Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3020/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL DOS TRIBUNAIS
ACTO DE GESTÃO PÚBLICA
Data do Acordão: 12/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: -
Legislação Nacional: ARTº 51º, Nº 1, AL. H), DO ETAF – DL 129/84, DE 27/4.
Sumário: I – Para determinação da competência em razão da matéria é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo autor .
II – Compete aos tribunais administrativos conhecer das acções sobre responsabilidade civil do Estado, isto é, para a apreciação da responsabilidade civil do Estado por prejuízos provenientes de actos de gestão pública são competentes os tribunais administrativos .
III – A função de julgar - função judicial – sendo um acto de poder público do Estado e que se desenvolve numa evidente persecução de interesse público, tem que ser entendida como um acto de gestão pública .
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A..., com sede na Quinta da Sapateira, Ourém, propõe contra o Estado Português, a presente acção declarativa de condenação com processo sumário, pedindo que o R. seja condenado a pagar-lhe uma indemnização no montante que se liquidar em execução de sentença, correspondente ao valor que a viatura que identifica tinha no mercado em 1999, depois de deduzido o quantitativo que vier a determinar-se ser o das custas da execução que referencia e até ao montante global dos créditos que igualmente refere.
Fundamenta este seu pedido, em síntese, em virtude de, no exercício da sua actividade de reparação de automóveis, entre 3-9-92 e 13-3-94, ter efectuado diversas reparações numa viatura da sociedade B..., no valor global de 1.020.035$00, não tendo esta firma pago esta quantia a ela, A. Por isso, instaurou uma acção declarativa sumária à dita sociedade, com vista à sua condenação judicial. A R. Acabou por ser condenada por sentença de 10-4-00 a pagar-lhe a dita importância. Requereu então, por apenso ao processo, a execução da sentença, mas não conseguiu obter o ressarcimento do seu crédito, sendo que o veículo em que efectuou as reparações havia sido vendido a terceiro em 1998 e, em 1999, cessou a empresa qualquer actividade. Pese embora o elevado volume de trabalho que assola o tribunal, se a dita sentença tivesse sido proferida e notificada em 1996 ou 1997, teria logrado que se concretizasse a penhora da indicada viatura na execução de sentença e teria, desse modo, recebido o produto da venda e assim recebido o seu crédito. Por esta razão e nos termos das disposições que invoca, tem o direito a reclamar do R. o valor da indemnização que menciona, correspondente ao valor que a viatura tinha em 1998, depois de deduzido quantitativo da taxa de justiça e do saldo final das custas da execução.
1-2- O Magistrado do M.P., representando o R., contestou, alegando, também em síntese, que a A. não alegou todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, designadamente a ilicitude do facto, a culpa do A., o dano, e como e porque se verificou o nexo causal entre aquela e este. A A., dada a demora na prolacção da sentença, poderia ter tomado iniciativas no sentido de ultrapassar o impasse, o que não fez.
Termina pedindo a improcedência da acção.
1-3- A A. respondeu nos termos da sua resposta de fs. 72, sustentando a não ocorrência de qualquer excepção.
1-4- O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido despacho saneador, fixado os factos assentes e a base instrutória, realizado a audiência de discussão e julgamento e respondido a esta base, após o que foi proferida a sentença.
1-5- Nesta considerou-se a acção improcedente por não provada, absolvendo-se o R. do pedido.
1-6- Não se conformando com esta sentença, dela veio recorrer a A., recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.
1-7- Já nesta instância o relator deste acórdão suscitou a questão da incompetência absoluta do tribunal ( em razão da matéria ), mandando notificar as partes para se pronunciarem sobre a questão.
1-8- Sobre o assunto apenas se pronunciou a recorrente, sustentando a competência dos Tribunais Judiciais para conhecer do pleito, defendendo, outrossim, caso se venham a considerar estes tribunais materialmente incompetentes para o efeito, então os preceitos invocados para tal, devem ser declarados materialmente inconstitucionais, por violarem o disposto no art. 212º nº 3 da C.R.P.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Como se viu, o relator deste acórdão, suscitou a incompetência absoluta deste tribunal ( em razão da matéria ), nos termos dos arts. 101º e 102º do C.P.Civil.
Com a presente acção pretende a A. que o Estado seja condenado a pagar-lhe uma indemnização por virtude de ter sofrido danos em razão da demora de prolacção de uma sentença em processo judicial por si instaurado contra uma terceira entidade. Como se depreende da sua petição inicial e mesmo até através das suas alegações de recurso ( vide 1ª conclusão ), a A. demanda o Estado em virtude de se verificar que existe, no caso, a omissão do R. no exercício da sua função jurisdicional. Como fundamento jurídico da sua pretensão, baseou-se a A., designadamente, no que refere o art. 20º nº 4 da CRP segundo o qual “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”, sendo também certo que o art. 22º da Lei Fundamental consagra, em termos gerais, a responsabilidade civil do Estado pelas faltas dos serviços praticadas no exercício da função jurisdicional.
Como nos parece pacífico, para determinação da competência em razão da matéria, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo A., pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante, ou nas doutas palavras do Prof. Alberto Reis, é assim que se caracteriza o “modo de ser do processo” ( in Com. 1º, 110 ). Quer dizer que, para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, deve atentar-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante.
Portanto para aferir a competência em razão da matéria do tribunal, no caso vertente, haverá que atentar aos pedidos e causa de pedir já acima concretamente enunciados.
Colocada a causa sobre este prisma, somos em crer que carecem os tribunais judiciais de competência em razão da matéria para conhecer do pleito.
Como se sabe, decorre dos arts. 209º, 211º e 212º da CRP, existirem duas ordens de tribunais, uma delas encabeçada pelo Supremo Tribunal de Justiça e com jurisdição em todas as áreas não atribuídas às outras e a outra que tem como cúpula o Supremo Tribunal Administrativo, com competência para o julgamento das acções e recursos emergentes e que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas e administrativas.
Nos termos do art. 18º da LOFTJ ( Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais ) estabelece-se que as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais. É que os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não descriminada, gozando os demais, ou seja, os tribunais especiais, competência em relação às matérias que lhes são especialmente cometidas. A competência dos tribunais judiciais determina-se por pois um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias que não estiveram conferidas aos tribunais especiais. Haverá pois de determinar se existe qualquer norma, designadamente do ETAF ( Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Dec-Lei 129/84 de 27/4 -, em vigor na propositura da acção ) que atribua competência aos tribunais administrativos e fiscais para a presente acção, caracterizada, como já se disse, pelo pedido e causa de pedir já acima indicados.
De harmonia com o art. 51º nº 1 al. h) do ETAF ( Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Dec-Lei 129/84 de 27/4, hoje já revogado mas aplicável ao caso vertente ), compete os tribunais administrativos conhecer “das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso”. Isto é, para apreciação de responsabilidade civil do Estado por prejuízos proveniente de actos de gestão pública, são competentes os tribunais administrativos. Haverá assim que apurar se o facto gerador da responsabilidade em que fundamenta o demandante o seu pedido, reveste ou não um acto de gestão pública. E a resposta a esta questão só poderá ser afirmativa.
Com efeito, gestão pública, nas palavras do Prof. Marcelo Caetano “é a actividade da administração regulada pelo direito público ( Manual, 10ª edição, 2º vol. pág. 1222 ), ou como refere Vaz Serra ( RLJ 110º, 315 ), actos de gestão pública “são os praticados no exercício de uma função pública para os fins de direito público da pessoa colectiva, isto é, o regido pelo direito público e, consequentemente, por normas que atribuem à pessoa colectiva pública poderes de autoridade”. Ainda conforme se refere no Ac. do Tribunal de Conflitos de 5-11-81 ( BMJ 311º, 195 ) “actos de gestão pública são os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando eles mesmos, a realização de uma função pública de pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente ainda, das regras técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observados”. Poder-se-á portanto dizer que, quando a Administração Pública pratica um acto no exercício de um poder público, munida de uma posição de superioridade e no prosseguimento do interesse público, pratica um acto de gestão pública.
Significa isto que a função de julgar em cuja omissão o demandante baseia o seu pedido, sendo um acto que resulta do poder judicial, poder público do Estado e que se desenvolve numa evidente persecução de interesse público, tem que ser entendida como um acto de gestão pública.
Assim sendo, nos termos da disposição legal invocada, são os tribunais administrativos os competentes para conhecer do pleito.
Salientaremos ainda que face ao actual ETAF ( Lei 13/2002 de 19/2 ), a competência dos tribunais administrativos para conhecer da questão ainda é mais evidente, face ao que estabelece o art. 4º nº 1 al. g). Com efeito, esta disposição expressamente refere que compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público resultante do funcionamento da administração da justiça ( sublinhado nosso ).
2-2- No requerimento de resposta à questão levantada pelo relator deste acórdão sobre a eventual incompetência material dos Tribunais Judiciais para conhecer do pleito, a recorrente defende, como acima já se assinalou, que caso se venha a considerar esses tribunais materialmente incompetentes para o efeito, então os preceitos invocados para tal, devem ser declarados materialmente inconstitucionais, por violarem o disposto no art. 212º nº 3 da C.R.P.
Porém a recorrente não diz por que razão a norma em causa (concretamente o art. 51º nº 1 al. h) do ETAF, Dec-Lei 129/84 de 27/4 ), viola o dito artigo da Constituição. Fica-se pela afirmação genérica sem esboço de qualquer justificação para esse seu entendimento.
Contra o entendido pela A., a nosso ver, não ocorre in casu a violação do dito artigo da Constituição.
Na verdade, a disposição da lei fundamental em causa estipula que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento de acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Ora, na presente decisão considerou-se implicitamente, que, no caso vertente, está em causa uma relação jurídica administrativa, já que o acto omissivo em que a A. fundamenta a acção, resulta do poder judicial, poder público do Estado que, pelas indicadas razões, tem que ser entendido como um acto de gestão pública, cujo sujeito activo é o Estado e o sujeito passivo é ela, A.. Ou seja, ao invés de a norma ( que atribui competência aos tribunais administrativos ), contrariar aquele artigo da Constituição, está antes conforme com ele.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, declara-se este tribunal incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolve-se o R. da instância ( art. 102º e 105º nº 1 do C.P.Civil ).
Custas pela A.