Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3521/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARDOSO ALBUQUERQUE
Descritores: FALÊNCIA
VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO LABORAL
CRÉDITO GARANTIDO POR HIPOTECA
Data do Acordão: 03/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 200º, Nº 2, DO CPEREF, APROVADO PELO D.L. Nº 132/93, DE 23/04 ; 666~, 686º, 749º; 751º E 712º, DO C. CIV.; LEIS 17/86 E 96/2001 .
Sumário: I – O artº 377º do novo Código do Trabalho, sob a epígrafe de “privilégios creditórios” veio introduzir algumas modificações ao anterior direito, no fundamental consignadas na Lei dos Salários em Atraso – Lei nº 17/86 e Lei nº 96/2001 - , quer no âmbito dos privilégios, quer no regime de graduação do privilégio mobiliário geral, quer ainda na substituição do privilégio imobiliário geral, criado por aquela primeira lei e depois alargado a todos os créditos emergentes do contrato de trabalho referidos no nº 1 do artº 4º da segunda, por um privilégio imobiliário especial incidente sobre os bens imóveis da empresa nos quais o trabalhador preste a sua actividade, passando este a ter prevalência sobre direitos reais de gozo e de garantia de terceiros nos termos do artº 751º do C. Civ..
II – Porém, apenas ficam sujeitos a este novo regime os créditos constituídos desde o dia da respectiva entrada em vigor – 28/08/2004 - , isto é, 30 dias após a regulamentação da lei que aprovou o dito código, o que sucedeu pela Lei nº 35/2004, de 29/07, e desse regime ficaram fora os direitos que se tenham constituído antes dessa data e à luz de contratos que já se tenham extinguido antes da mesma, nos termos do seu artº 6º, nº 1 .

III – No seguimento da orientação jurisprudencial clara e amplamente maioritária do STJ, entendemos que o privilégio mobiliário e imobiliário geral concedido pelas Leis nºs 17/86 e 96/2001 aos créditos laborais, não pode prevalecer nem sobre a hipoteca que incida sobre quaisquer imóveis apreendidos para a massa falida, nem sobre o penhor constituído sobre bens móveis que se integrem na dita massa .

IV – No confronto entre os privilégios imobiliários gerais criados pelas ditas leis para tutelar os direitos dos trabalhadores e outros direitos reais de garantia sobre os mesmos bens, como é o caso da hipoteca, ou de sucessivas hipotecas constituídas voluntariamente sobre o prédio apreendido (artºs 686º e 712º do C. Civ. ) e devidamente registadas (artº 687º do C. Civ. ), que produzem efeitos entre as partes e em relação à massa falida e a terceiros, terão estes sempre que prevalecer, pois só os privilégios imobiliários especiais, os únicos que o C. Civ. prevê (porque dotados do direito de sequela), se traduzem numa garantia real de cumprimento das obrigações, limitando-se os gerais a constituir mera preferência de pagamento .

V – O privilégio (creditório) geral não vale contra terceiros titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas por ela abrangidos sejam oponíveis ao exequente, sendo que as leis de processo é que estabelecem os limites aos respectivos objecto e oponibilidade ao exequente ou à massa falida, bem como os casos em que ele não é invocável ou se extingue na execução ou perante a declaração de falência, sendo isso que determina o artº 749º do C. Civ. – nos termos da qual os direitos de crédito dos trabalhadores garantidos por privilégios mobiliários gerais, constantes das Leis nºs 17/86 e 96/2001, são preferidos pelos direitos de crédito de outrem garantidos por hipoteca .

VI – Existindo conflito entre os privilégios imobiliários especiais e os direitos de terceiro, rege o artº 751º do C. Civ., disposição segundo a qual aqueles são oponíveis a terceiros ou a um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca, ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores .

VII – Constituído validamente um penhor (civil ou mercantil), é ele oponível erga omnes e prefere ao privilégio geral (artºs 666º e 749º do C. Civ. ), pelo que os créditos laborais agasalhados com privilégio mobiliário geral não podem ser, quanto aos bens empenhados, graduados antes do crédito pignoratício .

Decisão Texto Integral:
Acordam na Relação de Coimbra:

I – No Tribunal Judicial da Marinha Grande e por apenso aos autos de falência da empresa “A...”, cuja sentença (transitada ) remonta a 21 de Abril de 1999, correu termos o processo de verificação e graduação de créditos, o qual terminou por sentença de 11 de Agosto de 2004, que procedeu ao reconhecimento de todos os reclamados e com os n ºs 1 a 311 do respectivo relatório e os graduou, depois, da forma seguinte :
a) Do produto da liquidação dos bens apreendidos sairão precípuas as custas e as despesas com a liquidação do activo, começando-se com as verbas despendidas com a remuneração do Sr Administrador ;
b) Do remanescente, dar-se–á pagamento a todos os trabalhadores com créditos verificados, seguindo–se a respectiva lista;
c) E de seguida, todos os restantes créditos comuns, sendo como tal identificados, entre outros, o da Caixa Geral de Depósitos de € 476.986.259,00
Esta sentença foi depois rectificada, a pedido de alguns dos credores e do Sindicato dos Trabalhadores da Industria Vidreira, (requerente da falência ) por conter algumas inexactidões e não fazer a conversão em euros dos montantes reclamados, mas mantendo a decisão reformulada de 2/11/2004 a mesma ordem de graduação, como data da falência a de 12 de Junho de 1998.
Inconformada, apenas recorreu de apelação a credora Caixa Geral de Depósitos S. A. a qual terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1 – A sentença não atendeu às garantias reais de que gozam grande parte dos créditos da ora recorrente, do Banco Totta e do BNU, graduando-os como créditos comuns.
2 –Nessa medida violou a douta sentença o nº2 do artº 20º do Cod. de Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência, quando não procedeu à graduação especial em obediência aos artºs 686º, 666º, 748º e 754ºdo CCivil.
3 – Nesta medida, deverá revogar-se a douta sentença por acórdão que atenda às garantias reais de que fruem alguns dos créditos reclamados pela ora recorrente .
4 – Os créditos salariais gozam apenas do privilégio previsto no artº 737º, nº1 , aln a) do CCivil que é um privilégio mobiliário geral, pelo que em circunstância alguma podem preferir os créditos garantidos por hipoteca, face ao disposto no arº 751º do mesmo diploma
5 – Mas a subscrever-se a tese de que tais créditos gozam de privilégio imobiliário geral previsto no artº 12º da Lei nº 17/86 de 14/06 e 4º da Lei nº 96/2001, ainda assim deverá tal crédito ser graduado depois do crédito hipotecário da apelante, porquanto:
6 – O CC que entrou em vigor em 1967 apenas prevê a constituição de privilégios imobiliários especiais – nº3 do artº 735º;
7 – O privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos laborais dos trabalhadores previsto na aln b) do nº1 do artº 12º da Lei nº17/86 e no artº 4º da Lei nº96/2001 constitui uma derrogação do princípio geral consagrado no nº3 do artº 735º do CC de que os privilégios imobiliários são sempre especiais;
8 – A citada Lei nº 17/86 não estabelece expressamente que os privilégios imobiliários gerais que instituiu abarcam todos os bens existentes no património do devedor, concretamente, a entidade patronal, nem sequer regula o concurso de tal privilégio com outras garantias reais, ou esclarece a sua relação com os direitos de terceiros;
9 – Assim a tais privilégios é inaplicável o princípio previsto no artº 751º do CCivil.
10 – Donde a tais privilégios por serem gerais, deve ser aplicado o regime previsto nos artºs 749º e 686º do CCivil, constituindo, pois, meras preferências de pagamento, só prevalecendo relativamente aos créditos comuns.
11- Consequentemente, face à lei ordinária, os direitos de crédito garantido por privilégios imobiliários gerais in casu os créditos laborais cedem na ordem de graduação, perante os créditos garantidos por hipoteca
12 – Através do Ac nº160/00, in DR II, de 10/10/00, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade das normas do artº 2º do DL 512/76 e 11º do DL 103/80 – créditos pelas contribuições da Segurança Social – e por acórdão proferido em 14/03/02 e no proc.nº 753/00, o mesmo tribunal declarou também a inconstitucionalidade do artº 104º do CIRS todas interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas contido prefere à hipoteca nos termos do artº 751º do CC;
13 – Tais declarações de inconstitucionalidade fundamentaram-se no facto de tais normas violarem o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito Democrático consagrado no artº 2 º e bem ainda o da proporcionalidade previsto no artº 18º, nº1 ambos da Constituição ;
14 – Os mesmos princípios e fundamentos aplicam-se mutatis mutandis aos privilégios imobiliários gerais de que beneficiam os créditos laborais ;
15 – Ora a interpretação em sentido inverso viola ainda os princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica, já que tal privilégio é de índole geral, sem qualquer conexão com o prédio sobre que incide e constitui um ónus oculto porquanto não é possível aos particulares indagarem sobre a existência desses créditos e apurarem o seu montante, vendo-se, assim confrontados e “ surpreendidos “ com uma realidade que não conheciam, nem podiam conhecer, podendo ver completamente prejudicado o pagamento dos seus créditos apesar de tudo terem acautelado tendo em vista a segurança e certeza jurídicas.
16 – Em face do exposto, as normas em causa e já referidas que artribuem aos trabalhadores o dito privilégio imobiliário geral e como tal prevalecente sobre a hipoteca são inconstitucionais e tanto assim que o legislador no novo Código de Trabalho, artº 377º, atribuiu preferência aos créditos laborais mas tão só quanto ao produto da venda do bem onde os mesmos trabalhadores exerceram a sua actividade.
Os trabalhadores da falida com créditos reconhecidos contra alegaram, produzindo extensa e douta peça, onde sustentam que os seus créditos prevalecem sobre a apontada hipoteca ou por aplicação da norma do artº 377º do novo Código do Trabalho, por gozarem de um privilégio mobiliário especial, nos termos da nova redacção do artº 751º do CCivil, ou mesmo que ao abrigo do privilégio imobiliário geral consagrado nas Leis nºs 17/1986 e 96/2001, por aplicação por analogia do mesmo normativo na sua anterior redacção ou o actual por interpretação , extensiva , analógica ou correctiva.
E quanto a este último ponto, referem que a interpretação proposta através de tal dicotomia é a única que :
a) Respeita o elemento literal das normas em análise;
b) Faz sentido, tendo em conta o elemento sistemático;
c) Respeita a finalidade de protecção dos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação, atribuindo-lhes preferência face à hipoteca , conforme quer o legislador e de forma evolutiva nas Leis nºs 17/86, 96/2001 e 377º do Cod. de Trabalho;
d) Cumpre o direito dos trabalhadores à retribuição do seu trabalho ( de natureza fundamental ) previsto na aln a) do nº1 do artº 58º da Constituição ;
e) Traduz uma solução para o problema em análise conforme a lei, mas também justa ;
f) Segue a linha definida pelo Tribunal Constitucional ( Ac nº498/2003, Proc. Nº 317/2002 de 22/10 ( in DR II, n2 de 3/01/2004) e em vasta e esclarecida jurisprudência.
Nesta instância e por o recurso ter subido em separado foram pedidas certidões do auto de arrolamento e apreensão de bens da falida, por a Senhora Juíza não ter discriminado os bens móveis e imóveis sobre que incidiam os privilégios e seguramente por lapso, não ter tido em conta haver créditos hipotecários, ( e também pignoratícios ) conforme o alegado pela recorrente e igualmente dos requerimentos de reclamação desta e documentos comprovativos das garantias e seu registo, o que determinou alguma demora na tramitação do recurso.
Instruído o recurso com essas certidões e após o seu exame, colhidos que foram os vistos legais , cumpre decidir.

II – Além dos factos já constantes do relatório, para que se remete, designadamente no que respeita à identificação dos créditos reconhecidos e graduados e respectivo quantitativo, cumpre anotar no que toca ao auto de apreensão de bens e às garantias do crédito reclamado pela Recorrente Caixa Geral de Depósitos, o seguinte :
- No auto de arrolamento e apreensão de bens, constam entre outros imóveis, aliás rústicos, como verba nº3, um prédio urbano , sito em Casal de Formiga, composto de vários pavilhões e que compõe a fábrica da falida, inscrita na matriz da freguesia da Marinha Grande sob o artº7616 e descrito na Conservatória sob o nº 100 e vários móveis que compunham o recheio da fábrica, escritórios, secção de fabricação, armazém, casa de compressores, serralharia mecânica, casa de electricista , de ferreiro, refeitório e dois veículos automóveis, tudo conforme a descrição de fls 177 a 186.
- Um dos credores reclamantes, ou seja, a Caixa Geral de Depósitos alegou e comprovou dispor de créditos sobre a falida garantidos por hipoteca e por penhor , nos termos seguintes:
- Concedeu à falida em 12/02/1974 um crédito de 16.000 contos garantido por hipoteca, mediante contrato de 12/02/1974 sobre o apontado edifício fabril, esta devidamente registada sob o nº33 do L C-1,
- A sobredita inscrição garante aquele dito crédito, os juros anuais à taxa de 7, 25%, 640.000$00 de despesas do contrato, sendo o montante máximo de capital e acessórios 20.120.000$00.
- Para além da hipoteca foi igualmente e por contrato de 27/06/1974 , constituído penhor sobre os bens e equipamentos descritos nas relações juntas que são os doc. n ºs 2 e 3;
- Esse crédito, bem como outros foram objecto de um contrato de viabilização em 6/11/1981 com a Caixa, o Banco Totta &Açores , o Banco Borges & Irmão e o já extinto BNU onde o passivo à data e perante a Caixa, teve o seguinte destino :
- 29.516 contos foram consolidados e
- 2 3.627 contos foram transformados em créditos a médio prazo
- Ficou, ainda clausulado que os créditos da Caixa consolidados e transformados continuariam a ser garantidos pela hipoteca e penhor, constituídos para o crédito anterior e que para garantia dos juros não englobados e da diferença de taxas seria constituída 2ª hipoteca e 2ª penhor
- Dando execução ao acordado, foram formalizados três empréstimos , garantindo os dois primeiros pela 1º hipoteca e 1ª penhor e o terceiro pela 2ª hipoteca e 2º penhor, esta por por contrato de 21/02/1985 e que se acha também registada
- Ainda de acordo com o convencionado no contrato de viabili zação , o diferencial de juros quantificado em 66.575.992$00 foi garantido por nova hipoteca tasmbém devidamente registada e que incidiu sobre o mesmo imóvel e por novo pernhor sobt re os bens móveis constantes das relações anexas aos cob ntratos
- Nos termos da cláusula 8ª do contrato de viabilização da falida, o sindicato bancário comprometeu-se a conceder um novo financiamento de 63.300 contos , cabendo à recorrente 49. 624 contos, tudo formalizado por escritura de 5/06/1985 e para garantia ao dito crédito e na respectiva proporção foi constituída outra hipoteca , registada pela inscrição nº 2168º dlo L C-6 e
- Também foi constituido um 2º penhor para garantia da quantia de 66. 575.992 e uma 4ª hipoteca sobre o mesmo imóvel, bem como 3º penhor em paridade com os demais bancos financiadores sobre bens móveis do equipamento que contam de duas relações e um 1º penhor também em pari idade com as demais instituições, constantes de uma outra relação
- A dívida global da falida ascendia a 24/04/99 a 467.986. 259$00, dos quais 94.444.038$00 fruindo de garantia hipotecária e 123. 691.302$00 de garantia pignoratícia


III -Isto posto, vejamos, então as questões postas no presente recurso e que tem que ver essencial mas não exclusivamente com a vexata questio de saber se no tocante ao imóvel abrangido pelas sucessivas hipotecas (voluntárias) feitas a favor da recorrente e no tocante aos créditos por ela abrangidos, de capital mutuado e de juros, contabilizados estes pelo período de três anos, máximo permitido pelo artº 693ºnº2 do CCivil, sem prejuizo dos demais vencidos do primeiro empréstimo, objecto de outra hipoteca, elas prevalecem sobre os privilégios de que beneficiam os titulares dos créditos laborais.
Antes de mais, importa trazer à colação, como ponto prévio, a aplicabilidade do novo Código de Trabalho esgrimida pelos recorridos
No caso, entendemos que dúvidas nenhumas se podem colocar, a respeito da aplicabilidade à presente graduação do disposto na anterior lei falimentar, ou seja, o CPEREF ( Código de Processos Especiais de Recuperação de Empresa e Falência) aprovado pelo Dec. Lei nº132/93 de 23 de Abril, (entretanto revogado pelo DecLei nº 53/2004 de 18 de Março que aprovou o actual Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, mas não aplicável aos processos pendentes) e simultâneamente da não aplicabilidade aos créditos dos trabalhadores recorridos, do estatuído no novo Código de Trabalho sobre o respectivo regime de garantia - artº 377º.
De facto, este preceito, sob a epígrafe de “privilégios creditórios” veio introduzir algumas modificações ao direito anterior, no fundamental consignadas na Lei dos Salários em Atraso, vulgo LSA (Leinº17/86) e Lei nº96/2001, quer no âmbito dos privilégios, quer no regime de graduação do privilégio mobiliário geral, quer ainda na substituição do privilégio imobiliário geral, criado por aquela primeira lei e depois alargado a todos os créditos emergentes do contrato de trabalho referidos no nº1 do artº 4º da segunda, por um privilégio imobiliário especial incidente sobre os bens imóveis da empresa nos quais o trabalhador preste a sua actividade, passando este a ter prevalência sobre direitos reais de gozo e de garantia de terceiros nos termos do artº 751º do CCivil
Com efeito apenas ficam sujeitos a este novo regime os créditos constituídos desde o dia da respectiva entrada em vigor – 28 de Agosto de 2004 – i.e. 30 dias após a regulamentação pela Lei nº 35/2004 de 29 de Julho, da Lei que aprovou o dito Código - e fora dele os direitos que se tenham constituído antes dessa data e à luz de contratos que já tenham extinguindo antes da mesma, nos termos do seu artº 6º nº1, como adverte Salvador da Costa, O Concurso de Credores , 3ªed., 316 e se decidiu, entre outros, com aplicação da norma geral da não retroactividade da lei nova –artº 12º,nº1 do CCivil- no recente Ac do STJ de 13/01/2005, CJ /S , Ano XII, Tº1º, 41.
E a este propósito, entendemos, sem quebra do respeito devido, no seguimento da orientação jurisprudencial clara e amplamente maioritária do Supremo ( cfr, inter alia, os Acs de 25/06/2002, CJ /S, Ano X, Tº 2º, 135. de 24/09/2002, CJ /S Ano X, Tº 3ª, 54, 23/09/2004, Revista nº1449/04, Sumários , Set de 2004, de 24/06/2004, Revista nº1560/04, Sumários de Junho de 2004 e o de 13/01/2005, supra citado) de que o privilégio mobiliário e imobiliário geral concedido por tais diplomas aos créditos laborais não pode prevalecer nem sobre a hipoteca que incida sobre quaisquer imóveis apreendidos para a massa falida, e isso apesar da declaração da não inconstitucionalidade norma sindicada do artº 12 aln b) da Lei nº17/86, a chamada Lei dos Salários em Atraso, pelo Ac do Tribunal Constitucional nº498/2003 ( in DR. II, de 3/01/2004) nem sobre o penhor constituído sobre bens móveis que se integrem na dita massa.
A este respeito nada melhor do que respigarmos o que a este propósito se escreveu em recente Acórdão do mesmo Supremo de 7/06/2005 ( CJ/S , Ano XIII, Tº2ª, 116), pronunciando-se sobre uma graduação que colocara os créditos dos trabalhadores da empresa falida acima do crédito hipotecário de um banco:
(...)Duas são a nosso ver as perspectivas sob que pode ser encarado e apenas haverá que conhecer a segunda - a da inconstitucionalidade da norma - se pela primeira, a da sua interpretação e consequente definição de que regime do CCivil se aplica,( uma que vez que foi tido como regime subsidiário )- não dever proceder. Com mais rigor, há inclusive que questionar da relevância em concreto sobre a (in) constitucionalidade do artº 12 aln b) da Lei nº 17/86 de 14/06 , bem como do artº 4º da Lei nº 96/01 de 20/08. Com efeito, de uma decisão que conclua pela não declaração de inconstitucionalidade , não resulta automática e necessariamente a sua oponibilidade a terceiros (...) ( sublinhado da nossa responsabilidade)
Aliás, a recente leitura de um acórdão do TC permite observar que trilha na mesma esteira e que à decisão de não tomar conhecimento do recurso de B e de outros subjaz a consideração da independência daquelas duas perspectivas e a não declaração de inconstitucionalidade não determinar necessariamente a sua oponibilidade a terceiros ( Ac 614/04 de 4/10/20 in proc. nº 933/03(...).
E adiante , acrescenta-se :
“ (...)pelos diplomas de 1986 e 2001, antes citados, os trabalhadores passaram a gozar de privilégio imobiliário geral quanto aos seus créditos laborais.
Porém, tais diplomas legais não definem a eficácia do mesmo relativamente a direitos de terceiro, e como direito subsidiário, remetem para o Cod. Civil. Todavia este não conhece a figura do privilégio imobiliário geral, para ele , o privilégio é sempre especial ( artº 735º,nº3, na redacção pelo Dec. Lei nº 38/03 de 8/03, os privilégios imobiliários estabelecidos no CC são sempre especiais) - e embora esta redacção não seja aplicável , a importância reside em assinalar que o legislador, embora não podendo deixar de conhecer toda a problemática levantada quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, não aproveitou a oportunidade para a resolver pela via legislativa.”
Ou seja, a declaração de não inconstitucionalidade dos normativos invocados pelos recorridos e atendidos na sentença em nada altera os dados do problema tal como ele se punha antes de tal Acórdão do Tribunal Constitucional, o que vale por dizer que o dito privilégio imobiliário geral não pode prevalecer sobre uma hipoteca.
E não pode, por razões bem conhecidas e devidamente explanadas e repetidas naqueles e noutros acórdãos, inclusivé um já emitido nesta secção com o mesmo Relator e 1º Adjunto (Apelação nº 1830/04, da Comarca do Sabugal) e ainda na doutrina.
Diremos, apenas em linhas gerais, que no confronto entre os privilégios imobiliários gerais criados pelas ditas leis para tutelar os direitos dos trabalhadores e outros direitos reais de garantia sobre os mesmos bens, como é o caso da hipoteca, ou de sucessivas hipotecas constituidas voluntariamente sobre o prédio apreendido ( artºs 686º, e 712º do CC) e que devidamente registadas (C. Civil, artº 687º) produzem efeitos entre as partes e em relação à massa falida e a terceiros, terão estes sempre que prevalecer, pois só os privilégios imobiliários especiais, os únicos que o Código Civil prevê, porque dotados de sequela, se traduzem numa garantia real de cumprimento das obrigações , limitando-se os gerais ( destrinça que o CCivil apenas faz para os privilégios mobiliários-artº 735ºnº2) a constituir mera preferência de pagamento.
Ou seja , o privilégio (creditório ) geral não vale contra terceiros titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas por ela abrangidos sejam oponíveis ao exequente, sendo que as leis de processo é que estabelecem os limites aos respectivos objecto e oponibilidade ao exquente ou à massa falida , bem como os casos em que ele não é invocável ou se extingue na execução ou perante a declaração de falência, sendo isso que determina o artº 749º.
E sobre a situação de conflito entre os privilégios imobiliários especiais e os direitos de terceiro, sendo certo que nos presentes autos, nenhum dos trabalhadores credores da falida beneficia do novo privilégio especial previsto no Código de Trabalho, rege o artº 751º do CCivil, disposição segundo o qual aqueles são oponíveis a terceiros ou a um direito real sobre ele e preferem a consignação de rendimentos, à hipoteca, ou ao direito de retenção ,ainda que estas garantias sejam anteriores.
Dito de outra forma, beneficiando apenas os trabalhadores recorridos do privilégio imobiliário geral concedido pelas Leis nº17/86 e 96/2001, não contêm, todavia, estes diplomas nenhumas normas reguladoras do conflito entre esse privilégio imobiliário geral e o direitos de hipoteca para garantia dos direitos de crédito de terceiros sobre os mesmos bens
Lacuna essa que manifestamente não pode ser suprida por via da aplicação na “espécie” do disposto naquele artº 751º,( confinado que está este normativo a regular o conflito entre privilégios imobiliários especiais e outras garantias, tendo aqueles uma estrutura essencialmente diversa dos gerais, já que incidem sobre bens certos e determinados) antes pelo recurso a regra equivalente à do nº1 do artº 749º, nos termos da qual os direitos de crédito dos trabalhadores garantidos por privilégios mobiliários gerais constantes das citadas leis são preferidos pelos direitos de crédito de outrem garantidos por hipoteca
Solução esta que alguma jurisprudência ( minoritária) e doutrina ( cfr P. Romano Martinez, Garantias de Cumprimento, 3ª ed., 188,) vem questionando, assimilando o apontado privilégio imobiliário geral ao especial, por recurso a uma aplicação analógica do artº 751º, por inexistir norma equivalente na lei geral, quando é certo nada o justificar, desde logo por o privilégio dito geral, abrangendo bens não determinados, não constituir um direito real que possa prevalecer face a direitos de terceiros.
No fundo é a conclusão a que chega no seu denso e bem documentado estudo sobre privilégios creditórios, Miguel Lucas Pires ( Dos Privilégios Creditórios. Regime Jurídico e sua Influência no Concurso de Credores, Almedina, 2004, 193) do qual nos permitimos extrair o seguinte trecho :
Do muito do se tem dito acerca desta figura ( privilégios imobiliários gerais) cumpre relembrar a impossibilidade da mesma se encontrar sujeita, no que ao confronto com outros direitos reais sobre os mesmos bens diz respeito e sob pena de inconstitucionalidade ao regime previsto no artº 751º, o qual deve ser reservado para os privilégios imobiliários especiais.
Se as soluções até agora expostas relativamente ao concurso de privilégios com outras garantias incidentes sobre os mesmos bens não oferecem grandes dúvidas , o mesmo não se poderá dizer acerca da figura do privilégio imobiliário geral, criado por diplomas posteriores para o qual a lei geral civil não contem resposta, nem poderia conter por que nem sequer previu a existência dessa figura
Podemos, desta forma, afirmar a existência de uma lacuna a ser preenchida, salvo melhor entendimento pela aplicação analógica do artº 749º(...) pois tanto os privilégios gerais, tanto mobiliários , como imobiliários se caracterizam justamente pela inexistência dum poder directo e imediato desde a constituição do crédito sobre o objecto do direito, sendo essa a razão determinante da sua cedência perante outros direitos reais constítuídos antes da penhora dos bens ou acto equivalente. “
E é nesta linha ou senda que ponderando mesmo a posição assumida pelo Tribunal Constitucional ( ainda que sem força obrigatória geral) que o Acórdão do Supremo que supra transcrevemos parcialmente, conclui que a garantia conferida aos trabalhadores pelos normativos da LSA e da Lei nº 93/01( posterior à declaração de falência, mas aplicável imediatamente mesmo aos processos pendentes de reclamação não havendo sentença proferida) e que, devidamente interpretada se extrai como seu elemento prevalente o da incidência (“geral”) e não a da espécie ( “imobiliário”) e face à remissão legislativa ( para o CCivil) tem-se como aplicável o regime do arº 749º por mais se aproximar dos privilégios gerais, o superveniente privilégio imobiliário geral criado por inúmeros diplomas posteriores ao CCivil, o primeiro dos quais para acudir aos créditos das instituições de previdência (DL nº512/76 de 16 de Junho)
Logo, a apontar sem equívocos pela incontornável prevalência do crédito hipotecário sobre os créditos dos trabalhadores que do dito privilégio imobiliário geral gozem, nos termos dos artºs 749º, nº1 e 686º,nº1 do CCivil e pese embora a declaração da não inconstitucionalidade do normativo do artº 12º, nº3 , aln a) da LSA
Deste modo, não são de atender as razões invocadas pelos recorridos para, a partir tanto de uma determinada interpretação do referenciado acórdão, como de uma suposta aplicabilidade com efeitos retroactivos ou correctivos do artº 377º do Código de Trabalho, ainda que a título de norma interpretativa – que não é, antes inovando ao substituir o privilégio imobiliário geral, por um privilégio imobiliário especial - dos anteriores dispositivos das leis que conferiram aos trabalhadores os privilégios imobiliários, se dever manter a graduação operada na 1ª instância.
Anote-se que o próprio Código espelha bem, ao invés do argumentado pelos recorridos que o legislador arrepiou caminho, afastando-se da solução achada pela LSA ao estabelecer como pressuposto do privilégio, agora sim “especial” concedido aos créditos laborais, a conexão da coisa imóvel com os mesmos.
O que milita a favor do entendimento de que o legislador ao atribuir o dito privilégio geral não previu, em 1986 o efeito de ele poder ser interpretado como estando a conceder uma garantia prioritária sobre os credores hipotecários, nem certamente quereria tal, se a tivesse previsto, o que só criaria fortes dificuldades e embaraços à concessão de financiamentos às empresas devedoras de salários em atraso e abalaria em termos intoleráveis, a confiança nos negócios e a estabilidade do sistema bancário com reflexos altamente negativos para o mercado de emprego e para a saúde da economia nacional.
Ou não fosse a hipoteca o meio porventura mais valiosos de incrementar a economia, como anotava Vaz Serra no seu anteprojecto do Código Civil, BMJ nºs 62 e 63, face a todas as suas vantagens em relação a qualquer outra garantia do crédito, por isso elemento fundamental para a dinamização das operações bancárias de apoio ao investimento produtivo imobiliário e industrial.

IV -E se as coisas se apresentam assim no que respeita ao confronto de tais privilégios ( de que se não discute a bondade, mas apenas o alcance) com a hipoteca ( ou as sucessivas hipotecas ) no que concerne ao prédio por esta abrangido, a mesma situação ocorre no conflito entre o penhor sobre os bens móveis do recheio do edifício fabril, inseridos e descritos no auto de arrolamento e apreensão e os privilégios mobiliários gerais de que beneficiam os ex- empregados da falida com créditos reconhecidos atinentes aos seus salários em falta e indemnizações inerentes.por violação e cessação dos respectivos contratos de trabalho.
Com efeito, o penhor também constitui uma garantia real do credor nos termos do artº 666º ( embora sem a importância da hipoteca, como anota com pertinência Menezes Leitão in Garantias das Obrigações, 2006, 200 ) e para que ele produza efeitos em relação a terceiros, no caso de garantia de créditos de estabelecimentos bancários, basta que conste de documento particular, ainda que o dono do objecto empenhado não seja comerciante -artº 60º do DecLeinº 32.032.
Constituído validamente, o penhor ( civil ou mercantil) é oponível erga omnes e prefere ao privilégio geral ( cfr os citados artºs 666º e 749º do CCivil) pelo que os créditos laborais agasalhados com privilégio mobiliário geral não podem ser quanto aos bens empenhados, graduados antes do crédito pignoratício ( cfr, neste sentido os Acs. do Supremo de 17/01/1985 in CJ /S Ano III, Tº1º, 22 e do atrás referenciado e transcrito de 7 /06/2005 e ainda Salvador da Costa , O Concurso de Credores, 3ª ed., 301, Menezes Leitão, op. cit. 201 e M. Lucas Pires, Privilégios Creditórios, 182/183)

V - Em resumo, o recurso reúne condições de procedência no que respeita aos direitos de garantia que assistem aos créditos especificados da recorrente, não tendo que nos pronunciar sobre garantias de doutros credores, por nenhum deles ter recorrido da sentença ou aderido ao recurso que estamos a analisar.
Dispõe o artº 200º, nº2 do CPEREF que a graduação de créditos é geral para os bens da massa falida e é especial para os bens a que respeitem os direitos reais de garantia, disposição esta não rigorosamente acatada na douta sentença impugnada.
Desta feita, temos que :
- A custas e as despesas de liquidação do activo saem precípuas
- E no concernente ao imóvel fabril integrado na massa (verba nº3) e alvo de sucessivas hipotecas, devidamente registadas, os créditos da Caixa, credora hipotecária, por elas abrangidos e na proporção definida quando emergentes dos acordos com outros financiadores da falida. incluindo os juros, são graduados em 1º lugar e os dos trabalhadores recorridos em 2º lugar, a sair do remanescente do mesmo se o houver;
- Relativamente aos bens móveis ( equipamentos e outras existências da fábrica ) descritos nas relações juntas aos autos e atinentes ao sucessivos penhores, objecto de arrolamento e apreensão, os créditos da Caixa como credora pignoratícia, tanto os emergentes dos contratos firmados a título individual como na proporção acordada juntamente outros credores, na operação de consolidação das dívidas da falida, são graduados em 1º lugar e os dos trabalhadores em 2º lugar, a sair do remanescente se o houver.
- Aos restantes bens imóveis, direitos e móveis, os créditos dos trabalhadores são graduados logicamente em 1º lugar e em 2º lugar e em igualdade de circunstâncias e com rateio, se necessário, os créditos comuns, neles esse incluindo o montante do crédito da Caixa não abarcado pelas sobreditas garantias

VI - Nesta conformidade e com procedência da apelação, revoga-se a douta sentença e procede-se à graduação dos créditos nos termos enunciados em V.
Custas pela massa falida ( artº 208º do CPEREF)
Coimbra , de Março de 2006