Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7825/16.3T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITOS
FALTA
NOTIFICAÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
REQUERIMENTO EXECUTIVO
IRREGULARIDADE
SUPRIMENTO
Data do Acordão: 09/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 583º, Nº 2, DO CC E ARTIGO 726º, Nº 4, DO CPC.
Sumário: I – Ainda que não se configure como elemento essencial para a perfeição do contrato e para a efectiva transmissão do crédito, a notificação da cessão ao devedor – ou a sua aceitação – corresponde a uma condição de eficácia da cessão relativamente ao devedor, pelo que, antes dessa notificação ou aceitação, o cessionário não está legitimado a exigir o crédito ao devedor e a instaurar contra o mesmo a respectiva acção executiva.

II – Tal notificação não poderá ser efectuada mediante a citação a efectuar na acção executiva, devendo o credor/cessionário – no requerimento executivo – alegar (e provar documentalmente, se possível) que a cessão de créditos já foi notificada ao devedor/executado ou que este já a aceitou.

III – Tendo sido omitida a alegação desse facto e não resultando do requerimento executivo que o mesmo não tenha ocorrido e que, por essa razão, esteja em causa uma excepção não suprível, não deve ser imediatamente indeferido o requerimento executivo, devendo ser dada ao exequente a oportunidade de suprir essa deficiência, ao abrigo do disposto no artigo 726º, nº 4, do CPC.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... , com sede em (...) , Londres, instaurou processo de execução contra B... e C... , residentes na (...) , Coimbra, pedindo o pagamento da quantia de 5.897,61€ e juros no valor de 549,73€.

Invoca, para tanto, um contrato de crédito celebrado em 3 de Agosto de 1999 entre os Executados e o D...., S.A. através do qual este concedeu àquele um empréstimo de 2.000.000$00. Alega: que os Executados deixaram de pagar as prestações acordadas pelo que foi preenchida a livrança que havia sido dada como caução; que, por cessão de créditos de 24/06/2014, o aludido Banco cedeu à ora Exequente os créditos em questão e que, por força de pagamento parcial entretanto efectuado, encontra-se em dívida o capital de 5.897,61€.

Junta aos autos o contrato de cessão de créditos, o contrato celebrado entre o D... e os Executados e uma livrança subscrita pelos Executados, no valor de 1.832.313$00, com vencimento em 29/11/2001.

Por decisão proferida em 03/01/2017, o requerimento executivo foi liminarmente indeferido por falta de legitimidade da Exequente para demandar os Executados.

A Exequente veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

Primeira) Nos termos do artigo 30, nºs 1 e 3 do Código de Processo Civil, considera-se parte legítima a que possuir interesse directo em demandar ou contradizer, reconhecendo-se semelhante interesse aos titulares da relação material controvertida tal como configurada pelo Autor;

Segunda) A legitimidade processual não se afere com recurso à legitimidade substantiva, aferindo-se sim pela relação controvertida delineada na petição inicial, através do pedido e da causa de pedir e, é, em face de tal relação que se haverá de aferir se são ou não as partes legítimas;

Terceira) Determinante para o reconhecimento do pressuposto processual em estudo é objecto do processo tal como desenhado pelo autor, sendo o objecto da acção fixado, em primeira linha, pelo mesmo, pelo que são partes legítimas os titulares da relação material controvertida, tal como ela é, por este, configurada. Razão pela qual, independentemente de tal relação coincidir com a que existe no plano substantivo, se em face do relatado na petição inicial/requerimento executivo, as partes surgirem como as titulares dos interesses em discussão, é reconhecida àquelas a necessária legitimidade processual;

Quarta) Aplicando-se o supra mencionado, a ora Recorrente é parte legítima na relação material controvertida tal como configurada pela mesma, porquanto, adquiriu os créditos sub judice por contrato de cessão de créditos, celebrado em 24 de Junho de 2014, com o D... – D... , S.A., não relevando para a apreciação da validade formal da instância se a Recorrente notificou ou não os Recorridos da cessão de créditos, antes sendo esta matéria de mérito da sua pretensão, bastando a análise do requerimento executivo, para o efeito;

Quinta) Por via da legitimação material conferida pelo contrato de cessão de créditos, a ora Recorrente, sendo a legítima portadora da Livrança, assente no contrato de mútuo, junto aos autos de execução, pode, com base neles, executar os seus subscritores por falta de pagamento, conforme menciona o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 22 de Novembro de 2016;

Sexta) A notificação ao devedor, a que alude o artigo 583º, nº1 do Código Civil, de que o seu credor cedeu o crédito a outrem, pode ser feita através de citação para a execução, proposta pelo credor cessionário contra os Executados, conforme menciona o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 10 de Março de 2016;

Sétima) Tendo a notificação do contrato de cessão como objectivo essencial alertar o devedor quanto à identidade do actual credor, prevenindo, deste modo, que aquele por desconhecer o dito negócio, pague ao primitivo credor/cedente e não ao cessionário, com a consequente extinção da obrigação, é evidente que a omissão de tal acto (que não ocorreu no caso sub judice, dado que, a Recorrente notificou os Recorridos, conforme notificação, junta aos autos do processo de execução, em data anterior à da notificação da Sentença recorrida), pode ser ultrapassada com a citação dos Devedores para a Acção. Sendo certo que,

Oitava) Na cessão de créditos, o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou parte do seu crédito, nos termos do disposto no artigo 577º do Código Civil, ocorrendo essa cessão de créditos quando o credor, mediante negócio jurídico, transmite a terceiro o seu direito. Verifica-se então a substituição do credor originário por outra pessoa (modificação subjectiva da obrigação), mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional. Neste sentido veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 25 de Maio de 1999;

Nona) A lei faz depender a eficácia da cessão em relação ao devedor do conhecimento que este tenha de que o crédito foi cedido, sendo que, tal conhecimento do devedor pode chegar ao mesmo através da citação para a acção/execução. Pelo que, se a eficácia da cessão está ligada ao conhecimento, não se pode dizer que com a citação para a acção/execução o devedor não passe a conhecer que o crédito foi cedido, conforme menciona o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 3 de Junho de 2004. Sendo que, se o conhecimento do devedor da cessão é o elemento constitutivo da eficácia da cessão relativamente a ele (devedor), é indiferente do ponto de vista jurídico, classificar a citação como notificação ou simples modo de conhecimento, não se vislumbrando como a citação não possa ser considerada um meio idóneo de transmissão ao devedor do pertinente e adequado conhecimento;

Décima) Tendo em consideração que a cessão representa uma simples transferência da relação obrigacional pelo lado activo, dúvidas não restam que a legitimidade para a acção executiva satisfaz-se com a alegação e prova da existência do acordo de cessão de crédito, o que ocorreu no caso sub judice, independentemente da sua notificação ao devedor, conforme menciona o Acórdão da Relação de Coimbra, datado de 22 de Novembro de 2016;

Décima Primeira) Com o requerimento executivo, o exequente deve demonstrar a habilitação-legitimidade, alegando e provando os factos constitutivos da cessão, sendo que, no caso em apreço, não há dúvida que existiu um contrato que abarcou a cessão do crédito exequendo para a Recorrente, como se refere no requerimento executivo. Sendo que,

Décima Segunda) A legitimidade activa da Recorrente para a acção executiva satisfez-se com a alegação e prova da existência do acordo de cessão de crédito, independentemente da sua notificação ao devedor;

Décima Terceira) Tendo a ora Recorrente demonstrado a existência da cessão, tal bastaria para assegurar o prosseguimento da execução, sendo manifesta a sua legitimidade activa, ao abrigo do disposto no artigo 54º, nº1 do Código de Processo Civil, pelo que, não sendo a notificação do devedor facto constitutivo do direito da Recorrente, mas mera condição de eficácia da cessão em relação aos Recorridos, não é admissível que se associe tal notificação da cessão de créditos à causa de pedir, extrapolando para a respectiva falta. Sendo a causa de pedir o facto jurídico de onde emerge a pretensão da Recorrente (artigo 581º, nº 4 do Código do Processo Civil) e confundindo-se tal pressuposto processual com o próprio título executivo, importa sublinhar, mais uma vez que, a notificação dos Recorridos é irrelevante para a modificação da relação creditícia no que concerne ao elemento subjectivo, produzindo-se esta a partir da outorga do acordo de cessão;

Décima Quarta) Não restam dúvidas que a citação pode valer como notificação da cessão de créditos aos Recorridos, exactamente porque os conteúdos funcionais acabam por corresponder: de maneira ou de outra, os Recorridos ficam a saber da ocorrência de uma transmissão do direito de crédito. Neste sentido o Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 9 de Dezembro de 2010 menciona que “O efeito substancial que se pretende obter com tal notificação é o de tornar a cessão eficaz em relação ao devedor, dando-lhe a conhecer a identidade do cessionário e evitando que o cumprimento seja feito perante o primitivo credor, que é assegurado com a citação para a acção executiva, momento a partir do qual o devedor fica ciente da existência da cessão e inibido de invocar o seu desconhecimento, nos termos do art. 583º nº 2, do Código Civil.”;

Décima Quinta) A Douta Sentença Recorrida violou o preceituado nos artigos 30, nºs 1 e 3 e 54º, nº1, ambos do Código de Processo Civil e artigos 577º e 583º, nº1, ambos do Código Civil e por esse motivo, deverá ser revogada;

Décima Sexta) Destarte, deverá prosseguir a execução instaurada os seus termos até final, com as legais consequências.

Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá o seguinte:

Décima Sétima) O requerimento executivo é indeferido liminarmente quando ocorra uma das causas prescritas no artigo 726º, nº2 do Código de Processo Civil, nomeadamente, quando ocorram excepções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso, sendo a ilegitimidade de alguma das partes uma excepção dilatória;

Décima Oitava) Prescreve o nº 4 do preceito legal, supra mencionado, que “fora dos casos previstos no nº 2, o juiz convida o exequente a suprir as irregularidades do requerimento executivo, bem como a sanar a falta de pressupostos (…)”;

Décima Nona) Não obstante, a ilegitimidade processual não se encontrar prevista no artigo 726º, nº 4 do Código de Processo Civil, ex vi artigos 726º, nº2 e 577º, alínea e), ambos do Código de Processo Civil, a verdade é que, a incapacidade judiciária, como a ilegitimidade de qualquer das partes, só assume natureza de excepção, dilatória quando a irregularidade não seja devidamente sanada. Pelo que, impõe-se ao juiz o dever de providenciar pelo respectivo suprimento, marcando prazo dentro do qual deveria ser sanada a excepção. Só depois de decorrido tal prazo, é que se verificaria tal excepção dilatória e poderia ter lugar o indeferimento liminar do requerimento executivo, conforme o mencionado no Acórdão da Relação do Porto, datado de 6 de Julho de 1982;

Vigésima) Menciona o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 19 de Junho de 2014 que, “O dever de o juiz providenciar pelo suprimento das exceções dilatórias constitui um poder vinculado, de forma a permitir que o processo possa prosseguir com regularidade e possibilitar uma decisão de mérito sobre a pretensão das partes”, sendo que, o mesmo Acórdão refere que, “a omissão de tal poder/dever, constitui nulidade processual nos termos do art.º 195º do CPC”;

Vigésima Primeira) Prescreve ainda o artigo 6º, nº2 do Código de Processo Civil, que “o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação (…) ou, quando a sanação dependa de acto que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo”;

Vigésima Segunda) Tendo tido conhecimento da Sentença proferida, em momento anterior ao qual foi notificada (9 de Janeiro de 2017), a Recorrente, apesar de não ter sido notificada para o efeito, veio “sanar” a excepção dilatória em que se fundamentou a Sentença de Indeferimento Liminar do Requerimento Executivo, em 5 de Janeiro de 2017, juntando ao processo a carta de notificação de cessão de créditos, efectuada aos Recorridos;

Vigésima Terceira) Tendo sido omitido o dever do Tribunal a quo providenciar pelo suprimento da excepção dilatória de ilegitimidade activa, padece a Sentença proferida de nulidade, ao abrigo do disposto no artigo 195º do Código de Processo Civil, devendo a mesma ser revogada e ser substituída por outra que, permita à ora Recorrente sanar a sua legitimidade processual nos autos. Face ao exposto,

Vigésima Quarta) A Douta Sentença Recorrida violou o preceituado nos artigos 726º, nºs 2 e 4, 577º, alínea e), 195º e 6º, nº2, todos do Código de Processo Civil e por esse motivo, deverá ser revogada;

Vigésima Quinta) Destarte, deverá prosseguir a execução instaurada os seus termos até final, com as legais consequências.

Conclui pedindo que a decisão seja revogada.

Na sequência de notificação que, para o efeito, lhe foi dirigida, a Exequente veio esclarecer que o título executivo apresentado nos presentes autos é o contrato de crédito pessoal e que a junção da livrança visou reforçar a  prova documental, uma vez que já não poderia ser executada como título de crédito, face ao disposto no artigo 703º do Código de Processo Civil e artigo 70º ex vi artigo 77º, ambos da LULL.

Efectuada a citação dos Executados – para os termos do recurso e para os termos da causa – os mesmos vieram apresentar contra-alegações, onde formulam as seguintes conclusões:

I – A sentença proferida pelo Tribunal ad quo, não é merecedora de qualquer reparo, pelo que, deverá ser mantida na íntegra.

II – Acontece que em 26 de Outubro de 2016, a ora Recorrente, instaurou uma execução para pagamento de quantia certa, no montante de € 6.447, 34 (seis mil quatrocentos e quarenta e sete euros e trinta e quatro cêntimos), contra os aqui Recorridos, alegando que a mesma adquiriu o crédito em causa ao D... – D... , S.A., por contrato de cessão de créditos.

III – Sucede que ficou provado que a Recorrente, não notificou os Recorridos de tal cessão,

IV – Motivo pelo qual, e bem, o Tribunal ad quo indeferiu liminarmente, a ação executiva instaurada pela Recorrente.

V – De acordo com o disposto nos artigos 577.º e seguintes do Código Civil (doravante C.C.), o credor, isto é, o D... , pode ceder a um terceiro, parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, no caso, dos Recorridos.

VI - Contudo, e atenta a exigência feita pelo legislador, a cessão não pode produzir efeitos em relação aos devedores executados, aqui Recorridos, por força do disposto no n.º 1 do artigo 583.º do C.C., dado que estes não foram notificados da mesma.

VII - Isto é, o titular de qualquer crédito pode ceder a terceiro o seu direito, sem que para o efeito careça do consentimento do devedor ou devedores,

VIII - Todavia, a cessão para produzir efeitos junto dos devedores, tem de ser comunicada a estes.

IX - Ora, no caso em apreço e reafirmando que os Recorridos, não admitem ser devedores de qualquer importância a favor do D... , mas por mera hipótese, ainda que se admitisse a existência de um direito de crédito e que este tenha sido objeto de cessão acordada entre o Banco e a aqui Recorrente,

X - para poder ser válida junto dos Recorridos teria que lhes ter sido notificada.

XI - Assim sendo e face ao exposto, estamos perante a falta de legitimidade processual da aqui Recorrente,

XII - o que configura uma exceção dilatória conforme a e) do artigo 577.º do C.P.C., pelo que reiteramos que a decisão do Tribunal ad quo seja mantida.

XIII – Face ao exposto, não é assim, a Recorrente, parte legítima da ação nem da relação material controvertida, como não é legítima portadora da livrança, pelo que nunca poderia executar os Recorridos por falta de pagamento,

XIV – Atendendo que a livrança já se encontra prescrita por força do artigo 70.º da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças.

XV – Nesta senda, o credor cessionário, para poder propor uma ação contra os devedores, teria previamente de os notificar judicial ou extrajudicialmente de que foi efetuada a cessão de créditos,

XVI – algo que neste caso não aconteceu.

Pelo exposto, não merece a decisão qualquer censura.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se a notificação da cessão ao devedor pode ser feita através de citação para a execução proposta pelo credor cessionário ou se tal notificação deve ser anterior e deve ser alegada e comprovada no requerimento executivo;

• Saber se a omissão de alegação dessa notificação no requerimento executivo configura excepção dilatória insuprível que determine o imediato indeferimento liminar do requerimento executivo ou se deve determinar convite à parte para suprir essa excepção ou irregularidade.


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III.

A decisão recorrida indeferiu liminarmente o requerimento executivo, ao abrigo do disposto no artigo 726º, nº 2, b), do CPC, por entender que a Exequente não preenche os requisitos de legitimidade processual e substantiva para demandar os Executados, uma vez que não alegou ter notificado os Executados da cessão de créditos com base na qual alega ter adquirido o crédito que aqui vem exigir e uma vez que, sem essa notificação, a cessão não produz efeitos em relação aos devedores (artigo 583º, nº 1, do CC).

Discordando dessa decisão, considera a Exequente que:

- A legitimidade para a acção executiva satisfaz-se com a alegação e prova da existência do acordo de cessão de crédito, independentemente da sua notificação ao devedor, pelo que, sendo a titular da relação material controvertida que configurou por ter adquirido o crédito por contrato de cessão de créditos, é parte legítima, não relevando para a apreciação da validade formal da instância a questão de saber se a Recorrente notificou ou não os Recorridos da cessão de créditos, antes sendo esta matéria de mérito da sua pretensão;

- A notificação ao devedor, a que alude o artigo 583º, nº1 do Código Civil, de que o seu credor cedeu o crédito a outrem, pode ser feita através de citação para a execução proposta pelo credor cessionário contra os Executados;

- O Tribunal deveria ter providenciado pelo suprimento da excepção dilatória de ilegitimidade activa, pelo que a decisão padece de nulidade ao abrigo do disposto no artigo 195º do CPC;

- Apesar de não ter sido notificada para o efeito, veio “sanar” a excepção dilatória em que se fundamentou a decisão, em 5 de Janeiro de 2017, juntando ao processo a carta de notificação de cessão de créditos, efectuada aos Recorridos.

Analisemos, então, a questão.

Conforme decorre do disposto no artigo 53º do CPC, a legitimidade das partes no processo executivo afere-se, em regra, pelo título executivo: é a pessoa que figura no título como credor que tem legitimidade para promover a execução e é a pessoa que figura no título como devedor que tem legitimidade para ser demandado.

Essa regra comporta, no entanto, algumas excepções que estão previstas no artigo 54º e entre as quais se encontra o caso de ter havido sucessão no direito ou na obrigação, ou seja, as situações em que, por força de transmissão do direito ou da obrigação, o real devedor ou credor já não é aquele que figura no título. Quando assim acontece, determina o artigo 54º, nº 1, que a execução deve correr entre os sucessores do credor ou do devedor, devendo o exequente alegar, no próprio requerimento para a execução os factos constitutivos da sucessão. Trata-se, portanto, de fazer a habilitação dos sucessores do credor ou do devedor que figuram no título executivo, dispensando-se o incidente de habilitação no caso de a sucessão ter ocorrido antes da propositura da execução. Mas, tal como acontece no incidente de habilitação, o exequente está, naturalmente, obrigado a alegar e provar os factos constitutivos da sucessão.

No caso sub judice, quem figura no título como credor é o D... e a execução foi instaurada pela A... que, em cumprimento da norma supra citada, alegou os factos constitutivos da sucessão do crédito, alegando e provando ter celebrado com o D... um contrato de cessão de créditos por via do qual este lhe transmitiu o crédito que vem reclamar na presente execução.

Dispõe, todavia, o artigo 583º, nº 1, do CC, que a cessão de créditos apenas produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada ou desde que ele a aceite. E, porque a Exequente não alegou – no requerimento executivo – que tal notificação ou aceitação tivesse ocorrido, coloca-se a questão de saber se tal notificação pode ser efectuada através da citação para a execução.

A questão é controvertida na nossa jurisprudência.

No sentido de que tal notificação pode ser efectuada através da citação para a execução, pronunciaram-se as seguintes decisões:

- O Acórdão do STJ de 10/03/2016 (proc. nº 703/11.4TBVRS-A.E1.S1);

- O Acórdão da Relação de Coimbra de 22/11/2016 (proc. nº 3956/16.8T8CBR.C1);

- O Acórdão da Relação de Coimbra de 06/07/2016 (proc. nº 467/11.1TBCNT-A.C1)

No sentido de que tal notificação não pode ser efectuada através da citação para a acção declarativa (e cuja argumentação nos parece valer para a acção executiva) pronunciaram-se as seguintes decisões:

- Acórdão do STJ de 12/06/2003 (processo nº 03B1762);

- Acórdão da Relação do Porto de 18/06/2007 (processo nº 0753072)[1].

Refira-se, antes de mais, que, na nossa perspectiva, a aludida questão assume (ou pode assumir) contornos um pouco diferentes no âmbito de uma acção declarativa e no âmbito de uma acção executiva, sendo que apenas iremos aqui abordar a questão na perspectiva da acção executiva.

Tal questão foi objecto de apreciação e decisão nos Acórdãos desta Relação (citados pela decisão recorrida) de 16-02-2016 e de 31-05-2016[2] que foram subscritos (como Adjunta) pela aqui Relatora, onde se entendeu que a notificação em causa não pode ser efectuada através da citação para a execução, devendo, ao invés, ser alegada e provada no requerimento executivo.

E, ainda que a questão seja discutível, entendemos, para já, não existirem razões para divergir da posição assumida nos citados Acórdãos.

Vejamos porquê.

Pensamos ser de aceitar a ideia de que a notificação em questão não se configura propriamente como um facto constitutivo da transmissão do crédito, devendo considerar-se que tal transmissão ocorre por mero efeito do contrato de cessão de créditos entre o cedente e o cessionário[3]. Mas, ainda que não se configure como elemento essencial para a perfeição do contrato e para a efectiva transmissão do crédito, a notificação da cessão ao devedor – ou a sua aceitação – corresponde seguramente a uma condição de eficácia da cessão relativamente ao devedor, uma vez que, sem essa notificação ou aceitação, a cessão não produz qualquer efeito em relação ao devedor. Significa isso, portanto, que, antes dessa notificação ou aceitação, o cessionário não pode exigir o crédito ao devedor, nem este está obrigado a satisfazer-lhe a prestação, importando notar que – como resulta do disposto no artigo 583º, nº 2, do CC –, a não ser que o devedor tenha conhecimento da cessão (facto que o cessionário terá o ónus de provar), tem eficácia liberatória e é oponível ao cessionário o pagamento que o devedor faça ao cedente.

Nessas circunstâncias, parece-nos difícil admitir que o cessionário possa instaurar uma execução contra o devedor sem alegar que a cessão já foi notificada ao devedor ou que este já a aceitou, uma vez que esse facto é condição necessária para que o cessionário possa provocar a agressão ao património do devedor que é visada pela execução. Veja-se que, no âmbito do processo sumário (como, aliás, aqui acontecia), a penhora é efectuada antes da citação e, portanto, a admitir-se – como pretende a Apelante – que a notificação da cessão de créditos pode ser efectuada por via da citação para a execução, tal significaria que o devedor veria o seu património agredido pelo cessionário antes de essa cessão lhe ser notificada e, portanto, num momento em que tal cessão ainda não produzia, quanto a ele, qualquer efeito.

Pensamos, portanto, que, enquanto a cessão não for notificada ao devedor ou enquanto este a não aceitar, o cessionário não está legitimado a exigir o crédito ao devedor e, portanto, não está legitimado a instaurar contra o mesmo a respectiva acção executiva.

A situação que nos ocupa é equiparável à que se verifica quando a obrigação está dependente de condição suspensiva ou de uma prestação por parte do credor ou de terceiro e relativamente à qual a lei determina – cfr. artigo 715º do CPC – que incumbe ao credor alegar e provar documentalmente, no próprio requerimento executivo, que se verificou a condição ou que efectuou ou ofereceu a prestação. De facto, ainda que, no caso, a obrigação seja, em si mesma, imediatamente exigível porque a sua constituição ou exigibilidade não está dependente de qualquer condição, o direito do cessionário dessa obrigação não opera em relação ao devedor enquanto este não for notificado da cessão ou enquanto a não aceitar e, portanto, a exigibilidade da obrigação por parte do cessionário está efectivamente dependente dessa notificação ou aceitação.

Pensamos, portanto, em face do exposto, que, tal como acontece com o credor de uma obrigação condicional, também o cessionário da obrigação deve alegar, no requerimento executivo, que se verificou o facto do qual depende a eficácia da cessão relativamente ao devedor/executado. Trata-se, portanto, de fazer a alegação – e subsequente prova complementar (documentalmente se for possível ou, não o sendo, por outra via após contraditório) – de factos ou circunstâncias que, condicionando o direito do exequente relativamente ao executado, não resultam do título executivo, com vista a demonstrar e fornecer ao tribunal o grau de certeza necessário para admitir a acção executiva e a consequente agressão do património do executado. E, tal como a lei prevê a produção de prova e diligências complementares para tornar a obrigação certa, exigível e líquida, se o não for em face do título, também essa prova se revelará necessária quando o título não fornece elementos bastantes para criar o grau e certeza necessário de que o credor que se apresenta a propor a execução tem o direito de exigir aquela obrigação ao devedor. Daí que, nos casos em que a titularidade do crédito já não tem correspondência com o título – por ter ocorrido sucessão no direito – o exequente tenha que alegar os factos constitutivos da sucessão com vista a demonstrar que é ele o titular do crédito e, estando em causa uma cessão de créditos, deverá também alegar (e provar documentalmente, se tal for possível) que está em condições de exigir o crédito ao executado em virtude de tal cessão lhe ter sido notificada ou ter sido por ele aceite, não podendo, por conseguinte, ser admitida uma execução instaurada por cessionário do crédito sem que seja alegada a prévia notificação/aceitação dessa cessão pelo devedor.

Ora, a Exequente não alegou que tal notificação tenha sido efectuada ou que os Executados tenham aceitado a cessão de créditos e, portanto, não resulta do título executivo e não resulta do requerimento executivo que a cessão de créditos produza (já) os seus efeitos relativamente aos devedores e que, nessa medida, estejam reunidos os pressupostos necessários para que a Exequente lhes possa exigir o crédito mediante a propositura de uma acção executiva.

Refira-se que, em bom rigor e conforme sustenta a Apelante, a questão não se configura como verdadeira ilegitimidade da Exequente.

De facto, como decorre do disposto nos artigos 53º e 54º do CPC, quem tem legitimidade para propor a execução é a pessoa que figura no título como credor ou quem lhe tenha sucedido e, portanto, apresentando-se a Exequente como sucessora de quem figura no título como credor – alegando e provando documentalmente que adquiriu o direito em causa por contrato de cessão de créditos que celebrou com o anterior credor – será ela, efectivamente, a real titular do crédito (que, como se referiu supra, se transfere imediatamente com a cessão de créditos) e será ela, portanto, quem detém a legitimidade para instaurar execução contra os devedores.

Mas, ainda que não se qualifique como verdadeira ilegitimidade processual, entendemos que a circunstância de não ter sido alegada a notificação da cessão aos devedores ou a sua aceitação configura a falta de um pressuposto do qual depende a admissibilidade da execução contra os executados, porquanto – reafirma-se – não resulta do título executivo nem do requerimento executivo que tal cessão já tenha operado e produzido efeitos relativamente aos devedores e que, como tal, a Exequente esteja em condições de instaurar contra os mesmos uma acção executiva.

Resta saber se essa circunstância poderia ter conduzido ao imediato indeferimento liminar do requerimento executivo ou se, ao invés, deveria ter determinado um convite à Exequente para sanar a falta daquele pressuposto.

A Apelante sustenta que lhe deveria ter sido permitido sanar aquela ilegitimidade, referindo, aliás, que já a sanou mediante requerimento que juntou aos autos em 05/01/2017 e ao qual anexou a carta de notificação da cessão de créditos aos Recorridos.

Antes de mais, cabe esclarecer que o requerimento em questão não tem a virtualidade de sanar a questão até porque apenas foi junta a carta de notificação do Executado B... , não tendo sido apresentado qualquer documento que comprovasse a notificação da Executada, C... .

É certo, no entanto, que, como resulta do disposto no artigo 726º do CPC apenas as excepções dilatórias não supríveis podem motivar o imediato indeferimento liminar, sendo que, fora desses casos e como determina o nº 4 do citado diploma legal, o juiz deverá, antes de mais, convidar o exequente a suprir as irregularidades do requerimento executivo e a sanar a falta de pressupostos.

Ora, pensamos que, no caso sub judice, não poderia afirmar-se, sem mais, que estava em causa uma excepção não suprível, porquanto, perante o requerimento executivo, não era possível afirmar que a notificação ou aceitação do devedor não tivesse ocorrido; estávamos apenas perante uma omissão no requerimento executivo que poderia ou não ser sanada conforme a aludida notificação/aceitação tivesse ou não ocorrido. E, perante essa dúvida, o Exequente deveria ter sido convidado a suprir a irregularidade do requerimento, alegando o facto que havia sido omitido e juntando (se fosse caso disso) o documento comprovativo e só depois disso, se a irregularidade não fosse sanada (o que, naturalmente, aconteceria se o facto em questão ainda não tivesse ocorrido), poderia ser indeferido o requerimento (cfr. nº 5 do citado artigo 726º).

Conforme refere José Lebre de Freitas[4] (ainda que a propósito da incerteza ou inexigibilidade da obrigação), o indeferimento liminar “…só se impõe se não oferecer dúvida a falta do pressuposto, pelo que, nos casos em que se possa admitir que a obrigação se tenha tornado certa ou exigível, o juiz deverá proferir despacho de aperfeiçoamento por falta dum requisito legal da petição, possibilitando ainda ao exequente a prova complementar do título que omitiu requerer”. Ora, no caso que nos ocupa, não era certo que a notificação/aceitação da cessão de créditos não tivesse ocorrido e que, por essa razão, o vício em causa não pudesse ser suprido; perante o requerimento executivo não poderia ser afastada a possibilidade de a cessão de créditos ser já plenamente eficaz relativamente aos Executados por lhes ter sido já efectuada a notificação da cessão e de apenas estar em causa a omissão de alegação e eventual demonstração desse facto (o que, aliás, parece ter acontecido pelo menos no que toca a um dos Executados tendo em conta a carta de notificação que o Exequente veio juntar aos autos), sendo certo que, nesta hipótese, estaria em causa um vício que facilmente poderia ser sanado mediante a alegação e prova do facto que havia sido omitido.

Sendo assim e salvo o devido respeito, não deveria ser liminarmente indeferido o requerimento sem dar ao Exequente a possibilidade de corrigir e sanar o vício em questão, impondo-se, portanto, revogar a decisão recorrida e determinar a notificação da Exequente para corrigir o vício em causa.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Ainda que não se configure como elemento essencial para a perfeição do contrato e para a efectiva transmissão do crédito, a notificação da cessão ao devedor – ou a sua aceitação – corresponde a uma condição de eficácia da cessão relativamente ao devedor, pelo que, antes dessa notificação ou aceitação, o cessionário não está legitimado a exigir o crédito ao devedor e a instaurar contra o mesmo a respectiva acção executiva.

II – Tal notificação não poderá ser efectuada mediante a citação a efectuar na acção executiva, devendo o credor/cessionário – no requerimento executivo – alegar (e provar documentalmente, se possível) que a cessão de créditos já foi notificada ao devedor/executado ou que este já a aceitou.

III – Tendo sido omitida a alegação desse facto e não resultando do requerimento executivo que o mesmo não tenha ocorrido e que, por essa razão, esteja em causa uma excepção não suprível, não deve ser imediatamente indeferido o requerimento executivo, devendo ser dada ao exequente a oportunidade de suprir essa deficiência, ao abrigo do disposto no artigo 726º, nº 4, do CPC.


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IV.
Pelo exposto, concedendo-se parcial provimento ao presente recurso, revoga-se a decisão recorrida e determina-se que, ao abrigo do disposto no artigo726º, nº 4, do CPC, a Exequente seja notificada para, no prazo de dez dias, suprir a apontada irregularidade do requerimento executivo, alegando – e juntando, se for o caso, documento comprovativo – que a cessão de créditos foi notificada aos Executados ou que estes a aceitaram (caso esses factos tenham ocorrido efectivamente), sob pena de ser indeferido o requerimento executivo.
As custas serão suportadas, em partes iguais, pela Apelante e pelos Apelados.
Notifique.

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: António Magalhães

                            Ferreira Lopes

                    


[1] Todos os acórdãos citados estão disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] Proferidos nos processos nºs. 8457/15.9T8CBR.C1 e 2450/15.9T8CBR.C1.
[3] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., págs. 310 a 315.
[4] A Acção Executiva, Coimbra Editora, 1993, pág. 77.