Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
222/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA A CRÉDITO
REGIME LEGAL
Data do Acordão: 06/14/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA - VARA MISTA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 653º, 690º-A, NºS 1 E 2, DO CPC . DEC. LEI Nº 41/2000, DE 17/3 .
Sumário: I – Em caso de impugnação da matéria de facto, a lei não impõe que seja feita a especificação dos meios probatórios invocados nas conclusões apresentadas pelo impugnante, podendo sê-lo no corpo da motivação .

II – O controle, pela Relação, da decisão proferida sobre a matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação ou a transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar a capacidade de livre apreciação da prova pelo julgador de 1ª instância, onde este detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, com base apenas no juízo e razões que fundamentam a apreciação efectuada .

III – A transferência a crédito é uma operação bancária efectuada por iniciativa de um ordenante e realizada através de uma instituição de crédito, destinando-se a colocar quantias em dinheiro à disposição de um beneficiário . Quando a transferência se realiza dentro da mesma instituição de crédito designa-se de “ intrabancária “, e quando envolve duas instituições diferentes denomina-se “ interbancária” .

IV – Enquanto operação bancária, a transferência a crédito traduz-se num meio de pagamento, em sentido lato, sendo abstracta porque neutra em relação à causa subjacente, o que significa que a causa de atribuição patrimonial não influi na sua execução, e para o que não existe lei reguladora expressa, sendo apenas possível recolher alguns elementos jurídicos no DL nº 41/2000, de 17/3 .

V - Tal como para os cheques, também para a execução da ordem de transferência o banco tem o dever de verificar a sua autenticidade e regularidade formal, e se a ordem tiver sido dada por escrito impõe-se o controlo da assinatura do ordenante – artº 76º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL nº 298/92, de 31/12 .

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1.1. - A Autora – A..., com sede em Coimbra, - instaurou acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra a Ré – B..., com sede em Lisboa.
Alegou, em resumo:
A Autora era titular de uma conta de depósito à ordem na agência de Celas, Coimbra, do banco Réu, na qual havia depositado, em 1/2/02, a quantia de 4.000.001$00.
Esta conta apenas podia ser movimentada mediante a assinatura do seu gerente, C..., sendo a única que constava da ficha de assinaturas do Réu.
Sem autorização da Autora, a conta foi movimentada e transferida, em 28/2/2002, através de uma assinatura falsificada, que não a do legitimado gerente, para a conta de um terceiro, facto que só veio a ter conhecimento através de uma carta enviada pelo Réu.
O Réu recusa-se a devolver a quantia transferida e respectivos custos que lhe foram imputados.
Pediu a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de 17.864,36 €, acrescida de juros de mora, à taxa de 12%, que se vencerem desde 28/02/02 até efectivo pagamento.
Contestou o Réu, defendendo-se, em síntese:
Desconhece se assinatura e carimbo apostos no documento de transferência foram forjados, mas a existir a falsificação ela é tão perfeita que não seria possível ser detectada pelo funcionário que a recebeu, apesar se ter procedido à sua conferência por semelhança.
Concluiu pela improcedência da acção e requereu a intervenção acessória da sociedade “ PHARMA INC “, beneficiária da transmissão, e de D..., pessoa que alegadamente teria falsificado a assinatura e carimbo constante da ordem de transferência.
Admitido o incidente e citados os chamados, não deduziram qualquer contestação.
No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.

1.2. - Na audiência de julgamento ( cf. acta de fls.204 a 208 ), C... , arrolado como testemunha da Autora ( fls.148 ), aos costumes disse ter sido gerente desta nos anos de 2001 e 2002.
Antes da inquirição, o Réu opôs-se a que o mesmo fosse ouvido como testemunha, visto figurar no documento junto com a petição inicial como gerente da autora, devendo ser admitido como depoimento de parte.
Contrapôs a Autora, no sentido de ser ouvida como testemunha, pois deixara de ser gerente e a inabilidade ou incapacidade de alguém depor como testemunha afere-se no momento em que o depoimento é prestado.
Por despacho do M.mo Juiz de Círculo, decidiu-se não admitir o depoimento da testemunha C..., porquanto na data dos factos era sócio gerente da Autora, logo detinha na altura a qualidade de legal representante dela, estando inibida de depor com testemunha.

1.3. - Recorreu de agravo a Autora, - admitido com efeito devolutivo e a subir com o primeiro que subisse de imediato - formulando as seguintes conclusões:
1º) - A agravante é uma sociedade por quotas, sendo representada pelo seu único gerente;
2º) - O depoimento de parte da agravante é prestado pelo seu gerente;
3º) - A testemunha C... era gerente à data em que foram praticados os factos controvertidos nos autos, e já não o era no momento em que a acção foi proposta, nem no momento em que o seu depoimento como testemunha devia ser prestado;
4º) - Não estava impedido de depor como testemunha, por naquela data já não ser representante legal da agravante e não poder por isso confessar em sua representação;
5º) - O despacho recorrido que declarou impedido para depor como testemunha fez errada interpretação do disposto nos arts.617 e 553 do CPC.
Contra-alegou o Réu preconizando a improcedência do recurso.

1.4. - Concluído o julgamento, foi proferida sentença que, na procedência da acção, decidiu condenar o Réu a pagar à Autora a quantia de 17.864,36 € (dezassete mil oitocentos e sessenta e quatro euros e trinta e seis cêntimos), de capital em dívida, a que acrescem juros de mora vencidos e vincendos, sempre sobre o capital em dívida, à taxa de 12%, ao ano, desde 28/02/2002 e até efectivo e integral pagamento.

1.5. - Inconformado, o Réu recorreu de apelação, rematando com as seguintes conclusões:
1º) - Os autos contêm toda a matéria de facto que permite à Relação alterar a matéria de facto e dar como provada a matéria de facto divergente da que foi decidida em 1ª instância na resposta aos quesitos 5º, 8º e 13º, ao abrigo do art.712 nº1 a) do CPC.
2º) - A medida da culpa é apurada na falta de outro critério legal pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso ( art.487 nº2 do CC ), apreciação que se encontra totalmente omitida na fundamentação da sentença recorrida.
3º) - Não logrou a apelada provar a culpa do apelante na verificação do evento danoso, ao não ter ficado provado que a assinatura do ordenante, na ordem de transferência, não foi conferida à vista desarmada, antes pelo contrário ficou provado pela resposta ao quesito 14º que a assinatura do ordenante foi conferida à vista desarmada pelos funcionários do Banco Réu com a exigência de qualquer empregado bancário assume ao conferir assinaturas, isto é, com a diligência habitual e adequada.
4º) - Resulta também provado pela conduta da apelada que ela deu causa, pela conduta culposa ( donde até emergiu indiciação de conduta criminal que justificou a ida dos autos com vista ao Ministério Público ) que foi causa adequada à verificação do evento danoso.
5º) - Ao caso dos autos caberia assim, caso se entendesse – o que não ocorre – que hipoteticamente tivesse existido culpa do apelante, a aplicação da parte final do art.570 nº1 do CC, competindo ao tribunal determinar que a indemnização fosse excluída.
6º) - Caso se entenda que a causa necessita de ampliação da matéria de facto que permita expressamente apreciar a culpa ou negligência dos empregados do Banco e da própria Autora, deverá então ao abrigo do nº3 e 4 do art.712 do CPC ser ordenada a ampliação da base instrutória e realização de perícia científica do documento – ordem de transferência – que constitui a causa de pedir, cotejando mesmo com a ficha bancária junta aos autos e rubricas constantes dos cheques rubricados pelo gerente da Autora.

Contra-alegou a Autora, em síntese:
Deve ser rejeitado o recurso de facto, visto que o Réu não cumpriu cabalmente o art.690-A do CPC, pois não especificou nas conclusões os factos concretos que considera mal julgados na 1ª instância, nem tão pouco os que deverão ser dados como demonstrados em substituição daqueles.
Não há razões para alterar as respostas aos quesitos 5º, 8º e 13º.
O recurso deve ser julgado improcedente.
Caso a sentença não venha ser confirmada, pretende que o agravo seja conhecido.
II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Questão prévia:
A apelada suscitou a questão prévia da rejeição do recurso sobre a impugnação da matéria de facto, alegando que o apelante não cumpriu o ónus da especificação, nos termos do art.690-A nº1 do CPC.
Porém, contrariamente ao requerido, não há razões para rejeitar o recurso, pois o apelante especificou os pontos de facto incorrectamente julgados ( respostas aos quesitos 5º, 8º e 13º da base instrutória ) ( cf. 1ª conclusão ) e indicou os meios probatórios que impunham decisão diversa - depoimento das testemunhas ( Fernando Simões, Cláudia Natário, Catarina Rodrigues, Maria Regina dos Santos, Luís Miguel Ferreira e Nuno Miguel Branco ), conjugadas com o relatório de fls.172.
Quanto à especificação dos meios probatórios, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação ( cf., por ex., Ac do STJ de 20/11/2003, www dgsi.pt/jstj ).
É certo que relativamente aos depoimentos gravados o apelante não o fez por referência ao assinalado na acta, mas tendo procedido à transcrição parcial, o objectivo é o mesmo.
A razão de ser da exigência do ónus da especificação consta do preâmbulo do Dec.Lei nº39/95 de 15/2, visando afastar a possibilidade de o recorrente se limitar “a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo pura e simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância e manifestando genérica discordância com o decidido”, decorrendo ainda dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa fé processuais.
Deste modo, estando delimitado o objecto do recurso de facto, sendo perfeitamente inteligível, mostra-se cumprido o ónus da especificação imposto pelo art.690-A nº1 do CPC.
O apelante juntou com as alegações de recurso a transcrição integral dos depoimentos ( fls.335 a 396 ), consignando-se corresponder ao conteúdo da gravação de duas cassetes em apenso.
Improcede a questão prévia.

2.2. – Delimitação do objecto do recurso de apelação:
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
a) - Impugnação da matéria de facto ( respostas aos quesitos 5º, 8º e 13º );
b) - Se o Réu actuou culposamente na execução da ordem de transferência bancária.

2.3. – A impugnação da matéria de facto:
A revisão do Código de Processo Civil, operada pelo DL 329-A/95 de 12/2, instituiu, de forma mais efectiva, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto.
Porém, o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.
Desde logo, a possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no art.690-A nº1 e 2 do CPC.
Por outro lado, o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar ( até pela própria natureza das coisas ) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte, por isso, o princípio da livre apreciação da prova ( art.655 do CPC ) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.
Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reacções imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerando em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador.
Daí que em termos semióticos, a comunicação vá para além das palavras e mesmo estas devem ser valoradas no contexto da mensagem em que se integram, pois como informa LAIR RIBEIRO, as pesquisas neurolinguísticas numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder ( "Comunicação Global", Lisboa, 1998, pág. 14).
Por isso, já ENRICO ALTAVILLA escrevia que " o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" (" Psicologia Judiciária", vol. II, Coimbra, 3ª ed., pág. 12 ).
Contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão ( cf. MICHEL TARUFFO, “La Prueba De Los Hechos”, Editorial Trotta, 2002, pág.435 e segs. ).
De resto, a lei determina a exigência de objectivação, através da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador ( art.653 nº2 do CPC ).
Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Conforme orientação jurisprudencial prevalecente, o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.
Como se refere no Ac da RC de 3/10/2000 ( C.J. ano XXV, tomo IV, pág.27 ), “ o tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção ( que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova ), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova ( com os mais elementos existentes nos autos ) pode exibir perante si “.
Pois bem, é com base nestes princípios que se passa a aquilatar do recurso de facto.
Ao quesito 5º - ( “ A assinatura aposta na ordem de transferência não foi feita pelo gerente da A.? “ ) – o tribunal respondeu – Provado.
Ao quesito 8º - ( “ A dissemelhança entre a assinatura do gerente constante da ficha era visível a olho nú? “ ) – o tribunal respondeu “Provado”.
Ao quesito 13º - ( “ A ter existido “ falsificação “ da assinatura constante da ordem de transferência, ela é tão perfeita que qualquer observador experiente não logra detectar diferenças? “ ) – o tribunal respondeu “ Não provado “.

Fundamentação de fls.242 a 244:
Da fundamentação consta uma análise crítica dos depoimentos de cada uma das testemunhas, com indicação da razão de ciência e de uma súmula dos respectivos depoimentos, considerando-se relevante ainda o relatório pericial de fls.172 a 176.
Sobre as respostas aos quesitos 5º, 8º e 13º, exarou-se, designadamente o seguinte:
“ Relativamente à questão de saber quem ordenou a transferência, isto é a de saber quem assinou o documento que a originou, convenci-me de que não foi o sócio gerente da A.
E isto porque ninguém lhe atribuiu a respectiva autoria, sendo certo que tal documento foi entregue nas instalações do Réu já preenchido por outra pessoa que não ele, e conforme relatório acima referido, tudo aponta no sentido que não foi ele o seu autor.
Por outro lado, cotejando as rúbricas apostas no doc. de fls.16 e a aposta no doc. de fls.41, parece-me que entre ambas existem diferenças significativas, visíveis e notórias através do simples visionamento e comparação.
Por tudo isto me convenci de que tal rubrica não foi feita por si, mas por outrem.
Do que também deriva a resposta positiva ao quesito 8º “.
(…)
“ Idêntica resposta ao quesito 13º por isso não resultar da minha convicção, demonstrando-se ao invés a matéria do quesito 8º “.
Alegando erro notório na apreciação da prova, pretende o apelante que a Relação altere as respostas ( art.712 nº1 a) do CPC ), julgando-se não provados os quesitos 5º e 8º e provado o quesito 13º, com fundamento nos depoimento das testemunhas ( Fernando Simões, Cláudia Natário, Catarina Rodrigues, Maria Regina dos Santos, Luís Miguel Ferreira e Nuno Miguel Branco ), conjugadas com o relatório de fls.172 e a resposta aos quesito 14º.
Numa primeira observação, e com todo o respeito, há que referir que as passagens transcritas pelo apelante dos depoimentos das testemunhas, que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa, não traduzem a globalidade dos respectivos depoimentos, saindo, assim, claramente desvirtuados, quer porque são reproduzidas passagens avulsas, quer porque não reflectem, com rigor, toda a relação comunicacional estabelecida em audiência, designadamente, quando submetidas ao contra-interrogatório da parte contrária.
Como ilustração, por exemplo, o depoimento da testemunha Maria Regina, funcionária do banco, de capital importância, visto ter sido quem recebeu o documento da ordem de transferência, revelando algumas contradições e incoerências, designadamente quando para corroborar o seu depoimento sobre a verificação da semelhança das rubricas, afirmou que o carimbo da ordem de transferência era exactamente o mesmo que o da ficha de assinaturas ( fls.41 e 42 ), sendo certo que desta não consta qualquer carimbo da firma.
A convicção expressa pelo tribunal a quo sobre a resposta ao quesito 5º, de forma alguma pode ser contrariada pelos depoimentos das testemunhas.
Como se justificou na respectiva fundamentação, e corresponde aos depoimentos gravados, nenhuma das testemunhas atribuiu a autoria da assinatura da ordem de transferência ao gerente da Autora.
Desde logo os depoimentos das testemunhas Fernando Simões, cunhado do gerente da Autora, Cláudia Natário e Catarina Rodrigues, ambas empregadas de escritório da Autora, que confirmaram a reacção do gerente assim que teve conhecimento da transferência, tendo ficado surpreendido e nervoso, de tal forma que se dirigiu de imediato ao banco ( 8 de Março de 2002 ), escreveu uma carta nesse mesmo dia, tendo voltado a interpelar o gerente da agência bancária na segunda-feira seguinte, agora na companhia do cunhado, Fernando Simões.
Este facto foi, de resto, confirmado não só pelo depoimento de Fernando Simões, que descreveu a forma como interpelaram o gerente e a resposta deste, como pelos próprios funcionários do banco, Luís Ferreira ( gerente bancário ) e Maria Regina dos Santos, sendo coincidentes em afirmar que o gerente da Autora ( designado por elas por João filho ) negou ter sido ele a assinar a ordem de transferência.
Por outro lado, a testemunha Maria Regina, a quem foi entregue a ordem de transferência, disse claramente não ter visto quem a assinou e a preencheu, pois tais actos não foram efectuados na sua presença, confirmando ter sido o pai quem lhe fez a entrega.
Apenas a testemunha Nuno Miguel, funcionário do banco, afirmou ter a “convicção” de que a assinatura era do gerente da Autora ( João filho ), mas apenas por entender não existirem dissemelhanças entre as rubricas.
As testemunhas funcionárias do banco descreveram o procedimento sobre as ordens de transferência, cujo documento de suporte sendo interno do banco não está sujeito a registo mecanográfico, salientando a Maria Regina não ser muito usual que quem vai ao banco fazer a entrega da ordem de transferência seja o seu beneficiário, e não o mandante.
Por outro lado, da circunstância do gerente da Autora, João Miguel, haver entregue ao cunhado cheques em branco, assinados por si (cf. depoimento de Fernando Simões ), ou mesmo de ter sido visto na agência do banco com o pai ( cf. depoimentos de Maria Regina e Nuno Branco ), não se pode presumir, contrariamente ao preconizado pelo apelante, que tivesse sido ele ( João filho ) a preencher e assinar a ordem de transferência.
Acresce, como meio de prova relevante, o relatório pericial de fls.172, no qual se concluiu que a escrita constante do preenchimento do talão de transferência provavelmente não é da autoria de C..., embora quanto à rubrica suspeita não fosse possível a perícia, como aí se explicitou.
A matéria dos quesitos 8º e 13º contende com a prova documental, designadamente sobre a comparação entre as rubricas apostas no documento de fls.16 ( talão de transferência ) e no documento de fls.41 ( ficha de assinaturas ).
Inviabilizada a perícia às rubricas, também a nossa convicção coincide com a expressa pelo tribunal a quo, já que pela simples inspecção dos documentos se verifica existirem diferenças significativas, visíveis e notórias através do simples visionamento e comparação.
É certo que a testemunha Maria Regina declarou ter feito a conferência das rubricas, afirmando não ter dúvidas sobre a ” semelhança a olho nú”, mas uma coisa é o seu depoimento, outra a credibilidade e o convencimento do tribunal a quo, em face da oralidade e imediação, na relação intercomunicacional estabelecida na audiência, sobre a qual o julgador da 1ª instância está em melhor posição, pelas razões já expostas, escapando ao controle da Relação, que por isso mesmo não a pode sindicar.
O que objectivamente se pode recolher da gravação do seu depoimento é a existência de algumas contradições, como a já anotada, ou haver declarado inicialmente ter acompanhado a conta da Autora, não obstante ser gestora de particulares, para depois afirmar que só fazia intervenções pontuais.
Por fim, a reposta ao quesito 14º não implica a alteração das respostas aos quesitos 8º e 13º, não se verificando contradição entre elas.
Em face das considerações expostas sobre os critérios da valoração da prova e tendo o tribunal objectivado a sua convicção de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, com uma análise criteriosa, sem que se mostrem violadas as regras da experiência comum, a indicada pelo recorrente não impõe decisão diversa, pelo que improcede o recurso sobre a matéria de facto, mantendo-se intangível a descrita na sentença.

2.4. – Os factos provados:
1) - A A. é uma sociedade comercial por quotas, que tem como objecto social a comercialização de material farmacêutico.
2) - À data em que ocorreram os factos a que se reportam os presentes autos, era seu gerente e único representante legal C... ( cf. doc. de fl.s 10 a 13, aqui dado por reproduzido).
3) - A A. era titular da conta de D.O. nº 040200034423, aberta na agência do R. na Cruz de Celas, Coimbra, na qual aquela havia depositado, em 01/02/02, a quantia de 4.000.001$00, ou seja 19.951,52€.
4) - Tal conta apenas podia ser movimentada mediante a assinatura daquele gerente, sendo que da ficha de assinaturas, constante de fl.s 41, aqui dada por reproduzida, em posse do ora R. apenas constava a sua assinatura.
5) - A A. recebeu daquela agência do R. uma carta contendo os documentos de que se acha junta fotocópia a fl.s 14, aqui dados por reproduzidos, dos quais constava que em 28/02/02, da conta à ordem da A., havia sido transferida pelo banco R. para um terceiro a quantia de 3.581.206$00, ou seja 17.862,98 €, quantia essa que acrescida das despesas de expediente se traduziu no facto de a conta da A. ter sido debitada naquela data, em 17.864,36 €.
6) - No mesmo dia em que recebeu tais documentos, a A. enviou ao R. a carta junta, por fotocópia, a fl.s 15, aqui dada por reproduzida, na qual o seu representante alega que a assinatura que originou tal transferência foi falsificada e solicita o estorno da respectiva quantia, bem como que a transferência respeitava a pagamento de cheques que haviam sido cancelados.
7) - E, ainda nesse dia, o gerente da A. deslocou-se à agência do R. para averiguar o que se passara, tendo-lhe sido, então, fornecida por um funcionário deste a fotocópia do documento constante de fl.s 16, aqui dado por reproduzido, que foi o que deu origem à referida transferência.
8) - O documento de transferência ora referido não contém qualquer confirmação mecanográfica de registo ou data de operação.
9) - Consta do mesmo que a transferência se destinava ao pagamento de cheques “374, 385, 396, 400, 411, 422, 433, 193” e a A. havia comunicado ao Réu, através da carta junta a fl.s 17, aqui dada por reproduzida, datada de 12/07/01, a revogação dos cheques pós-datados nº 5700022363, 5500022374, 5300022385, 5100022396, 500022400, 1300022411, 1100022422 e 0900022433, sacados sobre a conta nº 00200034423 de que a sociedade A... é titular na agência em referência, com o fundamento, indicado, de a importância titulada por tais cheques já haver sido liquidada por outra forma.
10) - Comunicação essa que o ora R. havia recebido e aceite, não tendo pago aqueles cheques.
11) - Nenhum funcionário do ora R. contactou o gerente da A. antes de executar a referida ordem de transferência.
12) - A A. reclamou do R. o pagamento da quantia em causa, mas este recusou-lho, conforme carta de fl.s 18, aqui dada por reproduzida.
13) - A “Pharma Inc.”, administrada pelo Sr.D... também era titular da conta nº 040/200036741, junto do ora R., cf. doc. de fl.s 42, aqui dado por reproduzido.
14) - Para além da carta de instrução de revogação de cheques acima referida em I), o ora R. recebeu, ainda, a carta de instrução de revogação de cheques de fl.s 52 e 53, aqui dada por reproduzida, referente à revogação dos cheques pós-datados n.os 2539465193, 2339465204, 2139465215, 1939465226, 8039465230, 7839465214, 7639465252, 7439565263, 7239465274, 7939465381, 7039465285, 6839465296, 3239465300, 3039465311, 2839465322, 2639465333, 2439465344, 2239465355, 2039465366 e 8139465370, sacados sobre a conta n.o 00200034423, titularidade da sociedade “A...”, na agência em referência, com o fundamento, indicado, de a importância titulada por tais cheques corresponder ao pagamento indevido de um negócio não efectivado, nada mais tendo o respectivo portador a receber da sacada.
15) - O ora R. não pagou os cheques pré-datados juntos, por cópia, de fl.s 55 a 64, aqui dados por reproduzidos.
16) - A A. recebeu a carta referida em E), no dia 08/03/02.
17) - O representante da A. não deu ao ora R. qualquer ordem para ser efectuada a transferência referida em E), nem qualquer outra, nem verbalmente, nem por escrito, nem por qualquer outra forma.
18) - Não a consentira e nem sequer conhecia a sua existência.
19) - Só quando o seu gerente se deslocou ao banco R., como referido em G), é que ficou a saber que a beneficiária da transferência havia sido a sociedade “Pharma Inc”.
20) - A assinatura aposta na ordem de transferência não foi feita pelo gerente da A..
21) - A dissemelhança entre a assinatura que consta em tal ordem de transferência e a assinatura do gerente constante da ficha era visível a olho nu.
22) - O documento de transferência é um documento interno do banco R. e, de acordo com os usos e práticas bancárias do ora Réu, o mesmo é fornecido a qualquer dos seus clientes.
23) - No caso em apreço foi o Sr. D... quem entregou pessoalmente a ordem de transferência.
24) - A assinatura do ordenante foi conferida à vista desarmada pelos funcionários do Réu que a receberam e conferiram, como habitualmente o fazem.
25) - A ordem de transferência em causa, apesar de conter a data de 14/02, só foi apresentada ao balcão em 28/02, pelo que o ora R., teve que dar data-valor da operação, à da efectiva apresentação daquela ordem.
26) - Conforme assento de nascimento de fl.s 218 e 219, aqui dado por reproduzido, o gerente da ora A.- C... – é filho do chamado D....

2.5. - O Direito:
Sendo a Autora titular de uma conta de depósito à ordem no banco Réu ( balcão de Celas ), este, em 28/2/2002, debitou a quantia de € 17.864,36, em virtude da execução de uma ordem de transferência, dada nessa data por escrito, correspondente ao montante transferido de € 17.862,98 e despesas adicionais.
Comprovou-se que a ordem de transferência não foi emitida pelo representante legal da Autora, C..., que nem sequer conhecia a sua existência.
Sendo a ordem de transferência falsa, coloca-se a questão de saber quem deve suportar o prejuízo decorrente da actuação fraudulenta, se o banco ou o cliente.
A sentença recorrida concluiu pela responsabilidade do Réu, com base nos seguintes tópicos argumentativos:
a) - Tratando-se de um depósito irregular, a transferência da propriedade do dinheiro para o banco (depositário) implica correr por conta deste o risco de perecimento ou deterioração, não ficando exonerado o devedor quando, mesmo sem culpa sua, ocorra a perda da coisa depositada, ainda, assim, se mantendo a obrigação de devolução;
b) - O Réu não ilidiu a presunção legal de culpa do art.799 do CC, nem demonstrou que o evento danoso surgisse por causa imputável ao depositante.
A questão de direito suscitada no recurso contende exclusivamente com o problema da culpa, objectando o apelante que os elementos factuais disponíveis afastam a sua responsabilidade, tendo a sentença violado as normas dos arts.487 nº2 e 570 nº 1 do CC.
A transferência a crédito ( como no caso concreto ) é uma operação bancária efectuada por iniciativa de um ordenante, realizada através de uma instituição de crédito, destinando-se a colocar quantias em dinheiro à disposição de um beneficiário.
Quando a transferência se realiza dentro da mesma instituição de crédito, designa-se intrabancária e envolvendo duas instituições diferentes denomina-se interbancária.
Existem diversas formas para ordenar a transferência a crédito, desde a escrita processada no balcão do banco, à utilização do telefone, Multibanco ou da Internet.
A transferência pressupõe a abertura de uma conta, que marca o início de uma “ relação bancária complexa “ entre o banco e o cliente, estando associada ao contrato de depósito bancário.
A base argumentativa da sentença assentou no contrato de depósito bancário, por estar na “génese da presente acção”, com correcta e aprofundada caracterização dogmática, daí retirando-se as consequências para aferir da responsabilidade contratual do Réu, e a inerente obrigação de indemnizar, com impecável metodologia em sede de “círculo hermenêutico”, ou seja, na ligação entre o facto e a norma.
Para o enquadramento global do problema, e dada a estrita conexão, impõe-se avançar na compreensão do fenómeno global da transferência bancária, que segundo CATARINA ANASTÁCIO postula a distinção entre o económico e o jurídico, importando distinguir: a transferência enquanto operação bancária, a relação fundamental na qual encontra a sua justificação causal e as relações jurídicas bancárias pressupostas e necessárias à sua execução ( A Transferência Bancária, ed. Almedina, 2004, pág.93 e 94 ).
Enquanto operação bancária, ela traduz-se num meio de pagamento, em sentido lato, sendo abstracta porque neutra em relação à causa subjacente, o que significa que a causa de atribuição patrimonial não influi na sua execução.
No plano jurídico, consubstancia-se num vasto conjunto de direitos e deveres que permitem constituir um “ núcleo contratual autónomo distinto, quer da abertura de conta, quer do contrato de conta corrente, quer ainda de todos os serviços de outra natureza prestados pelo banco ( tal como sucede, aliás, com a convenção de cheque ) “, reconduzindo-se, assim a um “ contrato de transferência ou convenção de transferência “ ( cf. CATARINA ANASTÁCIO, loc. cit., pág.141 e 142 ).
Não existindo lei expressa a regular este contrato, é possível recolher alguns elementos do Dec.Lei nº41/2000 de 17/3, sobre o regime jurídico das transferências internas e internacionais.
Quer seja qualificado como “contrato de transferência” ou como “contrato de giro bancário” ( cf., por ex., MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Bancário, 2ª ed., pág.540 ), trata-se de uma variedade do mandato sem representação, ou seja, um mandato comercial ( art.231 do Código Comercial ).
Neste sentido, acentua CATARINA ANASTÁCIO -“ O contrato de transferência é um contrato de comissão em que o banco/comissário, agindo no interesse e por conta do ordenante/comitente, mas em nome próprio, desenvolve uma actividade destinada a cumprir a ordem/instrução que aquele lhe dirige e que consiste na colocação de fundos à disposição de um terceiro/beneficiário “ ( loc.cit., pág.158 ).
Com o contrato, fica o banco obrigado a executar as ordens de transferência recebidas, usando, para tanto, do dever geral de diligência, de lealdade e de cooperação, segundo o princípio geral da boa fé.
No âmbito do regime geral do mandato, dispõe o art.1162 do CC que o mandatário pode deixar de executar o mandato ou afastar-se das instruções recebidas quando seja razoável supor que o mandante aprovaria a sua conduta, se conhecesse certas circunstâncias.
Na situação específica do mandato comercial, esta faculdade transforma-se em obrigação, dados os especiais deveres de cuidado que impendem sobre o mandatário profissional, como se extrai do art.239 do Código Comercial, em que o mandatário é obrigado a participar ao mandante todos os factos que possam levá-lo a modificar ou revogar o mandato, sendo que na relação bancária este dever assume uma maior intensidade.
O contrato de depósito bancário não se encontra expressamente previsto na lei, embora haja diplomas que regulam algumas espécies de depósito ( por ex., DL 430/91 de 2/11; DL 269/94 de 25/10 ).
No entanto, o depósito bancário à ordem tem sido qualificado como depósito irregular ( arts.1205 e 1206 CC ), através do qual se opera a transferência da propriedade do dinheiro para o Banco, pois este pode utilizá-lo, sendo obrigado a restitui-lo, tese que arranca da génese histórica do instituto e da função de custódia ( cf. por ex, Ac STJ de 9/2/95, C.J. ano III, tomo I, pág.76, de 25/3/96, C.J. ano IV, tomo II, pág.83 ).
Outra teoria qualifica o contrato de depósito como um contrato de mútuo. Na verdade, o art.362 do Código Comercial, ao enumerar as operações de banco, não contempla do depósito bancário, mas o art.406 do mesmo diploma que prevê que o depositário pode servir-se da coisa entregue, para si ou para os seus negócios ( como é o caso do depósito bancário ) manda aplicar as regras do empréstimo mercantil do art.394 e segs., aponta para a qualificação do contrato de mútuo ( por ex., Ac STJ de 18/3/75, BMJ 245, pág.507, de 20/6/95, BMJ 448, pág.371 ).
Há quem o qualifique ainda de contrato misto de depósito irregular e de mútuo, contrato atípico, embora a tendência moderna é de conceber o depósito bancário como contrato bancário autónomo, pois que " o típico depósito bancário vai dirigido hodiernamente, menos à satisfação da necessidade da segurança ( custódia ) ou finalidades afins do que ao escopo de um serviço de caixa mediante o qual se opera a gestão da tesouraria do cliente bancário " ( SIMÕES PATRÍCIO, A Operação Bancária de Depósito, pág.35 ).
O depósito bancário insere-se no contrato bancário geral, em que da abertura da conta emergem relações bancária complexas e duradouras, integrando diversos elementos, como do depósito.
Como quer que seja, tanto a doutrina, como sobretudo a jurisprudência, têm defendido a tese de que a responsabilização pela integridade do depósito recai, em princípio, sobre o depositário/instituição bancária, desde que não se demonstre a culpa do depositante no irregular levantamento, ou seja, o risco que possa suceder na conta do cliente, quando não haja culpa deste, cabe ao banqueiro ( cf., por ex., MENEZES CORDEIRO, loc.cit., pág.525, CATARINA ANASTÁCIO, loc.cit.,pág. 378, Ac do STJ de 21/5/96, C.J. ano IV, tomo III, pág.82, de 3/3/98, BMJ 475, pág.715 ).
Situando-se o problema em sede de responsabilidade civil contratual, tendo por base tanto o contrato de depósito bancário, como o de transferência bancária, sobre o Banco impende a presunção legal de culpa, estabelecida no art.799 nº1 do CC, e tal como se decidiu no Ac do STJ de 9/11/2000 ( C.J. ano VIII, tomo III, pág.112 ), podem ocorrer três situações:
a) - Ou o banco logra demonstrar que agiu, no caso, concreto, com a diligência que lhe era exigível, afastando, assim, a presunção legal de culpa;
b) - Ou o banco faz apenas a prova da culpa do cliente ( sem conseguir demonstrar que agiu com a prudência que lhe era exigível ) e tanto basta para se eximir ao dever de indemnizar, por força do disposto no art.570 nº2 do CC ( sendo a presunção postergada pela prova da culpa do lesado );
c) – Ou se prova a negligência efectiva do Banco, para além da presunção que sobre ele já impende, mas faz-se igualmente prova da negligência do cliente, e na medida em que ambos concorrem para a produção do resultado, a responsabilidade poderá ser repartida, segundo o critério do art.570 nº1 do CC.
Estabelecendo-se no nº2 do art.799 do CC que a culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil, adoptou-se o critério do nº2 do art.487 do CC, ou seja, a culpa em abstracto, “ pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”.
Tal como para os cheques, também para a execução da ordem de transferência o banco tem o dever de verificar a sua autenticidade e regularidade formal e se a ordem tive sido dado por escrito impõe-se, antes de mais, o controlo da assinatura do ordenante, mediante a comparação entre a assinatura que figura no documento que titula a ordem e o “ speciemn “ fornecido pelo titular da conta constante da respectiva “ficha de assinatura”.
Ora, é precisamente no plano de omissão de deveres de diligência impostos pela actividade bancária que deve ser aquilatada a existência da culpa, enquanto nexo de imputação subjectiva do facto ao agente.
É ponto assente que a ordem de transferência em causa não foi dada pelo legal representante da Autora ( C...), não a consentira e desconhecia a sua existência, a assinatura nela aposta não é a dele e só ele tinha legitimidade para o efeito, o que significa estarmos perante uma ordem falsa ou falsificada.
A dissemelhança entre a assinatura que consta em tal ordem de transferência e a assinatura do gerente constante da ficha era visível a olho nu.
Para aferir do especial dever de diligência por parte do banco, expressamente imposto pelo art.76 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Dec. Lei nº298/92 de 31/12, há que contextualizar as circunstâncias em que surgiu a ordem de transferência, a exigir uma redobrada atenção, como se observou pertinentemente na sentença, ou seja, um especial dever de cuidado na sua execução.
Desde logo, a ordem de transferência foi entregue, em 28/2/2002, pessoalmente no balcão do Réu por outra pessoa que não o ordenante, mais precisamente pelo seu pai ( D... ) levando o impresso já preenchido e assinado e apesar de conter a data de 14/2/02, só foi apresentado em 28/2/02.
Por outro lado, a ordem de transferência destinava-se ao pagamento dos cheques nela expressamente mencionados, os quais a Autora já havia informado o Réu de que os mesmos não deveriam ser pagos, comunicação que este recebeu e aceitou.
Apesar disto, os funcionários bancários limitaram-se a conferir a assinatura aposta no documento de transferência, à vista desarmada, nos termos habituais, aceitando-a como boa, quando a dissemelhança entre a referida assinatura e a constante da ficha era visível a olho nú.
Daqui resulta haver sido violado o dever de cuidado a que estava adstrito, pois que detectado qualquer indício de anormalidade sobre a autenticidade do título, reforçada pelas circunstâncias em que foi apresentado, o banco deveria sobrestar a execução da ordem e solicitar a confirmação ao verdadeiro titular da conta, dever imposto pela norma do art.239 do Código Comercial, conforme já se anotou, pois que a aparência que justifica a liberação do banqueiro desaparece em caso de anomalia.
Como o dever de conferência da assinatura é verdadeiramente absoluto, o Banco só se libertaria da responsabilidade se conseguisse provar que, mesmo cumprindo escrupulosamente tal dever, não podia ter dado pela falsificação, o que não demonstrou, face à resposta negativa ao quesito 13º.
De resto, segundo entendimento de alguma doutrina, mesmo na hipótese de a assinatura aposta no documento e a que consta da ficha bancária estarem aparentemente conformes, embora tenha havido falsificação, é de aplicar a disciplina do art.770 do CC que nega eficácia liberatória à prestação feita ao credor aparente, logo só fazendo prova da culpa do cliente na falsificação é que ocorre a exoneração ( cf., por ex., JOSÉ MARIA PIRES Direito Bancário, pág.334 ).
Contrariamente ao preconizado pelo apelante, perante os elementos factuais disponíveis, nenhuma responsabilidade se pode imputar à Autora, uma vez que o documento usado para dar a ordem de transferência é um documento interno do banco Réu, que o fornece a qualquer dos seus clientes, sendo que a beneficiária da transferência também era sua cliente e se destinava a pagar cheques que já haviam sido objecto de comunicação de revogação recebida pelo Réu, pelo que a Autora em nada propiciou nem facilitou tal transferência, a que foi, totalmente alheia, como expressamente se justificou na sentença recorrida.
Carece de consistência o argumento aduzido para responsabilizar a Autora fundado na circunstância do Ministério Público haver solicitado certidão de determinadas peças processuais, afim de instaurar procedimento criminal ( cf. fls 276 ).
Por conseguinte, para além de não afastar a presunção legal de culpa ( art.799 nº1 do CC ), também não logrou demonstrar o apelante a culpa por parte da Autora, devendo, por isso, indemnizá-la.
Em resumo, não tendo sido violadas, por erro de interpretação ou aplicação, as normas jurídicas indicadas, improcede a apelação, confirmando-se a bem fundamentada sentença recorrida, ficando prejudicado ( art.710 nº1 do CPC ) o conhecimento do agravo.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente a apelação e confirmar a douta sentença recorrida.
2)
Condenar o apelante nas custas.
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Coimbra, 14 de Junho de 2005.