Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
30/21.9GCFVN-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: PENA ACESSÓRIA;
CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 05/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE POMBAL - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 43.º E 69.º, N.º 6 DO CP
Sumário: I - Perante o teor do art.º 69.º, n.º 6, do Código Penal naquelas situações em que o agente é condenado em pena de prisão efetiva, em regime fechado, e em pena acessória de proibição de conduzir, durante o período em que o mesmo cumprir a pena de prisão em regime fechado - Estabelecimento Prisional - não poderá, legalmente, cumprir a pena acessória.

II - Igual entendimento deve ter-se por esse art.º 69.º, n.º 6 não permitir qualquer interpretação restritiva no sentido de admitir o cumprimento simultâneo das duas penas, a principal, de prisão e a acessória, de proibição de conduzir, naquelas situações em que a pena de prisão é executada em regime de permanência na habitação, conforme é legalmente admissível ao abrigo do disposto no art.º 43.º do Código Penal, mesmo quando o agente seja autorizado a ausentar-se do domicílio por determinados períodos de tempo durante a semana para o exercício da atividade laboral.

Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência, na 4ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra.

I

1. Nos autos supra identificados, por despacho judicial de 9.12.2021 foi decidido, em liquidação de pena, que a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 1 (um) anos e 6 (seis) meses em que o arguido AA foi condenado, seria cumprida em simultâneo com a pena de 7 meses de prisão a executar em regime de permanência na habitação sujeita a vigilância eletrónica com autorização genérica de saídas do arguido pelo tempo estritamente necessário por razões de saúde ou necessidades de assistência médica (v.g. CRI de ... e/ou em consultas de psiquiatria no Hospital ...); para presença em diligências judiciais ou outras de natureza similar, de urgência e imprevistas que a EVE - Equipa VE de ... – repute de razoáveis e necessárias e pelo tempo estritamente necessário (v.g. para aquisição de bens de consumo) e ainda para manter a sua atividade profissional regular - de segunda a sexta feira das 08h00 às 17h00 – com a oportuna majoração dos tempos de deslocação para e do trabalho ao seu domicilio pela equipa EVE de ..., em função das distâncias a percorrer e forma de locomoção elegida pelo aqui arguido.

            2. Não se conformando com esta decisão, dela recorre o Ministério Público que formula as seguintes conclusões:

            1. O Ministério Público não se conforma com o despacho judicial, proferido nos autos à margem referenciados (vide Ref.ª 98713727), no qual o Mmo. Juiz a quo decidiu interpretar restritivamente a estatuição do artigo 69.º, n.º 6 do Código Penal, e determinou o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, em simultâneo com o cumprimento da pena principal de 7 (sete) meses de prisão, em regime de permanência na habitação, com vigilância electrónica e saídas autorizadas da habitação (nomeadamente para trabalhar), em que o arguido foi condenado nos presentes autos.

            2. O despacho recorrido viola o princípio da legalidade e o disposto no artigo 69.º, n.º 6 do Código Penal, bem como o efeito contínuo da referida pena acessória (cfr. artigo 500.º, n.º 4 do Código de Processo Penal e artigo 138.º, n.º 4 do Código da Estrada), dos quais emerge a conclusão de que o termo inicial de cumprimento da pena acessória, em casos como o presente, em que é aplicada uma pena privativa da liberdade, se suspende durante o cumprimento desta última e deverá corresponder à data em que o arguido for restituído à liberdade.

            3. Considerando a letra, o espírito da Lei n.º 94/2017, de 23-08, bem como as circunstâncias que lhe subjazem – com enfoque para a introdução da actual redacção do artigo 43.º, do Código Penal (relativo ao regime de permanência na habitação, enquanto forma de execução da pena de prisão); para a supressão da pena de prisão por dias livres e para a manutenção da redacção do artigo 69.º, n.º 6, do mesmo diploma – e pressupondo que sobre exprimir o seu pensamento em termos adequados, cremos que o Legislador quis manter inalterada a ratio da contagem da pena acessória, estatuída no 69.º, n.º 6, no sentido de se suspender a contagem do tempo em que o arguido cumpra uma pena privativa da liberdade, como a irrogada ao arguido nos presentes autos.

            4. O regime de permanência na habitação, estatuído no artigo 43.º do Código Penal, não consiste numa pena de natureza autónoma, mas sim num modo de execução de uma pena de prisão – mantendo a sua natureza de pena privativa da liberdade, mesmo nos períodos em que o arguido, autorizadamente, possa ausentar-se da residência – razão pela qual também não se descontam, na liquidação e cumprimento da pena principal de prisão (assim executada) os períodos temporais correspondentes às ausências autorizadas, impedindo assim um cumprimento simultâneo de ambas as penas.

            5. Somos de parecer que o sentido do despacho recorrido não encontra qualquer suporte na letra da Lei, não sendo de interpretar restritivamente o artigo 69.º, n.º 6, nem de concluir que o legislador tenha querido repristinar a aplicação de um regime similar ao extinto regime de prisão por dias livres – pois, se o pretendesse, tê-lo-ia dito expressamente.

            6. Não vislumbramos como a comunidade poderia sentir reforçada a confiança nas normas violadas, ao saber que o período de prisão, em regime de permanência na habitação é duplamente contabilizado: quer para o cumprimento da pena de prisão, quer para o cumprimento da pena acessória (em que nunca poderia conduzir, atenta a natureza privativa da liberdade da pena principal).

            7. A interpretação restritiva do artigo 69.º, n.º 6, sustentada no despacho recorrido, acaba por resultar num injustificado desconto para o condenado, na medida em que subtrai, ao período da pena acessória a cumprir, todo o período correspondente à privação da liberdade, durante o qual o condenado sempre estaria impedido de conduzir – não salvaguardando assim as finalidades que subjazem à sua aplicação, por não se traduzir num pleno sacrifício para o condenado.

            8. Portanto, na ausência de critério legal, pelo menos duas formas de liquidação da pena acessória podem ser aventadas: ou se contabilizam somente os períodos de ausências autorizadas da residência (resultando num cumprimento intermitente da pena, de difícil contabilização e ao arrepio do princípio da sua execução contínua) ou se contabiliza todo esse período, desde o seu início e de forma contínua, independentemente do cumprimento daquela privativa da liberdade, nos termos do artigo 43.º do Código Penal (numa dupla contabilização, atentatória do princípio constitucional da igualdade).

            9. Seguindo a talhe de foice pelo lapso de cálculo ali vertido (por ter considerado como termo inicial o dia 07-12-2021, quando a carta foi entregue a 29-11-2021), o despacho recorrido acabou por contabilizar ininterruptamente o período de um ano e seis meses, repristinando a ratio de uma pena (de prisão por dias livres) expressamente revogada pelo Legislador e ficcionando um cumprimento contínuo da pena acessória que, de facto, não aconteceu – traduzindo-se, assim, num injustificado desconto, correspondente à totalidade do período correspondente à privação da liberdade.

            10.A ausência de fundamento legal, além de suscitar questões ao nível de certeza e segurança jurídicas pode, ainda, criar situações de desigualdade quanto ao cumprimento da referida pena, que ficaria dependente da interpretação que dela faça o Julgador, em violação do princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Lei Fundamental


**

            Em remate, reiteramos o entendimento de que a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir deve iniciar-se, no caso concreto, somente após o condenado AA cumprir a pena principal de prisão. Isto para que, após a sua restituição à liberdade (quando este esteja, verdadeiramente, livre), inicie o cumprimento, contínuo e integral da pena acessória que lhe foi irrogada, só assim comportando um verdadeiro sacrifício para o condenado e só assim sendo percepcionada pela comunidade, como uma verdadeira pena.

            Pelo exposto, requer-se a V. Ex.as que, dando provimento ao presente recurso, revoguem o despacho recorrido e, em consequência, determinem que o termo inicial de cumprimento da pena acessória corresponda à data em que o arguido for restituído à liberdade, após o cumprimento da pena principal de prisão.         

            3. O recorrido arguido não respondeu.

            4. Pelo julgador a quo foi proferido despacho de sustentação.

            5. Nesta instância, o Ministério Público emitiu o seguinte parecer:

            Visto o alegado em tal recurso, considera-se dever o mesmo merecer provimento, aderindo-se totalmente à motivação do Ministério Público em 1ª instância – da qual resultam com clareza as razões pelas quais não deverá ser mantido o despacho recorrido, que determinou o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir aplicada ao arguido em moldes que implicam manifesta violação das disposições legais aplicáveis na matéria, desde logo o disposto no nº 6 do art. 69º do C. Penal.

            Apenas se poderá tentar reforçar a argumentação já expendida no recurso interposto realçando que, mais do que uma interpretação restritiva da previsão do referido nº 6 do art. 69º do C. Penal, o decidido no despacho recorrido apoia-se numa interpretação contra legem desta disposição legal – introduzida no Código Penal para garantir, precisamente, o cumprimento contínuo da pena acessória aplicada, a ter lugar quanto os respectivos efeitos melhor poderão ser sentidos pelo arguido (dado não estar, por outra via, de facto impedido de conduzir).

            Configura assim uma verdadeira fraude à letra e ao espírito da lei argumentar que, não sendo contínua a privação da liberdade a que o arguido se encontra sujeito, poderá a referida pena acessória ser cumprida no decurso da mesma – sobretudo se, conforme parece decorrer do despacho impugnado, se considerar tal proibição de conduzir como sendo de cumprimento contínuo, ao contrário da privação da liberdade do arguido, beneficiando-o assim de forma totalmente injustificada[1].

                

            Deverá por isso, como se disse já, ser acolhida a pretensão formulada no recurso interposto pelo Ministério Público, com consequente revogação do despacho impugnado e sua substituição por outro que dê cumprimento ao disposto na lei em vigor.

            6. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.


II

1. Tem o despacho recorrido o seguinte teor:

“Liquidação da pena acessória

O arguido foi ainda condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor por um período de 1 (um) anos e 6 (seis) meses, tendo no passado dia 07 entregue a sua carta de condução com o n.º ...5 0 nos autos.

O Ministério Público pugna que a referida pena acessória apenas tenha início no termo da pena de prisão, cumprida em OPHVE, estribando-se, para tanto, no teor literal do artigo 69.º, n.º 6 do Código Penal, bem como o efeito contínuo da referida pena acessória (cfr. artigo 500.º, n.º 4 do Código de Processo Penal e artigo 138.º, n.º 4 do Código da Estrada).

Conhecendo.

O princípio enunciado é o que de facto decorre do cruzamento do regime substantivo e processual que regula a execução das penas acessórias de inibição de conduzir veículos a motor quando o condenado se encontra igualmente sujeito a uma restrição de liberdade (prisão). Ora, o arguido AA foi condenado nos autos pela prática, em autoria material e de forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo disposto no art.292.º nº 1 e 69.º n.º 1, al. a), do Código Penal, numa pena de 07 (sete) meses de prisão, mas a executar em regime de permanência na habitação, sujeita a vigilância eletrónica (OPHVE), nos termos dos artigos 43.º n.º 1 al.a), 2 e 4 als.a) a c) do Código Penal.

Acontece que, atenta a plasticidade e a menor intensidade de execução que é conferida pelo n.º 3 do art. 43.º do Código Penal, esta pena de prisão, executada em obrigação de permanência na acusação, pode ter o conteúdo de uma reclusão total – sem saídas autorizadas – ou de um regime mais ou menos aberto e que se assemelha mais a uma semidetenção e que a transforma numa «pena compósita», composta em simultâneo de períodos de liberdade, sempre que o condenado se mostra autorizado a sair, diurnas e durante a jornada de trabalho autorizado a prosseguir, como foi o caso, e de restrição de liberdade, nos períodos sobrantes, pós-laborais e aos fins-de-semana.

Na verdade, consignou-se no ponto 5.4. do dispositivo da sentença que “Sem prejuízo das competências próprias do TEP na monotorização da execução e conformação da pena aplicada, autorizam-se genericamente saídas ao arguido pelo tempo estritamente necessário por razões de saúde ou necessidades de assistência médica (v.g. CRI de ... e/ou em consultas de psiquiatria no Hospital ...); para presença em diligências judiciais ou outras de natureza similar, de urgência e imprevistas que a EVE - Equipa VE de ... repute de razoáveis e necessárias e pelo tempo estritamente necessário (v.g. para aquisição de bens de consumo).

Uma vez que o arguido depende dos proventos do seu trabalho autoriza-se o mesmo a manter a sua atividade profissional regular - de segunda a sexta-feira das 08h00 às 17h00 com a oportuna majoração dos tempos de deslocação para e do trabalho ao seu domicílio pela equipa EVE de ..., em função das distâncias a percorrer e forma de locomoção elegida pelo aqui arguido.”

Estamos a nosso ver, portanto, perante uma verdadeira «pena compósita» em que num mesmo dia útil se intercedem períodos de restrição de liberdade e de reclusão.

Deve, então, aplicar-se o regime normativo retro aludido sem a menor consideração desta especificidade?

Julgamos que não.

A interpretação da lei não deve cingir-se ao seu elemento literal, mas antes reconstituir o seu pensamento através dos textos de mais regime legal conexo, tendo sobretudo em linha de conta a unidade do sistema jurídico como um todo, as circunstâncias temporais em que o regime normativo convocado foi elaborado e as condições específicas do momento e especificidade dos casos em que a sua aplicação vem a ser reclamada. Isto com o limite de que não pode ser considerado pelo intérprete um pensamento legislativo que não tenha um mínimo de respaldo na letra da lei, ainda que imperfeitamente expresso – artigo 9.º, n.º s 1 e 2 do Código Civil.

Assim, e desde logo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, deve entender-se que a ratio do n.º 6 do artigo 69.º do Código Penal (introduzida com o DL n.º 48/95, de 15/03, se bem que na altura com o n.º 4) assenta, essencialmente, na privação total da liberdade, ou seja, supõe que o arguido condenado se encontra sem possibilidade de se ausentar do local de cumprimento da pena, o que está em linha com a estrutura da versão originária do Código Penal, porquanto o regime de obrigação de permanência na habitação, com a redação e configuração do atual art. 43.º do Código Penal, apenas nos é trazida pela Lei n.º 94/2017, de 23.08. Não tendo aquela norma por horizonte, quando consagrada, esta forma de execução de uma pena de prisão efetiva e extra muros, apenas consagrada cerca de 22 anos depois.

Há ainda que recordar que os artigos 2º e 13º, al. a), da mencionada Lei nº 94/2017, de 23 de agosto, que alteraram o Código Penal eliminaram a pena de prisão por dias livres do catálogo de penas previstas no Código Penal, ao alterar completamente a redação do artigo 45º do Código Penal. Ora, na vigência daquela pena, a privação da liberdade ocorria por períodos correspondentes a fins-de-semana e que não excedessem 72 períodos. Cada período equivaleria a 05 dias de prisão contínua e teria a duração mínima de 36 horas e o máximo de 48 horas, podendo os feriados que antecederem ou seguirem a um fim-de-semana ser utilizados para a execução da prisão por dias livres, sem prejuízo da duração máxima estabelecida para cada período.

Na vigência deste regime legal e sempre que o arguido era condenado em pena acessória de inibição de conduzir, a mesma iniciava-se com a entrega do título de condução em simultâneo com aquela sua pena principal, não obstante, os períodos de privação de liberdade serem executados em dias não úteis. Visto que os períodos de liberdade excediam em muito os de reclusão (v.g. gerando, por vezes, sérios problemas na execução da medida sempre que existia uma grande distância entre a residência do condenado e o EP onde cumpria a pena de reclusão e o trajeto não estava dotado de transportes públicos que lhe permitissem fazer uma apresentação pontual e que estão na base, de entre outras razões, para a sua revogação).

Existe identidade de razões, smo, com o presente caso.

Até porque, a nosso ver, uma interpretação contrária coloca em crise as necessidades de prevenção geral que subjazem à própria condenação do arguido, ao permitir-se que o condenado possa conduzir durante a execução da obrigação de permanência na habitação, que coincide com o período mais relevante e intenso da sua condenação, para que cumprida integralmente que seja venha a conhecer a execução da pena acessória.

Razão pela qual, na justa composição dos interesses em confronto e na salvaguarda de uma efetividade das penas e da prevenção que subjaz às condenações criminais, pugnamos que em situações como a dos autos, em que existe uma grande descaracterização da própria reclusão através da plasticidade que é conferida ao regime de execução da obrigação de permanência na habitação aplicada, por força da autorização de trabalho ampla e de outras saídas eventuais; os períodos de liberdade que o condenado usufrui e o momento em que os mesmos ocorrem (não é indiferente para esta questão que ocorra no período ativo do dia ou quando habitualmente as pessoas descansam ou se mostram recolhidas em família) suplantam os períodos de reclusão.

Assim se efetuando uma interpretação restritiva do mencionado art. 69.º n.º 6 do Código Penal.

Por assim estarmos convencidos e tendo o condenado entregue a sua carta de condução nos autos no passado dia 07, a sua pena acessória de inibição de conduzir de 1 A e 6 M iniciou-se nessa data, como o arguido fora advertido aquando da sua condenação, e o seu termo ocorrerá no dia 07 de junho de 2023”.

2. Por sua vez, tem o despacho de sustentação o seguinte teor:

“Sendo pacífico e incontestável que no cômputo da pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor “não conta para o prazo da proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança” como previsto no artigo 69.º do Código Penal, por força do seu n.º 6, a questão que a decisão colocada em crise tratou e o recurso que sobre a mesma recai coloca a Vossas Excelências, salvo melhor opinião, é a de saber se nos casos em que o arguido é condenado numa pena [de 07 (sete) meses] de prisão, a executar em regime de permanência na habitação, sujeito a vigilância eletrónica (OPHVE), ficando autorizado a ausentar-se diariamente de casa para exercer a sua atividade profissional e a tempo inteiro (8 horas por dia) durante a semana, nos termos do artigo 43.º n.º 1 al.a), 2 e 4 do Código Penal, a execução da pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor se deve iniciar com o trânsito em julgado daquela condenação e entrega da carta de condução.

 Na positiva se apenas deve ser computada na execução daquela pena acessória os dias em que comprovadamente o condenado esteja sujeito a um regime de liberdade condicionada (hora e saída e chegada, misto de liberdade e restrição da mesma) e fazer acrescer os dias em que o condenado estiver obrigatoriamente sujeito a obrigação de permanência na habitação (dias não úteis em que vê a sua liberdade restringida) [garantindo assim uma certa justiça material e relativa entre a execução desta pena acessória em que o condenado se mostra sujeito a esta pena de configuração compósita e aquele outro em que o condenado se mostra em liberdade].

Como desenvolvem Jescheck e Weigend a propósito da pena acessória (em Tratado de Derecho Penal, Parte General, 2002, p. 842), a proibição de conduzir consiste “em estar vedado ao condenado a condução de veículos no tráfico viário por um período de tempo”, e que “antes de tudo, esta pena deve desempenhar um efeito preventivo-especial para que no futuro o autor observe as normas do tráfico viário. (…) Esta sanção tem como consequência que o condenado não possa tomar parte como condutor no tráfico rodoviário. (…) O seu objectivo é exercer uma influência pedagógica sobre quem é condutor capacitado para tomar parte na circulação viária, por meio da suspensão da permissão de conduzir durante um período de tempo”.

O Professor Figueiredo Dias também observa a este respeito que “deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano” (As consequências Jurídicas do Crime, Almedina, 2005, § 204 a 206, página 164-5).

Existe uma racionalidade subjacente a esta pena de “sentir na pele” a efectiva privação do uso e da faculdade legal de conduzir uma viatura a motor na via pública, pois que só perante um quadro de liberdade pode o agente sentir efectivamente a privação decorrente daquela inibição como «castigo» (vide António Latas, em A pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis, Rev. Sub judice, nº 17, pág. 76-78). O que não aconteceria caso se mostrasse possível admitir o cumprimento em simultâneo, pelo condenado, da proibição de condução e de uma pena de prisão efectiva, pois que esta situação naturalista impediria a operacionalização do quadro subjacente àquela proibição judicial que constitui uma impossibilidade jurídica.

Através da apontada norma legal o legislador penal acautelou o cumprimento efectivo e integral da pena de proibição de condução.

O âmbito da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, nos casos em que existe autorização de ausência da habitação para o exercício da atividade profissional (artigo 43.º, n.º 3, do Código Penal) e o arguido se mostra cumulativamente condenado na pena acessória de inibição, neste caso de conduzir veículos a motor, assenta necessariamente numa ponderação à luz de exigências de prevenção. Necessidades de prevenção geral que são em tudo similares às que presidem à aplicação da referida pena acessória e que está associada a uma eficácia preventiva da pena na sua dimensão de inibir o condenado de persistir no delito e na reabilitação do condenado, por forma a prevenir a reincidência.

Finalidades preventivas essas que no âmbito da criminalidade rodoviária em apreço, com a gravidade imanente ao decretamento de uma privação da liberdade no âmbito da apelidada pequena criminalidade, poderão sair seriamente afetadas quando se permite a um condenado exercer a condução enquanto cumpre a pena de prisão em regime de permanência na habitação, quando autorizado a ausentar-se da habitação para o exercício da atividade profissional, em matéria de criminalidade rodoviária, por criar um hiato temporal entre a condenação e exortação final à emenda cívica de que o arguido foi destinatário e que se vê contrafacticamente contrariada pela sua actuação (pois exerce a condenação nos tempos em que está autorizado a sair da habitação) e com a postergação do inicio da execução da pena acessória de inibição de conduzir para o termo da pena de prisão em regime de permanência na habitação (quando autorizado a ausentar-se da habitação para o exercício da atividade profissional).

Razão pela qual de iure condendo, não sendo a proposta interpretação do artigo 69.º n.º 6 do Código Penal violadora do seu elemento literal ou desfavorável à posição do arguido, se pugna em situações como a dos autos para que se valide uma interpretação conjugada daquelas normas de molde a que «sempre que o arguido seja condenado em pena de prisão em regime de permanência na habitação, com autorização de ausência da habitação para o exercício da atividade profissional (artigo 43.º, n.º 3, do Código Penal), cumulativamente com uma pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor, a pena acessória iniciar-se-á com a efectiva entrega do titulo de condução do arguido, computando-se, em acréscimo, os dias (ditos não úteis) em que aquele não se mostre autorizado a sair da sua habitação para trabalhar.»

O que colocaria termo ao que se vem verificando em vários processos de os condenados usaram a sua viatura própria nas deslocações de e para o trabalho que são autorizados a exercer, quando cumprem pena de prisão em regime de permanência na habitação, fragiliza a percepção comunitária das necessidades de prevenção (na óptica de um cidadão comum e leigo) ao postergar para o termo do cumprimento da pena de prisão – quando expiada aquela pena principal – o inicio da execução deferida daquela pena acessória que o condenado dever «sofrer».


III

Cumpre decidir:

A questão essencial suscitada no recurso e consequentemente a decidir, consiste em apurar se a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 1 (um) anos e 6 (seis) meses em que o arguido foi condenado pode ser cumprida em simultâneo, com a pena de 7 meses de prisão efetiva a executar em regime de permanência na habitação com saídas autorizadas do domicílio, nomeadamente para trabalhar e outras.

1. A pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados a aplicar nas situações previstas pelo atual artigo 69º do Código Penal foi criada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março que, entretanto, já sofreu as alterações introduzidas pela Lei nº 77/2001 de 13/07 e pela Lei n.º 19/2013 de 21/02.

Esta pena acessória surge na sequência de uma série de medidas com intuito de combater a elevada taxa de sinistralidade nas nossas estradas e reflete o pensamento doutrinário do Prof. Figueiredo Dias que, em 1993 escrevia[2]:

“... deve, no plano de lege ferenda, enfatizar-se a necessidade e a urgência político-criminais de que o sistema sancionatório português passe a dispor ― em termos de direito penal geral e não somente de direito penal da circulação rodoviária ― de uma verdadeira pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados. Uma tal pena deveria ter como pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução, ou com utilização de veículo, ou cuja execução tivesse sido por este facilitada de forma relevante; e por pressuposto material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e a personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável. Uma tal pena ― possuidora de uma moldura penal específica ― só não teria lugar quando o agente devesse sofrer, pelo mesmo facto, uma medida de segurança de interdição da faculdade de conduzir, sob a forma da cassação da licença de condução ou de interdição da sua concessão”.

Decidindo-se no ac. do Tribunal da Relação do Porto de 8.3.2006, proferido no processo nº 0516505, consultável em www.dgsi.pt.jtrp: “…a criação desta pena acessória visou, justamente, a imperiosa necessidade de adequar o regime punitivo dos crimes relacionados com a utilização de veículos motorizados ao interesse público de combater as elevadas cifras de sinistralidade rodoviária e, designadamente, a sinistralidade mortal, de que a mais relevante é a originada pelas condutas tipificadas nos arts. 291º e 292º do Código Penal. A subordinação do direito de conduzir ao interesse público determinado pelas necessidades da prevenção e segurança rodoviária é, a todos os títulos, compatível, em termos de adequação, necessidade e proporcionalidade, com o preceito do nº 2 do art. 18º do Constituição da República Portuguesa. Proibir temporariamente o direito de conduzir aos condutores que praticam condutas de tão elevado índice de perigosidade para a segurança rodoviária, como são as condutas abrangidas nas três alíneas do nº 1 do art. 69º do Código Penal, é uma restrição inequivocamente necessária e adequada àquele fim de relevante interesse público”.

2. É atualmente entendimento generalizado de que as penas acessórias, embora pressupondo a condenação do arguido numa pena principal (prisão ou multa), são verdadeiras penas criminais, também elas ligadas à culpa do agente e justificadas pelas exigências de prevenção.

Pelo que a sua aplicação tem uma “função preventiva adjuvante da pena principal”. E não sendo de aplicação “automática”, está submetida aos princípios gerais da pena, como os da legalidade, proporcionalidade, de duração variável, em função da gravidade do crime e/ou do fundamento que justifica a privação do direito[3].

Tem, entre nós (a pena acessória), um sentido e um conteúdo que visa não só garantir a tutela do ordenamento jurídico e a confiança na validade da norma violada, mas também prevenir “a perigosidade individual” do agente – v. ac. desta Relação de Coimbra de 16.2.2022, proc. nº 263/18.5GCACB-B.C1.3 (deste mesmo coletivo).

Aspetos realçados também no ac. desta Relação de Coimbra de 27-09-2017, proc. nº 147/15.9GTCTB.C1 (relator VASQUES OSÓRIO), onde se decide que “são-lhes aplicáveis os critérios legais de determinação das penas principais e deve, em princípio, ser observada uma certa proporcionalidade entre a quantificação de uma e de outra, mas sem esquecer, nunca, que a finalidade a atingir com a pena acessória é mais restrita na medida em que visa, essencialmente, prevenir a perigosidade do agente”[4].

3. No que respeita ao cumprimento desta pena acessória importa considerar a imposição legal da sua execução contínua, conforme emerge do disposto no artigo 500.º, nºs 2 e 4, do Código de Processo Penal:

(…)

2 - No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.

(…)

4 - A licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido esse período a licença é devolvida ao titular.

Neste sentido, v. Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 226, anotação 8): “ A proibição tem um efeito contínuo, como resulta do artigo 500º, nº4 do Código de Processo Penal e do artigo 138º, nº 4, do CE. Por isso, a proibição não pode ser limitada a certos períodos do dia nem a certos veículos”[5].

 Por sua vez, na execução desta pena acessória, é determinante o disposto no artigo 69º, nº 6, do Código Penal, segundo o qual  “Não conta para o prazo da proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança”.

O que significa que enquanto o agente estiver a cumprir uma pena privativa de liberdade, não poderá cumprir, durante esse período, ou seja, em simultâneo, a pena acessória de proibição de conduzir – V. neste sentido ainda Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit, pág. 226, anotação nº 7, quando afirma: “o prazo da proibição suspende-se enquanto o agente estiver privado de liberdade em virtude de medida cautelar, pena ou medida de segurança (artigo 69º, nº 6, do Código Penal).

 

4. Perante o teor do artigo 69º, nº 6, do Código Penal, dúvidas não se suscitam de que, naquelas situações em que o agente condenado em pena de prisão efetiva e em pena acessória de proibição de conduzir, durante o período em que cumprir a pena de prisão em regime fechado - Estabelecimento Prisional - não poderá, legalmente, cumprir a pena acessória.

Importa, todavia, apreciar aquelas situações em que a pena de prisão é executada em regime de permanência na habitação, conforme é legalmente admissível ao abrigo do disposto no artigo 43º do Código Penal.

Segundo o disposto no nº 2 deste preceito, “O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas”.

Da exposição de motivos dos trabalhos preparatórios da respetiva Proposta de Lei nº 90/XIII da Presidência de Conselho de Ministros, que esteve na origem da Lei nº 94/2017, decorre o seguinte sobre a sua ratio:

“Pretendeu-se clarificar, estender e aprofundar a permanência na habitação, conferindo-lhe um papel político-criminal de relevo. Vinca-se, por um lado, a sua natureza de regime não carcerário de cumprimento da pena curta de prisão e alarga-se, por outro lado, a possibilidade da sua aplicação aos casos em que a prisão é concretamente fixada em medida não superior a dois anos…

(…)

O juiz continuará a proceder a uma dupla operação. Verificado que tem perante si um crime provado e concretamente punido com pena de prisão até dois anos, começará por determinar se é adequada e suficiente às finalidades da punição alguma pena de substituição (multa, suspensão da execução, trabalho a favor da comunidade) ou se é necessário aplicar a pena de prisão. Nesta última hipótese, ficam à sua disposição duas possibilidades de execução, pela ordem seguinte: ou em regime de permanência na habitação, ou dentro dos muros da prisão, em regime contínuo[6].

Esta forma de execução da pena de prisão não retira, em nosso entender, a natureza de privação da liberdade ao agente.

Altera, outrossim, o lugar e o modo de cumprimento da pena de prisão, retirando-lhe essencialmente a sua natureza carcerária, entendida esta como a pena cumprida dentro de muros, em Estabelecimento Prisional. Mais visando, ainda segundo a exposição de motivos que “ o regime de permanência na habitação não se limita à mera descarcerização do condenado, ao seu confinamento à habitação e à sua vigilância através e tecnologias de controlo à distância, mas visa sobremaneira a prossecução, de um modo próprio, das finalidades cometidas às penas, designadamente a finalidade ressocializadora”.

Tendo em conta a natureza e finalidades desta forma de execução da pena de prisão, continuamos a entender que, ainda que o agente seja autorizado pelo tribunal a ausentar-se pontualmente, nomeadamente por razões de saúde, ou outras, por curtos períodos de tempo, o disposto no nº 6 do artigo 69º do Código Penal, continua a aplicar-se na sua plenitude, o mesmo é dizer que durante o período em que o agente cumprir a pena de prisão em regime de permanência na habitação, não poderá, legalmente, cumprir a pena acessória, por imposição daquele preceito legal. Não poderá cumprir as duas penas em simultâneo.

  

Mas nos termos do nº 3 do mesmo artigo 43º, as autorizações do agente do domicílio poderão ter um âmbito mais alargado, quer quanto às finalidades quer quanto ao período temporal, segundo o qual “O tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado”.

É exatamente o que acontece no presente caso, ao decidir-se que:

“autorizam-se genericamente saídas ao arguido pelo tempo estritamente necessário por razões de saúde ou necessidades de assistência médica (v.g. CRI de ... e/ou em consultas de psiquiatria no Hospital ...); para presença em diligências judiciais ou outras de natureza similar, de urgência e imprevistas que a EVE - Equipa VE de ... repute de razoáveis e necessárias e pelo tempo estritamente necessário (v.g. para aquisição de bens de consumo).

Uma vez que o arguido depende dos proventos do seu trabalho autoriza-se o mesmo a manter a sua atividade profissional regular - de segunda a sexta-feira das 08h00 às 17h00 com a oportuna majoração dos tempos de deslocação para e do trabalho ao seu domicílio pela equipa EVE de ..., em função das distâncias a percorrer e forma de locomoção elegida pelo aqui arguido.”

Foi esta maior amplitude das autorizações concedidas ao arguido, com destaque para o exercício da sua atividade laboral, quer pela regularidade semanal (nos dias úteis) quer pelo respetivo tempo de saída, que levou o tribunal recorrido a decidir como decidiu.

Mas sem razão e contra legem, diga-se, com o devido respeito.

Na verdade, estas autorizações não retiram, repete-se, a natureza de privação da liberdade ao agente. E se algum sentido de “liberdade” possa assumir esta autorização para exercer a atividade laboral, trata-se de uma liberdade vigiada e restrita, sempre controlada pela equipa de vigilância quer nos períodos de saída - de segunda a sexta-feira das 08h00 às 17h00 quer nos tempos de deslocação em função das distâncias a percorrer.

Contas feitas, na relação entre os períodos de tempo que o arguido permanece no domicílio a cumprir a pena de prisão, contando com os fins de semana e feriados e o período de tempo autorizado para exercer a sua atividade laboral, fora do domicílio, temos uma relação de praticamente entre (ou até mais) de dois terços e um terço, respetivamente.

Como já se afirmou, a pena acessória tem uma finalidade preventiva adjuvante à da pena principal, considerando-se complementar daquela quanto às finalidades de prevenção geral, essencialmente no que respeita à perigosidade da conduta do agente.

O que acaba por ser reconhecido pelo julgador a quo quando no despacho de sustentação da decisão recorrida, chama à colação o pensamento de Jescheck e Weigend a propósito da pena acessória (em Tratado de Derecho Penal, Parte General, 2002, p. 842), segundo o qual a proibição de conduzir consiste “em estar vedado ao condenado a condução de veículos no tráfico viário por um período de tempo”, e que “antes de tudo, esta pena deve desempenhar um efeito preventivo-especial para que no futuro o autor observe as normas do tráfico viário. (…) Esta sanção tem como consequência que o condenado não possa tomar parte como condutor no tráfico rodoviário. (…) O seu objectivo é exercer uma influência pedagógica sobre quem é condutor capacitado para tomar parte na circulação viária, por meio da suspensão da permissão de conduzir durante um período de tempo”.

Bem como o Professor Figueiredo Dias que a este respeito observa que “deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano” - As consequências Jurídicas do Crime, Almedina, 2005, § 204 a 206, página 164-5.

Decididamente, a decisão recorrida não protege nem assegura estas finalidades e objetivos da pena acessória, que seriam completamente defraudados.

A ser contabilizado como cumprimento da pena acessória este período de tempo de cumprimento da pena de prisão na habitação nos termos fixados pelo tribunal, nenhum sacrifício representaria para o arguido o cumprimento desta pena acessória, na medida em que, por força da privação da liberdade no cumprimento da pena de prisão, sempre estaria impedido de exercer a condução de veículo. O que não deixaria de representar uma benesse para o mesmo, um desconto significativo e ilegal na medida efetiva da pena acessória.

Acresce que, devendo a pena acessória ser obrigatoriamente cumprida de modo contínuo, caso houvesse revogação da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, o remanescente deveria ser cumprido em estabelecimento prisional – nº 3, do artigo 44º, do Código Penal. O que significaria desde logo uma interrupção do cumprimento da pena acessória, exceção não prevista nem desejada ao regime de cumprimento contínuo da pena.

Entende-se, pois, que o artigo 69.º, n.º 6 do Código Penal não permite qualquer interpretação restritiva no sentido de admitir o cumprimento simultâneo das duas penas, a principal, de prisão e a acessória, de proibição de conduzir, ainda que nesta apenas se contabilizasse, como transparece da parte final do despacho de sustentação do despacho recorrido, o período de tempo em que o arguido estiver ausente do domicílio.  Corroborando-se o que sobre esta matéria diz o recorrente Ministério Público: “admitindo que a contagem do período da pena acessória não se suspenda com a execução simultânea de uma pena de prisão em regime de permanência na habitação – poderá, atenta a ausência de critério legal, abrir caminho a duas formas de liquidação da pena acessória: ou contabilizando somente os períodos de ausências autorizadas da residência (resultando num cumprimento intermitente da pena, de difícil contabilização e ao arrepio do princípio da sua execução contínua) ou contabilizando todo esse período desde o seu início e de forma contínua, independentemente do cumprimento daquela privativa da liberdade, nos termos do artigo 43.º do Código Penal (numa dupla contabilização, atentatória do princípio constitucional da igualdade).

Este cumprimento intermitente da pena acessória não só não está legalmente previsto como se afiguraria de difícil e labiríntica contagem. Parece-nos que não foi desejado pelo legislador nem encontra vestígios para esta interpretação nos preceitos legais aplicáveis a esta matéria.

E a contagem ininterrupta, como decidido na decisão recorrida, para além de se afigurar não legalmente admissível (pelo menos de iuris constituto), violaria flagrantemente o princípio da igualdade de tratamento quando comparado com o cumprimento de pena também em regime de permanência na habitação, mas com autorizações de saída mais limitadas, não abrangendo a atividade laboral. Em que, como já se afirmou, não é admissível o cumprimento simultâneo. Não sendo esta desigualdade de tratamento corolário de um verdadeiro Estado de Direito Democrático.


IV

Decisão

Por todo o exposto, decide-se conceder provimento ao recurso do recorrente Ministério Público e, consequentemente, decide-se revogar a decisão recorrida, determinando-se ainda que o termo inicial de cumprimento da pena acessória se inicie após o término do cumprimento da pena principal de prisão executada em regime de permanência na habitação.


*

Sem tributação.

Coimbra, 4 de Maio de 2022

Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários

Luís Teixeira (relator)

Vasques Osório (adjunto)

Brízida Martins (presidente)



[1] Muito embora, no despacho de sustentação proferido, o Tribunal recorrido pareça ter mudado de opinião a respeito da contagem do período de duração da pena acessória, concluindo que a mesma deverá ser descontínua, com acrescento dos dias de privação da liberdade efectivamente sofridos (ainda que, aparentemente, tal entendimento apenas devesse ser seguido de jure condendo, por razões difíceis de perceber, face à flagrante derrogação da lei em vigor que é feita no despacho recorrido).
Acresce que, seguindo a lógica do Tribunal recorrido, tão pouco se veria qualquer razão para considerar aplicável a “letra” do nº 6 do art. 69º do C. Penal aos casos nos quais a pena de prisão cumprida em estabelecimento prisional pode também ela sê-lo de forma descontínua, tal como sucede quanto aos reclusos que beneficiem do chamado regime aberto no exterior, ou de múltiplas licenças de saída de duração mais prolongada, nos termos legalmente previstos.

[2] Na obra Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, fls.165.
              
[3] V. vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18.03.2015, processo n.º 136/14.0GCACB.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] No mesmo sentido, ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra de 12/9/2012, relator Belmiro Andrade.
[5] V. também ac. RC de 24-04-2013, proc. nº 181/12.0GTVIS.C1.           
              
[6] Sublinhado nosso.