Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
94/14.1GBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: AUDIÇÃO DE ASSISTENTE
RECUSA DE DEPOIMENTO
ADVERTÊNCIA LEGAL
Data do Acordão: 03/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JL CRIMINAL DE POMBAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 119.º; 120.º, 126.º, Nº 3, 134.º E 145, DO CPP
Sumário: I – As disposições conjugadas dos art.ºs 134.º e 145.º, n.º 3, ambos do CPP, tornam aplicável ao assistente o regime jurídico relativo à faculdade da testemunha se recusar a depor.

II – O incumprimento do dever de advertência sobre a possibilidade do exercício de tal faculdade torna o acto de tomada de declarações ao assistente nulo.

III – Fundando-se a decisão da matéria de facto dada como provada nos presentes autos essencialmente nas declarações prestadas pelo assistente, por via da nulidade invocada (e de outra que de seguida abordaremos, como se verá) estaria tal decisão ferida na sua fundamentação e nessa medida também a possibilidade de condenação do arguido, nos termos em que a mesma foi decidida pelo Tribunal a quo.

IV – Nulidade que, por se encontrar fora do elenco de nulidades previstas no art.º 119.º do CPP, teria de ser invocada pelo próprio arguido até que a assistente tivesse terminasse o acto de prestação das suas declarações – art.º 120.º, n.º 3, al. a), do CPP.

V – Não tendo sido alegada, deve a mesma considerar-se sanada e, consequentemente, ser também negado provimento a este fundamento do recurso.

Decisão Texto Integral:









Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.


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I – Relatório.

1.1. A... , arguido entretanto já mais identificado, foi submetido a julgamento no Tribunal a quo no âmbito dos autos supra mencionados, porquanto alegadamente incurso enquanto agente dos factos constantes de fls. 264/268, e segundo acusação oportunamente deduzida pelo Ministério Público, na prática de um crime de furto qualificado, p.p.p. art.ºs 203.º e 204.º, n.º 1, al. f) do Código Penal[1]; de um crime continuado de burla informática, p.p.p. art.ºs 30.º, n.º 2 e 221.º, n.º 1; de um crime de dano, p.p.p. art.º 212.º, n.º 1, e, finalmente, de um crime de violência doméstica, p.p.p. art.º 152.º, n.ºs 1, al. a), 2, 4, 5 e 6.

Tendo em vista obter o ressarcimento das quantias despendidas no tratamento prestado a B... , no dia 5 de Março de 2014, o Centro Hospitalar W (...) , EPE, deduziu pedido de indemnização civil contra o vidado arguido, pedindo a sua condenação a solver-lhe a quantia de € 1.458,49.

Realizado o contraditório, proferiu-se sentença decretando:

- A condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica, p.p.p. art.º 152.º, n.ºs 1, al. a), 2, 3, 4 e 5 do Código Penal, na pena principal de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão;

- Bem como na pena acessória de proibição de contacto com a vítima B... , incluindo o afastamento da residência e do local de trabalho da mesma, pelo período de 5 (cinco) anos, devendo o seu cumprimento ser fiscalizado mediante a utilização de meios técnicos de controlo à distância, nos termos dos n.ºs 4 e 5 do art.º 152.º, quando o arguido estiver em liberdade, absolvendo-o, todavia, da pena acessória de proibição de uso e porte de armas, da obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, e inibição do poder paternal, nos termos dos n.ºs 4 e 6 do mesmo art.º 152.º;

- A condenação do mesmo arguido pela prática de um crime de furto simples, p.p.p. art.º 203.º, na pena de 6 (seis) meses de prisão;

- A sua absolvição pela prática do assacado crime de furto qualificado, p.p.p. art.º 204.º, n.º 1, al. f);

- A condenação do arguido pela prática de um crime de burla informática, p.p.p. art.º 221.º, n.º 1, na pena de 1 (um) ano de prisão;

- A condenação do arguido pela prática de um crime de dano, p.p.p. art.º 212.º, n.º 1, na pena de 6 (seis) meses de prisão;

- A condenação do arguido, em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, na pena única de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão efectiva;

- A condenação do demandado a pagar ao demandante Centro Hospitalar W (...) , EPE, a reclamada quantia de € 1.458,49 (mil quatrocentos e cinquenta e oito euros e quarenta e nove cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;

- A condenação do arguido a pagar a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) à ofendida, a título de indemnização, nos termos do art.º 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro;

1.2. Inconformado com o teor do assim decidido, o arguido interpôs recurso (constante de fls. 587/601), retirando da correspondente motivação as seguintes conclusões e pedido (transcrição):

Da Ilegalidade da prova

1.ª Resulta com clareza cristalina, do texto da decisão recorrida, que, o Tribunal dá como provado que Assistente e Arguido já estavam separados e finda uma união de facto anterior. Não precisa o Tribunal quando efectivamente se separaram e como justifica a conclusão - transposta em Facto - que já não se encontravam em união de facto. Tal erro notório na apreciação da prova, melhor se densifica se confrontarmos as declarações de D... , (que refere, que ainda se encontravam a viver juntos) com a credibilidade da dita testemunha cimentada na fundamentação de facto da matéria da dada por provada. Art.º 410.º C.P.Penal.

2.ª A permissão de audição da testemunha K... , militar da GNR está também ferida de Nulidade incontornável porquanto, aquele, receptor da queixa apresentada pela Assistente, extrapola a razão de ciência que detém directamente dos factos e socorre-se das declarações prestadas pela assistente no âmbito da queixa. (n.º 7 do 356.º do C.P.Penal)

3.ª A factualidade vertida nas declarações da Assistente, atento ao regime imperativo do art.º 134.º n.º 1 alínea b) do C.P.Penal, deveria ser precedido da advertência do seu direito à recusa do depoimento. A lei expressamente sanciona tal omissão com a nulidade do acto.

4.ª A convicção do Tribunal formou-se com base, nas declarações da Assistente, nulas nos termos supra referidos; nas declarações do Militar da GNR, também nulas; e nas declarações da testemunha D... , que esclareceu que Assistente e arguido ainda viviam juntos. Já neste último particular em dissintonia com a pré-assumida separação de Assistente e Arguido. Omitiu, pois, o Tribunal, a devida pronúncia ao não se pronunciar

(ou melhor, a pronunciar-se sem definir meio de prova condicente). O que fere de nulidade a Sentença, nos termos e para os efeitos da alínea c) do art.º 374.º.

Termos que deverá a prova ser novamente produzida em competente repetição do julgado.

Da Errónea subsunção jurídica

A) Na circunstância de existir matéria indiciária da prática de crimes contra a propriedade, máxime furto e dano, em que Assistente e Arguido vivam em condições análogas às dos cônjuges, qual tal a dos presentes autos, manda a lei que o Assistente/ofendido deduza acusação particular. Requisito de procedibilidade que nos presentes autos não foi cumprido. Nulla Poena sine Processo. Pelo que, nesta medida, é nula a decisão condenatória relativamente a estes crimes, o que se requer seja reconhecido. (art.º 207.º C.Penal)

B) Lex specialis derrogat lex generalis. Inexiste a prática de concurso real e efectivo do crime de furto de cartão 203.º C.P. e do crime de Burla informática art.º 221.º do C.Penal, porquanto, reivindicação sine qua non do tipo subjectivo do crime, é a existência de um dolo específico e intencional, o que não se verifica nos autos. A Acção de furtar o cartão corporizou tout court a resolução criminosa de obter por via da sua posse, ainda que indevida, todas as quantias que aquele meio lhe permitiria. O dolo específico do crime de furto subsiste. Porém, o Agente não actua como a intencionalidade reivindicada da ludibriação de dados ou meios informáticos, admite-o como possível, necessário até. É nesta dimensão subjectiva do crime uma conduta atípica, logo não punível.

C) As Exigências de prevenção geral e especial reivindicadas no crime de Violência doméstica são tanto maiores, quanto maior, a proximidade da vítima e o seu Autor. Provadas várias acções injuriosas e uma agressão física, esta última no preciso momento da conturbada separação não são representáveis posteriores e sucessivas agressões.

A censura corporizada em pena, sensivelmente a meio da moldura penal abstracta, é desproporcionada, por excessiva. Foi neste termos violado o princípio da proporcionalidade das penas (art.º 71.º do C.Penal).

D) O CRC do Arguido relativo a crimes de diferente natureza e circunstâncias não é, de per si, denunciador e enunciador da necessidade de aplicação de Pena efectiva de prisão. De outra forma o julgamento a que o arguido fosse submetido consubstanciar-se-ia num efectivo julgamento de carácter. Inadmissível.

Termos em que, pelas razões aduzidas, deve o presente Recurso proceder e em consequência:

a) Ser Repetido O julgado

Não sendo este Vosso douto Suprimento Vexa conhecerem do Direito tal qual aqui é alegado e consonância absolverem o arguido dos crimes de:

a) Dano, furto e Burla informática.

b) Sendo, concomitantemente, o arguido condenado pelo crime de violência doméstica. Mas, em medida que não imponha medida de prisão efectiva.

1.3. O recurso foi admitido por despacho de fls. 608.

1.4. O Ministério Público (a fls. 617/639), respondeu ao mesmo, concluindo que lhe deve ser negado provimento e daí mantida a sentença recorrida. Fê-lo alicerçado na seguinte ordem de razões:

1.ª Incidindo o recurso interposto sobre matéria de direito e de facto, verifica-se deficiência nas conclusões (cfr. art.º 412.º, n.º 2 do Código de Processo Penal[2]), não tendo sido cumpridas as formalidades previstas no artigo 412º, n.º 3 e 4 do CPP.

2.ª Pelo que, pela completa preterição das formalidades a esse respeito, deverá o recurso, quanto a matéria de facto, ser rejeitado.

3.ª Quanto às questões levantadas, prova-se, pelas declarações da assistente e da testemunha D... , ao contrário do que alega o recorrente, que B... e o arguido viveram como se marido e mulher fossem durante 3 anos, tendo-se separado em Fevereiro de 2014 e que no dia 28 de Fevereiro já estavam separados e não coabitavam.

4.ª Não resultando, em nenhum momento ou de algum depoimento, que no dia 5 de Março de 2014, arguido e assistente ainda vivessem juntos, como o recorrente pretende fazer crer, sendo suficiente para o efeito o facto provado que o arguido, nesse mesmo dia, foi a casa da assistente para levantar os seus pertences, assim exteriorizando o fim da relação anterior.

5.ª Tendo em conta o teor da sentença, e uma vez que qualquer vício previsto no art.º 410.º, n.º 2 do CPP deve resultar do texto da decisão, é evidente a inexistência de qualquer erro notório na apreciação da prova.

6.ª No que aos crimes de dano e de furto diz respeito, tendo em conta que não viviam em condições análogas às dos cônjuges, não era exigível que a assistente deduzisse acusação particular nos termos do art.º 207.º.

7.ª O assistente assume, em relação ao Ministério Público, uma posição de colaborador (art.º 69.º, n.º 1 do CPP), sendo certo que neste caso assume também a posição de vítima, havendo, assim, como que uma dupla qualidade.

8.ª Ora, ou se privilegia a qualidade de vítima em detrimento da qualidade de assistente, e aí teria direito ao silêncio, caindo a qualidade de assistente, ou, como decorre da lei, a assistente, mesmo que vítima, não tem o direito a não prestar declarações, não fazendo a lei qualquer ressalva para esta dupla qualidade, parecendo que querer ser assistente exterioriza uma vontade em ser algo mais que vítima (são dados muitos passos e até gastando dinheiro e recursos para esse efeito, o que não é despiciendo para esta equação).

9.ª No caso dos autos, a Mma. Juiz não advertiu a vítima que, tendo em conta que se tratavam de factos ocorridos ainda no período de vivência comum com o arguido, teria o direito de se remeter ao silêncio, privilegiando, ao que parece, a posição de assistente e como tal esse direito não existia, pelo que não haveria qualquer advertência a efectuar.

10.ª Todavia, e mesmo que assim se não entenda, havendo um privilegiamento da posição de vítima em relação à posição de assistente, e considerando-se que tinha direito ao silêncio e que essa advertência deveria ter sido efectuada, nos termos do art.º 134.º n.º 2 do CPP, estaríamos perante uma nulidade sanável, já sanada por não ter sido arguida em tempo, nos termos do art.º 120.º, n.º 3, al. a) do CPP (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Porto, de 11 de Janeiro de 2017 cujo resumo se transcreve supra[3]).

11.ª O militar da GNR esclareceu que se deslocou a casa da assistente, descrevendo o estado em que a mesma se encontrava (chorosa e com dores no braço, queixando-se de ter sido atingida no braço por um objecto), bem como o estado de destruição do interior da casa; que quando a ofendida estava no hospital, apareceu o arguido.

12.ª É aceite geralmente pela jurisprudência que o relato dos agentes policiais é válido e eficaz quando atinente à recolha de informações de que tiveram conhecimento no âmbito da investigação ou da recolha da prova, nomeadamente quando chegam a um local e se procuram inteirar do que se passou e como se terá passado (cfr. entre muitos outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 6 de Fevereiro de 2017, transcrito supra[4])

13.ª Assim, é óbvio e fora de dúvidas que as declarações prestadas pelo militar da GNR em sede de julgamento não se encontram feridas de nulidade.

14.ª No tipo legal de crime de furto o bem jurídico protegido é o património, enquanto no crime de burla informática o bem jurídico protegido é, não só o património como, ainda, a fiabilidade dos dados informáticos e a protecção da sua fiabilidade e segurança.

15.ª Ao que acresce que, no crime de burla informática, a protecção dos dados informáticos se restringe às situações em que o agente tem a intenção de obter um enriquecimento ilegítimo e causa a outra pessoa prejuízo patrimonial.

16.ª A decisão de utilizar o cartão ocorreu apenas após a consumação do crime de furto do cartão, o que configura uma resolução criminosa posterior, autónoma e diversa, já que no crime de burla informática, a lesão do património se produz com a intrusão nos sistemas e a utilização de certos meios informáticos.

17.ª Estamos em face de um concurso real/efectivo de crimes, devendo ser mantida a condenação pela prática dos crimes de furto simples e de burla informática.

18.ª Por fim, quanto à medida concreta da pena, nas suas conclusões de recurso, o recorrente alega, de forma lacónica e sem elaborar como deveria, que aquela é desproporcionada e excessiva, violando-se o princípio da proporcionalidade das penas.

19.ª Ponderando os graves factos assentes e fundamentação apresentada pelo Tribunal, compreendem-se perfeitamente as considerações feitas quanto à pena única aplicada.

20.ª Na verdade, as lesões provocadas pelo arguido à vítima, partindo-lhe o braço, causaram-lhe intensas dores e determinaram 292 dias para consolidação médico-legal, sendo 99 dias de afectação da capacidade de trabalho geral e 292 dias com afectação da capacidade de trabalho profissional. Ficou ainda a ofendida com uma cicatriz no braço e com limitações da mobilidade do punho.

21.ª Para além dos outros crimes, provou-se ainda que ao praticar o crime de dano, agiu com o propósito concretizado de destruir os diversos bens da assistente e de estragar a roupa e o chão daquela com lixívia.

22.ª Sempre com intenção de menosprezar a sua ex-companheira e de a ofender na honra e consideração, de a maltratar física e psiquicamente e de modo a atingir a dignidade humana e integridade física e psíquica daquela.

23.ª O arguido possui um carácter influenciável, com baixa auto-estima, atribui os seus problemas a causas externas, atribuindo a acções dos outros, aparentando uma deficiente autocrítica e percepção dos limites, o que torna as suas interacções inadequadas e socialmente imprevisíveis, nunca exerceu actividade regular e estável, não beneficiando de qualquer inserção social e profissional, tendo já um longo percurso de vida pautado pela prática de crimes, apesar de apenas ter 35 anos de idade.

24.ª De facto, atentas as particularidades e enorme gravidade do caso concreto, número de crimes a até requintes de malvadez e crueldade, ressaltam prementes e elevadíssimas as razões de prevenção geral e de prevenção especial

25.ª Dos antecedentes criminais resulta que as várias penas que lhe foram impostas anteriormente, mesmo de prisão e suspensas na sua execução, por uma grande variedade de crimes, não serviram de suficiente advertência para o inibir da prática de novos crimes, de naturezas diversas, revelando total desconformidade da sua conduta com o Direito e carácter perigoso e imprevisível.

26.ª Considerando os factos apurados, a culpa elevadíssima do arguido e as referidas exigências de prevenção geral e especial, estamos perante um caso em que apenas se justifica a fixação de pena de prisão efectiva, sendo que as várias anteriores penas de prisão suspensas não surtiram qualquer efeito.

27.ª Tendo tudo isto por base, porquê e como aplicar novamente algo que manifestamente não resultou, frustrando o arguido completamente o juízo de prognose depositado e si? Qual o sinal que os Tribunais dão quando, com estes antecedentes criminais, quantidade de crimes e gravidade dos mesmos (em especial o de violência doméstica, partindo um braço à assistente!!) ainda dão mais uma oportunidade ao arguido?

28.ª Tendo necessariamente de se colocar nesse caso (mais uma suspensão da pena de prisão) a questão da responsabilidade dos próprios Tribunais e decisões nos percursos criminais dos arguidos, que poderiam e deveriam ter sido contidos a tempo.

29.ª Assim, afigura-se-nos justa, adequada e proporcional a pena única de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão efectiva aplicada, tal como adequada se mostra a pena acessória de proibição de contacto com a vítima B... , incluindo o afastamento da residência e do local de trabalho da mesma, pelo período de 5 (cinco) anos, fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, nos termos dos n.ºs 4 e 5 do art.º 152.º, quando o arguido estiver em liberdade.

1.5. Observadas as formalidades devidas, foram os autos remetidos para este Tribunal da Relação, onde, aquando do momento previsto pelo art.º 416.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto (a fls. 650/654), emitiu parecer conducente a idêntico improvimento da impugnação.

1.6. No âmbito do subsequente art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

1.7. Porque não vinha requerida a realização de audiência, e nenhum fundamento obstava ao prosseguimento do recurso, ordenou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, e sua submissão a conferência. Dos trabalhos desta emerge a presente apreciação e decisão.


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II – Fundamentação.

2.1. Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e delimita através das conclusões formuladas na motivação apresentada (art.º 412.º, n.º 1, in fine, do CPP), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no art.º 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

No caso vertente, tal como transposto nas conclusões apresentadas, e porque não intercede fundamento conducente a qualquer intervenção oficiosa, as questões decidendas consistem em apurarmos:

i) Se a decisão recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova quando deu como provado que a separação entre o recorrente e a ofendida ocorreu em Fevereiro de 2014, isto ao invés de a 5 de Março desse mesmo ano.

ii) Se o depoimento prestado no decurso da audiência de julgamento pela assistente/ofendida se mostra ferido de nulidade, por inobservância da advertência prévia imposta pelo art.º 134.º, n.º 2, do CPP.

iii) Se também o depoimento então prestado pelo militar da GNR – K... – se mostra inquinado, agora por violação ao estatuído no art.º 356.º, n.º 7, do mesmo diploma adjectivo.

iv) Se ante tais nulidades e o depoimento prestado em audiência pela testemunha D... (assumindo que à data dos factos o arguido e a assistente ainda viviam conjuntamente), a sentença recorrida está inquinada – ex vi do art.º 374.º, n.º 2, do CPP - por falta de fundamentação da distinta conclusão que, a propósito, acolheu.

v) Se quanto aos propalados crimes de furto e de dano se verifica a falta de uma condição objectiva de procedibilidade, qual seja de não dedução, pela assistente, da devida acusação particular.

vi) Se entre os crimes de furto e de burla informática por cuja prática o arguido acabou condenado, ao contrário do decidido no sentido em que entre eles se configuraria uma relação de concurso real/efectivo, intercede antes uma relação de concurso ideal/parente.

vii) Se a medida da pena parcelar cominada para o crime de violência doméstica o foi em medida desproporcionada/excessiva.

2.2. Antecedendo tal ponderação, vejamos o acervo fáctico e respectiva motivação acolhidos pela decisão sob censura. Assim:

2.2.1. Dos factos provados.

1. B... e o arguido A... viveram como se marido e mulher fossem durante 3 anos, tendo-se separado em Fevereiro de 2014.

2. Durante o tempo que residiram juntos era comum o arguido chamar-lhe "filha da puta" e dizer-lhe «vai para o caralho".

3. No dia 28 de Fevereiro de 2014, numa altura em que já estavam separados e em que já não coabitavam, o arguido, dirigiu-se à casa de B... , sita na (...) , onde antes residira com aquela.

4. Dali retirou e levou consigo o cartão multibanco Visa Electron n.º (...) da Caixa (...) de B... , que se mostra associado à conta titulada por aquela junto do Caixa (...) com o n.º (...) .

5. Na posse do referido cartão multibanco e por ser conhecedor do código do mesmo, já que residira com a vítima durante três anos, logrou o arguido usá-lo para proceder a levantamentos em dinheiro e proceder a pagamentos num total de € 474,46, que era quase toda a quantia que aquela ali tinha.

6. Na verdade, na posse do referido cartão bancário, o arguido procedeu, desde 28.02.2014 e até 04.03.2014, dia de carnaval e data em que a ofendida procedeu ao cancelamento do referido cartão, a um total de 15 levantamentos, que oscilaram entre os € 10,00 e os €60, nos Multibancos da Rua (...) , da Av. (...) , do Largo (...) , da Rua (...) e na Policlínica (...) , num total de € 320, e utilizou o cartão em questão para 10 pagamentos, para aquisição de diversos produtos, no valor de € 154,46.

7. O veículo Volkswagen Golf X (...) valia aquela data € 500.

8. Pelas 18h30, do dia 05.03.2014 o arguido dirigiu-se a casa de B... para levantar os seus pertences. Em determinada altura, e na sequência de uma discussão entre os dois, o arguido, munido de uma bengala, começou a desferir pancadas nos móveis, no chão e nos electrodomésticos, partindo alguma louça. Acto contínuo, pegou em roupa da ofendida, colocou-a na banheira e regou-a com lixívia, estragando-a, tendo ainda deitado lixívia no chão, estragando este também. Não satisfeito, pegou numa bengala e desferiu com a mesma uma pancada no braço esquerdo da vítima, fracturando-lhe o cúbito do braço esquerdo.

9. O arguido, assim que teve conhecimento da denúncia, entregou às autoridades o veículo e o cartão bancário de que se apoderara, tendo os mesmos sido apreendidos em 06.03.2014. Todavia, o veículo foi entregue sem a chapeleira e respectivas colunas no valor de € 60,00 e jamais devolveu o dinheiro que levantou.

10. A reparação dos móveis e bens partidos, um espelho, o tampo da cómoda e duas prateleiras, cifra-se na quantia de € 270,00.

11. A reparação da máquina de café cifra-se na quantia de € 29,99.

12. A reparação do chão cifra-se na quantia de € 300,00.

13. A roupa da ofendida não teve reparação possível e valia mais de € 400,00.

14. As lesões supra descritas causaram intensas dores à ofendida e determinaram 292 dias para consolidação médico-legal, sendo 99 dias de afectação da capacidade de trabalho geral e 292 dias com afectação da capacidade de trabalho profissional. Ficou ainda a ofendida com uma cicatriz no braço e com limitações da mobilidade do punho.

15. Ao praticar os actos descritos agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, entrando na casa da assistente e dali retirando e levando consigo o cartão bancário, que não lhe pertencia, que fez seu, e que usou em seu único e exclusivo proveito, e que actuava contra a vontade, sem autorização e em prejuízo da proprietária do bem, resultado esse que representou, procurou e logrou alcançar, bem como com a intenção de se apropriar de todo o dinheiro que estivesse na respectiva conta, que usou em seu único e exclusivo proveito através de levantamentos e pagamentos realizados, de que beneficiou, bem sabendo que o cartão e o dinheiro não lhe pertenciam, que lhe estava vedado usá-los quer para levantamentos quer para pagamentos e que ao assim agir actuava contra a vontade, sem autorização e em prejuízo da proprietária do cartão e do dinheiro, resultados esses que representou, procurou e logrou alcançar.

16. Assim, através do uso daquele cartão, o arguido apoderou-se dos montantes levantados, em numerário, gastando-o em proveito próprio, tendo também ficado com os bens adquiridos e/ou consumidos com recurso a tal cartão.

17. Tinha perfeito conhecimento de que ao digitar os códigos de acesso no sistema informático da rede ATM introduzia nesse sistema dados que lhe permitiam desencadear o acesso à conta bancária a que aquele cartão estava adstrito, o que lhe possibilitava o débito na mesma dos levantamentos e pagamentos que realizou, tendo perfeita consciência que tal lhe estava vedado sem a autorização da titular do cartão de crédito e que ao assim agir intervinha naquele processamento de modo não autorizado.

18. Agiu com o propósito concretizado de obter para si benefícios económicos que não lhe eram devidos, bem sabendo que ao fazê-lo causava um prejuízo de igual valor à sua legítima titular, B... s e que agia sem consentimento e contra a vontade desta.

19. Agiu ainda com intenção de ludibriar as máquinas de levantamento automático de dinheiro, agindo como se da legítima titular do cartão se tratasse, o que logrou fazer.

20. Ao usar aquele cartão agiu o arguido sempre do mesmo modo.

21. Ao praticar os factos supra descritos agiu ainda o arguido de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de destruir os diversos bens da assistente e de estragar a roupa e o chão daquela com lixívia, bem sabendo que aqueles bens não lhe pertenciam e que agia sem autorização e contra a vontade da dona daqueles bens, causando-lhe assim uma diminuição no seu património em, pelo menos, valor igual ao do conserto e substituição, resultado este que era o propósito de toda a sua acção e que representou, procurou e logrou alcançar, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

22. Ao actuar da forma descrita, agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de menosprezar a sua ex-companheira e de a ofender na honra e consideração que lhe são devidas, como pretendia e conseguiu. Agiu ainda o arguido com o propósito concretizado de a maltratar física e psiquicamente, de molde a atingir a dignidade humana e integridade física e psíquica desta, resultados estes que representou, procurou e logrou alcançar.

23. Mais sabia o arguido que os seus actos eram praticados naquela que fora a residência de ambos e onde actualmente reside a vítima.

24. O arguido tem um filho, nascido no decurso de uma relação de namoro pouco consistente, que foi entregue judicialmente à avó paterna, por evidentes dificuldades dos progenitores em assumirem os seus cuidados e educação.

25. Socialmente o arguido sempre manifestou alguma vulnerabilidade a influências externas, mantendo algumas ligações a indivíduos mal referenciados da comunidade local. É conotado com um estilo de vida negligente, conflituoso, com ligações a contextos ligados à toxicodependência.

26. O arguido possui um carácter influenciável, com baixa auto-estima, com necessidades de aprovação constante pelos vários grupos em que se insere e com os quais se identifica. Atribui os seus problemas a causas externas, atribuindo a acções dos outros, aparentando uma deficiente autocrítica e percepção dos limites, o que torna as suas interacções inadequadas e socialmente imprevisíveis.

27. Ao nível laboral o arguido nunca exerceu actividade regular e estável, passando por diversas áreas indiferenciadas, sem adquirir competências profissionais que lhe possibilitassem uma integração laboral consistente e suportasse o seu modo de vida.

28. O arguido já foi anteriormente condenado nos seguintes processos:

I - Comum Singular n.º 176/04.8PAPBL, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, pela prática de um crime de roubo, por factos praticados em 01.07.2004, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano e com a imposição de pagar € 450,00 ao ofendido no prazo de 1 ano, por sentença transitada em julgado em 30.04.2009, já extinto;

II - Comum Singular n.º 174/07.0PAPBL, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, pela prática de um crime de detenção de arma proibida e um crime de condução sem habilitação legal, por factos praticados em 29.07.2007, na pena única de 190 dias de multa, à taxa diária de € 4,00, por sentença transitada em julgado em 07.07.2008, já extinto;

III - Comum Singular n.º 1217/07.2TAPBL, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, pela prática de um crime de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, por factos praticados em 07.2009, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos com regime de prova, por sentença transitada em julgado a 28.09.2009, já extinto;

IV - Comum Singular n.º 95/09.1PAPBL, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, pela prática de um crime de ameaça agravada, por factos praticados em 25.03.2009, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, por sentença transitada em julgado a 09.11.2009, já extinto;

V - Comum Colectivo, n.º 127/10.0 PAPBL, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, pela prática de um crime de consumo de estupefacientes e um crime de evasão, por factos praticados em 11.05.2010, na pena única de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, por sentença transitada em julgado a 20.05.2011, já extinto;

VI - Sumário n.º 216/12.7 GTLRA, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos praticados em 08.08.2012, na pena de seis meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, subordinada à frequência de aulas de condução, por sentença transitada em julgado a 09.10.2012, já extinto;

29. Na sequência dos factos ocorridos no dia 05 de Março de 2014, a ofendida B... recebeu tratamento hospitalar no Centro Hospitalar W (...) , EPE, que importou na quantia € 1.458,49.

30. A ofendida B... esteve impedida de trabalhar por baixa médica de 06 de Março de 2014 a 05 de Janeiro de 2015.

2.2.2. Dos factos não provados

Resultaram não provados os seguintes factos:

- No dia 28 de Fevereiro de 2014, o arguido dirigiu-se a casa de B... sita na (...) , aproveitando-se da circunstância de ter uma chave, na execução de um plano que previamente gizou com a intenção de entrar naquela casa, com o propósito de dali retirar tudo quanto encontrasse de valor, bem sabendo que lhe estava vedado entrar naquela casa.

- E dali retirou o veículo Volkswagen Golf X (...) .

- Para reparação dos móveis e bens partidos: um espelho, o tampo da cómoda e duas prateleiras, despendeu B... s a quantia de € 270,00.

- Para reparação da máquina de café despendeu B... s a quantia de € 29,99.

- Para reparação do chão despendeu B... s € 300,00.

2.2.3. Motivação da decisão de facto

A convicção do Tribunal fundou-se na análise conjugada de todos os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento com o teor de todos os documentos juntos aos autos, sempre coadjuvada pelas regras da normalidade do acontecer e apreciada segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador (artigo 127.º do Código de Processo Penal).

Concretamente, fundou o Tribunal a sua convicção nas declarações da ofendida que descreveu ao tribunal, de forma absolutamente sincera e credível, os episódios ali vertidos. Assim, pela mesma foi concretizado que no dia 28 de Fevereiro de 2014 o arguido foi lá a casa buscar as coisas dele, tendo sido a mesma que lhe abriu a porta.

Mais referiu que tinha o cartão guardado na carteira que se encontrava em cima de uma cadeira no quarto e a chave suplente do carro numa gaveta, sítios onde habitualmente eram guardados tais objectos, facto este do conhecimento do arguido. Esclareceu que o carro estava estacionado na rua. Referiu que não viu o arguido a retirar qualquer destes objectos mas que este teve oportunidade para o fazer, pelo menos, na altura em que foi ao WC e o deixou sozinho. Mais adiantou que o cartão está associado a uma conta titulada apenas por si e que o arguido, mesmo quando estavam juntos, nunca teve autorização para usar o cartão a seu bel-prazer, apenas fazendo pagamentos pontuais de água, luz, quando esta assim lho pedia, motivo pelo qual tinha conhecimento do código. Frisou ainda que não deu autorização ao arguido para tirar o cartão da sua carteira e, muito menos, fazer dele o uso que lhe fez e que vem descrito nos autos, não lhe tendo dado igualmente autorização para levar o carro e muito menos dele retirar as colunas e a chapeleira, o que se revela credível segundo os juízos da normalidade, atendendo especialmente à circunstância de na data da prática dos factos já estarem separados.

Pelo exposto, atentas as declarações da assistente, prestadas de forma circunstanciada e congruente, não restaram dúvidas ao Tribunal que o arguido retirou, da casa da assistente quer o cartão descrito nos autos, quer a chave do carro, sem ter autorização para tal.

A assistente explicou ainda, de forma consistente e com notas de emoção típica de quem vivenciou factos desta natureza a factualidade do dia 05.03.2014, especificando que após ter percebido que o cartão e o carro tinham desaparecido apresentou queixa na GNR e que, nesse mesmo dia, pouco tempo depois de chegar a casa o arguido entrou dentro da mesma utilizando uma chave que não lhe tinha devolvido, sabendo que não estava autorizado para tal. Mais concretizou que o arguido foi acompanhado de duas mulheres que não conhece mas que apenas ele entrou dentro de casa, e que na sequência de uma discussão este começou a partir e a estragar vários bens, tendo especificado os danos materiais sofridos e as lesões físicas de que padeceu na sequência da agressão que lhe foi perpetrada pelo arguido. Pela assistente foi ainda explicado que os 3 anos de vida em comum foram pautados por ameaças e pelos impropérios verbalizados pelo arguido, tendo adiantado de forma pormenorizada vários episódios.

Refira-se ainda que, a sinceridade da ofendida foi tal que referiu de forma espontânea não ser verdade que tenha já despendido as quantias constantes da acusação relativas ao arranjo dos móveis, do chão e dos objectos estragados pelo arguido, uma vez que, ainda os não mandou arranjar, concretizando que os valores adiantados representam os valores indicados nos orçamentos que solicitou por forma a poder informar o Tribunal do valor correcto de reparação.

É certo que, abstractamente, poderia supor-se que o depoimento da ofendida, atenta a sua qualidade de vítima, estaria motivado por um qualquer interesse pessoal o que, consequentemente abalaria a sua credibilidade.

Sucede que, in casu, o discurso apresentado pautou-se, por um lado, por um certo distanciamento e objectividade no relato dos acontecimentos, mas por outro, por um genuíno sentimento de medo do arguido e um latente desejo de que, apenas e tão-somente, este não mais volte a contactá-la e a importuná-la, o que lhe conferiu uma autenticidade inabalável.

Fundou ainda o Tribunal a sua convicção no depoimento da testemunha D... , vizinha da ofendida e do arguido na altura em que ainda viviam juntos, tendo confirmado ao Tribunal que foi ela quem chamou a GNR, concretizando ao Tribunal o estado de choro em que se encontrava a ofendida, queixando-se de um braço e que, tendo entrado no hall da casa da assistente, percebeu que existiam objectos destruídos. Pela testemunha foi salientado que não foi a primeira vez que ouviu discussões entre este casal em concreto, mas que desta vez temeu pela sua segurança dada a violência da discussão que ouvia no apartamento onde o casal vivia e que se situava ao lado do seu, o que é bem demonstrativo da violência usada pelo arguido em tal episódio, sendo este o motivo de ter chamado a GNR.

Ancorou ainda o Tribunal a sua convicção no depoimento da testemunha K..., agente da GNR que se deslocou a casa da assistente na sequência de uma chamada telefónica que dava conta da existência de agressões. Referiu que o arguido já era conhecido da guarda, mas foi a primeira vez que se deslocou à casa da ofendida. Concretizou tal testemunha o estado em que encontrou a assistente quando chegou ao local - chorosa e com dores no braço, queixando-se de ter sido atingida no braço por um objecto -, bem como o estado de destruição do interior da casa. Refere que quando a ofendida estava no hospital, apareceu lá o arguido, tendo nesse momento sido identificado. Nessa altura, o arguido estava acompanhado pela namorada, de nome E... (identificada nos autos), tendo dito que tinha sido a E... que empurrou a ofendida, e na sequência dessa queda ela ter-se-ia magoado. No entanto, a E... que estava a ouvir a conversa, nada disse - ou seja, não admitiu nem negou os factos. Ora, estas declarações não nos parecem minimamente credíveis, desde logo devido à relação de namoro da E... com o arguido, e igualmente porque a ofendida referiu que o arguido, no dia dos factos, estava acompanhado de duas raparigas, mas que estas não entraram na sua casa.

Assentou ainda convicção da factualidade dada como provada no depoimento da testemunha F... , agente da GNR, que assegurou ao Tribunal que no dia a seguir a ter sido realizada a denúncia por parte da assistente o arguido apresentou-se voluntariamente no posto e procedeu à entrega do cartão, da chave e do carro descritos nos autos.

Quanto às quantias referentes aos cuidados médicos prestados à assistente firmou o Tribunal a sua convicção no depoimento da testemunha C... , assistente administrativa no Centro Hospitalar W (...) , a qual, explicando a sua razão de ciência, os confirmou tendo ainda explicado a forma como se alcançou o cômputo de tais quantias.

No que respeita aos antecedentes criminais do arguido, fundou o Tribunal a sua convicção com base no teor do Certificado de Registo Criminal do arguido junto aos autos a fls. 311 a 325. Igualmente na prova documental junta aos autos, como sendo, o auto de denúncia de fls. 2 e fls. 2 do apenso, relatório de avaliação de dano corporal a fls. 26-27 e 73 e 159 e 191, documentos de fls. 79-90 e de fls. 99-10 1, auto de apreensão de fls. 9 do apenso, mensagens de fls. 103-127, informação bancária de fls. 151 e ss. e informação clínica de fls. 232.

As condições pessoais do arguido resultaram do teor do relatório social junto aos autos a fls. 328 e 329.

Quanto aos factos não provados, pela ausência de prova feita quanto a eles, porque a ofendida não explicou com precisão tais factos, por falta de memória ou mesmo negando a sua ocorrência.

2.3. O primeiro segmento de dissídio do recorrente, contende com a data a partir da qual se deve considerar como terminada a relação análoga á de cônjuge que manteve com a assistente/ofendida B... . Na sua versão, essa relação ainda subsistia e terminou, concretamente, no dia 5 de Março de 2014, ao passo que a sentença impugnada deu como provado que a mesma haveria cessado no mês de Fevereiro desse ano; na verdade, consignou a propósito nos itens 1, 3 e 8 da matéria de facto provada, respectivamente, que: “ B... e o arguido A... viveram como se marido e mulher fossem durante 3 anos, tendo-se separado em Fevereiro de 2014”; “No dia 28 de Fevereiro de 2014, numa altura em que já estavam separados e em que já não coabitavam, o arguido, dirigiu-se à casa de B... , sita na (...) , onde antes residira com aquela”, e “8. Pelas 18h30, do dia 05.03.2014 o arguido dirigiu-se a casa de B... para levantar os seus pertences.” O arguido sustenta o seu entendimento com base no depoimento da testemunha D... , que reputa de credível, e conclui estarmos perante um erro notório na apreciação da prova.

O que emerge deste segmento de discórdia do recorrente é que embora, em sede de matéria de facto, impute à sentença recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova, ut art.º 410.º, n.º 2, al. c) do CPP, do que verdadeiramente se trata, porém, é de uma divergência no que se reporta a um concreto facto que aquela deu por assente, assumpção probatória da qual o recorrente discorda.

Na verdade, o arguido afirma existir um erro notório na apreciação da prova, nos termos do último normativo citado, porquanto, em seu entender, do depoimento prestado pela testemunha D... o tribunal não podia ter concluído que o terminus da vivência análoga à dos cônjuges entre si próprio e a assistente terminara em Fevereiro de 2014.

Preceitua o elencado art.º 410.º, n.º 2, al. c), que, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

(…)

c) - Erro notório na apreciação da prova”.

Por outro lado, dispõe o seu n.º 3, que, “o recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada”.

Como ressalta do n.º 2 do mencionado art.º 410.º, a norma reporta-se aos vícios intrínsecos da decisão, como peça autónoma, verificáveis pelo simples exame do seu texto ou por esse exame conjugado com as regras da experiência comum.

Daí que não possa invocar-se a existência de qualquer dos vícios enumerados nas alíneas do referido n.º 2 apelando para elementos não constantes da sentença, como seja, por exemplo, um documento junto aos autos ou um depoimento prestado em audiência, ainda que os depoimentos se achem documentados como é a situação presente.

Lendo o texto da motivação do recurso, verifica-se que o recorrente invoca este vício, por divergir da forma como o tribunal deu como provados os factos por si referenciados, rectius itens 1, 3 e 8.

Aduz assim a recorrente, na essência, um erro de julgamento, decorrente do art.º 412.º, n.º 3 do CPP, e não, um erro/vício da sentença previsto no n-º 2 do art.º 410.º do mesmo diploma legal.

A base desta parte do recurso relativo à matéria de facto é a incorrecta e deficiente apreciação da prova testemunhal produzida na audiência de julgamento pelo tribunal recorrido, por ter desvalorizado o depoimento de uma testemunha que na sua perspectiva se mostrou credível, o que, na perspectiva do arguido, consubstancia um erro nesta aferição, da qual não deveria ter resultado como provado, nos termos em que o foram, um facto que contende com a boa decisão da causa.

É sabido que constitui princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no art.º 428.º do CPP, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro, da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o indicado art.º 410.º, n.º 2.

O erro de julgamento, ínsito no art.º 412.º, n.º 3, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1.ª instância, havendo que a ouvir em 2.ª instância.

Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do CPP.

É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

E é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes, um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que se impõe, ao recorrente, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do n.º 3 do art.º 412.º do CPP.

Assim, impõe-se-lhe a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.

Mais se lhe atribui, a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, acrescendo a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considera mal julgado.

Por fim, é-lhe ainda assacada a especificação das provas que devem ser renovadas, o que só se compraz com a informação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em sede de 1.ª instância, dos vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. art.º 430.º, n.º 1 do citado diploma).

No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto, é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão revidenda, justificando, em relação a cada facto alternativo que propõe, porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.

Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Março de 2012, publicado no D.R., I.ª Série, n.º 77, de 18 de Abril seguinte:

«Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.

A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.

O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.

Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.».

Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, importa dizer que o recorrente não deu cumprimento, de forma mínima sequer, à referida tripla exigência do n.º 3 do art.º 412.º do CPP, limitando-se a uma impugnação genérica e insuficientemente concretizada, e, por outro lado, entrou numa deficiente estruturação do vício indicado, pois, manifestamente, não resulta do texto da decisão recorrida (e nesta perspectiva tão-somente a ele se podia ater) qualquer erro notório na apreciação do facto ajuizado e que menciona.

Menção, ainda, a de que auditado, na íntegra, o depoimento da testemunha D... , em ponto algum se infirma a partir dele a menção da ofendida em cujos termos a vivência conjunta com o arguido estava terminada, tal como consignado na decisão recorrida.

Improcede, consequentemente, este fundamento do recurso.

2.4. Segundo ponto de discordância do arguido/recorrente o que contende com a circunstância de a M.ma Juiz a quo, antecedendo a tomada de declarações da assistente, não a ter advertido nos termos do estatuído pelo art.º 134.º, n.ºs 1, al. b) e 2, inquinando tal audição, consequentemente, com o vício de nulidade.

A questão suscitada consiste em apurarmos se é aplicável às declarações do assistente o regime de recusa na sua prestação.

A resposta, adianta-se, é afirmativa, e porque teve já apreciação em termos com que concordamos, permitimo-nos seguir um aresto a propósito, concretamente o acima aludido na nota 3.

Como resulta da alegação do recorrente, as disposições conjugadas dos art.ºs 134.º e 145.º, n.º 3, ambos do CPP, tornam aplicável ao assistente o regime jurídico relativo à faculdade da testemunha se recusar a depor, fazendo com que o incumprimento do dever de advertência sobre a possibilidade do exercício de tal faculdade torne o acto de tomada de declarações ao assistente nulo, consubstanciando-se tal nulidade numa verdadeira proibição de prova, por intromissão na vida privada, nos termos do n.º 3 do art.º 126.º do CPP. Ora, fundando-se a decisão da matéria de facto dada como provada nos presentes autos essencialmente nas declarações prestadas pelo assistente, por via da nulidade invocada (e de outra que de seguida abordaremos, como se verá) estaria tal decisão ferida na sua fundamentação e nessa medida também a possibilidade de condenação do arguido, nos termos em que a mesma foi decidida pelo Tribunal a quo.

A primeira questão a resolver consiste, portanto, em saber se é ou não aplicável à prestação de declarações pelo assistente o disposto no art.º 134.º do CPP, por via do art.º 145.º, n.º 3, do mesmo diploma, na interpretação que se deva fazer desta última disposição normativa, ao estabelecer que a prestação de declarações pelo assistente e pelas partes civis fica sujeita ao regime de prestação da prova testemunhal, salvo no que lhe for manifestamente inaplicável e no que a lei dispuser diferentemente.

Ora, no que toca à faculdade de recusa de prestação de declarações por parte do assistente, não há norma que especificamente a regule e, portanto, que o faça diferentemente do que se encontra previsto para a prestação de depoimento pela testemunha, como acontece, por exemplo, com a não prestação de juramento, prevista no n.º 4 do art.º 145.º, em contraponto com o estabelecido no art.º 132.º, n.º 1, al. b), ou com o regime de tomada de declarações em audiência de julgamento estabelecido no art.º 346.º, n.º 1, do CPP, em contraste com o estabelecido no art.º 348.º, n.º 4. Razão por que, por via deste segmento da norma, não se vislumbra a possibilidade de afastamento da aplicação do regime do art.º 134.º do CPP também ao assistente. Restando-nos por isso colocar a questão de saber se tal afastamento poderá operar pela circunstância de tal regime se revelar manifestamente inaplicável ao assistente, nos termos do art.º 145.º, n.º 3.

No sentido da inaplicabilidade do regime do art.º 134.º à tomada de declarações ao assistente pronunciou-se o Professor Paulo Pinto de Albuquerque, considerando que a recusa de prestação de declarações em tais casos se traduziria num venire contra factum proprium[5].

Porém, em sentido contrário, vem-se pronunciando maioritariamente a jurisprudência, nomeadamente nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 30 de janeiro de 2013 e do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Fevereiro de 2015[6].

Ou seja, o desvalor que se possa pretender encontrar na possibilidade de recusa de prestação de declarações por parte do assistente e o facto de este assumir no processo essa qualidade de sujeito processual, claudica, a nosso ver, na concreta sustentação da sua possibilidade, porquanto a conformação específica do direito processual penal está também orientada no sentido da conciliação de direitos e interesses fundamentais, por vezes entre si contraditórios ou conflituantes, mas que integram um sistema de valores que, tendo como finalidade a realização da justiça material penal, se organiza fundamentalmente em termos de validade material, com um sentido axiológico-jurídico e não, portanto, numa estrutura meramente processual de caráter puramente formal, procurando por isso intrinsecamente alcançar a optimização da conciliação possível daqueles interesses e valores em conflito. E desde logo o interesse público da investigação e perseguição penal, e com ele o interesse comunitário da salvaguarda da ordem jurídica comunitária, mas também, ainda que mediatamente, o interesse particular da vítima do crime, nomeadamente o direito que tem ao respeito pela sua dignidade pessoal e a participar activamente no processo penal, nomeadamente a ser ouvida, nos termos legalmente previstos, quer se tenha ou não constituído assistente – cfr. art.ºs 67.º-A, n.ºs 4 e 5, 292.º, n.º 2, e 495.º, n.º 2, do CPP e art.º 4.º do Estatuto da Vítima -, sem esquecer o arguido, enquanto sujeito processual, em torno do qual se consubstanciam os mais importantes princípios enformadores do direito processual penal, com especial relevo ou expressão na chamada “constituição processual penal” – especialmente no art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa. Assim sendo, é compreensível que o ofendido, quer se haja ou não constituído assistente no processo, possa desistir da queixa apresentada até à publicação da sentença em primeira instância – art.º 116.º, n.º 2, do CP e 49.º e 51.º do CPP – embora se assegure ao mesmo tempo a possibilidade de o arguido a ela se opor. A harmonização dos valores e dos interesses em causa encontra também justificação na realização dos valores da paz e reintegração comunitárias, perseguidos pela justiça penal, que não se esgotam nas vias hétero-compositivas do litígio penal.

Assim sendo, e sabendo nós que ínsito à faculdade de recusa prevista no art.º 134.º, e colhendo as palavras da decisão do Reichsgericht de 12 de Fevereiro de 1880[7], está a pretensão de “que ninguém seja, contra natura, colocado na situação de coação de prestar declarações desvantajosas contra os seus interesses e sentimentos fundados na relação familiar”, então não vemos como possa encerrar em si uma contradição, e muito menos insuperável, o facto de o assistente, e nessa qualidade assumindo embora o estatuto de auxiliar do Ministério Público, poder, a dada altura, afirmar no processo que, apesar dessa sua qualidade, não pretende contribuir directamente e através das suas próprias declarações para a incriminação de um seu familiar. Ou seja, a relação de caráter familiar (ou similar nos termos legalmente tutelados, como é o caso) existente entre o assistente e o arguido, legitima teleologicamente que àquele seja concedida a tutela da liberdade de recusa de prestação de declarações, nos mesmos termos em que ela é concedida às testemunhas e, designadamente, também ao ofendido que não se haja constituído assistente, sem que daí se retire o valor e as consequências do papel que possa ter, quanto ao mais, enquanto sujeito processual.

Deste modo, considerando-se justificada a aplicação ao assistente do normativo em causa, por maioria de razão, e ainda fiéis a um ponto de vista de interpretação essencialmente teleológico, não vislumbramos como possa ser possível, e já que contraditoriamente, considerar-se “manifestamente inaplicável” um tal regime, ao abrigo do disposto no art.º 145.º, n.º 3, do CPP.

Razão por que aderimos, sem dúvida, ao entendimento da aplicação às declarações do assistente do regime de recusa de prestação de depoimento previsto no art.º 134º do CPP, de harmonia com o disposto no art.º 145.º, n.º 3, do CPP.

Questão consequente prende-se com o tipo de vício resultante da omissão, por parte do Tribunal, do dever de informação da faculdade da testemunha ou declarante se recusarem a depor.

Sobre esta questão, tem-se dividido a doutrina e a jurisprudência[8], isto por dois conjuntos de razões.

O que está em causa, na atribuição legal da faculdade de recusa de depoimento, é “preservar a integridade e a confiança nas relações de maior proximidade familiar”, em termos de não se compelir ou até coagir a testemunha ou o declarante a contribuir para a incriminação de determinadas pessoas, enquanto sujeitos dessas mesmas relações familiares. Pautando-se assim o sentido da normatividade do regime encontrado pela procura do equilíbrio entre os valores ou interesses em conflito, isto é, o interesse jurídico-processual (bem como o dever de colaboração a ele associado[9] de descoberta da verdade material, por um lado, e a proteção das relações familiares (este enquanto valor com expressão jurídico-constitucional no art.º 67.º da CRP), por outro. A violação desta liberdade de depor, que a lei deixa claramente na esfera de disponibilidade da testemunha ou do declarante, nomeadamente pela imposição da prestação de depoimento a quem, por qualquer modo, houvesse manifestado a intenção de não o fazer, não temos dúvidas de que integraria uma intromissão abusiva e legalmente inadmissível na vida privada, não consentida pelo respetivo titular, constitutiva de um vício que teria como implicação a proibição da prova assim obtida, nos termos e para os efeitos do art.º 126.º, n.º 3, do CPP. Aliás, em harmonia com tal entendimento, e desde logo numa pura interpretação hermenêutica, sistemática e teleologicamente sustentada, está o facto de a lei, no art.º 356.º, n.º 6, do CPP, proibir expressamente, e “em qualquer caso”, a leitura de depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.

Ora, no caso dos autos não estamos perante uma violação de um tal direito, porque deles não resulta, desde logo, que a assistente pretendesse de qualquer forma usar da faculdade de se recusar a depor, e que a tal haja sido impedida pelo Tribunal. O que resulta, isso sim, é que o Tribunal não cumpriu o dever de garantia da efetiva liberdade no seu exercício, através do esclarecimento prévio a que alude o art.º 134.º, n.º 2, do CPP, mas sem que daí se possa extrair a violação do exercício do direito, em si, porquanto a assistente sempre poderia manifestar a sua intenção de não prestar declarações, e não o fez, sem que se possa deduzir do processo que a ausência de uma tal manifestação tivesse ocorrido devido, ou por causa, da omissão praticada pelo Tribunal.

Assim sendo, e porque se trata de uma mera omissão de medida tutelar do efectivo exercício da liberdade de depor ou de prestar declarações, a não implicar direta e necessariamente um impedimento do exercício efectivo dessa liberdade, nem por desse modo se interferir directamente com a privacidade da relação análoga à dos cônjuges em causa, entendeu o legislador sancionar tal vício ou tal erro de procedimento com a mera nulidade, precisamente ao contrário do que determinou para a violação expressa do direito de recusa de prestação de depoimento, nos termos já supra referidos, no âmbito da admissibilidade da leitura de declarações anteriormente prestadas no processo, assim como no caso da omissão de comunicação ao arguido das informações a que alude o art.º 58.º, n.º 2, do CPP, onde aqui, ao contrário do estabelecido no art.º 134.º, n.º 2, se estatuiu uma autêntica proibição de prova, ao consignar-se no n.º 5 do art.º 58.º que a omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não possam ser utilizadas como prova. Regime diverso este, e mais grave do que o previsto no art.º 134.º, n.º 2, que se justifica à luz da especial importância dada às garantias constitucionais de defesa do arguido, designadamente o seu direito ao silêncio ou à não auto-inculpação (nemo tenetur se ipsum accusare), implicitamente consagrado no art.º 32.º, n.º 1, da CRP, e que não tem, nem pode ter, paralelo com outros sujeitos ou intervenientes processuais. Por ser precisamente o arguido, e só ele, o epicentro da chamada “constituição processual penal”.

Pelo exposto, e na segmentação daquele que, em nosso entender, parece ser o melhor sentido normativo do n.º 2 do art.º 134.º do CPP, colocamo-nos ao lado dos que entendem estarmos perante uma mera nulidade e não uma proibição de prova ou de valoração de prova. Nulidade que, por se encontrar fora do elenco de nulidades previstas no art.º 119.º do CPP, teria de ser invocada pelo próprio arguido[10] até que a assistente tivesse terminasse o acto de prestação das suas declarações – art.º 120.º, n.º 3, al. a), do CPP. Não tendo sido alegada, deve a mesma considerar-se sanada e, consequentemente, ser também negado provimento a este fundamento do recurso.

2.5. Na senda de alterar o decidido, o arguido/recorrente comina também o depoimento prestado pelo militar da GNR – K... – em audiência de julgamento com o vício de nulidade. Isto porquanto obtido em desvio ao regime estatuído no art.º 356.º, n.º 7, do CPP, em cujos termos, sabemos: “Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.”

Tal normativo visa impedir que se façam valer em sede de audiência de julgamento declarações cuja leitura não é permitida, alcançando-se esse objectivo através de depoimentos dos órgãos de polícia criminal que tiverem recebido tais declarações.

Ora, não é o caso dos autos, manifestamente.

Na verdade, este militar da GNR esclareceu que se deslocou a casa da assistente, descrevendo o estado em que ela se encontrava (chorosa e com dores no braço, queixando-se de ter sido atingida no braço por um objecto), bem como o estado de destruição do próprio interior da casa, e que, quando a ofendida estava no hospital, apareceu o arguido.

Tais factos resultavam já das declarações prestadas pela assistente, além de que é comummente aceite pela jurisprudência que o relato dos agentes policiais é válido e eficaz quando circunscrito à recolha de informações de que tiveram conhecimento no âmbito da investigação ou da recolha da prova, nomeadamente quando chegam a um local e se procuram inteirar do que se passou e como se terá passado.

Exemplificativo, mais uma vez, um aresto chamado à colação pelo recorrido Ministério Público na resposta dada na 1.ª instância[11], referindo em parte do seu sumário, e repetimos: “II - Todavia, é actualmente consensual o entendimento de que constitui depoimento válido e eficaz o relato de agentes de investigação (OPC´s) sobre recolha de informações ou outros dados e contribuições de que tomaram conhecimento no campo dos actos de investigação e outros meios de obtenção de prova, portanto, fora do âmbito de diligências processuais formais – como sucede com os interrogatórios ou tomadas de declarações – desde que essa recolha não devesse ter sido submetida a tal formalismo.”

Nestes termos, e sem mais considerações, naufraga então também este fundamento da impugnação.

2.6. Embora en passant, o arguido comina a decisão recorrida com o vício de falta de fundamentação, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 374.º, n.º 2, do CPP.

Tudo, depreende-se, facilmente, porque depois de cominar as declarações da assistente e do militar da GNR com o vício de nulidade e de, na sua perspectiva das coisas, o Tribunal a quo não ter precisado a conformidade do depoimento da testemunha D... com o facto que deu por assente de a relação mantida entre o arguido e a primeira ter cessado em Fevereiro de 2014, emergiria, então, a alegada falta de fundamentação.

Também aqui falece o intuito impugnatório do recorrente.

Com efeito, e justificámos anteriormente, as declarações da assistente e da testemunha K... são válidos e foram devidamente apreciados de acordo com os critérios legais definidos; o mesmo se diga relativamente ao depoimento da testemunha D... acolhido na decisão recorrida em termos perfeitamente condizentes com o aí explanado na motivação probatória, e que nunca depôs nos termos reclamados pelo arguido, concretamente de que ainda subsistiria nos finais de Fevereiro e no dia 5 de Março (ambos de 2014), o relacionamento entre o mesmo e a ofendida.

2.7. O exercício da acção penal mostra-se por vezes condicionado à observância de requisitos específicos alheios aos elementos tipicidade, ilicitude e culpa fundamentais para o emergir da consideração de um facto como crime.

Pensamos, por exemplo, naqueles casos cujo procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, em que é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular (cfr. art.º 50.º, n.º 1).

Acobertado nesta regra, o arguido controverte a sua condenação pela prática de um crime de furto simples e de um outro de dano, pois que, vivendo à data do seu cometimento em condições análogas às dos cônjuges com a assistente, os mesmos assumiriam natureza particular e daí impor-se a acusação correspectiva pela ofendida, que não se verificou.

É certo que por virtude das disposições conjugadas dos art.ºs 207.º, al. a) [“No caso do art.º 203 (….), o procedimento criminal depende de acusação particular se: a) O agente for (….) da vítima, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges;”] e 212.º, n.º 4 [“É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos (…) e 207.º.”], nestas situações os propalados crimes assumem natureza particular.

Sucede, porém, que os mesmos foram ambos perpetrados, quando, de acordo com a matéria de facto irremediavelmente assente, a exigível vivência entre o arguido e a assistente não assumia já os contornos análogos aos dos cônjuges, e, por isso, os ilícitos assumissem, então, e antes, natureza semi-pública.

Vale por dizer, em conclusão, que também não procede este fundamento do recurso.

2.8. Item seguinte a reclamar ponderação, o que contende com a natureza de concurso que intercede entre os crimes de furto e de burla informática praticados pelo arguido/recorrente.

A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade ide infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no art.º 30.º a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente[12].

O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.

A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal. Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).

O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).

Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração - concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.

A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consumpção.

Especialmente difícil na sua caracterização é a consumpção. Diz-se que há consumpção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor[13].

A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode, pois, encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial.

O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe, efectivamente, unidade ou pluralidade de crimes, id. est, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime. Ao critério de bem jurídico têm de ser referidas as soluções a encontrar no plano da teoria geral do crime, sendo a matriz de toda a elaboração dogmática[14].

Consabidos os contornos e bem jurídico tutelado pelo crime de furto, vejamos, então, em traços largos, de iguais elementos respeitantes ao crime de burla informática.

O crime de burla informática está previsto no art.º 221.º, n.º 1, com os seguintes elementos de tipicidade, intenção específica e resultado: «Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento».

No plano da tipicidade, como se vê da descrição especificada e concretizada, é um crime de execução vinculada, no sentido de que a lesão do património se produz através da intromissão nos sistemas e da utilização em certos termos de meios informáticos. E é um crime de resultado – embora de resultado parcial ou cortado – exigindo que seja produzido um prejuízo patrimonial de alguém.

A tipicidade do meio de obtenção de enriquecimento ilegítimo (com o prejuízo patrimonial de alguém) consiste, como resulta da descrição do tipo, na interferência «no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático», na «utilização incorrecta ou incompleta de dados», em «utilização de dados sem autorização» ou na «intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento».

Dos vários modos vinculados de execução típica, importa, no caso, considerar a «utilização de dados sem autorização», uma vez que os restantes modos de execução descritos na norma não têm qualquer projecção aproximada perante os elementos factuais provados e a situação específica sub judice.

Mas, para situar o âmbito dos elementos da tipicidade que definem ao mesmo tempo os limites da incriminação e o modo vinculado de execução, a «utilização de dados sem autorização» tem de ser perspectivada em um modelo geral de conformação que permita, numa lógica intra-sistemática, assimilá-la funcional, material e valorativamente aos restantes modos vinculados de execução.

A perspectiva geral de enquadramento do tipo remete, especificamente, para a interferência e a intromissão ilegítimas, abusivas ou intencionalmente incorrectas em dados e/ou programas informáticos, com a intenção de obter um enriquecimento ilegítimo.

Pela amplitude da descrição, o tipo do art.º 221.º, n.º 1, parece constituir um plus relativamente ao modelo de protecção contra o acesso ilegítimo a um sistema ou rede informática, previsto no art.º 7.º da Lei n.º 109/91, de 17 de Agosto (Lei da Criminalidade Informática).

A dimensão típica remete, pois, para a realização de actos e operações específicas de intromissão e interferência em programas ou utilização de dados nos quais está presente e aos quais está subjacente algum modo de engano, de fraude ou de artifício que tenha a finalidade, e através da qual se realiza a específica intenção, de obter enriquecimento ilegítimo, causando a outra pessoa prejuízo patrimonial.

Há-de estar, pois, sempre presente um erro directo com finalidade determinada, um engano ou um artifício sobre dados ou aplicações informáticas – interferência no resultado ou estruturação incorrecta de programa, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou qualquer intervenção não autorizada de processamento.

Daí o nomen (“burla informática”) introduzido com a Reforma de 1995, em adaptação da fonte da disposição, a “Computerbetrug” do artigo 263a do “Strafgesetzbuch” alemão, novo tipo penal, surgido em 1986, que prescinde, no entanto, do engano e do correlativo erro em relação a uma pessoa.

Mas, prescindindo do erro ou engano em relação a uma pessoa, prevê, no entanto, actos com conteúdo material e final idênticos: manipulação dos sistemas informáticos, ou utilização sem autorização ou abusiva determinando a produção dolosa de prejuízo patrimonial. O tipo pretendeu abranger a utilização indevida de máquinas automáticas de pagamento (ATM), incluindo os casos de manipulação ou utilização indevida no sentido de utilização sem a vontade do titular.

Na base do artigo 263a do código penal alemão terá estado precisamente a utilização abusiva de ATMs e as dificuldades dos tipos penais tradicionais de conteúdo patrimonial, designadamente a burla, para proteger adequadamente o bem jurídico face a novas modalidades de ataque[15].

Na interpretação conjugada e também no primeiro módulo da interpretação de uma disposição penal (a identificação dos elementos do tipo, na descrição chegada à letra, por respeito para com os princípios da tipicidade e da legalidade), os nomina têm relevância pelas referências conceptuais na unidade do sistema para que apontam ou que pressupõem.

A burla informática, por isso, na construção típica e na correspondente execução vinculada, há-de consistir sempre em um comportamento que constitua um artifício, engano ou erro consciente, não por modo de afectação directa em relação a uma pessoa (como na burla – ar.º 217.º), mas por intermediação da manipulação de um sistema de dados ou de tratamento informático, ou de equivalente utilização abusiva de dados.

As condutas típicas referidas no art.º 221.º, n.º 1 constituem, assim, na apreensão intrínseca e na projecção externa, modos de descrição de modelos formatados de prevenção da integridade dos sistemas contra interferências, erros determinados, ou abusos de utilização que se aproximem da fraude ou engano contrários ao sentimento de segurança e fiabilidade dos sistemas.

Este modelo típico contém, por outro lado, indicações materiais sobre o bem jurídico protegido.

O bem jurídico protegido é essencialmente o património; o crime de burla informática configura um crime contra o património, por comparação e delimitação com os bens jurídicos protegidos em outras incriminações, referidas à tutela de valores de natureza patrimonial ou de protecção da própria funcionalidade dos sistemas informáticos[16].

A inserção sistemática constitui, neste aspecto, um elemento relevante para a definição e delimitação do bem jurídico protegido.

A coordenação entre a natureza do bem jurídico protegido e a especificidade típica como crime de execução vinculada supõe que a produção do resultado tenha de ser determinada por procedimentos e acções que sejam tipicamente vinculados na descrição específica da norma que define os elementos materiais da infracção.

Importa, por isso, testar o caso também no plano da unidade ou pluralidade de infracções quando confluam elementos de outras infracções contra o património.

Em casos tais a resolução das situações tem sido procurada através da indagação acerca da resolução criminal do agente, como bem refere a sentença recorrida (fls. 20 e segs.), trecho que, por exaustivo, acompanharemos[17].

E, em síntese, o que daí se extrai é uma tríplice hipótese de situações:

Se aquilo que o agente pretendeu aquando da apropriação ilegítima de um cartão multibanco foi obstar à disponibilidade da fruição das utilidades da coisa/cartão ou apropriar-se pura e simplesmente do mesmo (porque furtou uma carteira por exemplo e ali dentro se encontrava o cartão) e, posteriormente, já na posse do cartão e do código decidiu usá-los, introduzindo o cartão e inserindo o código num ATM, com a intenção de se apoderar de quantias que não lhe pertenciam, causando prejuízo à vítima, teremos um concurso real de crimes (furto/roubo e burla informática) porquanto se verificam duas resoluções criminais, acrescentando a segunda resolução um plus à primeira que não se confunde com a mesma, tendo autonomia típica ou valorativa.

Se a resolução criminal do agente sempre foi por qualquer meio que lhe viesse a ser possível, única e exclusivamente, apropriar-se de bens ou quantias que não lhe pertenciam e, dentro dessa mesmo resolução, utiliza um cartão multibanco e respectivo código, então teremos uma situação de concurso aparente do crime de furto ou roubo (consoante a factualidade em causa) com o crime de burla informática atendendo-se a que a resolução mais forte é efectivamente a da apropriação de coisa móvel alheia e a posterior utilização do cartão com o número nada acrescenta à resolução que conformou a obtenção dos referidos elementos: constitui apenas o acabamento, em unidade, da mesma acção empreendida, sem autonomia típica.

Por outro lado, se a apropriação ilegítima do cartão teve, ab initio, como escopo a posterior utilização do mesmo por forma a lograr-se a apropriação ilegítima de quantias que não lhe pertenciam, estaremos numa situação inversa, em que a resolução criminal mais forte e que mais prementemente se faz sentir é a da tipicidade que se pretendeu abarcar com o crime de burla informática, pelo que estaremos perante uma situação de concurso aparente com o crime de furto/roubo em que a resolução deste ilícito criminal é abrangida pela tipicidade do crime de burla informática.

Nesta perspectiva, e ante o acervo factual provado, o que se deve concluir é que ocorreu uma única e contínua resolução criminal por parte do arguido quando o mesmo retirou o cartão à assistente, uma vez que se provou tê-lo feito na intenção de lhe vir a dar uso e desta forma lograr apropriar-se de quantias que não lhe pertenciam, causando prejuízo à vítima. De não olvidar que o agente tinha conhecimento do código Pin daquele cartão.

Coisa diversa seria acaso o arguido apenas tivesse tirado o cartão à assistente com o intuito e o propósito de impedir a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa por parte da vítima, tendo posteriormente adoptado uma outra resolução, a de o usar, adoptando um dos meios de execução consagrados no art.º 221.º, por forma a apropriar-se de quantias que não lhe pertencessem, causando prejuízo à vítima, o que nos presentes autos, manifestamente, não sucedeu.

Ou seja, no que concerne ao crime de furto imputado ao arguido em virtude de ter retirado o cartão multibanco à assistente, sem que esta lhe desse autorização para tal, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que agia contra a vontade desta, não pode o mesmo proceder atendendo a que o conteúdo de injusto do crime de burla informática abrange, incluindo-o, outro tipo de modo do crime de furto expressando, de um ponto de vista jurídico, de forma exaustiva o desvalor da conduta do arguido - verificando-se quanto a este aspecto em concreto uma situação de concurso aparente de crimes.

A actuação do arguido/recorrente integrou pois a prática de um crime de furto simples, p.p.p. art.ºs 203.º, n.º 1 e 202.º, al. c), relativamente à circunstância de ter retirado do veículo propriedade da assistente as colunas

e a chapeleira que existiam no mesmo, atento o valor de € 60,00 de tais objectos.

Por outro lado, e visto mostrar-se assente que o mesmo agindo de forma livre, voluntária e consciente, entrou na casa da assistente e dali retirou e levou consigo o cartão bancário, que não lhe pertencia, que fez seu, e que usou em seu único e exclusivo proveito, e que actuava contra a vontade, sem autorização e em prejuízo da proprietária do bem, resultado esse que representou, procurou e logrou alcançar, bem como com a intenção de se apropriar de todo o dinheiro que estivesse na respectiva conta, que usou em seu único e exclusivo proveito através de levantamentos e pagamentos realizados, de que beneficiou, bem sabendo que o cartão e o dinheiro não lhe pertenciam, que lhe estava vedado usá-lo quer para levantamentos quer para pagamentos e que ao assim agir actuava contra a vontade, sem autorização e em prejuízo da proprietária do cartão e do dinheiro, resultados esses que representou, procurou e logrou alcançar.

Que, através do uso daquele cartão, o arguido se apoderou dos montantes levantados, em numerário, gastando-o em proveito próprio, tendo também ficado com os bens adquiridos e/ou consumidos com recurso a tal cartão.

Que tinha perfeito conhecimento de que ao digitar os códigos de acesso no sistema informático da rede ATM introduzia nesse sistema dados que lhe permitiam desencadear o acesso à conta bancária a que aquele cartão estava adstrito, o que lhe possibilitava o débito na mesma dos levantamentos e pagamentos que realizou, tendo perfeita consciência que tal lhe estava vedado sem a autorização da titular do cartão de crédito e que ao assim agir intervinha naquele processamento de modo não autorizado.

Agiu com o propósito concretizado de obter para si benefícios económicos que não lhe eram devidos, bem sabendo que ao fazê-lo causava um prejuízo de igual valor à sua legítima titular, B... s e que agia sem consentimento e contra a vontade desta.

Agiu ainda com intenção de ludibriar as máquinas de levantamento automático de dinheiro, agindo como se da legítima titular do cartão se tratasse, o que logrou fazer. Conclusão, assim, a de que se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de burla informática que era imputado ao arguido.

2.9. Último ponto de irresignação do recorrente, o que respeita ao quantum de pena arbitrada como punição pela prática do crime de violência doméstica. Para o efeito, alegou que as exigências de prevenção geral e especial reivindicadas no crime em questão são tanto maiores, quanto maior, a proximidade da vítima e o seu autor; in casu, provadas várias acções injuriosas e uma agressão física, esta última no preciso momento da conturbada separação não são representáveis posteriores e sucessivas agressões; a censura corporizada em pena, sensivelmente a meio da moldura penal abstracta, é desproporcionada, por excessiva, com preterição ao princípio da proporcionalidade vigente neste domínio (cfr. art.º 71.º).

A propósito da determinação da medida desta pena parcelar, exarou-se na decisão recorrida: «Como supra se deixou referenciado, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.ºs 2, 4 e 5 do Código Penal, incorre o arguido na pena abstracta de 2 a 5 anos de prisão.

Assim, não conferindo a lei alternativa à aplicação, a título principal, de uma pena desta natureza, há que determinar a sua medida concreta, tendo em conta os critérios e os factores elencados nos artigos 71.º e 72.º do Código Penal.

No caso concreto, importa, desde logo, considerar que estamos diante de um crime em que são elevadíssimas as exigências de prevenção geral, o que se reflecte inclusivamente na circunstância de lhe ter sido, recentemente, atribuída natureza pública.

Na verdade, a enorme frequência com que este ilícito tem vindo a ser praticado nos últimos anos no nosso país, quase sempre associado a estruturas familiares desequilibradas, em que a vítima aparece colocada numa posição de inferioridade física e psicológica relativamente ao agressor, eleva ao mais alto grau de tutela a proteção conferida a este tipo de crime, reflectindo-se na sua forma de punição as preocupações comunitárias relativas à salvaguarda da integridade destas vítimas em especial.

Apreciando os critérios do artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal, que influenciam a pena pela via da culpa, sendo certo que a ilicitude também releva por essa via, deve considerar-se:

- a ilicitude é elevada;

- durante o tempo que residiram juntos era comum o arguido chamar “filha da puta” à ofendida e dizer-lhe “vai para o caralho”";

- o arguido não se encontra inserido social ou profissionalmente;

- em virtude da agressão perpetrada pelo arguido resultaram consequências muito gravosas para a ofendida, ficando com o cúbito do braço partido, tendo a mesma de ser submetida a uma cirurgia, e impossibilitada de exercer a sua actividade profissional durante cerca de um ano;

- o grau de culpa é já elevado, atendendo à forma de actuação do arguido que foi adequada a infligir maus tratos físicos e psíquicos à sua ex-companheira;

- e o dolo é directo.

No que respeita à prevenção especial, salienta-se as condenações pela prática de crimes que o arguido já sofreu, algumas delas em penas de prisão ainda que suspensas na sua execução, sendo de concluir que a prática dos factos agora em análise não permitem ao Tribunal fazer qualquer outro juízo que não seja o de que tais penas não foram suficientes para que o arguido não voltasse a delinquir.

Ademais, face ao que se provou ao nível das competências pessoais do arguido e que já se encontra supra analisado aquando da ponderação das penas acima fixadas e que se não se volta a repetir por desnecessário, entende o Tribunal que também é elevada a prevenção especial.

Tendo em conta estes elementos, e as necessidades de prevenção geral e especial, o Tribunal decide condenar o arguido A... na pena de 2 anos e 8 meses de prisão.»

Além da já aludida menção genérica, e do epíteto de “desproporcionada, por excessiva” que o arguido atribui à pena em causa, verdade é que nenhuma circunstância adianta que não tenha sido – devendo-o ser – analisada ou que tivesse sido indevidamente considerada.

Pelo contrário, e daí a sua transcrição in totum, as mencionadas pela decisão recorrida mostram-se em forma consentânea com a realidade factual apurada e situando-se a pena concreta em apenas dois meses excedendo a média da pena abstractamente aplicável, nenhuma censura se justifica fazer.

Derradeira nota no sentido em que se não descortina se o arguido/recorrente controverte a opção feita relativamente á punição em pena detentiva dos demais ilícitos tidos por praticados, quando aos mesmos eram também aplicáveis penas não detentivas.

Em todo o caso, reitera-se que também nesses segmentos bem ajuizou o Tribunal a quo, pois, nomeadamente, perante o seu percurso criminal anterior e condições pessoais de vida, são aquelas que realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, isto é, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, isto sem ultrapassar a medida da culpa (cfr. art.º 70.º e 40.º, n.ºs 1 2).


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III – Dispositivo.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A... , confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a três unidades de conta (art.ºs 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).


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Coimbra, 7 de Março de 2018

Brizida Martins (relator)

Orlando Gonçalves (adjunto)

 


[1] Diploma de que serão os normativos a citar, quando sem menção expressa da origem.
[2] Vulgo, doravante, CPP.
[3] Proferido no âmbito do recurso n.º 1014/11.0 PHMTS.P1, acessível no sítio www.dgsi.p, e que aqui reproduzimos: «A omissão, por parte do tribunal, do dever de informação previsto no art.º 134.º n.º 2CPP, constitui nulidade a arguir pelo declarante/assistente, até final da prestação das suas declarações.»
[4] Prolatado no âmbito do processo n.º 564/14.1 PBCHV.G1, sendo Relatora a Exma. Desembargadora Ausenda Gonçalves, acessível em www.dgsi.pt e cujo sumário reproduzimos aqui e agora: «II – Todavia, é actualmente consensual o entendimento de que constitui depoimento válido e eficaz o relato de agentes de investigação (OPC´s) sobre recolha de informações ou de outros dados e contribuições de que tomara conhecimento no campo dos actos de investigação e outros meios de obtenção de prova, portanto, fora do âmbito dos actos de investigação e formais – como sucede com os interrogatórios ou tomadas de declarações – desde que essa recolha não devesse ter sido submetida a tal formalismo.»
[5] Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª edição actualizada, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 404.
[6] Respectivamente processos n.ºs 95/10.9 GACPV.P1, e182/13.1 PAVFX.S1, ambos acessíveis in http://www.dgsi.pt.
[7] Apud Medina de Seiça, “O Conhecimento Probatório do Co-arguido”, Boletim da Faculdade de Direito, STVDIA IVRIDICA, 42, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pág. 98.
[8] Considerando estarmos perante uma verdadeira proibição de prova ou de valoração de prova, entre outros: Professor Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pág. 203; Professor Paulo Pinto de Albuquerque, idem, pág. 360; Ac. do TRC, de 25/06/2014, Pº 313/10.3 TACNT-A.C1; Ac. do TRE, de 03/06/2008, Pº 1991/07-1; Ac. do TRP, de 22/10/2014, Pº 135/13.0 GCLMG.P1; Ac. TRC, de 25/06/2014, Pº 313/10.3 TACNT-A.C1. Considerando estarmos perante uma nulidade, a arguir nos termos do art.º 120.º, n.º 3, al. a), do CPP: Professor Paulo Sousa Mendes, “As Proibições de Prova no Processo Penal”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coimbra, 2004, Almedina, págs.149 e 150; Juiz Conselheiro Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, Reimpressão, Coimbra, Almedina, 2014, p. 533; Ac. do STJ, de 11/02/2015, Pº 182/13.1 PAVFX.S1; e Ac. do TRP, de 09/11/2016, Pº 313/13.1 EAPRT.P1.
[9] Relativamente a este dever, ver art.º 132.º, n.º 1, máxime al. d), do CPP.
[10] “Interessado” para efeitos do disposto no art.º 120.º, n.º 1, do CPP, porquanto titular do direito protegido pela norma violada, no sentido em que pode ter questionado o seu direito amplo de defesa.
[11] Ut supra nota 4.
[12] Ac. do STJ, processo n.º 08P2817, acessível em www.dgsi.pt.
[13] Cfr. v. g. JeschecK e Thomas Weigend, in Tratado de Derecho Penal, 5.ª edição, págs. 788 e ss.
[14] Cfr. Ac. do STJ, in processo n.º 1942/06-3.ª.
[15] Cfr., v. g., José António Choclán Montalvo, “El Delito de Estafa”, ed. Bosch, 2000, p. 287 e segs., desig. p. 23-294, mencionado no aresto do STJ que referenciámos na nota 12.
[16] Cfr. José de Faria Costa e Helena Moniz, “Algumas reflexões sobre a criminalidade informática em Portugal”, in “Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra”, Vol. LXXIII, 1997, p. 323-324; A. M. Almeida Costa, “Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, p. 328, segs.
[17] Vejam-se neste sentido acórdãos do STJ aí indicados: de 20.09.2006, in proc. 06P1942, Relator Cons. Henriques Gaspar; de 06.10.2005, in proc. 05P2253, Relator Cons. Simas Santos e de 05.11.2008, in proc. 08P2817, Relator Cons. Henriques Gaspar, todos disponíveis em www.dgsi.pt.