Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
322/20.4T9MGL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA BRANCO
Descritores: CRIME DE DIFAMAÇÃO COM PUBLICIDADE
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DIREITO À HONRA
Data do Acordão: 05/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MANGUALDE
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 26.º E 37.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGO 180.º, N.º 2, DO CÓDIGO PENAL
Legislação Estrangeira: ARTIGO 8.º E 10.º, § 1.º E 2.º, DA CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS
Sumário: I – Mesmo que na actuação individual concreta se possa considerar a existência de um desequilíbrio voluntariamente criado, designadamente um excesso no uso da liberdade de expressão, em violação do direito à honra ou consideração, vistas as coisas à luz do direito penal haverá sempre que ponderar se tal violação se reveste de uma gravidade tal que justifique a aplicação de uma sanção penal.

II – Sendo normal a existência de um certo grau de conflituosidade social e a ocorrência de situações em que os cidadãos se expressam de forma deselegante ou indelicada, o direito só deve intervir quando é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade humana, pelo que só uma ofensa grave, desproporcionada e ilegítima à honra pode justificar o sacrifício do direito à liberdade de expressão.

III – A avaliação da gravidade de determinado comportamento eticamente desvalioso, com vista à determinação se o mesmo atinge a dimensão de ilicitude jurídico-penal, deve ser efectuada mediante uma adequada contextualização, ou seja, mediante a análise das concretas circunstâncias em que foi adoptado o comportamento ilícito e da sua adequação para lesar o bem jurídico da honra e consideração da pessoa visada, sem esquecer que a extensão e consistência deste estão também dependentes do comportamento desta.

IV – O facto de na acusação particular se ter optado por apresentar as palavras integradas no crime de difamação desgarradas da frase em que se inseriam não desobriga o julgador de as aí reinserir, para percepcionar, como se lhe impõe, o contexto da alegada ofensa.

V – Mesmo que possa considerar-se existir um excesso de linguagem na seguinte publicação feita no facebook «Vivo numa aldeia mas realmente tenho um vizinho ordinário. Faleceu uma pessoa fantástica de respeito que ajudou muita gente onde eu me incluo e a guzarem connosco que estamos de luto coloca música aos altos berros em casa. Deus se existe dê a esta gente a devida lição» susceptível de, em abstracto, beliscar o direito à honra ou consideração do visado, essa violação não passa de um desabafo, desencadeado, motivado e contextualizado pelos reiterados comportamentos daquele, eles próprios violadores de direitos de terceiros, não atingindo aquelas palavras um patamar de gravidade que reclame ou sequer justifique a intervenção do direito.

Decisão Texto Integral:
Relatora: Cristina Pego Branco
1.º Adjunta: Alexandra Guiné
2.º Adjunta: Ana Carolina Cardoso

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. … foram submetidos a julgamento, mediante acusação particular formulada pelo assistente, AA, os arguidos BB, … e CC, … pela prática, cada um deles, de um crime de difamação com publicidade, p. e p. pelos arts. 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a), ambos do CP.

2. Realizado o julgamento, foi proferida sentença na qual foi decidido, para além do mais (transcrição):
«a) Condeno o arguido CC, em autoria material e na forma consumada de um (01) crime de difamação com publicidade, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º1 e 183.º, n.º1, al. a) ambos do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), num total de duzentos e cinquenta euros (€250,00);
b) Absolvo BB do crime pelo qual vinha acusada.

*
Na parte Cível

- Condeno o demandado civil CC no pagamento ao demandante civil AA, a título de compensação pecuniária dos danos não patrimoniais sofridos, do montante de €100,00 (cem euros), sendo igualmente devidos juros de mora, calculados à taxa legal fixada para os juros civis, contados desde a presente data até efetivo e integral pagamento;
-Absolvo BB do pedido de indemnização civil que contra si havia sido deduzido. (…)»

3. Inconformado com esta decisão, interpôs o arguido o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):


«I

Resultou da audiência de discussão e julgamento que foram dados como provados, na parte com relevância para o presente recurso e no tocante à matéria criminal, os seguintes factos:

“CC. No dia 8 de fevereiro de 2021, CC publicou um comentário onde dizia viver numa aldeia com um “vizinho ordinário”, referindo-se a AA;

DD. CC com o comportamento referido em CC), imputou um facto e proferiu uma expressão atentatória da honra e consideração de AA, em circunstâncias que facilitaram como efetivaram a sua divulgação;

EE. CC sabia que estava a imputar a AA facto lesivo da sua honra e consideração;

FF. CC agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;


VI

O Tribunal a quo entendeu que a atuação do arguido, supra descrita, integrou os referidos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico de difamação, pelo qual, o arguido vinha acusado, com a agravante de ter sido publicado numa página da rede social “Facebook”, acessível ao público através da internet.

Todavia,


VIII

Para concluirmos se a expressão «vizinho ordinário» é ou não ofensiva da honra e consideração, é necessário enquadrá-la no contexto em que foi proferida, sendo que, conforma consta da douta sentença do Tribunal a quo (fls. 31), no decorrer de um funeral, AA colocou a música em tom elevado, o que foi considerado um sinal de desrespeito.

IX

Não é também despiciendo referir, o meio a que pertencem recorrente/assistente, as relações entre eles, entre outros aspetos.

X

No que diz respeito a este último ponto, por ser bastante elucidativo, transcreve-se um excerto da fundamentação de direito da sentença do Tribunal a quo: «Não se pode olvidar que BB [mãe do Recorrente] referiu que é desafiada por AA para vir para a rua, que a ameaça matar e que por via de tal circunstância não pode sair de casa, o que foi confirmado por diversas testemunhas, estando assim em causa uma situação com uma grande implicação na vida de BB que inevitavelmente lhe gera receio, temor e saturação. Mais acresce referir que conforme resulta dos autos e bem assim da prova testemunhal produzida, que já foram encetados diversos pedidos de auxílio a outras entidades (Segurança Social, Junta de Freguesia, Câmara Municipal e Guarda Nacional Republicana) os quais foram infrutíferos, tendo sido por via de tal facto que os arguidos recorreram a esta via de exposição da situação.

XI

A vexata quaestio está, pois, no uso do vocábulo “ordinário” por banda do Recorrente, naquele contexto fáctico, que o Tribunal a quo considerou como a imputação de um facto atentatória da honra e consideração de AA

Sucede que,


XII

De acordo com o «Dicionário Complementar da Língua Portuguesa», de Augusto Moreno, o vocábulo «ordinário» é polissémico, apresentando várias aceções: vulgar; regular; medíocre; de qualidade inferior; de baixa condição; grosseiro; mal-educado.

XIII

Como bem aduz Faria Costa (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 630), “o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional, e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas, no momento em que apreciamos o significado”

Entre muitos outros arestos sobre esta matéria, veja-se, e.g.


XIV

«Ora, a proteção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos que atentem contra esses bens jurídicos, só se justifica em situações em que objetivamente as palavras proferidas não têm outro conteúdo ou sentido que não a ofensa, ou em situações em que, uma vez ultrapassada a mera suscetibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são, indubitavelmente, lesivas da honra e da consideração do lesado», cf. Ac. da Relação do Lisboa, de 20/03/2006, proferido no âmbito do Proc. nº 0841633, disponível em www.dgsi.pt.

XV

O que, evidentemente, está em consonância com o princípio da necessidade ou da ultima ratio do direito penal, do qual decorre que devem ser excluídas da proteção jurídico-penal aquelas condutas que não representam uma lesão adequada, suficientemente grave do bem jurídico.

XVI

A expressão em causa, «vizinho ordinário», lida no contexto da sua produção, não atinge a credibilidade, a honra e a consideração do assistente, enquanto homem, uma vez que o significante utilizado não encerra em si a potência ofensiva devida, não sendo mais do que um simples desafogo verbal, de que o assistente tinha sido uma pessoa mal-educada e provocadora.

XVII

É certo que o adjetivo «ordinário», da autoria da Recorrente, escrito naquela publicação na sua página do Facebook, não consubstancia a conduta mais correta ou o comportamento mais civilizado.

Contudo,


XVIII

O Tribunal a quo deveria ter interpretado o n.º 1 do art.º 180.º do Código Penal, no sentido de que, não obstante se reconhecer que «ordinário» se trata de um vocábulo desagradável, indelicado e pouco cortês, o certo é que,

XIX

Naquele concreto contexto, a expressão em causa não tem a virtualidade de alcançar um patamar mínimo de gravidade que lhe confira dignidade penal, porquanto, não preenche os elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico de difamação, e, é intranscendente para abalar a ordem jurídica.

4. O recurso foi admitido, por despacho de 24-10-2022 (Ref. Citius 91580563).

5. O Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta (Ref. Citius 5604525) na qual, sem formular conclusões, se pronuncia pela improcedência do recurso.

6. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer (Ref. Citius 10560401), no qual se pronuncia no sentido da procedência do recurso.

7. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta.

8. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


*

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

In casu, o recorrente insurge-se contra o facto de ter sido condenado pela prática do crime de difamação com publicidade que lhe vinha imputado na acusação particular formulada pelo assistente, considerando que, no contexto em que ocorreu, a sua apurada conduta não preenche os elementos objectivos e subjectivos desse tipo de ilícito, pugnando também pela sua absolvição do pedido de indemnização civil.


*

2. Da decisão recorrida

Previamente à apreciação das questões suscitadas, vejamos qual a fundamentação de facto que consta da sentença recorrida.
«Factos provados:
Realizada a audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:
No tocante à matéria criminal:
A. No dia 24 de outubro de 2020 CC publicou na sua página do Facebook um vídeo de uma notícia intitulada “Terror na Aldeia” publicitando a mesma e dando conhecimento do seu conteúdo e do horário em que a mesma foi transmitida no noticiário do canal CMTV, no decorrer da qual é possível ouvir BB dizer que teme AA, que este a ameaçou matar e afirmar estar sujeita a ser morta por ele;
B. AA em datas não concretamente apuradas agrediu verbalmente BB, proferindo ainda ameaças de morte, em face do que, tem receio dele, tendo já apresentado diversas queixas criminais onde relatou esses factos;
C. Na reportagem referida em A) CC refere que a população evita sair de casa devido aos comportamentos de AA e aduziu ainda que este tem na sua posse facas e paus e que com as mesmas assusta a população já envelhecida da sua aldeia;
D. AA em datas não concretamente apuradas, andou pela aldeia de ... com facas e paus;
E. No circunstancialismo indicado em A) CC referiu que uma senhora teve que ser retirada da aldeia e colocada num lar de idosos devido ao medo que tinha de AA;
F. Em data não concretamente apurada, DD, vizinha do assistente e dos arguidos, foi retirada da aldeia de ... em face do receio que tinha de AA;
G. A publicação do vídeo indicado em A) feita por CC, teve pelo menos 6,9 mil visualizações, originou 88 interações e 74 comentários;
H. Nos comentários mencionados em G) consta “a juntar três o quatro fuder-lhe a tromba bem fodida que ele vai abrir os olhos”, “cuidado que ele é doido”, ao que CC respondeu ter cuidado e mostrou-se convicto que existe a hipótese de “acontecer alguma desgraça”;
I. No dia 24 de outubro de 2020 CC partilhou também na sua página de Facebook uma notícia do Jornal do Centro, com o título “...: aldeia de ... teme habitante violento”, a qual foi partilhada pelo menos 26 vezes;
J. No dia 26 de outubro de 2020, os arguidos dão nova entrevista ao programa Casa Feliz do canal SIC intitulada “Homem tem agredido e ameaçado a tiro população de aldeia”, na qual, BB refere que AA considera ter direitos sobre ela e que queria que ela fosse sua amante;
K. Em data não concretamente apurada, AA referiu ter direitos sobre BB e que queria que ela fosse sua amante;
L. No circunstancialismo indicado em J) BB referiu ainda que AA a ameaça de morte, que já a tentou agredir, que anda nu pela aldeia e bem ainda que já ouviu tiros, afirmando não saber quem os disparou;
M. Em datas não concretamente apuradas, AA andou nu pela aldeia de ...;
N. Em data não concretamente apurada foram disparados tiros na aldeia de ..., não sendo conhecido o seu autor;
O. No dia 26 de outubro de 2020, no programa Você na TV na crónica criminal foi abordado e discutido um tema com a descrição “agride, ameaça e dispara tiros para o ar”;
P. A peça transmitida em O) narra factos que imputam a AA agressões, atos de violência e comportamentos capazes de gerar pânico na população de ..., em ...;
Q. Foi realizado um direto de ... no qual CC é identificado pela jornalista como sendo vítima e vizinho de AA, onde o arguido refere que este há já cinco anos vai tomando conta da população, colocando-os em pânico, por andar sempre com paus, com facas, o que os vai “tornando” cada vez mais com medo de sair à rua;
R. A população envelhecida de ... tem receio de andar na rua por via dos comportamentos de AA;
S. Nas circunstâncias indicadas no ponto Q), referiu o arguido ainda que o vinho que vai consumindo e outras coisas que certamente tomará, o levaram a esta situação e bem ainda, que “Temos todos medo”, “algumas pessoas idosas já foram retiradas da aldeia pela GNR”, sendo que, ao ser questionado pela jornalista se a sua mãe já havia sido agredida por AA, referiu que várias vezes;
T. CC partilhou o vídeo referente à crónica criminal do programa Você na TV, indicado em O), na sua página de Facebook, sendo que, em resposta a alguns comentários ao referido vídeo, CC escreveu que AA faz “ameaças de morte” aos idosos e à mãe dele, que é “dia e noite” e que “por isso está tudo com medo”;
U. Num outro comentário ao vídeo indicado em T) CC faz referência de que o “mal aqui é a segurança social dar dinheiro a esta família inteira que são muitos sem nada para fazer”;
V. AA e parte da sua família recebem subsídios da Segurança Social;
W. No dia 28 de outubro de 2020 CC faz uma publicação respeitante a vídeos por si capturados, sendo que num desses vídeos escreve que “o dia da morte de alguém já é tarde. Coloquem as vossas mães e avós e os vossos filhos neste clima e irão perceber o pânico que é viver assim” e uma outra em que a notícia tem o título “Aterrorizados com agressões e tiros”;
X. As notícias acima referenciadas foram vistas por várias pessoas;
Y. BB nas entrevistas que deu, afirmou que o assistente lhe arrancou o portão de casa, que estava sujeita a ser morta por ele e que ele lhe iria entrar em casa a qualquer momento e que ele tem como hábito andar nu pela aldeia;
Z. Em data não concretamente apurada AA arrancou o portão de casa de BB;
AA.CC afirma quer nas entrevistas, quer nas publicações que faz, que a população de ... tem medo de sair à rua devido aos comportamentos de AA;
BB.CC na situação elencada em Q) afirmou que AA consome vinho e outras coisas, bem como, que a mãe já foi agredida por este, que faz constantemente ameaças de morte e que o assistente e a sua família recebem dinheiro da segurança social, reiterando sempre que AA seria capaz de matar alguém da aldeia;
CC. No dia 8 de fevereiro de 2021, CC publicou um comentário onde dizia viver numa aldeia com um “vizinho ordinário”, referindo-se a AA;
DD. CC com o comportamento referido em CC), imputou um facto e proferiu uma expressão atentatória da honra e consideração de AA, em circunstâncias que facilitaram como efetivaram a sua divulgação;
EE.CC sabia que estava a imputar a AA facto lesivo da sua honra e consideração;
FF.CC agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
GG. CC é florista e trabalha por conta própria, auferindo por via de tais funções, um rendimento mensal de cerca de €900,00;
HH. CC reside com a mãe, em casa desta, não pagando qualquer valor a título de renda;
II. CC paga mensalmente a título de despesas, cerca de €350,00;
JJ. CC liquida mensalmente a título de empréstimo, o valor de €156,00;
KK. CC liquida mensalmente a título de renda da loja onde exerce a sua atividade profissional, €240,00;
LL. CC completou o 12.º ano de escolaridade;
MM.BB é viúva;
NN. BB é doméstica;
OO. BB aufere uma pensão de sobrevivência, cujo valor mensal desconhece;
PP. BB reside em casa própria;
QQ. BB completou o 4.º ano de escolaridade;
RR. Dos certificados de registo criminal de CC e de BB, não se encontram registados quaisquer antecedentes criminais.

No tocante ao pedido de indemnização civil:
SS.AA sentiu-se injustiçado com as expressões que CC e BB lhe imputaram.

*
Factos não provados:
Realizada a audiência de discussão e julgamento não resultaram provados os seguintes factos:
No tocante à matéria criminal:
1. AA sempre viveu naquela aldeia, tendo sido lá criado;
2. BB com os comportamentos descritos em A, J, L e Y ofendeu AA, imputando-lhe circunstâncias que atentaram contra a sua honra e consideração, em circunstâncias que não só facilitaram como efetivaram a sua divulgação;
3. BB agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
No tocante ao pedido de indemnização civil:
4. AA sentiu-se triste com as expressões que CC e BB lhe imputaram;
5. Sendo um tema que foi falado por largos dias na aldeia onde habita, sentiu-se constrangido em sair de sua casa;
6. Com a conduta de BB e CC, AA ficou envergonhado perante a população da aldeia que encara diariamente, mas também perante outras pessoas que o confrontaram com o teor das publicações feitas pelo demandado;
7. AA passou a andar mais triste, irritado e nervoso.
*
IV- Motivação da decisão de facto

*

3. Da análise dos fundamentos do recurso

Como é sabido, e resulta do disposto nos arts. 368.º e 369.º, ex vi art. 424.º, n.º 2, todos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem o objecto do recurso pela seguinte ordem:

Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.

Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e, depois dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.

Por fim, das questões relativas à matéria de direito.

Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas.


*

O recorrente manifesta discordância da subsunção dos factos ao direito operada pelo Tribunal recorrido, considerando que, no contexto em que ocorreu, a sua apurada conduta não preenche os elementos objectivos e subjectivos do crime de difamação com publicidade que lhe vinha imputado na acusação particular formulada pelo assistente, pugnando pela sua absolvição.

Alega, em síntese, que, não obstante se tratar de um vocábulo «desagradável, indelicado e pouco cortês», no concreto contexto, a expressão não tem a virtualidade de alcançar um patamar mínio de gravidade que lhe confira dignidade penal, sendo intranscendente para abalar a ordem jurídica.

O Tribunal recorrido pronunciou-se sobre o enquadramento jurídico-penal dos factos apurados nos seguintes termos:
«…
Resulta da factualidade indicada em A, G, H e Q que BB referiu que AA a ameaçou matar, considerando estar sujeita a ser morta por ele, que o assistente considera ter direitos sobre ela e bem ainda, que queria que ela fosse sua amante.
Acresce que BB referiu que AA já a tentou agredir, que anda nu pela aldeia e bem ainda que já ouviu tiros, afirmando não saber quem os disparou.
Da prova produzida em audiência de julgamento resultou que a maioria das testemunhas confirmou a veracidade dos factos que BB imputou a AA, factos que de forma sincera, objetiva e coerente confirmado pela própria.

Considera-se que efetivamente os arguidos recorreram a este método, como um último reduto de solicitar ajuda e atenção para o caso que se vai perpetuando no tempo, com manifestos prejuízos para a população de ... e concretamente para os arguidos, pois a arguida não se sente à vontade para poder andar sozinha pela aldeia e o arguido não se sente descansado cada vez que sai de casa para trabalhar, deixando a mãe sozinha em casa, o que dada a idade da mesma, o envelhecimento da população de ..., a reduzida população existente e a distância que separa ... (local de trabalho do arguido) e ..., se compreende à luz das regras da experiência e da normalidade.
Acresce que os arguidos cumpriram os cuidados que se lhe impunham com o dever de informação, uma vez que não se referiram especificamente ao nome de AA, falando antes em abstrato ou referindo-se a “indivíduo” ou “vizinho”.
Em face do exposto, considera-se que BB, agiu ao abrigo do direito à liberdade de expressão, constitucionalmente previsto, no artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa, que lhe atribui o direito a exprimir-se e a divulgar livremente o seu pensamento, sendo certo, que tal direito não é absoluto, devendo ser utilizado de forma responsável, o que se entende que foi verificado no presente caso.
Mais se diga que perante a realidade que se encontra expressa na factualidade provada, a arguida nas entrevistas que deu apenas relatou factos que correspondem à verdade, o que foi tanto declarado pela própria bem como pelas testemunhas que prestaram o seu depoimento em sede de audiência de julgamento.
Mais se diga que o propósito de tais entrevistas foi a informação das pessoas quanto à realidade que se vive em ... e subjacentemente pedir ajuda para a resolver, não tendo por sua vez qualquer propósito de difamar o assistente. Com efeito, a arguida foi sincera nas declarações que prestou e confirmou que dado o carácter de reiteração das condutas do assistente, a sua vida tem sido bastante afetada, desde logo não podendo sair de casa sozinha, temendo constantemente pela sua vida e nessa medida, encontra-se saturada e procurou por este meio de exposição, solicitar auxílio a outro tipo de instituições.
Assim, dever-se-á considerar que a atuação da arguida se encontra abrangida pela exclusão constante do n.º2 do artigo 180.º do Código Penal porquanto a arguida logrou provar a veracidade das afirmações feitas e efetivamente a sua atuação pretendeu realizar interesses legítimos, como se disse, informar da concreta situação que a aldeia de ... vive e solicitar ajuda de outras pessoas.
Do exposto, conclui-se que a conduta da arguida não é punível, nos termos do disposto no artigo 180.º, n.º2, al. a) e b) do Código Penal, impondo-se consequentemente a sua absolvição.
Por sua vez, no que tange a CC, é-lhe imputada a publicação na sua página do Facebook, de vídeos nos quais publicita reportagens onde são imputados comportamentos ao assistente e onde são feitas afirmações relativas ao assistente que geraram comentários e afirmações relativas ao mesmo.
É-lhe ainda imputado a publicação de um comentário onde dizia viver numa aldeia com um “vizinho ordinário”.
Em sede de audiência de discussão, expressamente questionado o arguido confirmou que sabia que a expressão dirigida era de carácter injurioso e não obstante, pretendeu proferi-la, como fez.
Ao dizer que vive numa aldeia com um “vizinho ordinário, o arguido pese embora não tenha identificado concretamente o nome de AA, está a manifestar a sua opinião sobre o mesmo, no entanto, fá-lo, recorrendo ao termo “ordinário”. Ora, o termo utilizado ofende a honra e consideração de AA.
Com efeito, dúvidas não existem que qualquer leitor médio ao ser confrontado com tais afirmações, retira que as mesmas visam atacar o bom nome, a reputação e imagem de AA.
A apreciação das expressões deve ser feita à luz da sensibilidade comunitária mediana, a qual, em face do exposto, não pode ser outra senão a de considerar que apelidar alguém de ordinário consubstancia um juízo desonroso que afeta inevitavelmente a reputação e o bom nome da pessoa que sofre a ofensa, uma vez que tal expressão é normalmente associada a um mau caráter.
Não se olvida que os insultos têm de ser apreciados concretamente em face das regiões, das culturas, dos ambientes, uma vez que a mesma expressão ou imputação, pode ter uma conotação totalmente distinta, em face daquelas. O certo é, que a específica palavra “ordinário”, não possui qualquer outro entendimento que não, a de um verdadeiro insulto à honra e pessoa de AA, consubstanciando assim um comportamento com objeto eticamente reprovável.
A formulação deste juízo de valor, que se considerou ofensivo da honra, atinge o mínimo de censurabilidade suscetível de desencadear a intervenção do direito penal porquanto a mesma não é socialmente comum, nem admissível.
Referiu o arguido em sede de audiência de discussão e julgamento que as afirmações pelas quais se encontra acusado se trataram de uma forma de agradecimento e simultaneamente de um pedido de ajuda para a situação em causa uma vez que todos os pedidos anteriores foram infrutíferos.
Naturalmente tal argumento não poderá ser tido em linha de conta, uma vez que o arguido não se limitou a agradecer e a pedir ajuda, tendo-o ultrapassado.
Com efeito, as suas palavras possuíram uma carga desvaliosa suscetível de afetar o bom nome e a reputação de AA.
Por fim, no que respeita ao nexo de causalidade, referir que a expressão utilizada pelo arguido, a forma de divulgação da mesma e o contexto em que a proferiu é causa adequada a provocar a ofensa ao bom nome ou reputação.
Pelo exposto, considera-se que a atuação do arguido descrita em CC) integrou os elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico de difamação, pelo qual, o arguido vinha acusado.»

Não nos suscitam dúvidas as considerações teóricas aduzidas relativamente aos elementos típicos do ilícito criminal em causa nos autos, escoradas, de resto, na jurisprudência e na doutrina.

Já não acompanhamos o entendimento do Tribunal recorrido quanto à subsunção dos factos ao Direito, no que ao ora recorrente respeita.

Vejamos porquê.

Como é sabido, quer o direito à liberdade de expressão quer o direito à honra têm consagração constitucional (cf. arts. 37.º e 26.º da CRP).

Não podendo afirmar-se que um prevalece sobre o outro, quando se verifica um conflito ente tais direitos importa encontrar uma solução que procure a sua harmonização de acordo com um princípio de concordância prática, atendendo aos dados do caso concreto segundo critérios de proporcionalidade, razoabilidade e adequação.[1]

Mas mesmo que na actuação individual concreta se possa considerar a existência de um desequilíbrio voluntariamente criado, designadamente um excesso no uso da liberdade de expressão, em violação do direito à honra ou consideração, vistas as coisas à luz do direito penal haverá sempre que ponderar se tal violação e reveste de uma gravidade tal que justifique a aplicação de uma sanção penal.

Como se explica no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-04-2019[2], «O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, ao abrigo do art.º 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, reconhecendo a honra pessoal e a consideração como parte integrante do direito ao respeito pela vida privada, na medida em que a entende como parte integrante da identidade pessoal e da integridade psicológica da pessoa humana, vem também defendendo que, para haver uma violação de tal direito, o concreto ataque à honra ou consideração (“reputação”) terá de atingir um certo nível de gravidade, de molde a prejudicar o gozo daquele direito[9][3]. Porquanto só um determinado nível de gravidade permitirá que uma eventual condenação, com base na violação desse direito, não possa ser considerada uma interferência ilegítima no direito de liberdade de expressão, consagrado no art.º 10º, § 1º, da mesma Convenção, pressupondo-se assim que uma tal condenação só possa ser aceitável, nos termos do art.º 10º, § 2, da CEDH, na medida em que se mostre necessária, numa sociedade democrática, à proteção da reputação ou de direitos de outrem. Devendo por isso, uma intervenção desse jaez, revelar-se concretamente necessária, proporcional e baseada numa interpretação razoável das normas do Código Penal[10][4]. Sendo o vocábulo “necessário”, constante da norma do art.º 10º, § 2º, da Convenção interpretado com o sentido de “uma necessidade social imperiosa”. Afirmando o mesmo Tribunal que “a liberdade constitui um dos fundamentos essenciais duma sociedade democrática, uma das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento pessoal de cada um. E sem prejuízo do disposto no § 2º do art.º 10º, uma tal conceção de liberdade vale não apenas para as ‘informações’ ou ‘ideias’ acolhidas favoravelmente ou com indiferença, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou produzem inquietação. Sendo estas exigências de pluralismo, tolerância e mentalidade aberta, fundamentais, sem as quais não poderá haver uma sociedade democrática. E pese embora, como resulta do art.º 10º, uma tal liberdade esteja sujeita a exceções, estas, todavia, têm de ser interpretadas de modo estrito, assim como a necessidade de quaisquer restrições tem de ser estabelecida de modo convincente.”[11][5]

A historicidade do direito e a contingente valoração da honra ao longo dos tempos, devem implicar, sobretudo ao nível jurídico-penal, uma interpretação cuidadosa e prudente do sentido da sua atual juridicidade, e sobretudo da antijuridicidade dos comportamentos que a possam lesar ou comprometer, na justa medida em que “a honra emerge com um sentido, conteúdo e densidade varáveis em função das representações coletivas dominantes e historicamente contingentes”[12][6]. Sendo certo ser este um campo de especial afirmação, também na problemática aplicação do direito ao caso concreto, do princípio da fragmentariedade do direito penal ou direito penal como ultima ratio. Ou seja, de que a sua previsão típica não deve aspirar a cobrir todos os casos de ilicitude, que possam ser ético-juridicamente censuráveis ou axiologicamente desvaliosos, porquanto, nas palavras do Professor Jorge de Figueiredo Dias, “num Estado de Direito material, de cariz social e democrático, o direito penal só pode intervir onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento da personalidade de cada homem.”»[7]

Neste sentido se tem, de há muito, pronunciado a jurisprudência nacional[8], sublinhando que, sendo normal a existência de um certo grau de conflituosidade social e a ocorrência de situações em que os cidadãos se expressam de forma deselegante ou indelicada, o direito só deve intervir quando é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade humana, só uma ofensa grave, desproporcionada e ilegítima à honra podendo justificar o sacrifício do direito à liberdade de expressão.

Assente, pois, que haverá que distinguir as condutas que traduzem apenas indelicadeza, grosseria ou má educação daquelas que efectivamente se constituem numa ofensa da honra de terceiro merecedora de tutela penal, a avaliação da gravidade de determinado comportamento eticamente desvalioso, a fim de determinar se o mesmo alcança atinge uma dimensão de ilicitude jurídico-penal, deve ser efectuada mediante uma adequada contextualização, ou seja, uma análise das concretas circunstâncias em que foi adoptado o comportamento ilícito e da sua adequação para lesar o bem jurídico da honra e consideração da pessoa visada, sem esquecer que a extensão e consistência deste estão também dependentes do comportamento desta.

Como explica Costa Andrade[9], «a honra acaba por ver a sua extensão e consistência dependentes da conduta do portador. Resumidamente, “a violação culposa dos deveres jurídicos e éticos – estes últimos se e na medida em que forem reconhecidos – tem influência na valoração” (26)[10] que dá suporte à honra.

Em suma, em tal ponderação haverá que considerar não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstâncias envolventes, como sejam a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a eventual relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são.

Revertendo ao caso concreto, a envolvência a apreciar surge delineada com detalhe nos factos dados como provados, designadamente nos pontos B a D, J, K, L, M e Z, que são, recorda-se, do seguinte teor:

«B. AA em datas não concretamente apuradas agrediu verbalmente BB, proferindo ainda ameaças de morte, em face do que, tem receio dele, tendo já apresentado diversas queixas criminais onde relatou esses factos;»

«C. Na reportagem referida em A) CC refere que a população evita sair de casa devido aos comportamentos de AA e aduziu ainda que este tem na sua posse facas e paus e que com as mesmas assusta a população já envelhecida da sua aldeia;»

«D. AA em datas não concretamente apuradas, andou pela aldeia de ... com facas e paus;»

«J. No dia 26 de outubro de 2020, os arguidos dão nova entrevista ao programa Casa Feliz do canal SIC intitulada “Homem tem agredido e ameaçado a tiro população de aldeia”, na qual, BB refere que AA considera ter direitos sobre ela e que queria que ela fosse sua amante;»

«K. Em data não concretamente apurada, AA referiu ter direitos sobre BB e que queria que ela fosse sua amante;»

«L. No circunstancialismo indicado em J) BB referiu ainda que AA a ameaça de morte, que já a tentou agredir, que anda nu pela aldeia e bem ainda que já ouviu tiros, afirmando não saber quem os disparou;»

«M. Em datas não concretamente apuradas, AA andou nu pela aldeia de ...;»

«Z. Em data não concretamente apurada AA arrancou o portão de casa de BB;»

O recorrente vem condenado por crime de difamação com publicidade unicamente por referência à sua actuação descrita no ponto CC.:

«CC. No dia 8 de fevereiro de 2021, CC publicou um comentário onde dizia viver numa aldeia com um “vizinho ordinário”, referindo-se a AA;»

Duas observações se impõem, antes de mais.

A primeira, é que, embora a redacção deste ponto de facto possa sugerir que no comentário em causa se identificava o “vizinho” a quem o arguido se referia, tal não corresponde à verdade, como também o Tribunal recorrido teve o cuidado de sublinhar no segmento da sentença relativo à determinação da medida da pena, aí se referindo que «A gravidade do ilícito, que é diminuta dado o contexto em que a publicação é feita e bem assim, a circunstância de não fazer menção alguma ao nome de AA, pelo que, não obstante o facto de CC à data da publicação ter 5.000 amigos na rede social Facebook em que efetuou a publicação, o certo é que apenas quem tem conhecimento dos factos perpetrados por AA é que sabe que tal publicação respeita ao mesmo, ficando assim o âmbito da ofensa circunscrito a um limitado número de pessoas;»

A segunda, que não é de somenos importância, diz respeito ao teor integral do comentário em que se inserem as palavras «vizinho ordinário».

O facto de na acusação particular se ter optado por apresentar tais palavras desgarradas da frase em que se inseriam não desobriga o julgador de as aí reinserir, para percepcionar, como se lhe impõe, o contexto da alegada ofensa.

O comentário aposto pelo ora recorrente, na sua versão integral, é o seguinte:

«Vivo numa aldeia mas realmente tenho um vizinho ordinário. Faleceu uma pessoa fantástica de respeito que ajudou muita gente onde eu me incluo e a guzarem connosco que estamos de luto coloca música aos altos berros em casa. Deus se existe dê a esta gente a devida lição».

Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, ordinário é o «que está dentro da ordem natural das coisas, normal, vulgar, habitual, comum, que não se salienta, regular, de baixa condição, grosseiro, de qualidade inferior, reles, mal-educado».

Nas descritas concretas circunstâncias do caso, será de questionar, como faz o Senhor Procurador-Geral Ajunto no seu Parecer:

«Ora, tratando-se de alguém que, conforme foi dado como provado:

- proferiu ameaças de morte dirigidas à mãe do recorrente,

- andou pela aldeia de ... nu e com facas e paus,

- arrancou o portão da casa da mãe do recorrente, com quem este reside,

- e referiu ter direitos sobre a mãe do recorrente e que queria que ela fosse sua amante,

atenta contra a sua honra e consideração quem, sentindo-se directa e legitimamente atingido também por este comportamento, o apelida de “vizinho ordinário”, isto é, reles, grosseiro e mal-educado?»

Afigura-se-nos manifesto que não.

Mesmo que possa considerar-se existir um excesso de linguagem susceptível de, em abstracto, beliscar o direito à honra ou consideração do visado, essa violação não passa de um desabafo, desencadeado, motivado e contextualizado pelos reiterados comportamentos daquele, eles próprios violadores de direitos de terceiros, não atingindo – à luz dos princípios da intervenção mínima do direito penal e da proporcionalidade – um patamar de gravidade que reclame ou sequer justifique a intervenção do direito, pelo que não se verifica, desde logo ao nível do tipo objectivo, o preenchimento do tipo de crime de difamação, devendo, em consequência, ser o recorrente do mesmo absolvido.

E porque não resultou provada, por parte do recorrente, a prática de qualquer acto ilícito, falecem os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual, impondo-se também a sua absolvição do pedido de indemnização civil contra ele formulado pelo demandante.

Procede, assim, o recurso interposto.


*

III. Decisão

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em, concedendo provimento ao recurso interposto pelo arguido, CC, absolvê-lo da prática do crime de difamação com publicidade, p. e p. pelos arts. 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, pelo qual vinha condenado, bem como do pedido de indemnização civil contra ele formulado pelo demandante, AA.

Sem tributação (art. 513.º, n.º 1, do CPP, a contrario).

Notifique.


*
(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária, sendo ainda revisto pela segunda e pela terceira signatária, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20-09)

*
Coimbra, 10-05-2023





[1] «”(…) Em caso de conflito ambos os valores constitucionais terão, por isso, de ser preservados na medida do possível. Na medida em que tal não puder alcançar-se então caberá decidir, de acordo com o desenho típico do caso e as circunstâncias concretas envolventes, qual dos interesses há-de recuar. Ao fazê-lo hão-de, porém, ter-se sempre presentes ambos os valores constitucionais na sua relação com a dignidade humana, como a pedra angular do sistema de valores da Constituição” (…) Na axiologia constitucional do moderno Estado de direito só a dignidade humana – “critério supremo e princípio de interpretação de todo o direito” (GALLAS) – conhece uma protecção absoluta e sem limites», refere Manuel da Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, pág. 170.
[2] Proferido no Proc. n.º 14936/16.3T9PRT.P1, in www.dgsi.pt.
[3] [9] Caso A v. Norway (Application no. 28070/06)
[4] [10] Caso Juppala v. Finland (Aplication no.18620/03)
[5] [11] Caso Bédat v. Switzerland (Application no. 56925/08)
[6] [12] Manuel da Costa andrade, Idem, p. 83.
[7] O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, na decisão Amorim Giestas e Jesus Costa Bordalo c. Portugal (3 de Abril 2014, § 36) é claro em considerar que o ordenamento jurídico português contém um remédio específico para a protecção da honra e da reputação no artigo 70º do Código Civil, pelo que a penalização por difamação se deve entender hoje como residual.
[8] De que são exemplo, para além do citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-04-2019, os acórdãos da mesma Relação de 14-11-2012, Proc. n.º 15722/10.0TDPRT.P1, e de 20-04-2016, Proc. n.º 1171/13.1GAMAI.P1; da Relação de Lisboa de 12-10-2000, Proc. n.º 39719, de 19-04-2006, Proc. n.º 11862/2006-3, e de 11-12-2019, Proc. n.º 4695/15.2T9PRT.L1-9; da Relação de Guimarães de 17-02-2014, Proc. n.º 1500/10.0GBGMR.G1, de 23-02-2015, Proc. n.º 218/12.3TAPRG.G1, e de 24-05-2021, Proc. n.º 294/19.8PABCL.G1; e desta Relação de Coimbra de 16-05-2012, Proc. n.º 1985/10.4TACBR.C1, de 23-05-2012, Proc. n.º 241/10.2GAANS.C1, de 14-09-2016, Proc. n.º 243/15.2GASPS.C1, e, recentemente, de 22-02-2023, Proc. n.º 18/20.7T9MMV.C1, que subscrevemos na qualidade de adjunta, todos in www.dgsi.pt.
[9] In Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, pág. 83.
[10] (26) OTTO, Scwinge-FS., p. 82.