Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
81/04.8TBIDN
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: ABUSO DE DIREITO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXERCÍCIO DE DIREITO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 11/11/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: IDANHA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 334.º; 496.º, N.º 1; 1564.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Celebrado um contrato de compra e venda de imóvel, com cláusula a favor de terceiro (o autor) pela qual foi constituída uma servidão de passagem, cláusula que não foi incluída na escritura pública que titulou aquele negócio, integra a figura do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, a invocação da nulidade (por vício de forma) da estipulação a favor de terceiro, por parte do proprietário do prédio serviente quando, na sequência desse contrato, o autor, durante 13 anos, utilizou essa passagem, de carro, para entrar no seu prédio (encravado), onde exercia actividade de exploração pecuária, sem qualquer oposição do proprietário do prédio serviente (réu) que, no entanto, continua a usufruir de todos os benefícios advenientes do contrato de compra e venda, que não põe em causa na acção.
2. A actuação dos réus, proprietários do prédio serviente, que colocaram uma cancela que fecharam, sem qualquer aviso ao autor, impedindo-o de entrar no seu prédio, é ilícita, justificando a fixação de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência dessa conduta.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

A....e B...., residentes na Rua do Espírito Santo, n.º 31, em …., intentaram a presente acção com forma de processo ordinário contra C...., residente na Quinta das ………e D...., residente na Rua do Espírito Santo, n.º 22, 2.º, ……, pedindo a condenação dos réus a:

a) reconhecerem aos autores o direito de propriedade sobre o prédio rústico identificado no artigo 1.º da petição inicial;

b) reconhecerem aos autores o direito à servidão de passagem referida no artigo 7.º do mesmo articulado;

c) abrirem a cancela referida no artigo 28.º da petição inicial e a nada fazerem que obste à livre passagem dos autores por aquela servidão de passagem;

d) pagarem aos autores a quantia global de € 9.774,69, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros, à taxa legal, desde a decisão final e até integral pagamento;

e) pagarem aos autores os prejuízos que, eventualmente, se venham a liquidar em execução de sentença.

Para fundamentarem a sua pretensão alegam que:

São donos de um prédio rústico, sendo que o acesso ao mesmo era essencialmente feito por uma servidão de passagem de carro que saía do caminho público que ligava Oledo a Proença-A-Velha, atravessava no sentido poente-nascente um prédio dos réus e entrava no prédio dos autores, junto ao seu ângulo poente-norte.

Os autores tinham ainda acesso ao seu prédio por uma outra servidão de passagem de carro, que corria no prédio dos réus ao longo da linha divisória com o prédio dos autores e do lado nascente deste, sendo que, para cultivarem e explorarem o seu prédio, há mais de 25 anos, que ao mesmo acediam pelas duas servidões referidas.

Há cerca de 17 anos o réu C....pensou em construir uma barragem para acumulação da água das chuvas, que precisava, entrando desde logo em negociações com o proprietário do terreno onde pretendia construir a barragem, o E...., com vista à sua aquisição.

A construção da barragem provocaria, necessariamente, o corte do caminho Oledo-Proença-a- Velha, pelo que a servidão supra referida tornava-se inútil, o que o E.... não queria que acontecesse, até por ser cunhado dos autores.

Por essa razão, o E.... comunicou ao réu que só aceitaria permutar o seu prédio para nele ser construída a barragem se o réu assumisse inequivocamente a obrigação de deixar os autores continuarem a utilizar livremente o caminho de carro indicado, de que, aliás, já se serviam.

O que o réu aceitou, tendo construído a barragem, cortando o caminho Oledo – Proença e fazendo com que os autores passassem a utilizar apenas a passagem referida, único acesso ao seu prédio.

Os réus colocaram à entrada do seu prédio uma cancela, que depois fecharam e lavraram o leito dessa servidão, fazendo com que os autores deixassem de poder aceder ao seu prédio, sendo que os autores haviam adquirido, por usucapião, servidão referida.

Em virtude dessa impossibilidade de acederem ao seu prédio sofreram os autores vários danos, patrimoniais e não patrimoniais, relativamente aos quais pretendem agora ser ressarcidos.

Os réus contestaram, impugnando alguns dos factos articulados na petição inicial e invocando, em síntese, que:

Durante mais de 50 anos o acesso ao prédio dos autores foi feito por um caminho público que ligando as povoações de Oledo a Proença-A-Velha, atravessa vários prédios dos réus e passa a 50 metros do limite Poente-Norte do prédio denominado “Jardim”.

Desse caminho público sai a servidão de passagem referida no artigo 6.º da petição inicial, a qual onera em 50 metros o prédio dos réus, sendo que a construção da barragem, há cerca de 11 anos, em nada afectou o caminho público, no troço compreendido entre tal servidão de passagem e a estrada municipal que liga Oledo e Proença-A-Velha, além de que os réus já restauraram, à sua custa, o mencionado caminho público, na parte invadida pela barragem.   

Depois da construção dessa barragem o autor pediu aos réus se o deixavam passar pelo segundo acesso referido na petição inicial, ao que os réus, por mera cortesia e tolerância, acederam, nunca se tendo falado em substituição da passagem existente ou constituição de uma nova.

No entanto, “os autores ou terceiros” deslocam-se ao prédio “Jardim”, a altas horas da noite, circulando em todo o tipo de viaturas, danificando o piso, aramadas, redes e paus da sua propriedade e foram envenenados alguns dos cães dos réus, pelo que estes decidiram deixar de possibilitar a passagem por parte dos autores.

Os autores não invocaram factos caracterizadores de usucapião e, embora tenham referido um acordo, que não existiu, não alegam a existência de uma escritura pública, bem como não alegaram que o prédio dos réus é aquele que sofre menos prejuízo com eventual constituição de uma servidão.

Em reconvenção e para o caso de se entender dever constituir-se uma servidão onerando o seu prédio, pedem a condenação dos autores no pagamento de uma indemnização no valor de € 25.000,00.

Requerem, por último, a condenação dos autores como litigantes de má-fé, invocando diferentes versões dos factos apresentadas pelos autores no requerimento inicial da providência cautelar intentada e na petição inicial do presente processo.

Os autores replicaram, impugnando o valor da indemnização peticionada, reiterando que passam pela passagem referida no artigo 7.º da petição inicial há mais de 25 anos, que depois da construção da barragem, o passaram a fazer mesmo a pedido dos réus e que o caminho público mencionado pelos réus, desde tal construção, está totalmente intransitável.

Elaborou-se despacho saneador, com selecção da factualidade assente e base instrutória, objecto de reclamação, parcialmente deferida.

Procedeu-se a julgamento e respondeu-se aos quesitos, sem reclamações.

Os autores apresentaram alegações de direito.

Proferiu-se sentença, que concluiu da seguinte forma:

“Nos termos e com os fundamentos invocados, decido julgar parcialmente procedente e provada a presente acção declarativa de condenação, com forma de processo ordinário, intentada por A....e B...., contra C.... e D.... e, consequência:

- condeno os réus a reconhecerem aos autores o direito de propriedade sobre o prédio rústico identificado no artigo 1.º da Petição inicial;

- absolvo os réus do demais peticionado.

- considero prejudicada a apreciação do pedido reconvencional formulado pelos réus.

*

Custas pelos autores.

Registe e notifique”.

Inconformados, os autores recorreram, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:

“1ª- O acesso à propriedade dos AA., ora recorrentes, denominada “Jardim” fez-se durante, pelo menos, 50 anos por uma servidão de passagem com 50 metros constituída sobre um prédio dos RR e que saía de um caminho público que ligava Oledo a Proença-a--Velha,

2ª Há dezassete anos os RR. pensaram em construir uma barragem, que necessariamente cortaria o caminho Oledo-Proença-a-Velha e consequentemente impediria a utilização da servidão de passagem referida na 1ª conclusão.

3ª A barragem foi efectivamente construída pelos RR. há pelo menos 11 anos, mas tal só foi possível porque estes adquiriram por permuta o prédio onde implantaram a barragem ao cunhado dos AA. e somente porque se obrigaram perante esse cunhado e perante os AA. a deixá-los passar pelo caminho objecto da presente acção.

4ª Desde há pelo menos 13 anos que os AA. utilizam exclusivamente a passagem objecto da presente acção, o qual constitui o único acesso ao “Jardim”, uma vez que o caminho Oledo-Proença-a-Velha e a anterior servidão de passagem se encontram intransitáveis em virtude da construção pelos Réus da barragem e de vedações e, bem assim, pelo crescimento das árvores.

5ª Os Réus querem que os AA deixem de utilizar a passagem objecto da presente acção e voltem a utilizar o anterior caminho e servidão de passagem, os quais conforme acima referido estão intransitáveis.

6ª Para tanto alegam que o acordo que estabeleceram é nulo por falta de forma, na medida em que a servidão de passagem objecto da presente acção só poderia ser constituída por escritura pública, o que nunca foi feito.

 7ª Os AA. entendem que, de acordo com o disposto no art. 342º do CC é ilegítimo o exercício deste direito pelos RR., uma vez que, face às circunstâncias concretas e plasmadas na matéria de facto provada, este exercício excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. (…)

9ª A servidão de passagem objecto da presente acção também se pode ter como constituída por usucapião, uma vez que se encontram provados todos os factos necessários a tal entendimento.

10ª Pois a anterior servidão de passagem existente, que saía do caminho Oledo-Proença-a-Velha, e pela qual o acesso ao " Jardim" se fez pelo menos durante 50 anos, face ao decurso do tempo, constitui-se por usucapião.

11ª O acordo entre AA. e RR. consubstancia um acordo nos termos do artigo 1568º do Código Civil, pelo que à situação sub judice tem plena aplicabilidade a jurisprudência constante do Acórdão da Relação de Coimbra de 06/05/1997:BMJ 467° - 645: "Mudado por acordo o local de uma servidão, o direito respectivo continua a ser o anteriormente adquirido por usucapião, por inalterado na sua identidade jurídica. A esse acordo de mudança não são aplicáveis as disposições dos arts. 89 ai.,9 a) do Código de Notariado e 220 do Cód. Civil, não carecendo, assim, para ser válido, de ser reduzido a escritura pública."

 12ª A servidão de passagem objecto da presente acção também se pode ter como servidão legal, uma vez que o prédio dos AA. é um prédio encravado sendo o caminho nascente (o objecto da presente acção) o único, nos prédios vizinhos, que permite o acesso ao prédio dos AA.

13ª Sendo este o único acesso ao prédio, inexiste a obrigação dos AA. alegarem qualquer outro facto, na medida em que não estamos perante um caminho a construir mas perante um caminho já construído, utilizado parcialmente pelos próprios RR. e por isso sempre menos oneroso relativamente a qualquer prédio vizinho, que não apresentam caminho ou passagem para o prédio dos AA.”.

Os réus apresentaram contra alegações, mantendo as posições já assumidas nos autos.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância deu por provada a seguinte factualidade, aditando esta Relação a respectiva proveniência relativamente à Base Instrutória e ainda o facto consignado sob o nº 40 A, correspondente ao quesito 25º (que mereceu resposta positiva e que, por manifesto lapso, não foi consignado na decisão), procedendo-se ainda à rectificação do facto consignado sob o nº 82 (porquanto aí se remeteu, por lapso, para o nº 25 e não, como se impunha em face da resposta aos quesitos, para o nº24):

1. Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Idanha-A-Nova sob o artigo 22.902 que o prédio rústico formado de terra de cultura arvense e prado natural com árvores, no sitio de "Jardim", freguesia de Proença-a-Velha, que confina do Norte com Manuel Neves Baleiras, Maria Joana Ferreira Pinto e João Filipe Osório de Meneses Pita, Nascente com Dr. C.... e João Filipe de Meio Osório de Meneses Pita, sul com C.... e Francisco Esteves Ramos e poente com Maria Joana de Bourbon de Melo Osório de Meneses Pita de Carvalho, inscrito no artigo matricial 15.°, Secção J, foi adquirido por A…., casado com B.... por compra a F.....

2. Por escritura pública de compra e venda outorgada na Secretaria Notarial da Covilhã em 28-9-1977, o autor marido adquiriu o referido prédio rústico a F.....

3. Os autores registaram a sua aquisição pelas inscrições n.ºs 22898 - 22899 22900 - 22901 e 22902 de fls. 133 a 135 do Livro B 58 da Conservatória do Registo Predial de Idanha-a-Nova.

4. Esse prédio confronta pelos seus lados nascente e sul com o prédio rústico dos réus inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 15 da secção K.

5. Antes da construção do actual caminho alcatroado, o anterior caminho público que ligava Oledo a Proença-a-Velha passava pelo prédio rústico inscrito na matriz predial da citada freguesia de Proença-a-Velha sob o artigo 5 da Secção J, prédio este que confronta pelo seu lado nascente com o dos autores.

6. E o acesso ao prédio dos autores era feito por uma passagem de carro que saía daquele caminho Oledo - Proença a Velha, atravessava no poente - nascente o mencionado prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 5, da Secção J, e entrava no prédio dos autores junto ao seu ângulo poente - norte.

7. Há cerca de, pelo menos, onze anos, o réu C...., pensou em construir uma pequena barragem junto ao ângulo poente-sul do prédio dos autores, para acumulação da água das chuvas que necessitava.

8. Entrando desde logo em negociações com o proprietário do terreno onde pretendia construir essa barragem, E…., com vista à sua aquisição.

9. A construção da barragem provocaria, necessariamente, o corte do caminho Oledo-Proença-a-Velha , perto da dita servidão de passagem referida em alínea 6.

10. O autor assinou a respectiva escritura na qualidade de procurador do Manuel Lopes Proença.

11. E os autores deixaram de utilizar a passagem que saía daquele caminho para o seu prédio.

12. E, posteriormente, os autores vedaram o seu prédio em toda a volta, com postes de ferro e rede de arame.

13. Durante mais de 50 anos, o acesso ao prédio "Jardim" mencionado no artigo 1.º da petição inicial, que confina com vários prédios rústicos contíguos a vias públicas, foi feito por um caminho público que ligando as povoações da Oledo e Proença-A-Velha, atravessa vários prédios dos réus e passa a cerca de 50 metros do limite Poente-Norte de tal “Jardim”.

14. Tal caminho, utilizado pela generalidade das pessoas para as suas deslocações entre as povoações referidas e também para utilização de uma fonte pública existente no seu percurso, é tão antigo que já se perdeu a memória da data da sua origem, pelo que a sua natureza pública não sofre contestação quer por parte dos réus quer por parte dos autores.

15. A passagem referida em 6. onera, em pelo menos 50 metros, o prédio rústico inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 5, da Secção J da mesma freguesia, propriedade dos réus.

16. O caminho referido em 6. é público, murado em pedra em parte da sua extensão, é estreito - nalguns troços não tem mais de 2 metros de largura - e alaga durante a época das chuvas em determinados pontos do seu percurso.

17. Há cerca de 2 anos, os réus colocaram uma cancela, em ferro, que fecharam, no acesso que os autores passaram a utilizar.

18. Pessoas não concretamente identificadas, quase sempre à noite e altas horas, deslocam-se ao mencionado "Jardim" e passaram a utilizar o acesso referido circulando com todo o tipo de veículos automóveis (tractores com ou sem reboque, "Jeeps", ligeiros de passageiros, mistos, de mercadorias, etc.), e isto porque os réus, há menos de 1 ano, procederam, à sua custa, à repavimentação e beneficiação de tal acesso.

19. Depois da construção da barragem, os autores passaram a ter acesso ao seu prédio por outra passagem de carro que corria no prédio dos réus, ao longo de linha divisória com o prédio dos autores e do lado nascente do destes e antes dessa construção passavam por esse caminho quando utilizavam carros e com a autorização dos réus (resposta ao quesito 1º).

20. Os autores antes de adquirirem o seu mencionado prédio, haviam-no tomado de arrendamento ao anterior proprietário muitos anos antes (resposta ao quesito 2º).

21. Desde que foi construída a barragem pelos réus, a passagem referida em 19., que entra no prédio dos autores pelo seu lado nascente, tem sempre apresentado o leito marcado por sinais visíveis e permanentes no prédio rústico dos réus, sinais que indicam trânsito de pessoas, de animais e de veículos, como tractores, através deste prédio e a favor do dos autores (resposta ao quesito 4º).

22. Há cerca de dezassete anos que o réu C.... pensou em construir barragem referida em 7 (resposta ao quesito 5º).

23. O que vai na alínea 9. impede a utilização do caminho referido em 6 (resposta ao quesito 6º).

24. O E....comunicou ao réu que só aceitaria permutar o seu prédio, para no mesmo ser construída a barragem, se aquele deixasse os autores utilizarem livremente o caminho de carro para entrarem no seu prédio, pelo lado nascente ao mesmo (resposta ao quesito 7º). 

            25. Após conversações, o E…. aceitou permutar o seu prédio por outro do réu C....(resposta ao quesito 8º).

26. O caminho referido em 6. tornou-se inutilizável devido à barragem que o cortou, bem como o crescimento das árvores no seu leito e por ter sido cortado em muitos pontos por vedações implantadas pelos réus (resposta ao quesito 9º).

27. Os Autores passaram então a servir-se exclusivamente da passagem de carro que, correndo pelo prédio dos Réus, entra no deles pelo lado nascente, referido em 19 (resposta ao quesito 10º).

28. Aquela passagem passou a constituir o único acesso de carro ao prédio dos autores (resposta ao quesito 11º).

29. Foi colocado um portão em ferro e rede de arame, no local onde esta passagem entra no prédio dos autores (resposta ao quesito 12º). 

30. Em 2001 os réus colocaram à entrada do seu prédio uma cancela em ferro, que era aberta pelos autores para ali passarem para o seu prédio (resposta ao quesito 13º).

31. Pelo menos ao longo dos últimos 13 anos, os autores utilizaram diariamente aquela passagem sem qualquer oposição por parte dos réus (resposta ao quesito 15º). 

32. No dia 30 de Dezembro de 2003, os Réus fecharam a cadeado e sem qualquer aviso prévio, a cancela que haviam colocado à entrada do seu prédio como se refere em 31 (resposta ao quesito 16º).

33. Os réus abriram a sobredita cancela dois dias depois, por insistência da patrulha da G.N.R. procurada pelo autor, e voltaram a fechá-la no dia 20 de Janeiro (resposta ao quesito 17º).

34. Poucos dias depois os réus, mandaram lavrar o leito da passagem (resposta ao quesito 18º).

35. Agora, com as chuvas, as pessoas e os veículos atascam-se ali (resposta ao quesito 19º).

36. Os autores deixaram de poder entrar no seu prédio de carro (resposta ao quesito 20º).

37. O prédio dos autores não tem qualquer comunicação com a via pública a não ser através daquela passagem referida em 19 (resposta ao quesito 21º).

38. Os autores possuem naquele seu prédio, um rebanho de 70 ovelhas de raça Ille de France, duas éguas e um outro rebanho de 32 gamos (resposta ao quesito 22º).

39. Os gamos não podem ser colocados noutro prédio (resposta ao quesito 23º).

40. É muito difícil e oneroso mudar as ovelhas e éguas para outro local (resposta ao quesito 24º).

40A. No prédio referido em 1. os autores têm tudo preparado, desde a divisão dos prados, à distribuição da rega e aos abrigos, para que nada falte àqueles animais (resposta ao quesito 25º)

41. Se os autores estiverem impedidos de entrar no seu prédio, os prados desaparecerão por serem totalmente comidos e não se renovarem, por falta de irrigação (resposta ao quesito 24º).

42. No final de Dezembro de 2003 morreu uma cria de uma ovelha (resposta ao quesito 27º).

43. E entre os dias vinte de Janeiro e 11 de Fevereiro de 2004, período durante o qual os Réus mantiveram novamente a dita cancela sempre fechada, morreram cinco ovelhas (resposta ao quesito 28º).

44. Cada uma dessas ovelhas valia € 85,00 (oitenta e cinco euros) (resposta ao quesito 29º).   

45. As ovelhas estavam na época da parição no período em que os autores estiveram totalmente impedidos de entrar no seu prédio(resposta ao quesito 30º)?

46. É vulgar aquelas ovelhas parirem dois borregos de cada vez (resposta ao quesito 31º).

47. Havia 42 ovelhas em gestação (resposta ao quesito 32º).

48. Só apareceram 19 borregos (resposta ao quesito 33º).

49. Desapareceram vários borregos (resposta ao quesito 35º).

50. E os borregos de raça Ille de France valem pelo menos 35,00 cada um (resposta ao quesito 36º).

51. Durante o período em que a cancela esteve fechada, de 20 de Janeiro a 11 de Fevereiro de 2004, as ovelhas, gamos e éguas comeram tudo o que havia de verde no prédio (resposta ao quesito 37º).

52. Estragando completamente os prados de trevo (resposta ao quesito 38º).

53. E agora é necessário recuperá-los (resposta ao quesito 39º).

54. Tendo de gastar para tanto, pelo menos, 8 sacos de adubo, a distribuir por 2 vezes (resposta ao quesito 40º) .

55. Além disso para recuperar os prados distribuídos por 4 hectares, é necessário regá-los com frequência (resposta ao quesito 42º).

56. De Verão, também não se pode deixar de proceder várias vezes a alterações manuais ao longo das 24 horas, para que a água saía para o terreno ora por uns canhões de irrigação, ora por outros (resposta ao quesito 44º).

57. Os gamos não puderam ser vendidos até ao dia 11 de Fevereiro de 2004 (resposta ao quesito 46º).

58. Para se venderem os gamos é necessário que os autores tenham o acesso permanentemente livre ao seu prédio (resposta ao quesito 47º).

59. Devido ao facto de não poderem entrar no seu prédio os autores não venderam 15 dos seus gamos (resposta ao quesito 48º).

60. Os autores não têm livre acesso ao seu prédio durante todo o dia (resposta ao quesito 49º).  

61. Os autores têm que alimentar os gamos até os venderem (resposta ao quesito 50º).

62. Tem de ser fornecido aos gamos um suplemento de aveia e palha (resposta ao quesito 51º).

63. Devido ao facto de os prados estarem totalmente estragados, os autores também terão que fornecer às ovelhas, às éguas e aos restantes gamos aveia e palha (resposta ao quesito 52º).

64. Gastando nisso 60 kg. de aveia e oito fardos de palha por dia (resposta ao quesito 53º).

65. Cada quilo de aveia custa 0,25 (vinte cinco cêntimos) (resposta ao quesito 54º).

66. E cada fardo de palha 1,00 (um euro) (resposta ao quesito 55º).

67. Os três trabalhadores do autor que se deslocaram ao prédio para limpar as oliveiras tiveram que voltar para trás, dado que a cancela havia sido fechada (resposta ao quesito 57º).

68. E agora foram lá durante dezasseis dias (o dobro do tempo), para as limpar e queimar a respectiva rama (resposta ao quesito 58º).

69. O prédio dista de Oledo cerca de 10 kms, demorando-se cerca de meia hora para a viagem de ida e volta (resposta ao quesito 59º).

70. Cada trabalhador foi ao prédio dezasseis vezes, em vez de oito se a cancela não fosse fechada ao meio-dia, gastaram-se sem qualquer proveito 8 vezes hora e meia, no total de 12 horas (resposta ao quesito 60º).

71. O trabalhador rural em Oledo ganha € 3,75 por hora (resposta ao quesito 61º).  

72. O médico veterinário deslocou-se 2 vezes ao prédio para tratar dos animais doentes, em consequência do sucedido (resposta ao quesito 63º).

73. E para tanto cobrou aos autores € 89,25 + € 59,50, num total de € 148,75 (resposta ao quesito 64º).

74 O Autor marido esteve sempre ligado, ao longo da sua vida, a exploração agro-pecuária (resposta ao quesito 65º).

75. O Autor marido gosta muito dos seus animais (resposta ao quesito 66º).

76. Tendo o autor muito orgulho neles, por os trazer sempre lustrosos e saudáveis (resposta ao quesito 67º).

77. Por isso sofreu muito ao não poder alimentá-los e assisti-los devidamente por os Réus terem impedido o acesso ao seu prédio (resposta ao quesito 68º).

78. O autor receou pela morte de todos os animais (resposta ao quesito 69º).

79. A autora sofreu um aumento da tensão arterial (resposta ao quesito 71º).

80. Há pelo menos 11 anos, por referência à data da propositura da acção, os réus construíram uma pequena barragem no seu prédio, junto ao limite Poente-Sul do prédio denominado “Jardim” (resposta ao quesito 73º).

81. O acesso referido em 19. invade em cerca de 700 metros o prédio dos réus, até ao prédio denominado “Jardim” (resposta ao quesito 76º).

82. Os réus concordaram com o referido em 24 (resposta aos quesitos 76º e 77º).

83. Os réus procederam conforme o descrito em 34. depois de terem sido envenenados dois dos seus cães (resposta ao quesito 78º). 

84. A passagem referida em 19. ocupa cerca de 2100 m2 de terra rústica, metade dos quais em terreno recentemente repavimentado com brita, sendo o seu valor o de € 3.000,00 (resposta ao quesito 82º).

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C. – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 664 do mesmo diploma.

Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos apelantes, assentamos que, no caso dos autos, está em causa apreciar:

- da caracterização do contrato celebrado; 

- da inalegabilidade da nulidade por vício de forma/do abuso de direito; 

- do modo de exercício da servidão;

- dos pressupostos da obrigação de indemnizar.

2. Em síntese, podemos contextualizar a dinâmica das relações entre as partes nos seguintes moldes:

Durante mais de 50 anos, o acesso ao prédio rústico dos autores – prédio denominado “Jardim”, em que o autor desenvolve uma exploração agro pecuária –, começou por fazer-se por uma passagem de carro que saía de um caminho público, atravessava no Poente - Nascente um prédio rústico dos réus – inscrito na matriz sob o artigo 5, secção J –, e entrava naquele prédio dos autores junto ao seu ângulo Poente - Norte.

Há uns anos o réu pensou construir uma pequena barragem junto ao ângulo poente-sul do prédio dos autores, para acumulação da água das chuvas, para o que entrou logo em negociações com o proprietário do terreno onde pretendia construir essa barragem, Manuel Lopes Proença, com vista à sua aquisição, que se concretizou.

O caminho referido tornou-se então inutilizável devido à barragem, que o cortou, pelo que os autores passaram a servir-se exclusivamente de uma passagem de carro que, correndo pelo referido prédio dos réus, ao longo da linha divisória com o prédio dos autores, entra no prédio dos autores pelo lado nascente, o que fazem pelo menos ao longo dos últimos 13 anos, diariamente, sem qualquer oposição por parte dos réus.

No dia 30 de Dezembro de 2003 os réus fecharam a cadeado e sem qualquer aviso prévio a cancela que haviam colocado à entrada do prédio, deixando os autores de poder entrar no seu terreno, que não tem qualquer comunicação com a via pública a não ser por aquela passagem. 

E quanto à relação entre os réus, os autores e o aludido E… (que os autores invocam ser cunhado dos autores, o que se desconhece)?

Pois bem, provou-se que o réu C.... entrou logo em negociações com o proprietário do terreno onde pretendia construir a barragem – E....–, e que este comunicou ao réu que só aceitaria permutar o seu prédio, para no mesmo ser construída a barragem, se aquele deixasse os autores utilizarem livremente a passarem referida para entrarem no seu prédio, com o que os réus concordaram, tendo sido o autor quem assinou a respectiva escritura na qualidade de procurador do E....– cfr. a factualidade assente sob os nºs 7, 8, 24, 25, 82 e 10.

Esta factualidade, “permite a conclusão segura no sentido de ter havido acordo entre o autor e o réu no sentido de a passagem da via pública para o prédio “Jardim” se passar a fazer “pela parte de cima do prédio dos réus”, refere a Sra. juiz, pese embora não estejamos, acrescenta, perante um acordo “expresso”, valendo então o disposto no arts. 217.º, nº1 do Código Civil – diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem. [ [i] ]

A Sra. juiz parte, depois, para a nulidade do contrato celebrado, argumentando que “tal acordo não consta de escritura pública (não bastando, para os efeitos do artigo 217.º/2 do Código Civil a existência de escritura pública de permuta de dois prédios, sem mais), sendo, por isso nulo, nos termos supra referidos, nulidade que pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado, tal como foi, pelos réus, na sua contestação”.

Ora, começamos desde logo por discordar da delimitação do contrato feita na decisão recorrida, sendo que a caracterização do negócio assume particular relevância, como veremos adiante.

Efectivamente, parece-nos que o autor não foi parte no acordo celebrado, não se encontrando factos que permitam inferir uma qualquer declaração do autor, expressa ou tácita. Como resulta da factualidade assente, as negociações prévias à outorga da escritura desenrolaram-se apenas entre o réu e o E...., que discutiram, afinal, os termos do negócio projectado, reduzindo-se a intervenção do autor à outorga da escritura, na qualidade de mero representante do E..... Aliás, não pode deixar de salientar-se que tendo os autores invocado um acordo tripartido – “e tendo chegado os três a acordo, após longos meses, o E....aceitou permutar o seu prédio por outro do Réu Manuel Baleira”, refere-se no art. 19º da petição inicial –, essa versão foi vertida no quesito 8º da base instrutória, que mereceu resposta restritiva – cfr. a factualidade supra indicada sob o nº 25.

Através desse contrato e para além das cláusulas alusivas à permuta dos terrenos, o réu obrigou-se perante o E...., a constituir a favor do prédio dos autores uma servidão de passagem que onera um prédio seu, com as características enunciadas na factualidade assente.

Estamos perante um contrato a favor de terceiro – art. 443º, nº1 –, isto é, perante um acordo pelo qual o promitente (o réu) se obriga perante o promissário (o E....), a uma prestação a um terceiro, estranho ao negócio (os autores), [ [ii] ] que adquire, em função disso, um direito próprio, podendo exigir o cumprimento – art. 444º, nº1 –, aceitando expressamente a lei que o contrato tenha eficácia real quando estabelece que pelo contrato a favor de terceiro as partes têm a possibilidade de “constituir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais” – nº2 do art. 443º. [ [iii] ]

No caso, é inequívoco que os autores aceitaram a prestação, uma vez que passaram a utilizar a passagem assim constituída para o seu prédio – aliás, outra não tinham –, sem prejuízo do beneficiário ficar investido no direito por força do contrato, independentemente de aceitação. [ [iv] ]

Posto isto, concorda-se que o contrato em causa tem de constar de escritura pública, nos termos do art. 80.º, nº1 do Código do Notariado, sob pena de nulidade por inobservância da forma legal – arts.  219.º e 220.º –, não se vendo que, no caso, essa forma tenha sido observada, uma vez que está assente que a escritura outorgada apenas incidiu sobre a aquisição do terreno – cfr. a factualidade enunciada sob os nºs 8 a 10, salientando-se que as partes não juntaram aos autos tal documento mas é pacífica a factualidade em causa, que ninguém discute, salientando-se que a invocada permuta dos terrenos constitui um facto instrumental relativamente ao objecto do processo.

A questão reside agora em saber se é admissível a arguição dessa nulidade pelos réus, em sede de defesa, como aconteceu, em ordem a paralisar os efeitos do contrato, contrapondo os autores com a figura do abuso de direito, seguro, como é, que sempre cumpriria conhecer, ex oficio, de ambas as excepções. 

3. A 1ª instância respondeu afirmativamente, escrevendo-se na sentença recorrida que, “ao contrário do que refere o autor, não se vê que tal invocação constitua qualquer abuso de direito, em termos de venire contra factum proprium (o exercente deixa entender – ou declara – ir tomar uma certa atitude e, depois, toma atitude contrária ou diversa), sendo que tal entendimento, tal como se expressou nas alegações de direito, esvazia completamente a norma contida no artigo 286.º do Código Civil. Ou, por outras palavras, os interessados nunca poderiam invocar a nulidade de qualquer acordo, por falta de forma, precisamente porque foram intervenientes nesse acordo”.

Parece-nos uma leitura um tanto simplista, adiantando-se já que não partilhamos desse entendimento. Concentremo-nos, por agora, na delimitação do instituto do abuso de direito, entendendo-se aqui a expressão “direito” em sentido amplo, envolvendo toda e qualquer prerrogativa jurídica subjectiva, como sejam os “poderes” e as “faculdades”.

 O art. 334º considera ilegítimo o exercício de um direito, “quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé”.

O abuso de direito é uma das figuras sintomáticas concretizadoras da cláusula geral da boa fé, entendendo-se esta, em sentido objectivo, como significando que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros. [ [v] ]

Ele (o abuso de direito) verifica-se quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem. [ [vi] ]

No domínio de casos em que é aplicável a proibição do abuso do direito encontra-se o comportamento tradutor de um venire contra factum proprium, definindo-se, singelamente, como o exercício de uma posição jurídica contrária ao comportamento anteriormente assumido pelo exercente.

“Os seus pressupostos passam por:

a) Situação de confiança justificada pela boa fé, que levam uma pessoa a acreditar, estavelmente, em conduta alheia – no factum proprium – determinante de aquisição de posição jurídica;   

b) Investimento dessa confiança como orientação de vida, desenvolvendo actividade na crença do factum proprium, actividade que se vê agora destruída pelo venire, com o correlativo injusto regresso à situação anterior;

c) Imputação da situação criada à outra parte, por esta ter culposamente contribuído para a inobservância da forma prevista pela lei ou ter-se assistido à execução do contrato através de situações que se arrastam no tempo e pacificamente”. [ [vii] ]

Quando o abuso se traduz no exercício do direito “envolvido em nulidade formal”, [ [viii] ] a dificuldade reside, essencialmente, na sua concatenação com os efeitos reguladores da nulidade, tendo em conta as finalidades do formalismo negocial e destacando razões de segurança e de certeza jurídicas. [ [ix] ]

É neste ponto que a doutrina e a jurisprudência não têm convergido.

Meneses Cordeiro deu conta desta dualidade, concluindo que “o titular exercente, em abuso, incorre em previsões de indemnização ou outras, consoante os efeitos práticos a ponderar. Não podem, à face do Direito português, manter-se, por via directa da boa fé, os efeitos falhadamente procurados pelo acto nulo”. [ [x] ]

Na tentativa de resolver a questão o autor ensaia outras respostas, fazendo apelo a outras cláusulas gerais “de grande extensão e maleabilidade”, pelas quais o exercente pode fundadamente incorrer em responsabilidade civil, com a consequente obrigação de indemnizar, maxime a indemnização em espécie, exemplificando com a hipótese em que se verifica culpa in contrahendo.[ [xi] ]

O ponto é que a solução proposta não abarca a multiplicidade de situações da vida quotidiana com que o intérprete e aplicador se confronta, desde logo aqueles casos em que, como o dos autos, a patologia não radica na génese ou formação do contrato mas situa-se a jusante.

Daí que se propenda para considerar, como Mota Pinto, que “o intérprete, desde que legalmente aceite como boa e valiosa para o comum dos casos a norma que prescreve a nulidade dos negócios feridos de vício de forma, está legitimado para, nos casos excepcionalíssimos do art. 334º, afastar a sua aplicação, tratando a hipótese como se o acto estivesse formalizado. Fora desses casos excepcionalíssimos, se uma das partes actuou com má –fé nas negociações, o negócio é nulo, mas surgirá uma indemnização por força do art. 227º”. [ [xii] ]

Essa é também, parece-nos, a posição que maioritariamente a jurisprudência vem seguindo, ou seja, admite-se que nem sempre a arguição da nulidade de um acto, por falta de forma, por aquele que o praticou, consubstancie um abuso de direito, havendo que aplicar tal instituto com as necessárias cautelas. Como se referiu no Ac.R.C. de 5.3.96 “só em casos limite ou em situações verdadeiramente excepcionais de gritante e clamorosa injustiças poderão deter-se certas alegações de nulidades formais com recurso à figura do abuso de direito”. [ [xiii] ]

Quid juris na hipótese em apreço?

Na base do contrato celebrado temos um interesse do réu na construção de uma barragem para captação de águas para prédios seus, interesse que concretizou porquanto logrou adquirir a propriedade de um terreno que não  lhe pertencia e onde implantou essa barragem. Doutra parte temos um contraente – que não os autores, saliente-se –, que impõe como condição para a concretização desse negócio, que envolvia permuta de terrenos, a constituição de uma servidão de passagem de carro a favor do prédio de um terceiro, os autores.

Sendo lícito inferir que subjaz a essa condição a vontade de salvaguardar os interesses dos autores, em ordem a acautelar a situação de encrave absoluto do seu prédio. Efectivamente, durante mais de 50 anos e até à construção da barragem, o acesso ao prédio dos autores fazia-se por uma passagem que saía de um caminho público e atravessava depois um prédio dos réus, passagem que ficou obstruída com a construção da barragem – o que, porventura, os contraentes já anteviam –, pelo que se impunha encontrar nova passagem.

Ou seja, os réus aceitaram os termos do contrato – na sequência do qual adquiriram o terreno e construíram a barragem –, e durante 13 anos, [ [xiv] ] dando efectivo cumprimento às obrigações dele emergentes – agindo, pois, como se de negócio válido se tratasse –, asseguraram a passagem de carro para o prédio dos autores, pelo seu prédio.

Refira-se que não há, no processo, notícia de alguma questão ou contenda entre autores e réus, com referência à aludida passagem, nesse período – longo – de tempo, tendo-se provado que pelo menos ao longo dos últimos 13 anos, os autores utilizaram diariamente aquela passagem sem qualquer oposição por parte dos réus.

Assim postas as coisas, tem de concluir-se que os autores, legitimamente, confiaram que os réus não aduziriam argumento relacionado com vícios de forma incidindo sobre o negócio em causa, como meio de obstar ao exercício da servidão e assim se arrogarem no direito de tapagem (art. 1356º). Dito de outra forma, a conduta dos réus foi objectivamente adequada a provocar nos autores – ou em qualquer cidadão médio, colocado na posição destes –, a expectativa de que o direito de propriedade dos réus, nessa sua vertente (tapagem), nunca seria exercido nos moldes e com o fundamento invocado na presente acção, em sede de defesa, desenvolvendo-se, pois, entre autores e réus um investimento de confiança.

E nem se diga que os autores, de alguma forma, potenciaram essa alteração da posição dos réus. Efectivamente, os réus nunca imputaram aos autores, concretamente, qualquer conduta atentatória do direito de propriedade dos réus, como resulta da alegação constante do art. 25º da contestação, em que, de uma forma dubidativa aludem que os “autores ou terceiros” praticaram os actos aí enunciados, o que levou a que se desse por provada, logo em fase de saneamento, a factualidade assente sob o nº 18. Aliás, mesmo que assim não fosse, a questão sempre seria de responsabilidade civil, com referência aos pressupostos da obrigação de indemnizar, não legitimando a actuação dos réus.

Noutra ordem de considerações, impõe-se atentar na especificidade do negócio. Configurado o contrato em causa nos moldes supra assinalados, sempre se questionaria a declaração de nulidade desse contrato, sem a intervenção na acção do outro contraente – o Manuel Lopes Proença. E choca à consciência jurídica aceitar que os réus esgrimam com a invalidade no que estritamente se refere à cláusula a favor de terceiro, pela qual foi constituída a servidão, deixando intocada a demais regulamentação contratual, exactamente na parte que a si aproveita, em clara violação do programa contratual – aliás, seria então questionável a possibilidade de redução do negócio, nos termos do art. 292º, sendo que nesta sede também releva, com particular acuidade, a boa fé. [ [xv] ]

Por último, a solução proposta, de paralisação dos efeitos da nulidade, apresenta-se- como último recurso, não se vislumbrando outro meio de salvaguardar os direitos dos autores, que merecem protecção. A este propósito, refere Meneses Cordeiro: “Requer-se que a parte protegida tenha procedido a um investimento de confiança, fazendo assentar, na ocorrência nula, uma actividade importante, que a situação seja imputável à contraparte, embora não necessariamente a título de culpa, e que o escopo da forma preterida não tenha sido defraudado; pela negativa, exige-se ainda que nenhuma disposição ou princípio legal excluam, em concreto, a inalegabilidade e que não haja outra solução para o caso: a inalegabilidade das nulidades formais teria, pois, natureza subsidiária”. [ [xvi] ]

Esse é o caso dos autos.

Pelos fundamentos constantes da decisão recorrida, a que aderimos nessa parte, está claramente afastada a hipótese de aquisição por usucapião. Assim, independentemente de saber de os autores articularam os factos consubstanciadores dessa forma de aquisição, sempre se impunha concluir não se verificar, em concreto, um dos requisitos necessários, a saber, o decurso de certo lapso de tempo, tendo em conta o disposto nos arts 1294.º e seguintes.

Igualmente é de afastar a hipótese de estamos perante uma mera mudança do local da servidão, concordando-se também, neste ponto, com a argumentação exposta na sentença. Tendo presente os ensinamentos de Mário Tavarela Lobo, [ [xvii] ] os elementos constantes dos autos são insuficientes para se concluir inequivocamente que o direito dos autores tenha mantido a sua identidade, sendo que competia aos autores o ónus de alegação e prova dos factos pertinentes, nos termos do art. 342º.

Em suma, a hipótese em apreço configura, em nosso entender, exactamente, um dos casos em que se justifica inteiramente o recurso à figura do abuso de direito com vista a paralisar os efeitos decorrentes da nulidade, mantendo-se, pois, o contrato e valendo os efeitos dele decorrentes, isto é, a constituição de uma servidão de passagem a favor do prédio – encravado – dos autores e onerando o prédio dos réus.

4. Apurou-se que no dia 30 de Dezembro de 2003 os réus fecharam a cadeado e sem qualquer aviso prévio, a cancela que haviam colocado à entrada do seu prédio, pelo que os autores deixaram de poder entrar no seu prédio de carro e que o prédio dos autores não tem qualquer comunicação com a via pública a não ser através da referida passagem – cfr. os nºs 32, 36 e 37 da factualidade assente. Refira-se que a cancela em ferro já aí foi colocada em momento anterior, sem que no entanto daí resultasse qualquer impedimento ao exercício da servidão como resulta da factualidade assente ( nº30).

Ocorreu, portanto, uma violação do direito de servidão, que se verifica sempre que, de alguma forma, são retiradas ou diminuídas ao prédio dominante as utilidades que lhe advinham do respectivo direito real.

Os autores peticionam a condenação dos réus “a abrirem a cancela” e a nada fazerem que obste à livre passagem dos autores por aquela servidão de passagem.

Impõe-se restituir aos autores essa passagem, mas tem de entender-se cum granu salis a condenação pretendida.

O direito de tapagem ou vedação que assiste ao proprietário – art. 1356º –, destina-se a impedir o livre trânsito de pessoas estranhas ou animais, constituindo um meio de assegurar a exclusividade da fruição. [ [xviii] ]

É exigível que os réus procedam à abertura da cancela, entendendo-se que abrir traduz o acto de franquear a passagem aos autores, [ [xix] ] permitindo  aos autores o uso da servidão, para o que basta que os réus facultem aos donos do prédio dominante as chaves da cancela. [ [xx] ]

Saliente-se o disposto no art. 1564º – “as servidões são reguladas, no que respeita à sua extensão e modo de exercício, pelo respectivo título; na insuficiência do título, observar-se-á o disposto nos artigos seguintes” –, sendo que, no caso, do contrato nada resulta quanto ao específico modo de exercício da servidão, valendo, pois, o disposto no art. 1565º, nº2. 

Assim se conciliam, por um lado, os interesses dos réus, que pretendem ver resguardada a sua propriedade, controlando o acesso à mesma – atente-se na factualidade enunciada sob o nº 83 – e os interesses dos autores, que têm assegurada a passagem, afastando-se os obstáculos impostos pelos réus ao uso da servidão.

É, portanto, com esse sentido, que deve perspectivar-se a condenação dos réus a “abrirem a cancela”.    

5. Os réus, ao procederem da forma descrita, violaram ilicitamente o direito de servidão de passagem dos autores, constituindo-se, pois, na obrigação de indemnizar, verificados que estejam os demais pressupostos consignados nos arts. 562º a 566º.

Os autores peticionam a condenação dos réus no pagamento da quantia global de 4.774,69€, a título de indemnização por danos patrimoniais (danos emergentes), assim discriminada (art. 88 da petição inicial):

a) “5 ovelhas x 85,00 = 425,00”;      

b) “30 borregos x 35,00 = 1050,00”;     

c) “18 sacos de adubo x 10,08 = 181,44”;      

d) “4,5005 hectares de rega do prado de trevo x 0,25 = 112,50”;      

e) “Alimentação de 15 gamos não vendidos x 3,00 = 45,00”;      

f) “120 dias x 60 Kgs de aveia x 0,25 = 1.800,00”;      

g) “120 dias x 8 fardos de palha x 1,00 = 960,00”;      

h) “12 horas de tempo de trabalho perdido x 3,75= 148,75”; 

i) “Combustível gasto: 10 litros x 0,70 = 7.00”; 

j) “Trabalho do veterinário: 148,75”. 

Neste sede, releva a factualidade assente sob os nºs. 38 e seguintes.

Considerando essa factualidade, pode já atender-se aos prejuízos correspondentes às despesas acrescidas que os autores tiveram que suportar, com o pagamento aos trabalhadores e médico veterinário, a que aludem as respostas aos quesitos 57º a 61º, 63º e 64º, despesas que devem computar-se, respectivamente, em 45€ (12 horas de tempo de trabalho x 3,75€ = 45€ e não 148,75€ conforme indicado pelos autores) e 148,75€, ou seja, o valor global de 193,75€.

Quanto à factualidade a que se reportam os quesitos 27º a 30º (e com referência à quantia parcelar indicada sob a alínea a), os autores não lograram provar que a morte das ovelhas se ficou a dever à falta de assistência dos autores (relacionada com a impossibilidade destes entrarem no seu prédio), como resulta da resposta restritiva ao quesito 27º. Refira-se que a resposta positiva ao quesito 28º é inóqua porquanto, não se tendo provado o nexo de causalidade ínsito no quesito 27º, fica igualmente prejudicado esse facto com referência à factualidade quesitada sob o nº 28º, salientando-se o elemento de ligação introduzido no quesito 28º, através da partícula “e”.

Improcede, igualmente, o pedido de pagamento das quantias enunciadas sob as alíneas d), de 112,50€ e i) de 7,00€, considerando a resposta negativa aos quesitos 43º, 45º e 62º – não se provou, sequer, a existência dos prejuízos invocados.  

Relativamente às demais quantias peticionadas (alíneas b, c, e, f, g), provou-se a existência de danos mas não há elementos suficientes para fixar o seu quantitativo, nem sequer com recurso à equidade, pelo que, nos termos do disposto nos arts. 661º, nº2 do C.P.C. e 566º, nº3, cumpre relegar a sua liquidação para fase processual posterior – 378º, nº 2, do C.P.Civil.

                                             *                 

Pedem ainda os autores a condenação dos réus no pagamento de uma indemnização de 5.000,00€, a título de danos não patrimoniais.

Em sede de responsabilidade civil (contratual ou extracontratual) são indemnizáveis, com base na equidade, os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito – art. 496º, nº1 e 3.

“A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada). Por outro lado, a gravidade apreciar-se á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado”. [ [xxi] ]

No caso do autor, apurou-se que este sempre esteve ligado, ao longo da sua vida, à exploração agro-pecuária, que gosta muito dos seus animais, tendo muito orgulho neles e que, por isso, sofreu muito ao não poder alimentá-los e assisti-los devidamente por os réus terem impedido o acesso ao seu prédio, receando, ainda, pela morte de todos os animais.

Não estamos perante meros incómodos, transtornos ou aborrecimentos, frequentes na vida em sociedade e que porventura caracterizam a normalidade da vida quotidiana, que assumem alguma banalidade, mas perante prejuízos (sofrimento e desgosto) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, considerando os bens atingidos (o bem estar, a saúde …), merecem ser objecto de compensação através da imposição de obrigação pecuniária a cargo do lesante. [ [xxii] ]

Quanto ao quantum da indemnização, deve a mesma ser fixada, como dissemos, com base em juízo de equidade, ponderando o circunstancialismo do caso concreto e tendo em vista, nomeadamente, a situação pessoal de cada uma das partes, sempre considerando que a justa medida se encontrará naquele valor que não constitui fonte de enriquecimento para o lesado, nem, por outro lado, é tão pequeno que se torne irrelevante ou inexpressivo para o lesante.

No caso dos autos, os elementos relativos à situação pessoal dos réus são parcos, relevando, eventualmente, as vicissitudes que rodearam a prática do acto em causa – cfr. a factualidade enunciada sob os nºs 18 e 83 – contrabalançadas pela persistência da conduta – cfr. os nºs 33 e 34. Por bando do autor, releva o facto da lesão se projectar directamente no âmbito do exercício da sua actividade profissional, assumindo, pois, uma dimensão pessoal particular.

Reputamos, pois, equilibrada a fixação de uma indemnização ao autor no valor de 1.500€.

Quanto à autora, provou-se apenas que esta sofreu um aumento da tensão arterial (nº 79 da factualidade assente) o que, à luz do que se deixou exposto, é manifestamente insuficiente para concluir que esta sofreu prejuízos de ordem não patrimonial e que é merecedora de indemnização a esse título.

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Acrescem os juros moratórios vencidos, conforme peticionado, desde a prolação da decisão, à taxa de 4% e os vincendos, à taxa legal, até integral pagamento – arts. 805º, nº3 e Portaria 291/03 de 8 de Abril.  

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Conclusões:

1. Celebrado um contrato de compra e venda de imóvel, com cláusula a favor de terceiro (o autor) pela qual foi constituída uma servidão de passagem, cláusula que não foi incluída na escritura pública que titulou aquele negócio, integra a figura do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, a invocação da nulidade (por vício de forma) da estipulação a favor de terceiro, por parte do proprietário do prédio serviente quando, na sequência desse contrato, o autor, durante 13 anos, utilizou essa passagem, de carro, para entrar no seu prédio (encravado), onde exercia actividade de exploração pecuária, sem qualquer oposição do proprietário do prédio serviente (réu) que, no entanto, continua a usufruir de todos os benefícios advenientes do contrato de compra e venda, que não põe em causa na acção.         

2. A actuação dos réus, proprietários do prédio serviente, que colocaram uma cancela que fecharam, sem qualquer aviso ao autor, impedindo-o de entrar no seu prédio, é ilícita, justificando a fixação de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência dessa conduta.

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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, altera-se a decisão recorrida nos seguintes termos:

a) Condena-se os réus a reconhecer que sobre o seu prédio e a favor do prédio dos autores, identificados supra, se mostra constituída uma servidão de passagem de carro que corre no prédio dos réus, ao longo da linha divisória com o prédio dos autores e do lado nascente do destes;

b) Condena-se os réus a abrir a cancela referida nos nºs 29 e 32 da factualidade assente, bem como a absterem-se da prática de actos que obstem à livre passagem dos autores por aquela passagem;

c) Condena-se os réus a pagar aos autores a quantia de 193,75€ (cento e noventa e três euros e setenta e cinco cêntimos) a título de indemnização por danos patrimoniais e ainda a indemnização que se apurar em incidente de liquidação, nos moldes supra determinados;

d) Condena-se os réus a pagar ao autor a quantia de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais;

e) Sobre as quantias referidas em c) e d) incidirão os juros moratórios vencidos desde a prolação da decisão, à taxa de 4% e os vincendos, à taxa legal, até integral pagamento;

Custas, quer em 1ª instância quer nesta Relação, a cargo dos autores/apelantes e réus/apelados, fixando-se, provisoriamente, na proporção de 2/10 para os autores e 8/10 para os réus.

Notifique.   

[i] Refere-se, concretamente, na sentença:

“Desta factualidade, uma primeira conclusão cumpre tirar e que consiste na impossibilidade de subsunção da mesma a qualquer acordo expresso entre o autor e o réu no sentido da constituição da servidão de passagem referida no artigo 7.º da Petição inicial, não resultando dúvidas, como é evidente, que o prédio dos autores se encontra encravado. 

Certo é que, nos termos do artigo 217.º/1 do Código Civil, “A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam”; preceitua o n.º 2 da mesma norma que “O carácter formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz”.

No caso dos autos, a factualidade dada como provada, e supra referida, permite a conclusão segura no sentido de ter havido acordo entre o autor e o réu no sentido de a passagem da via pública para o prédio “Jardim” se passar a fazer “pela parte de cima” do prédio dos réus. A tal conclusão conduzem os factos de o prédio onde foi construído a barragem só ter sido permutado depois da comunicação que o dono do outro prédio, Manuel Lopes Proença, ao réu de que só aceitaria permutar o seu prédio, para no mesmo ser construída a barragem (sendo certo que a mesma provocaria, necessariamente, o corte do caminho Oledo-Proença-a-Velha, perto da servidão de passagem mencionada em 6.º da Petição inicial, não sendo provável nem verosímil que os ora autores não reagissem contra privação da única passagem que dispunham para o seu prédio), se aquele deixasse os autores utilizarem livremente o caminho de carro para entrarem no seu prédio, pelo lado nascente ao mesmo, sendo que tal permuta veio a ser efectuada depois de negociações, negócio no qual o autor interveio como procurador do referido Manuel Lopes Proença; os Autores passaram então a servir-se exclusivamente da passagem de carro que, correndo pelo prédio dos Réus, entra no deles pelo lado nascente, passando a mesma a constituir o único acesso de carro ao prédio dos autores, utilizando-a pelo menos durante 13 anos sem oposição dos réus”.

[ii] Como refere Ferreira de Almeida, in Contratos II, Conteúdo. Contratos de Troca, Almedina, p. 56, o contrato a favor de terceiro “permite a atribuição de um benefício a favor de pessoa determinada sem a sua participação no acto atributivo”, afastando-se, nessa medida, do princípio geral da intangibilidade da esfera jurídica alheia, que rege os contratos. 

[iii] “É geralmente aceite o contrato a favor de terceiro constitutivo, modificativo ou extintivo do direito de servidão. (…) Deste género de contratos o exemplo mais isento de dúvida é o de um proprietário convencionar com outrem a constituição de uma servidão sobre o seu prédio a favor de um terceiro”, Diogo Leite de Campos, in Contrato a favor de Terceiro, 2ª edição, Almedina, p. 23.

[iv] Como refere Galvão Teles, in Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 3ª edição, p. 99, “trata-se de uma aquisição automática ou ipso iure”.

[v] Jorge Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, 1983, Almedina, p.55.

[vi] Abuso de direito é a exacta expressão do fenómeno que “justamente traduz a contradição entre o cumprimento da estrutura formalmente definidora de um direito e a violação concreta do fundamento que material-axiologicamente constitui esse mesmo direito”, Castanheira Neves, Questão de facto – questão de direito ou o problema metodológico da juridicidade, 1, Coimbra, 1967, pgs. 524-525.

[vii] Ac. do STJ de 28/11/2000, BMJ 501 (2000), p. 297 e 298.   

[viii] Meneses Cordeiro, in Da Boa fé no Direito Civil, Almedina, 1985, Vol. II, p.794.

[ix] Cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Almedina, 1987, p.143 e 144.

[x] Obr. cit. p. 795. 

[xi] Continua o mesmo autor: “Quando uma situação de invalidade seja considerada como de origem censurável por, na sua génese, ter havido uma actuação contrária a regras jurídicas, incluindo a própria boa fé, altura em que ocorre a culpa in contrahendo, podem, com facilidade, constituir-se os pressupostos da responsabilidade civil. (…) Tem, então, cabimento o arbitrar de uma indemnização em espécie – art. 562º e 566º/1, a contrario – que, procurando reconstituir a situação a que se teria chegado se não tivesse havido prevaricação, corresponda, materialmente, ao cumprimento do contrato nulo, mediante a contraprestação acordada, devida agora a título compensação necessária para evitar enriquecimentos indevidos. (…) As obrigações daí derivadas têm, no entanto, origem na situação de responsabilidade civil e não no contrato viciado, assumindo, por isso, natureza legal”. 

[xii] Teoria Geral do Direito Civil, 2ª edição actualizada, Coimbra Editora, p.437.      

[xiii] C.J.,Ano XXI, 1996, T II, p.13. Podem encontrar-se inúmeras decisões dos nossos tribunais superiores em que se concretizou este entendimento, paralisando-se os efeitos da nulidade por aplicação da figura do abuso de direito, no âmbito de diferentes tipos contratuais. Assim e a título exemplificativo:

Ac. STJ de 28/11/2000, supra referido, em sede de contrato promessa de compra e venda de imóvel; Ac. TRP de 26/02/1996, Processo: 9551171 (Relator: Alves Correia), no âmbito de um contrato de arrendamento comercial, Ac. RRG de 26/05/2004, processo: 902/04-2 (Relator: Vieira e Cunha), no âmbito de um “acordo de cedência de terrenos”  e Ac. TRP de 28(01/2008, processo: 0716046 (Relator: Fernanda Soares) no âmbito de um contrato de trabalho, acessíveis in www.dgsi.pt.      

[xiv] O mero decurso do tempo, de per si e desacompanhado de outros elementos não é relevante. “A simples constatação de que uma determinada situação perdurou ao longo do tempo não é suficiente para fundamentar uma decisão na base do abuso do direito (modalidade de suppressio)”, Ac. STJ de 10/07/2008, processo nº 08A2115 (Relator: Urbano Dias), acessível in www.dgsi.pt.

[xv] Refere Baptista Machado que existe abuso de direito por venire contra factum proprium, “se uma das partes num contrato nulo fez a sua prestação, que foi recebida ou aproveitada pela sua contraparte, e esta, mais tarde, ciente de que não é possível restituir a prestação recebida nem o seu valor, e de que nem tão pouco existe enriquecimento sem causa, se recuse a fazer uma contraprestação equitativa, invocando a nulidade do contrato”, in Obra dispersa, Vol. I 1991, p. 389.

[xvi] Obr. cit. p.784.

[xvii] Refere este autor, in Mudança e Alteração de Servidão, Coimbra Editora, 1984, p. 94: “A servidão é sempre a mesma, quer se fixe em definitivo o sítio indeterminado do seu exercício, quer esse sítio seja mudado de um lugar para outro do mesmo prédio que por inteiro suporta o ónus. Estamos perante uma simples modificação objectiva de uma servidão que mantém o mesmo conteúdo, modificação que para alguns autores é uma simples modificação de uma modalidade de exercício”.

[xviii] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 2ª edição revista e actualizada, vol. III, p. 203.

[xix] Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, Temas e Debates, 2005, T.I, P.77 

[xx] Neste sentido, escreve Tavarela Lobo, obr. cit. p. 206, que “a doutrina e jurisprudência têm entendido que o ingresso é livre e cómodo quando, sendo fechado o prédio serviente, se dê ao titular do direito de servidão uma chave da cancela, porta ou portão de ingresso para poder entrar, ou se permita de um outro modo uma passagem livre e cómoda todas as vezes que se exerce a servidão”. 

[xxi] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral”, 4ª edição, Almedina, vol.1º, p. 532.

[xxii] Apontam-se ainda à indemnização do dano não patrimonial uma função sancionatória e uma função pedagógica.