citar, que “(…) nessa altura perdeu o controlo da situação, pegou num revolver (…), e empunhando o mesmo desferiu um disparo para o ar (…) pedindo-lhe para que parasse de fazer esses furtos.” “(…)
Fez o disparo para o ar e em seguida foi-se embora.” “Está arrependido deste seu comportamento mas com o mesmo apenas só pretendeu assustar este individuo para que parasse de assaltar a sua empresa, pois os prejuízos ao longo destes tempos têm sido muitos. (…)”
Em momento algum daquelas suas declarações invocou que o suspeito o tentasse agredir, apenas o fez após a sua audição em sede de defesa escrita e indicando testemunha sem conhecimento ou razão de ciência sobre os factos em questão.
Existiam assim elementos de prova que avalisavam a entidade administrativa a proferir uma decisão nos moldes em que o fez, nem que não seja em virtude das próprias declarações do recorrente no âmbito do mencionado processo-crime, pelo que não se almeja como é que aquela entidade administrativa violou o princípio de presunção de inocência do arguido (artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa).
Por outro lado a decisão administrativa, ainda que de uma forma muito sumária, no segmento referente aos factos provados, esclarece que os mesmos foram dados como provados com base nos elementos de prova contidos na mencionada certidão, fazendo menção ao elemento subjetivo, e no ponto anterior – da análise da defesa – consigna ainda que a testemunha indicada pela defesa e esta última não tiveram relevância ou infirmam aqueles outros meios de prova.
Está portanto a decisão em crise devidamente fundamentada para efeitos do art. 58.º do RGCO.
*
3.4.2. Do dispositivo da decisão não consta a condenação do recorrente em qualquer coima pela infração de uma concreta infração (ponto 5 e 7);
O ponto III da decisão administrativa, intitulada de Decisão, é composto por 4 pontos, o primeiro dos quais consignando que por via daquela decisão e fundamentos de facto e de direito o Comando Distrital de Leiria da PSP aplica ao recorrente, arguido, “uma coima no valor de 500,00 € correspondente ao valor mínimo aplicável (€400,00 €), aumentado de 100,00 €, acrescido de 51 € (cinquenta e um euros) correspondente a custas processuais, o que perfaz o total de 551,0 € (quinhentos e cinquenta e um euros).”
Da mera leitura do trecho que se transcreve resulta não assistir qualquer razão ao recorrente.
*
3.4.3. Não concretização do elemento subjectivo da contraordenação, não sendo esta punível por negligência (ponto 6);
Este ponto inculca na acusação de que a decisão da autoridade administrativa não contêm todos os elementos que dela necessariamente deveriam constar, decorrentes do disposto no art. 58.º, nº 1 do RGCO, nomeadamente por dela não constarem factos concretos de onde se possa concluir que o arguido recorrente tenha agido com culpa, portanto, factos integradores do elemento subjectivo da infracção.
Vejamos.
De acordo com aquele diploma legal compete à autoridade administrativa proceder à investigação e instrução do processo (art. 54.º, n.º 2 do RGCO), devendo, no decurso da instrução, dar cumprimento ao disposto no art. 50.º do RGCO, assegurando o direito de audição e defesa do arguido, como de resto sucedeu no caso dos autos.
A apresentação dos autos de contraordenação ao juiz (portanto, contendo já a decisão administrativa proferida nos termos do art. 58.º), que equivale à acusação, como expressamente o dispõe o art. 62.º, n.º 1 do RGCO, no seguimento da sua impugnação judicial, fixa o objecto do processo, mas em termos algo diversos do que acontece no processo criminal. Com efeito, impugnada judicialmente a decisão de autoridade administrativa em processo de contraordenação, o tribunal da primeira instância conhece plenamente de facto e de direito, não estando vinculado aos factos tidos como provados na decisão impugnada.
Como vimos, nos termos do art. 8.º, n.º 1, do RGCO, só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência, quando prevista, o que quer significar que o legislador não descurou o princípio da culpa como fundamento da imputação contra-ordenacional.
O elemento subjectivo, na imputação a título de dolo, pressupõe a indicação de que a actuação do agente foi livre, deliberada e conscientemente; e na imputação negligente, pressupõe a indicação que o agente actuou sem o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz, actuando sem se conformar com a realização do facto, apesar de o ter representado como possível, ou não chegando sequer a representar a possibilidade da sua realização.
A respeito do grau de exigência relativamente a estas decisões contraordenacionais comungamos da posição há muita expressa no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03.07.2012, disponível para consulta em www.dgsi.pt, de acordo com o qual numa “(…) fase administrativa, sujeita às características de celeridade e simplicidade processual, [pelo que] o dever de fundamentação deverá assumir uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal. Por seu turno, tal como advoga António Beça Pereira, in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas Anotado, 6.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2005, pg. 109 e António Leones Dantas, in Revista do Ministério Público, n.º 61, pgs. 118 e seguintes, também não se deve recorrer ao disposto no artigo 283.º, n.º3, al. b), do Código de Processo Penal, (requisitos da acusação) visto que, se não for interposto recurso da decisão condenatória, esta não chega, sequer, a assumir a natureza de acusação. (…)
O que deve resultar claro para a arguida são as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação por forma a que a mesma possa fazer um juízo de oportunidade sobre a conveniência da apresentação da impugnação judicial e, posteriormente, caso tal aconteça, permitir ao Tribunal conhecer, sem se substituir na investigação do ilícito àquela entidade administrativa, do processo lógico da formação da decisão.
Tal fundamentação será suficiente desde que a entidade administrativa justifique as razões pelas quais, atentos os factos descritos, as provas obtidas e as normas violadas, é aplicada a sanção à arguida, de modo que esta, após uma leitura da decisão, de acordo com os critérios de normalidade de entendimento, perceba as razões pelas quais é condenada e, consequentemente, possa impugnar tais fundamentos” - proc. nº 1337/11.9TBVNO.C1.
Na doutrina com posição convergente vide ainda, pela sua actualidade, AUGUSTO SANTOS SILVA, Direito das Contra-ordenações, Almedina, Fevereiro de 2018, pág.185 e ss.
À contraluz do mencionado critério temos que a decisão administrativa justifica as razões pelas quais, atentos os factos que nela são descritos, as provas obtidas e as normas violadas; é aplicada uma coima ao arguido, de modo que, após uma leitura da decisão, de acordo com critérios de normalidade de entendimento por parte do seu destinatário, sejam perceptíveis as razões da sua condenação. Quais sejam? As que de forma clara o recorrente explicou em sede de inquérito e que supra transcrevemos.
Não obstante há que reconhecer que os elementos objetivos e subjetivos mostram-se indicados de forma cindida no ponto I daquela decisão e ao longo do seu ponto II, mas estão lá todos os elementos essenciais à punição do recorrente em coima, que este, tão bem, pode conhecer. Improcede a mencionada questão.
*
(iv) A autoridade administrativa é incompetente para proferir aquela decisão.
O recorrente afirma que a autoridade administrativa era incompetente para decidir esta contra-ordenação à luz do regime previsto no art. 38.º do RGCO, como tal a decisão é nula em detrimento da sua apreciação no respectivo processo-crime em que o recorrente, ali arguido, viria a ser absolvido.
Diz-nos o art. 106.º n.º 1 da RJLAM que a instrução dos processos de contra-ordenação no âmbito daquele diploma legal compete à PSP, e o seu n.º 2 que a aplicação das respectivas coimas compete ao director nacional, que pode delegar essa competência.
Por sua vez o art. 38.º do RGCO estatui que:
“1 - Quando se verifique concurso de crime e contra-ordenação, ou quando, pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a título de crime e outra a título de contra-ordenação, o processamento da contraordenação cabe às autoridades competentes para o processo criminal.
2 - Se estiver pendente um processo na autoridade administrativa, devem os autos ser remetidos à autoridade competente nos termos do número anterior.
3 - Quando, nos casos previstos nos n.ºs 1 e 2, o Ministério Público arquivar o processo criminal mas entender que subsiste a responsabilidade pela contra-ordenação, remeterá o processo à autoridade administrativa competente.
4 - A decisão do Ministério Público sobre se um facto deve ou não ser processado como crime vincula as autoridades administrativas.”
A propósito deste normativo e partindo do disposto nos artigos 20.º, 82.º, n.º 1 e 90.º, n.º 2 do RGCO sustenta-se que o citado art. 38.º, n.º 1 abrange apenas as situações de concurso ideal heterogéneo, resultante de o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação – neste sentido ANTÓNIO BEÇA PEREIRA no seu “Regime Geral das ContraOrdenações” (2005), pag. 82 e ss.; A. OLIVEIRA MENDES e J. dos SANTOS CABRAL em “Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas” (2004), p. 101 e ss.
Porém, existem outros autores que sustentam a extensão deste segmento normativo às situações de concurso real entre ilícito criminal e ilícito contra-ordenacional, porquanto a lei não faz qualquer distinção entre um concurso e outro, devendo porém aplicarem-se as regras de conexão previstas no Código Processo Penal – neste sentido SIMA SANTOS e LOPES DE SOUSA, em “Anotações ao Regime Geral das Contra-Ordenações” (2001), p. 255 e ss e AUGUSTO SANTOS SILVA, ob cit, pág. 216.
Estamos, com o devido respeito por opinião diversa, com estes últimos autores, sendo que para o caso dos presentes autos pouco relevo teria a discussão em virtude de estarmos perante um concurso ideal heterogéneo, face aos bens protegidos com a contraordenação e no mencionado processo-crime.
Revertendo ao caso aqui em apreço e de acordo com o n.º 1 do artigo 38.º do RGCO, assiste razão ao recorrente quando afirma que seria originariamente competente para o conhecimento desta infração e sua ulterior tramitação processual o dito processo criminal.
Mas estamos perante um caso classificado por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE como de competência originária do Ministério Público – cfr. Comentário do Regime Geral das ContraOrdenações, p. 132 e ss.
Não tendo sido esse o encaminhamento processual do processo quid iuris? Nenhuma. Passamos a explicar. A Magistratura (Ministério Público) que era titular daquele processo de inquérito declinou aquela regra de competência por conexão em detrimento da autoridade administrativa, com competência originária para o procedimento administrativo, não fosse a pendência de um processo-crime, ao mandar extrair certidão do processado e remeter para sua autuação como processo contraordenacional.
Ficará precludida a competência originária? Julgamos que não.
Nos termos do art. 54.º n.º 1 do RGCO o processo contra-ordenacional iniciar-se-á oficiosamente, mediante participação das autoridades policiais ou fiscalizadoras ou ainda mediante denúncia particular, e nos termos do n.º 2 a autoridade administrativa procederá à sua investigação e instrução, finda a qual arquivará o processo ou aplicará uma coima.
Ressalvando o respeito por opinião diversa, a circunstância de nos encontrarmos perante um caso de concurso efectivo ideal heterogéneo – os bens protegidos pelo delito pelo qual o recorrente respondeu (crime de ameaça agravada) no processo-crime é diverso da natureza da contra-ordenação e das sanções acessórias em causa neste processo (Trata-se de um delito de perigo abstracto porque a realização da contra-ordenação dispensa a efectiva lesão dos bens jurídicos que tutela) – consente o conhecimento desta infração por parte da autoridade administrativa. Como vimos, só quando a decisão da autoridade administrativa se torna definitiva ou quando transita em julgado a decisão judicial que aprecie o (mesmo) facto como contraordenação ou como crime, é que se preclude a possibilidade de reapreciação de tal facto como contra-ordenação.
Acontece porém que da certidão junta ao processo contendo a sentença proferida no processo 163/16.3JALRA podemos extrair a narrativa que constaria da acusação ali foi deduzida e concluir que não foram imputados ao recorrente, ali arguido, quaisquer contraordenações, mas outrossim um crime de ameaça agravada e um crime de detenção de arma proibida do qual foi absolvido.
A similitude dos factos prende-se tão só com a detenção de uma e a mesma arma que aqui está em causa.
Não tendo a respeito dos factos dados como provados procedido a um qualquer juízo em concreto de censura sobre a sua relevância contraordenacional.
Mesmo que assim não tivesse acontecido, e a presente contra-ordenação tivesse sido conhecida simultaneamente no processo-crime, sobre a mesma realidade de facto recairia um duplo juízo na componente criminal e contra-ordenacional.
Tal como acontece neste caso, embora de uma forma cindida e com integral respeito pelos direitos da defesa.
Razão pela qual julgamos que não assiste neste particular razão ao recorrente.
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(v) ausência de fundamentação da decisão de cassação da licença de uso e porte de arma.
Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 243/07, de 30 de Março, consultado em www.tribunalconstitucional.pt, «“(…) não existe um direito constitucional ao uso e porte de armas, mesmo de defesa, independentemente dos condicionalismos ditados designadamente pelo interesse público em evitar os inerentes perigos, interesse que é acautelado através de autorizações de carácter administrativo condicionadas por ilações extraídas da verificação jurisdicional de comportamentos que a Lei qualifica como censuráveis.”.
Acrescentando-se que, “(…) a lei rodeia com frequência a prática de certas actividades de precauções, traduzidas em licenciamentos, em razão da perigosidade que encerram, e da necessidade de conhecimentos técnicos específicos não comuns à generalidade dos cidadãos, como é o uso de armas de fogo, ou o exercício da condução de veículos automóveis”.
E que, “(…) nesses casos, é legítimo afirmar que a licença visa excluir a ilicitude de um acto que é genericamente proibido (…)”.

Nada havendo, portanto, conclui-se “(…) de ilegítimo no estabelecimento de restrições e condicionalismos diversos à posse de armas por particulares”.». O recorrente alega que esta cassação não se mostra devidamente fundamentada o que no seu entender constituiu uma omissão que fere a decisão administrativa de nulidade.
De facto a decisão administrativa em lado algum autonomiza este segmento da sua decisão que não no ponto concreto do seu dispositivo, embora, com uma leitura um pouco mais atenta e não compartimentada se encontre uma sua fundamentação: (i) no segmento dos factos provados, quando se alude à utilização de arma de fogo para intimidar e ameaçar outrem; (ii) no terceiro parágrafo da análise fáctico-jurídica, quando se alude que o recorrente se fez munir de arma de fogo tendo em vista dar um uso diverso daquele para que se encontrava licenciada; (iii) na parte atinente à determinação da medida da coima no que se prende com a ilicitude dos factos e sua culpa ao mencionar-se ao alarme social que tais condutas são susceptíveis de gerar e potenciais riscos. Não se vê, nem o recorrente sequer indica, que factos mais deveriam constar da decisão ou até conduzir a decisão diversa que não a cassação da sua licença de uso e porte de arma, quando é a própria lei das armas que faz depender aquela cassação, de entre outras hipóteses, nos casos em que o titular de arma de fogo (licenciada) a utiliza para fins não autorizados ou diversos daqueles a que a mesma se destina ou viola as normas de conduta do portador de arma. No caso em apreço o recorrente fazendo premeditadamente uso da sua arma de fogo de defesa pessoal, fez-se acompanhar dela junto ao corpo, primeiramente de forma oculta, o que é legal, e depois colocando-a à vista do seu interlocutor, com um intento manifestamente intimidatório, perante pessoa que acusava de lhe furtar alumínios, com a concretizada intenção de fazer uso daquela arma de fogo como uma forma de intimidação, como fez, quer pelo seu injustificado manuseamento como subsequente disparo para o ar numa zona habitacional. Tudo isto à revelia das autoridades públicas, de que aquele deveria ter-se socorrido para investigar a participação daquele seu suspeito no cometimento dos crimes de furto de que se queixa, outrossim pretendendo condicionar premeditadamente a forma de actuação de outrem (suspeito) ao confrontá-lo com a sua presença física, ao dirigir-lhe acusações de cometimento de crimes, fazendo uso de arma de fogo, com vista a demovê-lo de novos ou de renovados intentos. Não obstante se mostrar formado caso julgado formal quanto aos factos dados como provados e não provados naquela sentença proferida no processo 163/16.3JALRA, a factualidade que é assente neste processo e o convencimento de que o recorrente não agiu naquelas circunstâncias em legitima defesa além de não contrariar aquela outra decisão, reconduz-nos, desde logo, de acordo com as regras da experiência comum, à conclusão de que aquela arma de fogo foi usada para fins não autorizados ou diversos daqueles a que a mesma se destina – defesa – e em violação de normas de conduta do portador de arma – ao não servir de objeto de intimidação de terceiros, com disparo, sem finalidade de repressão de qualquer perigo actual. A decisão administrativa mostra-se assim minimamente fundamentada e como tal não padece de nulidade quanto a este segmento.
*
Quanto à determinação da coima a mesma mostra-se calculada em linha com os mínimos da moldura abstracta aplicável, como vimos, sendo certo que a mesma não é questionada pelo recorrente, tal como o perdimento a favor do estado da sua arma de fogo pelo que, verificados os pressupostos objetivos e subjectivos da incriminação, a mesma é de manter nesta parte, porque compatível com a culpa do recorrente.
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V. Dispositivo
Por tudo o exposto e ao abrigo das disposições legais citadas este Tribunal Judicial julga a impugnação judicial improcedente, por não provada, e consequentemente:
5.1. Mantem a condenação do recorrente na coima de 500,00 € (quinhentos euros), acrescido de custas administrativas de 51,00 €, pela violação do disposto no artigo 39.º n.º 1 e 2 al. c) e 98.º da Lei 5/2006, de 23.02.
5.2. Mantém a declaração de perdimento da sua arma de fogo e demais objetos apreendidos a favor do estado (art. 109.º do Código Penal e 21.º, 22.º e 24.º do DL 433/82) e ainda de cassação da sua licença de uso e porte de arma de fogo (artigo 108.º n.º 1 al. f) da Lei 5/2006, de 23.02).
5.2. Condena-o ainda em taxa de justiça que fixa em 1 e ½ (uma e meia) UC e nos demais encargos com o processo (art.93.º n.º 3 do RGCO).
5.3. Deposite.
5.4. Arquive em pasta própria.
5.5. Após o trânsito em julgado: - Comunique à autoridade administrativa (art. 70.º n.º 4 do RGCO).
- Advertências (art. 108.º n.º 7, 8 e 9 do RJAM):
- A cassação da licença implica a sua entrega na PSP, acompanhada da arma ou armas que a mesma autoriza e respectivos documentos inerentes, no prazo de 15 dias após o trânsito deste despacho, sob pena de cometimento de crime de desobediência qualificada.”

III. Apreciação do Recurso:

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Assim, tendo em consideração a limitação dos poderes de cognição do tribunal de recurso no âmbito do direito de mera ordenação social, imposta pelo art. 75º, nº 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas [doravante, RGCOC], as questões a decidir, salvo verificação de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do CPP, são:
- Competência da autoridade administrativa;
- Nulidade da decisão proferida pela entidade administrativa por omissão de pronúncia ou por falta de fundamentação - prova, dolo, cassação e condenação na infracção)
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III.1 Da competência
Segundo o disposto no art. 38.º, n.º 1 do RGCOC “Quando se verifique concurso de crime e contra-ordenação, ou quando pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a título de crime e outra a título de contra-ordenação, o processamento da contra-ordenação cabe às autoridades competentes para o processo criminal”.
António Beça Pereira, no “Regime Geral das Contra-Ordenações” (2005), p. 82 e ss. e A. Oliveira Mendes e J. dos Santos Cabral em “Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas” (3ª edição), p. 107 e ss.. sustentam que o referido art. 38.º, n.º 1 abrange tão só as situações de concurso ideal heterogéneo (como está subjacente aos art. 20.º, 82.º, n.º 1 e 90.º, n.º 2 do RGCOC) resultante de o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação.
“Porém, existem outros que sustentam a extensão deste segmento normativo às situações de concurso real entre ilícito criminal e ilícito contra-ordenacional, porquanto a lei não faz qualquer distinção entre um concurso e outro, devendo porém aplicarem-se as regras de conexão previstas no Código Processo Penal – neste sentido Sima Santos e Lopes de Sousa, em “Anotações ao Regime Geral das Contra-Ordenações” (2001), p. 255 e ss. Nesta Relação, o acórdão de 2004/Jan./28, divulgado em www.dgsi.pto, decidiu igualmente que “Se, através da mesma acção ou omissão, o agente cometer simultaneamente um crime e uma contra-ordenação, o tribunal competente para conhecer do crime é-o também para conhecer da contra-ordenação” – também neste sentido o Ac. R. L. de 1990/Out./10 (recurso n.º 260873).
Partindo de uma interpretação meramente literal, teremos efectivamente de constatar que a disposição interpretada não efectua qualquer distinção entre as situações de concurso real e ideal, porquanto refere-se pura e simplesmente a “concurso de crime e contra-ordenação” - Ac Rel Porto de 19 de Dezembro de 2007, relator Des Joaquim Gomes.
Entendimento que resulta reforçado através da conjugação da norma do art 38º com a do subsequente art. 39.º do RGCOC, quando esclarece e determina que “No caso referido no n.º 1 do artigo anterior a aplicação da coima e das sanções acessórias cabe ao juiz competente para o julgamento do crime”.
É pois manifesta a competência da jurisdição penal para o conhecimento das contra-ordenações que surjam em concurso real com as infracções criminais.
Tese aliás sufragada pelo Tribunal a quo ao entender que caberia ao tribunal criminal conhecer da contra-ordenação. Porém admitiu a competência da autoridade administrativa considerando que no âmbito do concurso ideal heterogéneo, só fica precludida a possibilidade de reapreciação da contraordenação com uma decisão judicial que conheça deste facto como crime ou contraordenação ou decisão administrativa definitiva.
Apesar do brilho da sua argumentação, haverá que ponderar, que “ ao restringir-se o disposto no citado art. 38.º, n.º 1 aos casos de concurso ideal heterogéneo, com base no citado art. 20.º do RGCOC, um dos suportes interpretativos do primeiro entendimento, este último art. 39.º deixaria de ter qualquer sentido ou efeito útil. E isto porque aquele art. 20.º, que reporta-se efectivamente a essas situações de concurso ideal, restringe, sob pena de violação do “princípio non bis in idem”, a aplicação das sanções desse concurso às reacções penais e apenas às sanções acessórias da contra-ordenação, as quais estão previstas no art. 21.º do RGCOC.
Ficando, nestes casos, excluída a aplicação de qualquer coima, que é a reacção principal do regime contra-ordenacional, resta perguntar quando é que o art. 39.º teria aplicabilidade, não sendo certamente apenas para os casos de absolvição do crime e de perduração da contra-ordenação.
Por outro lado, o direito a um processo equitativo, fixado no art. 6.º da CEDH e art. 20.º, n.º 2 da C. Rep., impõem não só a plenitude da jurisdição em matéria penal, de que a suficiência do processo penal [art. 7.º do C. P. Penal] é uma das suas vertentes, mas também a realização de um julgamento num prazo razoável – sobre a noções da plena jurisdição em matéria penal e do processo equitativo, veja-se Frédéric Sudre e Caroline Picheral, em “La diffusion du modele européen do procés équitable” (2003), p. 204 e ss.
A única limitação é aquela que decorre do regime de competência por conexão fixado nos arts. 24.º e ss. do Código Processo Penal, derivada da primazia deste em relação ao regime contra-ordenacional – Ac. Rel. Porto supra citado.
E concordando com o tratamento jurídico aí concedido à questão da competência, concluimos que o art. 38.º do RGCOC abrange todas as situações de concurso ideal ou real de ilícitos criminais com as infracções contra-ordenacionais que estejam conexas com aquelas.
Assim no caso concreto, o tribunal que conheceu do crime de ameaças com arma de fogo teria que aferir das circunstâncias de facto do crime e da contraordenação, pois a absolvição do crime não impede o conhecimento da contraordenação e evita decisões contraditórias sobre a mesma factualidade imputada ao arguido e ocorrida na mesma ocasião, observando-se assim os princípios da concentração processual, da economia processual e de esforços e a boa administração da justiça.
Revertendo aos autos, e como salienta o recorrente, “Existiram dois julgamentos do arguido em que estiveram em discussão e apreciação os mesmos factos em causa e que, perante a mesma prova, extraíram até conclusões distintas quanto ao modo e circunstâncias em que os mesmos factos ocorreram, o que naturalmente não foi o que pretendeu o legislador. As circunstâncias e modo de disparo da arma, são dados como assentes no processo crime de um modo distinto do que aconteceu no processo de contraordenação.”
Cumpre ainda assinalar que nos termos do n.º 3 do art 38º a remessa do processo de contraordenação do MP para a autoridade administrativa só pode ocorrer quando o MP arquivar o processo crime, e entender que subsiste a contraordenação.
Em suma, o julgamento da contraordenação compete ao juiz criminalmente competente.
Com efeito, só a (estrita) obediência ao mandado de esgotante apreciação do ilícito ocasionará a curial (e desejável) densificação, quer do princípio da plenitude das garantias de defesa do arguido (art.º 32.º, n.º 1, do CRP), quer do princípio da presunção da inocência (art.º 32.º, n.º 2, da CRP).
O entendimento do tribunal a quo viola frontalmente o princípio non bis in idem, que garante ao arguido que os mesmos factos não venham a ser apreciados, julgados, mais do que uma vez.
Em consequência, seria a autoridade da jurisdição penal a entidade para conhecer e julgar a contraordenação imputada ao arguido sendo pois a autoridade administrativa incompetente para o condenar pela prática de tal contraordenação.
A incompetência em causa constitui nulidade insanável de conhecimento oficioso, ex vi art 119º, al e) do CPP tornando inválida a decisão administrativa e o processado posterior - art 122º do CPP.
Ficam pois prejudicadas todas as demais questões objecto do presente recurso.
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IV Dispositivo
Nestes termos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, declarando a incompetência da autoridade administrativa com a consequente invalidade da decisão que proferiu.
Devolva-se a arma apreendida ao arguido.
Sem tributação
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Coimbra, 24 de Outubro de 2018
(Certifica-se que o acórdão foi elaborado e revisto pela relatora)
Isabel Valongo (relatora)
Jorge França (adjunto)