Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2051/11.0TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: ACÇÃO DE ANULAÇÃO
ANULAÇÃO DE CASAMENTO
SIMULAÇÃO
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Data do Acordão: 03/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – POMBAL – 2ª SEC. FAM. E MENORES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 1635º, AL. D), E 1640º, Nº 1, DO C.CIVIL.
Sumário: I – O Ministério Público dispõe de legitimidade processual para intentar uma acção de anulação de casamento baseada em simulação, nos termos do artigo 1635º, alínea d) do CC, quando essa simulação se traduziu na realização de um casamento que, excluindo a finalidade constante da noção dada pelo artigo 1577º do CC, foi contraído com o único objectivo de proporcionar a algum dos nubentes a obtenção de um visto, uma autorização de residência ou um «cartão azul UE» ou de defraudar a legislação em matéria de aquisição da nacionalidade.

II – Não constitui obstáculo a esta atribuição de legitimidade a circunstância do artigo 1640º, nº 1 não referir o Ministério Público entre os legitimados para essa acção de anulação.

III – A forte presença de um interesse público referido ao Estado-Colectividade na anulação de um casamento fraudulento com as características indicadas em I, justifica amplamente a consideração do Ministério Público, enquanto portador natural desse interesse no ambiente de um processo judicial, como parte legítima.

IV – A construção interpretativa dessa legitimidade pode ocorrer por referência ao trecho final do artigo 1640º, nº 1 do CC, interpretado extensivamente, ou por via de uma extensão teleológica da razão de ser da legitimação do Ministério Público para acções de anulação de casamento prevista no artigo 1639º, nº 1 e 1642º do CC.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. O Ministério Público (A. e Apelante neste recurso) intentou acção declarativa de anulação de casamento contra D… e O… (RR.), invocando ter sido simulado o casamento civil contraído por estes em 09/03/2009[1], na Conservatória do Registo Civil de Coimbra (o assento respectivo consta de fls. 8).

            No articulado inicial – e centrar-nos-emos neste relato nas incidências em causa quanto ao tema directo do recurso: a legitimidade do Ministério Público para intentar este tipo de acção –, no articulado inicial, dizíamos, logo no proémio, indicou o Ministério Público o seguinte:
“[…]
O Ministério Público junto deste Tribunal vem, ao abrigo do disposto nos artigos 3º, nº 1, alíneas a) e p) e 5º, nº 1 do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 47/86, de 15 de Outubro[[2]], artigos 1639º e 1640º do Código Civil[[3]] e artigo 81º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro[[4]], intentar […].
[…]”.

            Acrescentando o seguinte no final do mesmo articulado, referindo-se à questão da legitimidade activa própria:
“[…]

23º
Os RR. simularam o casamento entre ambos para assim poderem iludir o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e a 2ª R. obter a correspondente autorização de residência.
24º
Os RR., ao agirem da forma descrita lesaram os interesses do Estado português, defraudando a expectativa comunitária na verdade das relações jurídicas.
25º
Pelo que o Ministério Público, enquanto representante dos interesses do Estado, detém legitimidade para intentar a presente acção, atendendo ao disposto no artigo 1640º, nº 1 do Código Civil, que confere legitimidade processual a quaisquer pessoas prejudicadas com o casamento.
[…]”.

            1.1. Nenhum dos RR. contestou (a R., aliás, foi citada editalmente), sendo o processo saneado tabelionicamente a fls. 350 – “[a]s partes são legítimas”, foi tão-somente o que a respeito da legitimidade aí se disse –, prosseguindo para julgamento com fixação dos temas de prova referidos à pretensão anulatória do casamento formulada pelo Ministério Público.

            1.2. Realizou-se o julgamento, com produção de prova testemunhal, a culminar o qual foi proferida a Sentença de fls. 396/404esta corresponde à decisão objecto do presente recursoabsolvendo os RR. da instância, por considerar o Ministério Público desprovido de legitimidade para propor acções de anulação de casamento baseadas em simulação.

            1.3. Inconformado, apelou o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões a rematar a motivação do recurso:
“[…]


II – Fundamentação

2. Caracterizámos sucintamente o desenvolvimento do processo que conduziu à presente instância de recurso. Importa agora apreciar a impugnação do Apelante, sendo que o âmbito objectivo desta se mostra delimitado pelas conclusões transcritas no item antecedente [v., a propósito da referenciação dos fundamentos do recurso às conclusões, os artigos 635º, nº 4 e 639º do Código Processo Civil (CPC)]. Assim, fora das conclusões, só podem integrar o objecto temático de um recurso questões que se configurem como de conhecimento oficioso. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição no quadro de um recurso sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo o artigo 608º, nº 2 do CPC). E, enfim – esgotando a enunciação em abstracto do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àquelas (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

Neste caso, o fundamento do recurso – de um fundamento único se trata – corresponde à determinação da legitimidade do Ministério Público para propor uma acção – esta acção – visando a anulação de um casamento com base em simulação, quando esta simulação apresenta determinadas características que adiante particularizaremos.

Adicionalmente – e prosseguimos na senda das considerações preambulares que guiarão o julgamento nesta instância –, obtendo acolhimento a pretensão do recorrente quanto à respectiva legitimidade, haverá que decidir a acção neste Tribunal em substituição da primeira instância, sendo certo que, tendo o julgamento percorrido nesta todas as suas etapas (com produção de prova, discussão da causa e fixação fundamentada dos factos provados[5] e não provados) o recurso assumirá, como é próprio da apelação, natureza substitutória e não cassatória[6], proferindo este Tribunal a decisão da acção, rescindida que seja a Sentença apelada – e sê-lo-á efectivamente, como veremos.

2.1. Adquire aqui, pois, um particular significado a transcrição do elenco dos factos provados e não provados, sendo que estes, decidida a questão da legitimidade do Ministério Público no sentido do reconhecimento da mesma, propiciarão, concretamente os factos positivamente fixados no Tribunal a quo, o julgamento da acção por esta instância.

Os factos provados são, assim, os seguintes:
“[…]
1) No dia 9 de Março de 2009, na Conservatória do Registo Civil de Coimbra, o primeiro R., D…, celebrou casamento civil com a segunda R., O...
2) Os RR. contraíram casamento com o único objetivo de, por esta via, obter a legalização da segunda R., O…, em território português.
3) De tal forma que, apenas alguns dias após o casamento, concretamente no dia 26 de Março 2009, a segunda R. deu entrada do pedido de cartão de residência, invocando esse direito por ser familiar de cidadão nacional, ao abrigo do disposto no art. 15º da Lei 37/2007, de 9 de Agosto, na Delegação Regional de Leiria do SEF.
4) O pedido referido em 3) foi recusado uma vez que os inspectores do SEF suspeitaram da validade do dito casamento.
5) Os RR. nunca efectuaram vida em comum, ou viveram em comunhão de mesa, cama e habitação.
6) Após a celebração do casamento, o R. D… apenas voltou a encontrar a R. O… passados alguns dias, quando a R. O… o procurou dizendo-lhe que tinha de ir ao SEF, responder a umas perguntas cujas respostas escreveu num papel, a fim de que as memorizasse para que pudesse dar as devidas respostas quando indagado sobre tais aspectos da vida de ambos, pelos inspectores do SEF.
7) A partir do momento dito em 6) os RR. não mantiveram qualquer contacto.
8) Na sequência do pedido de residência efectuado pela segunda R., o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras encetou uma série de diligências para aferir da verificação dos pressupostos de facto para a celebração do casamento e consequente autorização de residência.
9) Esta investigação deu origem à instauração do inquérito n.º… com vista ao apuramento da existência de indícios suficientes da prática, pelos ora RR., do crime de casamento de conveniência, previsto no art. 186º da Lei dos Estrangeiros, sendo que, na sequência de acusação aí deduzida, veio a ser proferida sentença, transitada em julgado, na qual o réu foi condenado pela prática de um crime de casamento de conveniência, p. e p. pelo artigo 186.º, n.º 1, da Lei 23/2007, de 4 de Julho, na pena de 13 meses de prisão substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, fixada em 390 horas.
[…]”.

            Os factos considerados não provados – os como tal consignados na Sentença – foram os seguintes:
“[…]
1) Os RR. conheceram-se alguns dias antes do casamento, por intermédio de um terceiro indivíduo, de nome S…, que, a pedido da segunda R., abordou o primeiro R., sugerindo-lhe que este contraísse casamento com aquela em troca da quantia de €2500,00, para que esta pudesse obter uma autorização de residência em Portugal.
2) O R. D… referiu não pretender qualquer contrapartida monetária.
3) Quatro dias antes da celebração do casamento os RR. encontraram-se na Conservatória de Registo Civil de Pombal a fim de concretizarem o casamento, o que não veio a suceder por falta do bilhete de identidade do R..
4) Foi nessa data que os RR. se conheceram e estabeleceram contacto directo.
5) Foi a segunda R. quem suportou os custos do processo de concretização do casamento junto da referida Conservatória de Registo Civil de Coimbra.
[…]”.

            2.2. Enunciados os factos e expostas as incidências processuais atinentes ao recurso, importa agora abordar o respectivo tema. Trata-se de determinar a legitimidade do Ministério Público para intentar uma acção visando a declaração de anulação de um casamento simulado, quando – e este elemento é central na abordagem do caso concreto – essa simulação correspondeu a um “casamento de conveniência”, definido este por referência ao tipo penal do artigo 186º, nº 1 da Lei dos Estrangeiros (a Lei nº 23/2007, de 4 de Julho), quando, portanto – e estamos aqui a parafrasear o tipo penal –, o casamento foi contraído com o único objectivo de proporcionar a obtenção ou de obter um visto, uma autorização de residência ou um «cartão azul UE» ou de defraudar a legislação vigente em matéria de aquisição da nacionalidade. Ou seja, um casamento que excluiu a finalidade constante da noção dada no Código Civil (artigo 1577º) – contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições do mesmo Código – para se encerrar no exclusivo propósito-outro de obter acesso ao estatuto pessoal propiciador de algum dos elementos descritos no dito artigo 186º, nº 1 da Lei dos Estrangeiros[7]. É assim que um casamento que se esgote neste elemento motivacional, e que ao mesmo tempo exclua qualquer propósito de constituir família (ou algo minimamente aparentado a uma vivência familiar), é anulável por simulação[8]. Aliás, em última análise, poder-se-ia até considerar, quanto a um casamento com estas características, a existência de fraude à lei, no sentido em que a realização do negócio jurídico correspondente ao casamento visaria tão-somente contornar, aparentando-os, os requisitos conducentes à obtenção do estatuto de residente legal em Portugal por parte da R. A possível concorrência dos dois desvalores – da simulação e da fraude à lei[9] – resolve-se com base num argumento de especialidade da simulação, aqui inegavelmente presente enquanto desvalor próprio deste casamento (simulado); casamento em que a declaração de vontade correspondente só se dirigiu à produção de outros efeitos jurídicos distintos e, mais que isso, excludentes de um casamento. Estaremos a ser rigorosos se dissermos que neste caso ninguém (nenhum dos nubentes, nenhum dos RR.) pretendeu casar-se: pretendeu a 2ª R., tão-só, por via da activa colaboração do 1º R., obter uma espécie de “trunfo” (a certidão de casamento) que lhe possibilitasse desencadear o processo de aquisição do estatuto de residente legal em Portugal.

            Sublinha-se ser com esta base, falta de intenção matrimonial como obstáculo à validade do casamento, que na ordem jurídica francesa – e o argumento de direito comparado apresenta aqui interesse – se constrói o desvalor desencadeante da acção de anulação do casamento simulado, casamento ao qual presidiu, comprovadamente, o exclusivo propósito de adquirir o estatuto de residente ou a nacionalidade almejada. Esse casamento, dito “casamento de conveniência” (mariage de complaisanse) é considerado simulado, conduz à nulidade absoluta do acto, considerando-se que a falta de intenção matrimonial equivale à falta de vontade[10]. Note-se que a lei francesa (o artigo 180º do Code Civil francês) atribui ao Ministério Público legitimidade para a propositura desta acção de declaração de nulidade[11].   

É com esta mesma base – a falta de uma real vontade matrimonial –, pois, que a situação dos autos adquire individualidade e se destaca no quadro da simulação do casamento, sendo esta particularidade que nos permite equacionar adequadamente o passo seguinte: a análise da questão da legitimidade do Ministério Público para propor a acção de anulação do casamento. Referimo-nos – e adiantamos aqui um elemento central da solução que afirmaremos no final – à forte prevalência de um interesse público na supressão de um casamento que se restringiu ao propósito fraudulento de tornear os condicionalismos legais de obtenção de residência em território nacional, ou de aquisição de nacionalidade, por parte de quem, não fosse a formalização intencional da aparência de estar casado com um cidadão português, não reuniria as condições de acesso a esse estatuto ou teria grande dificuldade na concessão do mesmo.  

            2.2.1. À legitimidade em geral para intentar acções de anulação de casamento nas situações de falta ou de vícios de vontade, cuja anulabilidade é estabelecida no artigo 1635º do Código Civil (CC) e abrange na alínea c) o casamento simulado, refere-se directamente o artigo 1640º do CC:


Artigo 1640º
Anulação fundada na falta de vontade
1 – A anulação por simulação pode ser requerida pelos próprios cônjuges ou por quaisquer pessoas prejudicadas com o casamento.[[12]]
2 – Nos restantes casos de falta de vontade, a acção de anulação só pode ser proposta pelo cônjuge cuja vontade faltou; mas podem prosseguir nela os seus parentes, afins na linha recta, herdeiros ou adoptantes, se o autor falecer na pendência da causa.

            É a uma determinada interpretação desta norma, concretamente do seu nº 1, que a decisão recorrida reporta a afirmação de não dispor o Ministério Público de legitimidade activa. Considera a esse respeito que a ausência de uma referência expressa nesse trecho seria intencional, visando precisamente afastar uma possível legitimação do Ministério Público, sendo certo que essa legitimação passou, noutras situações, por uma indicação expressa[13].
            2.2.2. Prosseguindo a análise que nos conduzirá a uma solução – à solução do recurso quanto à questão da legitimidade do Ministério Público –, pretendemos enfatizar agora o elemento evolutivo que subjaz à situação, sob pena de, fazendo descaso dessa dimensão temporal, sermos conduzidos a uma resposta interpretativa que, aparentando uma ilusória correcção formal na sua relação com o texto numa certa aproximação sistemática[14], acaba por atraiçoar a enorme expressividade que o elemento histórico aqui apresenta, fazendo descaso – e estamos a argumentar no quadro indicado no artigo 9º, nº 1 do CC – das circunstâncias em que a lei foi elaborada e das condições específicas do tempo em que a mesma lei está (agora) a ser aplicada.
O que aqui podemos dizer a respeito da pretensão de extrapolar, como argumento sistemático, uma opção legislativa expressa de indicar a legitimidade do Ministério Público, concretamente nas situações citadas na decisão recorrida (os artigos 1639º, nº 1 e 1642º), é que, em 1967, aquando da elaboração e edição de um novo Código Civil (trabalho que se havia prolongado por um período bem mais largo que a década pretérita, v. a nota 22 infra e o texto que para ela remete) optou-se por referenciar essa legitimação ao Ministério Público só nesses casos (casamento celebrado com impedimento dirimente e casamento celebrado sem intervenção das testemunhas instrumentárias), tendo aí, então, nessas particulares condições históricas, uma mais consistente densidade valorativa o uso desse argumento sistemático. Todavia, mesmo nesse enquadramento, não estaria vedado ao intérprete algum tipo de abertura à consideração de outros argumentos com peso interpretativo, em vista da teleologia subjacente a essas normas de legitimação, caracterizada essa opção legislativa como decorrente da presença de um forte interesse público, expresso na situação indutora da anulabilidade aqui em causa[15]. Vale esta consideração como abertura a uma interpretação teleológica – rectius, ao uso de argumentos interpretativos de pendor teleológico – à qual a passagem do tempo e o aparecimento de novas situações não consideradas aquando da edição da lei, vão conferindo um peso crescente. E isto apresenta um especial sentido quando nos referimos a uma instituição, como sucede com o casamento, tão susceptível às mutações sociais e económicas. Neste domínio – provavelmente em qualquer domínio –, não pode o Legislador ter a pretensão de “capturar o futuro” – e o intérprete não deve assumir essa pretensão –, fechando totalmente a interpretação às particularidades evolutivas, à dinâmica social, de um instituto portador de uma tão forte individualidade. O que poderíamos dizer “em 1967” – dizer sobre 1967 falando agora no presente – é que, então, a situação que hoje nos interpela a propósito deste tipo de simulações, por via de “casamentos de conveniência”, não se colocava e, por isso mesmo, não foi, nessa conjuntura histórica, encarada pelo legislador. Todavia, hoje, face a novas realidades, parece ter sentido convocar a citação geralmente atribuída a John Maynard Keynes: “When the facts change, I change my mind. What do you do, sir?[16]. E tem todo o sentido, obviamente – e corresponde à essência profunda da interpretação jurídica –, repercutir racionalmente nas opções passadas do legislador a actualização induzida pela dinâmica social gerada em torno da situação regulada numa outra conjuntura, captando a “mensagem normativa” contida em determinado texto legal[17].  
Tenha-se a este respeito presente que a anulação do casamento por simulação – a própria opção de anular um casamento simulado – sempre levantou problemas particulares que, enquadrados numa perspectiva diacrónica, nos fornecem relevantes chaves interpretativas quanto à definição de quem deve estar habilitado a desencadear essa anulação e em que condições essa legitimação deve ocorrer.
A discussão em torno da relevância da simulação no quadro do casamento – aceitando-se, como sucede desde 1967, que é relevante a simulação neste domínio e que deve produzir a anulabilidade do casamento –, e a discussão sobre quem deve desencadear a supressão da ordem jurídica desse casamento (sobre quem é portador ou titular de interesses que o devem legitimar a desencadear judicialmente esse efeito), aporta-nos elementos importantes de compreensão da questão aqui colocada. Com efeito, à solução tradicional de descartar a relevância da simulação do casamento[18] sucedeu, por via da edição do Código Civil de 1967 contendo o artigo 1635º, alínea d), a consideração – e adaptamos aqui a definição constante do artigo 240º, nº 1 do CC[19] – de que a divergência intencional, visando enganar terceiros, entre a vontade real e a declaração realizada pelos nubentes de que pretendem casar, gera a anulabilidade desse casamento, valendo por divergência intencional a afirmação formalmente adequada a produzir o efeito de casar que, verdadeiramente, se esgota na intenção de obter uma certidão de casamento para, por via desta, obter uma autorização de residência.
É útil, porque expressa o sentido de um percurso, referir aqui alguns dados históricos que nos auxiliam a caracterizar a já apontada perspectiva evolutiva da questão da simulação do casamento.
Nos primórdios dos trabalhos preparatórios do Código Civil actual, que se veio a corporizar no Diploma de 1967 – os primórdios desses trabalhos transportam-nos ao final da década de 40 do século passado[20] – o Professor Pires de Lima (quem inicialmente foi encarregue na Comissão de Revisão da parte respeitante ao Direito da Família[21]) elaborou um anteprojecto designado “Constituição do Estado de Casado. Anteprojecto de um dos Livros do Futuro Código Civil[22]. Neste trabalho, que constitui uma proposta de articulado acompanhada de algumas notas justificativas, foi incluído um artigo 53º, com o título Casamentos nulos, no qual se estabelecia a nulidade (“São nulos […]”) dos casamentos “[a] que falt[asse] o consentimento de um ou de ambos os nubentes” (artigo 53º, 1º, a) desse anteprojecto). Culminava o texto desta proposta de norma com um §3º cujo trecho inicial dizia: “[é] irrelevante, para efeitos da alínea a), a simulação, assim como o termo ou a condição apostos na manifestação de vontade […]”, sendo este elemento justificado pelo Autor nos seguintes termos: “[n]o §3º resolvemos, segundo a orientação marcada da doutrina, o problema da simulação, e o dos casamentos a termo ou sob condição. A necessária estabilidade do casamento não se coaduna com a protecção de situações voluntariamente criadas[23].
Podemos referir esta observação justificativa como tributária da tradicional irrelevância da simulação no casamento[24] (a opção do Código de Seabra e das Leis de Família da I República), percebendo-se que a questão terá evoluído substancialmente com a passagem, no quadro dos trabalhos da Comissão de Revisão, ao chamado anteprojecto Gomes da Silva[25]. Neste interessa o proposto artigo 76º (no qual se contém a génese histórica dos artigos 1635º e 1640º do CC de 1967):
Artigo 76º
(Nulidade por falta de consentimento)
§1º – O casamento é nulo, por falta de consentimento:
--------------------------------------------------------------------------------------.
5º – Quando for simulado.
--------------------------------------------------------------------------------------.
§3º – Podem requerer a declaração de nulidade por simulação as pessoas diversas dos cônjuges, que tenham sido prejudicadas pelo casamento, e o Ministério Público, quando nisso tiver interesse alguma das pessoas a quem deve protecção, exceptuados, sempre, os próprios cônjuges.
§4º – A acção, mencionada no parágrafo anterior, só pode ser julgada procedente se, além do facto da simulação, se provar que os cônjuges nunca coabitaram efectivamente depois do casamento, como marido e mulher.
--------------------------------------------------------------------------------- [[26]].     
Foi este projecto que, na sequência das diversas vicissitudes da preparação do Código de 1967, veio a culminar, por via dos artigos 1635º, alínea d) e 1640º, nº 1, no estabelecimento da anulabilidade do casamento simulado e na legitimação de quaisquer pessoas prejudicadas pelo casamento para pedir essa declaração de nulidade. Só mais tarde, em 1977, foram acrescentados os próprios cônjuges aos legitimados à acção de anulação  com essa base.
Caracterizando esta evolução refere Antunes Varela:
“[…]
Admitindo a anulação do matrimónio por simulação, o artigo 1635º desviou-se da solução geralmente aceite no direito anterior, que considerava a simulação irrelevante em matéria de casamento.
Na sua primeira versão, o artigo 1640º negava, porém, aos cônjuges a legitimidade para arguirem em qualquer caso a simulação, afastando-se desse modo das regras gerais consignadas nos artigos 242º e 243º que permitem aos próprios simuladores arguir entre si a nulidade do negócio simulado, ainda que de simulação fraudulenta se trate, e só não admitem que eles a invoquem contra terceiros de boa fé.
É, na verdade, tão grave a responsabilidade que os contraentes assumem ao simularem um acto da natureza do casamento, e tão importantes as repercussões sociais do acto, que se entendeu nessa altura não ser justa a solução de cometer aos simuladores o direito de arguirem a nulidade, logo que esta conviesse aos seus interesses.
Admitia-se e continua a admitir-se, em contrapartida, a anulação a requerimento das pessoas prejudicadas com o casamento, porque nos raros casos de simulação comprovada há-de ser relativamente fácil de determinar, através da causa simulandi, o círculo das pessoas que os simuladores pretendiam prejudicar.
[…]”[27].

            Este mesmo percurso é traçado por Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, sublinhando os seguintes elementos:
“[…]
[A] questão do casamento simulado (‘mariage blanc’) – a questão de saber se o casamento simulado será inválido, como os restantes negócios jurídicos simulados – nunca foi posta aos tribunais portugueses. Mas é muito debatida na doutrina e na jurisprudência de alguns países e parece ter ganho ultimamente um interesse particular.
Simulam-se casamentos para adquirir uma nacionalidade estrangeira, para obter uma autorização de residência ou de trabalho em país estrangeiro e, assim, evitar uma expatriação, para adquirir uma situação vantajosa decorrente do estado do cônjuge ou até para contornar uma disposição legal. Decerto que qualquer destes motivos pode determinar as pessoas a casar e os motivos dos contraentes são irrelevantes, no casamento como nos negócios em geral. Se embora determinados por um desses motivos os nubentes têm disposição de fazer e fazem realmente vida em comum, não há simulação e o casamento é válido. Mas se apenas pretendem prosseguir o fim visado e recusam a ‘comunhão de vida’ que constitui a essência do casamento, este é simulado: a declaração que prestem perante o conservador do registo civil de que querem casar um com o outro (Código de Registo Civil, artigo 155º, nº 1, alínea e)) não corresponde à sua vontade real.
A solução da validade do casamento simulado era a tradicional, mas veio a prevalecer na doutrina a orientação contrária e foi esta que o Código consagrou, com boas razões, no artigo 1635º, alínea d).
A anulação pode ser requerida pelos próprios cônjuges e por quaisquer pessoas prejudicadas com o casamento (artigo 1640º, nº 1) […].
Note-se que a possibilidade de os próprios cônjuges arguirem a simulação não era admitida na versão inicial do artigo 1640º, nº 1, que só permitia que a anulação fosse requerida pelas pessoas prejudicadas com o casamento mas não pelos cônjuges, solução que a particular natureza do casamento justificaria.
Não cremos, porém, tendo em conta as razões em que se funda a anulabilidade do casamento simulado, que a natureza do casamento exigisse semelhante desvio à regra geral do artigo 242º, nº 1, mal se entendendo que a subsistência do casamento simulado ficasse na dependência de haver ou não terceiros prejudicados que se dispusessem a requerer a anulação do acto.
[…]”[28] (notas no original aqui omitidas).

            A evolução aqui traçada reflecte a adaptação das particularidades do desvalor negocial correspondente à simulação quando confrontado com a forte individualidade do casamento, mesmo enquanto negócio jurídico – trata-se seguramente do mais importante dos negócios familiares –, sendo que a legitimação para invocar esse desvalor e conduzir à anulação judicial de um casamento foi moldada, como não poderia deixar de ser, por essa individualidade[29], num processo ao qual não foram estranhas novas incidências que essa individualidade foi experimentando. É assim que se percebe a irrelevância inicial da simulação, num quadro de irrelevância das motivações pessoais, egoístas ou altruístas, boas ou más, mas todas elas fundamentalmente imperscrutáveis, determinantes do acto de casar – de um acto tão rico nas suas consequências e difuso nos seus motivos como o de casar[30]. Percebe-se também que, evoluindo as coisas, em determinadas circunstâncias – do ponto de vista da evolução legislativa foram estas as circunstâncias do repensar do Direito da Família aquando da edição do Código Civil de 1967 –, se tenha inovatoriamente atribuído relevância, em termos de possibilidade de supressão do acto, à simulação do casamento. Percebe-se igualmente que, em 1977 na reforma do Código Civil, se tenha estendido essa legitimação aos próprios cônjuges.
2.2.3. Ora, a questão que subsiste e que é colocada pelo caso concreto, prende-se com a determinação da legitimidade do Ministério Público para a acção de anulação de casamento por simulação, na falta de uma opção expressa nesse sentido no texto do artigo 1640º, nº 1 (falta que a Sentença apelada considera argumento suficiente para descartar essa legitimidade).
Não é irrelevante convocar aqui a função de defesa da legalidade cometida ao Ministério Público (artigo 1º da Lei nº 47/86, de 15 de Outubro – Estatuto do Ministério Público), particularizando-a em ambiente processual – chamemos assim às competências de representação processual e às legitimações para actuar processualmente – pela referência da representação do Estado constante do artigo 3º, nº 1 da mesma Lei (transcrito na nota 4 supra), entendida esta como abarcando o Estado-Colectividade e o Estado-Administração, sendo que com a primeira referenciação conceptual (o Estado-Colectividade) se alude, com uma indisfarçável vocação de generalidade, “[…] à intervenção em todos os processos que envolvam interesse público ou para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis[31].
Claro que podemos interpretar esta referenciação funcional do Ministério Público – e será esse, porventura, o ponto de vista da Senhora Juíza a quo – como dependente de uma ulterior opção expressa do legislador, que o mesmo é dizer, colocado sob reserva dessa opção. Todavia, como acima indicámos, às legitimações expressas do Ministério Público para suscitar a anulação judicial[32] de casamentos preside uma teleologia ligada à prevalência de um interesse público, que nessas situações concretas se referem à definição legal dos pressupostos do casamento (v. os artigos 1639º, nº 1 e 1642º do CC). Ora, neste caso, nos termos em que acima o caracterizámos como falta de verdadeira intenção de casar, associada a um intuito exclusivo de defraudar disposições imperativas da Lei de Estrangeiros, a intensidade da presença do elemento interesse público – a sintomática definição do próprio comportamento como crime no artigo 186º, n.º 1 da Lei 23/2007 de 4 de Julho – dá um óbvio sentido racional, rectius justifica, a legitimação do Ministério Público para a propositura da acção de anulação, visando esta, fundamentalmente, suprimir o meio essencial de cometimento do crime e colocar fim a um casamento que, desprovido de uma real intenção matrimonial, não preenche os condicionalismos legais substantivos do instituto.
Neste quadro, projectando a teleologia subjacente à legitimação do Ministério Público para as acções de anulação de casamento, podemos considerar, por via do mecanismo interpretativo da extensão teleológica[33], que fortes e acrescidas razões (acrescidas relativamente aos casos de atribuição expressa dessa legitimidade) justificam a legitimação do Ministério Público para a propositura de uma acção de anulação de casamento baseada em simulação, quando esta se traduziu na realização de um casamento que, excluindo a finalidade constante da noção dada pelo artigo 1577º do CC, foi contraído com o único objectivo de proporcionar a algum dos nubentes a obtenção de um visto, uma autorização de residência ou um «cartão azul UE» ou de defraudar a legislação vigente em matéria de aquisição da nacionalidade (correspondendo, assim, à materialidade subjacente ao tipo penal previsto no artigo 186º, n.º 1 da Lei 23/2007).
Esta alocação de legitimidade ao Ministério Público tanto pode ser alcançada por via da referenciação desta entidade, no quadro acima exposto, como interlocutor do interesse público aqui presente, ao universo das “pessoas prejudicadas pelo casamento” simulado nessas condições, reconduzindo essa legitimação a uma leitura abrangente (extensiva, se preferirmos), teleologicamente construída[34], do trecho final do artigo 1640º, nº 1 do CC[35]. Ou podemos explorar, com o mesmo resultado de consideração positiva da legitimidade do Ministério Público para esta acção, a via acima apontada da extensão teleológica das outras situações em que essa legitimação ocorre expressamente.
Por qualquer das vias chegaremos aqui ao resultado de considerar o Ministério Público parte legítima e de atender o recurso.
2.3. Esta procedência do recurso conduz-nos, nos termos já equacionados supra no final do item 2., à necessidade de, substituindo-nos à primeira instância, procedermos ao julgamento da acção.
A este respeito, apreciando a matéria de facto elencada na Sentença apelada, acima transcrita no item 2.1. (referimo-nos aos factos provados), torna-se evidente estarmos perante casamento simulado, com o sentido de tratar-se de situação excludente de qualquer propósito matrimonial, encerrando-se no objectivo exclusivo, comum aos nubentes, de propiciar à R. O… a obtenção, sem assumir um verdadeiro propósito matrimonial, de uma autorização de residência em Portugal.
Vale isto pela afirmação deste casamento como simulado e vale, enfim, pela sua anulação judicial, nos termos decorrentes da conjugação dos artigos 1632º e 1635º, alínea c) do CC.
É o que, a par da consideração do Ministério Público como parte legítima, com a consequente procedência da apelação, importará expressar decisoriamente neste Acórdão.
2.4. Sumário elaborado pelo relator (artigo 663º, nº 7 do CPC):
I – O Ministério Público dispõe de legitimidade processual para intentar uma acção de anulação de casamento baseada em simulação, nos termos do artigo 1635º, alínea d) do CC, quando essa simulação se traduziu na realização de um casamento que, excluindo a finalidade constante da noção dada pelo artigo 1577º do CC, foi contraído com o único objectivo de proporcionar a algum dos nubentes a obtenção de um visto, uma autorização de residência ou um «cartão azul UE» ou de defraudar a legislação em matéria de aquisição da nacionalidade;
II – Não constitui obstáculo a esta atribuição de legitimidade a circunstância do artigo 1640º, nº 1 não referir o Ministério Público entre os legitimados para essa acção de anulação;
III – A forte presença de um interesse público referido ao Estado-Colectividade na anulação de um casamento fraudulento com as características indicadas em I, justifica amplamente a consideração do Ministério Público, enquanto portador natural desse interesse no ambiente de um processo judicial, como parte legítima;
IV – A construção interpretativa dessa legitimidade pode ocorrer por referência ao trecho final do artigo 1640º, nº 1 do CC, interpretado extensivamente, ou por via de uma extensão teleológica da razão de ser da legitimação do Ministério Público para acções de anulação de casamento prevista no artigo 1639º, nº 1 e 1642º do CC.  
III – Decisão
            3. Face a tudo o que se expôs, decide-se nesta Relação de Coimbra:
A) Julgar o Ministério Público parte legítima para a presente acção de anulação de casamento por simulação;
B) Julgar, em função disso, procedente o presente recurso revogando a Sentença recorrida (excepção feita à parte desta em que se fixam os factos provados);
C) Julgar, assim, em função desses factos, a acção de anulação procedente por provada, declarando anulado o casamento civil contraído em 09/03/2009, na Conservatória do Registo Civil de Coimbra, entre D… e O…, casamento ao qual corresponde o assento junto a fls. 8 destes autos.
D) Determinar-se o averbamento desta declaração de nulidade ao referido assento, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea b) do Código do Registo Civil[36].
As custas da presente acção em ambas as instâncias ficam a cargo dos RR. (o recurso do Ministério Público foi julgado procedente e, por via disso, a acção de anulação é subsequentemente julgada procedente). 
Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado em audiência na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia 10/03/2015 
(J. A. Teles Pereira)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)

***


[1] “[…]

26º
Na verdade, os RR. nunca tiveram intenção de celebrar casamento nos moldes tradicionais, fazendo-o apenas e só com o intuito de, na posse do assento de casamento, obter junto do SEF, a correspondente autorização de residência.
[…]”.

[2] Referem estas disposições:
Artigo 3º
Competência
1 - Compete, especialmente, ao Ministério Público:
a) Representar o Estado, as Regiões Autónomas, as autarquias locais, os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta;
p) Exercer as demais funções conferidas por lei.
Artigo 5º
Intervenção Principal e acessória
1 - O Ministério Público tem intervenção principal nos processos:
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
g) Nos demais casos em que a lei lhe atribua competência para intervir nessa qualidade.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
[3] Aqui se transcrevem:
Artigo 1639º
Anulação fundada em impedimento dirimente
1. Têm legitimidade para intentar a acção de anulação fundada em impedimento dirimente, ou para prosseguir nela, os cônjuges, ou qualquer parente deles na linha recta ou até ao quarto grau da linha colateral, bem como os herdeiros e adoptantes dos cônjuges, e o Ministério Público.
2. Além das pessoas mencionadas no número precedente, podem ainda intentar a acção, ou prosseguir nela, o tutor ou curador, no caso de menoridade, interdição ou inabilitação por anomalia psíquica, e o primeiro cônjuge do infractor, no caso de bigamia.
Artigo 1640º
Anulação fundada na falta de vontade
1. A anulação por simulação pode ser requerida pelos próprios cônjuges ou por quaisquer pessoas prejudicadas com o casamento.
2. Nos restantes casos de falta de vontade, a acção de anulação só pode ser proposta pelo cônjuge cuja vontade faltou; mas podem prosseguir nela os seus parentes, afins na linha recta, herdeiros ou adoptantes, se o autor falecer na pendência da causa.
[4] Refere-se este à versão anterior da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (entretanto substituída pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto) e estabelece a competência dos Tribunais de Família para as acções de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil.
[5] Estes, aliás, decorrem fundamentalmente da actuação de um efeito directo de caso julgado, sendo certo que o processo crime no qual foram julgados e condenados os aqui RR. pelo crime de “casamento por conveniência”, cuja Sentença condenatória se encontra certificada a fls. 393/395vº, tem aqui o valor directo de caso julgado relativamente aos dois RR. (intervenientes nesse processo crime), como o afirmou esta mesma formação no Acórdão de 17/05/2011, proferido pelo ora relator no processo nº …, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/caab3625bb9b3e07802578af004b3d8.
“[…]

I – A fixação dos factos em processo-crime, no quadro de uma condenação definitiva, vale directamente numa posterior acção cível na qual se discutam relações jurídicas dependentes dos factos que alicerçaram a afirmação da prática da infracção penal, quando nessa acção cível sejam partes (autores e réus) os que tiveram intervenção como sujeitos processuais (arguidos ou assistentes) no processo penal;

II – O artigo 674º-A do CPC [actual artigo 623º], ao conferir a natureza de presunção ilidível à decisão penal condenatória relativamente a terceiros, pressupõe, enquanto regra geral implícita, a eficácia directa dos factos em causa nessa condenação, relativamente aos que foram parte no processo penal;

III – Esta eficácia directa, excluindo, portanto, a natureza de simples presunção desses factos, impede que sobre essa matéria seja produzida, na subsequente acção cível (travada entre os que foram parte no processo penal que resultou em condenação), qualquer tipo de prova que vise contraditar ou acrescentar algo a essa factualidade resultante da condenação penal;
[…]” (sublinhado acrescentado).
Significa isto, contra o que se indicou na Sentença a fls. 399, fundamentando a fixação dos factos, estar aqui em causa o funcionamento da presunção prevista no artigo 623º do CPC. Trata-se, pois, voltamos a afirmá-lo, de repercutir directamente neste julgamento o caso julgado penal formado no processo respectivo.
[6] Como decorre da lógica de funcionamento do artigo 665º do CPC, concretamente no seu nº 2: “[o] mesmo ocorre nos casos em que, apesar de não se verificar uma situação de nulidade da sentença, o tribunal a quo tenha deixado de apreciar determinada questão considerada prejudicada pela solução dada a outra. Neste caso, se existirem elementos para conhecer das questões que ficaram excluídas da primitiva decisão a Relação apreciá-las-á também, sem necessidade sequer de expressa iniciativa da parte” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, 2013, p. 261).
Note-se que aqui, tendo essa substituição sido expressamente mencionada nas alegações de recurso, foi tal questão introduzida no debate da acção, preambular da subida do recurso a esta instância, afastando-se assim, por desnecessidade, o uso do mecanismo previsto no nº 3 do artigo 665º: o contraditório sobre esse tema já foi exercido.
[7] Não pretendemos afirmar aqui – e consideramos mesmo não ser esse o caso – que a anulação com base neste tipo de simulação seja condicionada pela condenação com base nesse crime. Estamos apenas a referenciar os elementos que são os descritos no tipo penal e que conferem individualidade à simulação de casamento aqui em causa.
[8] Como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/04/1993 (Loureiro da Fonseca), proferido no processo nº 0070212, disponível em:
http://www.dgsi..pt/jtrl.nsf/0/fd55d63d66591921802568030001c924,
“[…]
Casamento simulado é aquele em que há falta absoluta de consenso, em que a vontade dos cônjuges não se dirige à criação do vínculo matrimonial com os correspondentes direitos e obrigações.
[…]”.
[9] Sobre o sentido da não inserção expressa no Código Civil de um preceito atinente à fraude à lei, v. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo I, 3ª ed., Coimbra, 2005, pp. 694/697.
[10] V. Alain Bénabent, Droit de la famille, 3ª ed., Issy-les-Moulineaux, 2014, pp. 56/57:
“[…]
Posteriormente a 1997, assistimos ao aparecimento na jurisprudência de uma nova terminologia justificativa da nulidade do casamento concluído com o único propósito de produzir um efeito estranho à finalidade matrimonial: a ausência de uma verdadeira ‘intenção matrimonial’.
Pouco a pouco foram desenhando-se, através de diversas decisões de tribunais, o conteúdo desta noção e o respectivo modo de funcionamento:
- ela é distinta de uma ausência ou vício de consentimento: é deliberadamente que os interessados recorrem ao casamento e com pleno conhecimento de causa do seu carácter fictício; não é, pois, a existência de um consentimento real e não viciado o que falta, mas antes um consentimento para o casamento na sua concepção legal de conjunto. 
[…]”.
[11]

Article 180

Le mariage qui a été contracté sans le consentement libre des deux époux, ou de l'un d'eux, ne peut être attaqué que par les époux, ou par celui des deux dont le consentement n'a pas été libre, ou par le ministère public. L'exercice d'une contrainte sur les époux ou l'un d'eux, y compris par crainte révérencielle envers un ascendant, constitue un cas de nullité du mariage.

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.

Versão alterada pela Loi nº 2006-399 du 4 avril 2006.

“A nulidade por ausência total de consentimento pode ser requerida pelos esposos, os ascendentes, pelo Ministério Público e qualquer terceiro interessado, durante um prazo de 30 anos. Assimila-se a este o caso de falta de intenção conjugal [défaut d’intention conjugale]” (Alain Bénabent, Droit de la famille, cit., p. 85). Substituiu este enquadramento a legitimação do Ministério Público para a anulação do casamento celebrado em fraude à lei, no prazo de um ano, estabelecido pelo artigo 190/1 do Code Civil, disposição revogada em 2003 pela chamada “Lei Sarkozy“, “Loi n° 2003-1119 du 26 novembre 2003 relative à la maîtrise de l'immigration, au séjour des étrangers en France et à la nationalité”), v., sobre a caracterização do problema nesse enquadramento legal, a anterior obra de Alain Bénabent, Droit civil. La famille, 11ª ed., Paris, 2003, pp.78/79).
[12] Esta redacção, como veremos adiante, foi introduzida pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro. A redacção original do Código Civil aprovado pelo Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro, de 1966, dispunha o seguinte:

Artigo 1640º
Anulação fundada em falta de vontade
1 – A anulação por simulação pode ser requerida pelas pessoas prejudicadas com o casamento, mas não pelos cônjuges.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
Note-se que a anulabilidade do casamento por simulação passou a estar prevista no Código de 1967 na alínea d) do artigo 1635º, disposição que se mantém nos exactos termos da formulação original.
[13] Interessa a este respeito o seguinte trecho da Sentença aqui situado a fls. 402/403:
“[…]

[O] Código Civil, quando pretende dotar o Ministério Público de legitimidade para a propositura de qualquer acção tendente a aferir da invalidade de um casamento, di-lo expressamente (cfr. 1639º, 1 do CC – caso de anulação de casamento fundado em impedimento dirimente – e 1642º - anulação por falta de testemunhas, em que existe unicidade do detentor da legitimidade; exactamente o Ministério Público). Daqui se extrai que não foi, manifestamente, vontade do legislador possibilitar ao MP a faculdade de, em caso de casamento simulado, intervir impetrando a anulação do negócio.

De resto, tal circunstancialismo também afasta a possibilidade de qualquer interpretação analógica do segmento da lei “quaisquer pessoas prejudicadas com o casamento”, abrangendo em tal enumeração aberta o MP, enquanto representante do Estado – na verdade, tal trecho, constante do nº1 do artigo 1640º do CC, in fine – além de remeter obviamente para pessoas concretas eventualmente lesadas com o negócio (v.g. herdeiros de um dos “cônjuges”) configura uma forma de dizer que omite propositadamente o Ministério Público (com efeito, quando quis dotar a sobredita entidade de legitimidade, o legislador disse-o claramente); ou seja, tal significa que não se está perante uma verdadeira lacuna, integrável por analogia nos termos do n.º 1 do artigo 10º do CC, mas perante uma omissão intencional do legislador, hipótese em que já não poderá funcionar a analogia, por inexistir verdadeiro “caso omisso” – no sentido do texto, cfr. BAPTISTA MACHADO, in “Introdução ao Direito e Discurso Legitimador”.
[…]”.
[14] De facto – e este constitui o argumento interpretativo sistemático –, nas normas circundantes do artigo 1640º, concretamente nos artigos 1639º, nº 1 e 1642º, o Legislador optou por referir expressamente a atribuição de legitimidade ao Ministério Público. O argumento da Sentença é o de que não o dizendo no artigo 1640º, nº 1, pretendeu excluir dessa legitimação o Ministério Público.
[15] Sem tomar posição directa quanto à questão que aqui nos ocupa – porque ela, então em 1985, não se colocava –, referindo-se apenas às legitimações do Ministério Público expressas na legislação vigente à época, sublinhava António da Costa Neves Ribeiro:
“[…]
A razão da oficiosidade da intervenção [do Ministério Público] é de ordem pública, e explica-se […] pela necessidade de restaurar a ordem jurídica atingida pela lesão de direitos indisponíveis e interesses sociais que relevam à colectividade.
Como escreve o Prof. Pereira Coelho: «Há casos em que a lei prescreve a anulabilidade do casamento no interesse dos cônjuges e suas famílias e também no interesse público. São os casos de casamentos contraídos com impedimento dirimente: O círculo das pessoas que podem propor a acção de anulação é aqui muito amplo (dum modo geral, a lei dá legitimidade aos cônjuges e seus parentes na linha recta ou até ao 4º grau da linha colateral, herdeiros e adoptantes); por outro lado, como a anulabilidade também é estatuída no interesse público, o Ministério Público pode igualmente intentar a acção»” (O Estado nos Tribunais, Coimbra, 1985, pp. 185/186).
[…]”.
Esta mesma ideia de prevalência de um especial interesse público, nas situações de legitimação do Ministério Público para a acção de anulação de casamento, é indicada por Antunes Varela, referindo-se ao caso particular do artigo 1642º do CC:
“[…]
O reconhecimento da legitimidade do Ministério Público para requerer a anulação do acto , reforçado pelo afastamento da intervenção de qualquer outra pessoa, assinala por forma assaz expressiva a nota de que a intervenção das testemunhas (instrumentarias) na celebração do acto e na elaboração do respectivo assento é ditada por lei no interesse geral, para garantir a genuinidade e a publicidade do contrato, e não apenas no interesse particular dos nubentes.
[…]” (Pires de Lima, Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. IV, 2ª ed., Coimbra, 1992, p. 194).
[16] A citação, que fornece o título ao livro póstumo de Tony Judt (When the Facts Change. Essays 1995 – 2010, ed. Jennifer Homans, Londres, 2015) e nele é usada como epígrafe, é atribuída por Paul Samuelson a Keynes como resposta à crítica de ter mudado de posição sobre política monetária durante A Grande Depressão (http://en.wikiquote.org/wiki/John_Maynard_Keynes).
[17] É neste sentido que Ahron Barak, define interpretação jurídica como “[a] actividade intelectual respeitante à determinação da mensagem normativa que  emerge do texto legal” (Purposive Interpretation in Law, Princeton, Oxford, 2005, p. 3).
[18] Isto, tanto no texto do Código de Seabra (1867) como, após a implantação da República, com as chamadas Leis da Família, concretamente com o Decreto nº 1 de 25 de Dezembro de 1910, v. António Menezes Cordeiro, “Divórcio e Casamento na I República: Questões Fraturantes como Arma de Conquista e de Manutenção do Poder Pessoal?”, Conferência proferida na Academia das Ciências de Lisboa em 10/03/2011, pp. 91/94, o texto está disponível em:

https://www.oa.pt/upl/%7B8262df14-0c0f-4008-a485-15da3956c828%7D.pdf.
[19] Utilizámos aqui a síntese que dela faz Ana Filipa Morais Antunes, anotando o artigo 240º do CC (Comentário ao Código Civil. Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2014, p. 553).
[20] A génese do Código Civil de 1967 é relatada por António Menezes Cordeiro no Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo I, cit., pp. 126/131.
[21] António Menezes Cordeiro, Tratado…, cit. na nota anterior p. 129. A parte do Direito da Família viria a ser entregue, posteriormente à saída do Professor Pires de Lima da Comissão de Revisão, ao Professor Manuel Duarte Gomes da Silva.
Pode ver-se uma indicação exaustiva dos trabalhos preparatórios do Livro do Direito da Família do Código de 1967, em Francisco Pereira Coelho, Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, 4ª ed., Coimbra, 2008, pp. 36/37.
[22] Foi publicado inicialmente no Vol. XXI do Boletim da Faculdade de Direito e, posteriormente, em 1959, no BMJ, 89, pp. 123/197.
[23] BMJ, 89, pp. 174/175.
[24] Para recuarmos ao antecedente histórico mais remoto, no Direito Romano, observamos que não era alheia a este a discussão em torno da relevância/irrelevância da simulação no casamento. Encontramos a propósito a afirmação dessa relevância atribuída a Gaio (120?- 178? e.c.), mais tarde recolhida na Digesta (23,2, 30libro secundo ad legem Iuliam et Papiam, disponível em http://droitromain.upmf-grenoble.fr/): “Simulatae nuptiae nullius momenti sunt”.
A este respeito referem Paul Jörs, Wolfgang Kunkel: (Derecho Privado Romano, Tradução da 2ª ed alemã, Barcelona, 1937, p. 152):
“[…]
Este [o negotium simulatum], diversamente do que sucedia com o negócio jocoso, externamente aparece como um negócio pretendido com seriedade pelas partes, mas na realidade estas convencionaram, em segredo, que os efeitos que deveria produzir não se produzam, total ou parcialmente. O negócio simulado poderia visar iludir proibições ou imperativos legais ou enganar um terceiro; outras vezes, por trás do negócio simulado ocultava-se uma vontade diferente, verdadeira, das partes (negócio dissimulado). Não se pode dizer que no Direito antigo, com um critério de interpretação estritamente formal, o acordo de simulação não era tomado em consideração, e o negócio simulado produzia todos os seus efeitos; na realidade tal critério interpretativo não podia compreender a simulação. Entre este estado jurídico e o do Direito clássico não há grande diferença, pois este último não estabeleceu um princípio geral de invalidade do negócio simulado. Sem embargo de certas regras clássicas e decisões particulares terem ido ao ponto de partida da evolução do período seguinte [o período pós clássico]. Este o significado da sentença de Gaio (D. 23, 2, 30) de que o matrimónio simulado contraído com o desígnio de burlar a legislação matrimonial era nulo de pleno direito […].
[…]”.
[25] Na parte que aqui nos interessa referimo-nos ao texto “O Direito da Família no Futuro Código Civil (Primeira Parte)”, publicado no BMJ, 65 (1957), pp. 25/101 (o anteprojecto Pires de Lima, sendo anterior foi publicado posteriormente no BMJ).
[26] BMJ, 65, pp. 70/71.
[27] Pires de Lima, Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. IV, cit., pp. 190/191 (mais desenvolvidamente, v. Antunes Varela, Direito da Família, Lisboa, 1993, pp. 269/271).
[28] Curso de Direito da Família, Vol. I, cit., pp. 234/235.
[29] Estamos aqui, claramente, no domínio da definição do casamento como “estado legal de conjunto”.
[30] E, para sermos precisos na análise da questão da simulação enquanto desvalor referido ao casamento, tem sentido o apelo à prudência – diríamos nós: à prudência anulatória – que a este respeito realiza Alain Bénabent (que aqui citamos em tradução muito livre):
“[…]
À medida que as condições de residência de estrangeiros em França se tornaram mais severamente restritivas, recrudesceu a prática de utilizar o expediente de casar com um cidadão francês para tentar contornar esses obstáculos.
A luta contra esta fraude deve, todavia, ser prudente, por duas razões:
- por um lado, arrisca-se afectar o princípio da liberdade de casamento, princípio do mais alto valor, consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, e situado pelo Conseil constitucionnel entre as liberdades fundamentais.
- por outro lado, acabam por ser os casamentos mistos os únicos visados, quando representam mais de 20% dos casamentos (em 2005), casamentos que ficariam sob uma espécie de suspeita geral quanto aos motivos, com risco de xenofobia, para não dizer racismo.
[…]” (Droit de la famille, 3ª ed., cit., p. 56).
É este o sentido da Decisão do Conseil constitucionnel francês (Décision n° 93-325 DC du 13 août 1993), disponível em: http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/les-decisions/acces-par-date/decisions-depuis-1959/1993/93-325-dc/decision-n-93-325-dc-du-13-aout-1993.10495.html. Entre outros elementos, considerou-se inconstitucional a possibilidade do Ministério Público obstar à realização de casamento, “en cas d’indices de mariage de complaisance”. Disse-se nessa Decisão a tal respeito:
“[…]
Considérant que l'article 175-2 du code civil tel qu'il est inséré dans ce code par le III de l'article 31 fait obligation à l'officier d'état civil de saisir le procureur de la République lorsqu'il existe des indices sérieux laissant présumer que le mariage n'est envisagé que dans un but autre que l'union matrimoniale ; que le procureur de la République dispose d'un délai de quinze jours durant lequel il peut décider qu'il sera sursis à la célébration du mariage pour une durée pouvant aller jusqu'à trois mois, sans que sa décision soit assortie d'une voie de recours ; qu'en subordonnant la célébration du mariage à de telles conditions préalables, ces dispositions méconnaissent le principe de la liberté du mariage qui est une des composantes de la liberté individuelle ; que dès lors que celles-ci ne sont pas séparables des autres dispositions de l'article 175-2 du code civil, cet article doit être regardé dans son ensemble comme contraire à la Constitution ;
[…]”.
[31] António da Costa Neves Ribeiro, O Estado nos Tribunais, cit., p. 46.
[32] A anulação de casamento carece sempre da via judicial, como resulta do artigo 1632º do CC.
[33]A analogia, a resolução com base num princípio achado pela via da generalização de uma regra e a redução teleológica representam uma correcção do, em parte demasiado estrito, em parte demasiado amplo, teor literal da lei, conforme à ratio legis e à teleologia própria da lei; representam, por conseguinte, um «desenvolvimento do Direito imanente à lei». De vez em quando, uma tal correcção do teor literal da lei ocorre ainda de outro modo. Os casos em que o teor literal demasiado estrito é ampliado, sem que por isso se trate de uma analogia, podem denominar-se […] de casos de «extensão teleológica». A seu lado hão-de colocar-se aqueles casos em que o teor literal, em si contraditório, de uma disposição é rectificado pela jurisprudência de acordo com o seu escopo.
[…]” (Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, tradução portuguesa da 6ª ed. alemã por José Lamego, 5º ed., Lisboa, 2009, p. 564).
[34] Estamos no quadro de uma interpretação ligada ao elemento racional ou teleológico, quadro em que “[…] o intérprete se apodera de um ponto de referência que ao mesmo tempo o habilita a definir o exacto alcance da norma e a discriminar outras situações típicas com o mesmo ou com diferente recorte” (J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Coimbra, 1983, pp. 182/183; v. a definição de interpretação teleológica – em inglês purposive interpretation – em Ahron Barak, Purposive Interpretation in Law, cit., pp. 86/88).
[35] É esta a solução proposta por Pedro Branquinho Ferreira Dias, “Sobre a legitimidade do Ministério Público para requerer a anulação de casamentos por simulação: o caso particular dos chamados ‘casamentos brancos’”, Revista Julgar, on line – 2013, disponível em:
http://julgar.pt/wp-content/uploads/2014/07/Sobre-a-legitimidade-do-MP-para-requerer-a-anulacao-de-casamentos-por-simulacao.pdf.
“[…]

[S]alvo melhor opinião, propendemos para considerar que o Ministério Público possui legitimidade para intentar acções de anulação de casamentos simulados, em virtude de estar em causa o interesse público, qual seja de impedir negócios jurídicos em fraude à lei e a própria estabilidade do casamento, que, malgré tout, é ainda um valor a ter em conta nos dias de hoje.

É certo que, como já se acentuou, o legislador não lhe atribuiu explicitamente, in casu, legitimidade, mas ao consagrar no n.º 1 do citado art. 1640.º que a anulação por simulação pode ser requerida pelos próprios cônjuges ou por quaisquer pessoas prejudicadas com o casamento, afigura-se-nos que poderá defender-se, ainda que através de interpretação extensiva, a possibilidade de o Ministério Público, em face do manifesto prejuízo para o interesse público, ter legitimidade para tal.

Na verdade, julgamos que ninguém colocará em dúvida que os casamentos simulados são susceptíveis de prejudicar interesses públicos, desde logo o da coincidência entre a realidade e o registo (as ficções fora da literatura ou da sétima arte não trazem benefício às sociedades) e, depois, o da eficácia das normas de controlo dos fenómenos de imigração ilegal, que resultarão seguramente defraudadas com este género de ficções; neste último aspecto poderá dizer-se que de pouco valerá, então, a tipificação do crime previsto no art. 186.º da Lei n.º 23/2007, se a vantagem do mesmo não for suprimida. O crime não pode compensar!

Nesta conformidade, o Ministério Público terá de ter legitimidade para intervir, na qualidade de representante natural do Estado Colectividade (ou Estado Comunidade) e também de defensor da legalidade.

A defesa do ordenamento jurídico e do bem comum impõem, portanto, que o Ministério Público possa, dentro do prazo estabelecido na lei, requerer a anulação destes ‘casamentos’.

Saliente-se, por fim, que o Estatuto do Ministério Público, nomeadamente nos seus arts. 3.º e 5.º - já para não falar da Constituição da República (art. 219.º n.º 1) -, encorajam, a nosso ver, este entendimento.

[…]

Nestes termos, e para concluirmos, pese embora o art. 1640.º n.º 1 do Código Civil não atribuir expressamente legitimidade ao Ministério Público para requerer a anulação de casamentos por simulação, ao contrário do que sucede nas situações de anulação fundada em impedimento dirimente (art. 1639.º n.º 1) e na falta de testemunhas (art. 1642.º), somos de entendimento que através de uma interpretação extensiva se deverá considerar que o Ministério Público pode também requerer a anulação com aquele fundamento, enquanto representante natural do Estado Colectividade e defensor da legalidade democrática, na medida em que resulte prejuízo para o interesse público, como será o caso dos denominados ‘casamentos brancos’ que têm por fito contornar as normas sobre a entrada e permanência em território nacional e sobre a aquisição da nacionalidade portuguesa.
[…]”.
[36] A implementação deste Acórdão incumbirá à primeira instância.