Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
942/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO DE ANDRADE
Descritores: PEDIDO CÍVEL
DECISÃO
ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVA QUANTO AO ELEMENTO SUBJECTIVO DO CRIME- ÂMBITO DOS PODERES DE COGNIÇÃO DO TRIBUNAL
TAXA DE JURO APLICÁVEL
Data do Acordão: 05/04/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 377º, 403º E 409º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E 483º, 804º E 805º, N.º 2, ALÍNEA B), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - Tendo o arguido sido absolvido da acção penal, o lesado que formulou a sua pretensão indemnizatória no processo penal poderá discutir os pressupostos (fácticos e de direito) do direito invocado, na estrita medida necessária à cabal apreciação dos pressupostos da indemnização, com a restrição de que não podem ser desvirtuados os superiores interesses da acção penal, respeitando-se designadamente o princípio da proibição da reformatio in peius.
-II - Constituindo o fundamento da absolvição do crime de emissão de cheque sem provisão (cancelamento ilegítimo da ordem de pagamento) na não verificação, com base no princípio in dubio pro reo, dos elementos do dolo, verificando-se a existência de culpa negligente e os demais pressupostos da responsabilidade civil, deve proceder desde logo o pedido de indemnização, sem necessidade de reapreciar a decisão de facto relativa aos elementos do dolo.

III - A taxa de juro aplicável é a supletiva legal, dado que a obrigação assenta na responsabilidade por facto ilícito e não em obrigação comercial eventualmente constituída pela relação jurídica causal ou subjacente à emissão do cheque.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM AUDIÊNCIA, NO TRINBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

A arguida A... foi acusada, pelo digno magistrado do MºPº, da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão p. e p. pelo art. 11º, n.º1, al. a) do DL 454/94 de 28.12, na redacção dada pelo DL 316/97 de 21.11.

B... formulou nos autos pedido de indemnização civil contra a arguida, com base em responsabilidade civil conexa com a criminal, pedindo a condenação da arguida no pagamento da quantia titulada pelo cheque (€3.750,00), juros vendidos até à apresentação do pedido, no valor de €200,00 e ainda o montante de €200,00 a título de despesas suportadas com deslocações a Portalegre e ao Tribunal para resolver o assunto.

Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou improcedente quer a acusação quer o pedido de indemnização civil, absolvendo a arguida do citado crime e do pedido contra ela formulado nos autos.

De tal decisão recorre o demandante civil B..., formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1. Foi dado como provado que a arguida, para pagamento da aquisição de 3 coches, entregou um cheque de €3.700,00;
2. Que, apresentado a pagamento foi devolvido pelo motivo de “revogação por roubo”.
3. Mais se provou que o recorrente se deslocou a Portalegre para obter o seu pagamento, não o tendo conseguido, até hoje.
4. Dúvidas não pode haver que a arguida agiu, desde a primeira hora, com a clara intenção de nunca mais pagar o valor do cheque.
5. Acham-se assim preenchidos e provados todos os elementos ou requisitos que constituem o tipo legal de crime por que a arguida se encontra acusada.
6. Verificada a ilicitude da conduta deve a arguida ser condenada quer criminal quer pelo pedido cível formulado.
7. Houve assim errada interpretação e aplicação da Lei, bem como erro notório na apreciação da prova.
8. Violou a decisão recorrida o disposto no art. 11º da Lei do Cheque e os arts. 127, 374, n.º2 al. b) e c) do C. Penal e os artigos 879 e 483 do C. Civil.
9. Deve ser revogada a douta sentença condenando-se a recorrida pela prática do crime de emissão de cheque sem provisão e, ainda, no pedido cível formulado. Deve a pena a aplicar ser suspensa mediante a condição de a recorrida pagar ao recorrente o pedido civil formulado.

Não foi apresentada resposta.
Neste tribunal o Ex. mo Procurador-Geral Adajunto emitiu parecer no sentido de que, sendo o recurso exclusivamente confinado à matéria cível, carece o MºPº de interesse em contradizer.

O recurso foi admitido apenas quanto à decisão sobre o pedido cível formulado, por falta de legitimidade do autor, que não se constituiu assistente, no que toca à discussão da pena a aplicar (cfr. despacho de fls. 142).
Corridos os vistos legais e realizada a audiência, mantendo-se a validade e regularidade do processo, cumpre conhecer e decidir.
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O recorrente invoca o vício de erro notório na apreciação de prova e errada interpretação da lei, sustentando, nesta parte que a decisão contém todos os elementos necessários à procedência do pedido.
O recurso foi admitido, como acima se referiu apenas quanto à decisão sobre o pedido cível formulado.
Tal como se decidiu no Acórdão deste Tribunal da Relação de 03.03.2004, proferido no recurso 1933/03 (Comarca de Castelo Branco), entende-se que permitindo o legislador ao lesado formular em processo penal a sua pretensão indemnizatória, têm que ser retiradas daí todas as consequências lógicas, designadamente a de poder discutir os pressupostos (fácticos e de direito) do direito invocado, ainda que não tenha havido recurso da absolvição penal, apenas com a restrição de que não sejam desvirtuados os superiores interesses da acção penal, respeitando-se designadamente o princípio da proibição da reformatio in peius. Mesmo correndo o risco de para efeitos civis a decisão poder assentar em pressupostos que contrariam a absolvição penal transitada em julgado. Risco menor do que a impossibilidade de o autor, a quem é permitido formular a sua pretensão civil nos autos, não poder, afinal, discuti-la. Não prejudicando a decisão penal.
Assim, o recurso será apreciado nessa perspectiva, apreciando-se a decisão da matéria de facto (apesar da absolvição penal) na estrita medida necessária para a cabal apreciação da pretensão indemnizatória do recorrente. Sem prejuízo de, do ponto de vista penal, a decisão não poder ser alterada, dado o MºPº, titular da acção penal, não ter recorrido, atento ainda o princípio da proibição da reformatio in peius consagrado no art. 409º do CPP.
Dentro de tal metodologia, será apreciada em primeiro lugar se a decisão da matéria de facto permite decidir sobre os pressupostos da acção cível enxertada. E só no caso de tal se revelar imprescindível a tal apreciação se procederá à reapreciação da decisão de facto.
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A decisão da matéria de facto é a seguinte:
A) Factos provados:
No dia 20 de Outubro de 2002, cerca das 14h00m., no Lugar de Venda Nova, em Soure, a arguida assinou e preencheu o cheque (junto a fls. 5 dos autos) com o n.º 8000000014, no montante de €3.7506 (três mil, setecentos e cinquenta euros), com a data de 20/10/2002, sacado sobre o Banco “Totta & Açores”- agência de Portalegre, emitindo-o à ordem de … e entregou-o a Odette Brobuim di Mascio, para pagamento de dois coches de cavalo e um coche de pónei que a arguida adquiriu (ao assistente) e levou consigo nessa mesma data.
Apresentado o cheque dos autos a pagamento na “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo” — agência de Vila Nova de Anços, Soure, em 21/10/2002, foi o mesmo devolvido na compensação do Banco de Portugal, em 23 de Outubro de 2002 com a declaração de “cheque revogado por roubo”.
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Mais se encontra provado que:
O queixoso dirigiu-se à residência da arguida a fim de tentar obter o dinheiro do cheque.
Até à presente data não foi o requerente civil ressarcido do prejuízo causado.
A arguida vive em união de facto, tem quatro filhos a seu cargo (de treze, onze, seis e três anos; é feirante, assim como o seu companheiro, e ambos recebem o rendimento mínimo no valor total de €400,00; paga cerca de €15,00 mensais de renda de casa.
A arguida não tem antecedentes criminais.
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B) Factos Não provados
Não resultaram provados os seguintes factos:
- que a arguida agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que ao preencher e entregar o cheque dos autos e ao revogar, como o fez, o cheque por roubo visava tão — só emitir uma proibição junto da instituição bancária como meio de obstar ao pagamento do cheque, e prejudicava patrimonialmente o legítimo portador daquele título na medida equivalente ao montante nele oposto, como efectivamente ocorreu e sabendo ainda que agia de forma proibida e punida por lei.
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C) Motivação
A convicção do tribunal fundou-se no conjunto da prova produzida e examinada em audiência, apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal — artigo 127º do Código de Processo Penal.
Foram consideradas as declarações da arguida, a qual esclareceu sobre as suas condições pessoais e económicas; admitiu ter emitido o cheque dos autos para a compra das mercadorias supra descritas nos factos dados como assentes, tendo ainda confirmado o seu valor; mencionou ter dado falta da carteira de cheques, entre os quais o dos autos, razão pela qual deu conhecimento ao Banco da situação e revogou o mesmo.
O tribunal teve anda em conta os depoimentos sinceros e isentos das testemunhas Patrice di Mascio, Odette di Mascio e Francis di Mascio, os quais relataram o modo como os factos sucederam — emissão do cheque, a mercadoria vendida e a tentativa de obter o pagamento em falta.
Contudo, não se logrou apurar, com segurança, o motivo pelo qual a arguida procedeu ao cancelamento do cheque dos autos pois esta menciona que o fez porquanto não sabia onde estava o cheque e tinha receio que o tivesse perdido ou alguém o tivesse subtraído. Apesar de a testemunha Odette di Mascio referir que a arguida nunca tinha mencionado a razão pela qual o cheque fora cancelado nem nunca se disponibilizou a emitir um outro cheque não existem nos autos provas concretas e objectivas que nos indique uma versão contrária à alegada pela arguida
Face ao exposto, o tribunal viu-se impossibilitado, por força da análise crítica da prova produzida, de formar convicção segura — positiva ou negativa —para além dos factos dados como provados, sobre a matéria alegada na acusação pública. Existindo uma dúvida legítima, razoável, será aplicável o princípio in dubio pro reo.
Efectivamente, o princípio em causa é um principio natural, lógico, de prova, o qual significa que um non liquet deve ser sempre valorado a favor do arguido. Assim, enquanto não for demonstrada, provada, a culpa daquele não é admissível a sua condenação, caso contrário consagrar-se-ia um ónus de prova a cargo do arguido
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Resulta da matéria provada que o cheque em causa foi entregue como meio de pagamento do preço estipulado para um contrato de compra e venda celebrado entre o autor do pedido e a arguida (cfr. ainda a factura junta a fls. 27 dos autos) – relativa à venda, com entrega imediata, de veículos de tracção animal.
Sendo o cheque sacado à ordem do vendedor, autor do pedido cível, a quem foi entregue como meio de pagamento do preço estabelecido.
Por outro lado resulta ainda da matéria provada que o autor, da sua banda cumpriu efectivamente o negócio subjacente à emissão do cheque.
E que o pagamento do cheque foi recusado pelo banco em virtude de a arguida, depois de o emitir e entregar ao autor como meio de pagamento dos “coches” que dele recebera, ter ordenado ao banco sacado o cancelamento do cheque por “roubo”.
Declaração que não correspondia à verdade, tanto que a própria arguida o tinha emitido e entregue ao autor em pagamento dos coches que este lhe vendeu.
Facto claramente ilícito (além da requintada má fé que evidencia), à luz do disposto no art. 11º, n.º1, al. b) do DL 454/91 de 28.12, na redacção dada pelo DL 316/97 de 19.11, equiparando à de emissão de cheque sem provisão quem “proibir ao bando sacado o pagamento do cheque … ou por qualquer modo alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque”.
Estando ainda afastada a aplicação do n.º 3 do mesmo dispositivo legal (despenalização do cheque emitido com data posterior à da entrega), uma vez que o cheque dos autos foi emitido na data da entrega da mercadoria, contra, como correspectivo e meio de pagamento daquela.
Resultando por outro lado da matéria provada que autor do pedido sofreu o prejuízo correspondente ao valor do cheque, por se encontrar desembolsado do mesmo, tendo aberto mão da mercadoria paga com o dito cheque. Prejuízo esse causado pela ilegítima ordem de pagamento do cheque por parte da arguida.
Estão assim verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil: acto ilícito, dano e nexo causal entre o primeiro e o segundo.
A absolvição da arguida, para efeitos penais, apesar da referida matéria provada, foi determinada apenas porque não se provou (com base no princípio in dubio pro reo, tendo por base, exclusivamente, nas declarações da arguida, ainda que contrariadas pela entrega do cheque em pagamento dos carros recebidos, sem que tenha sido posta em causa a sua sanidade mental – e apesar de nada ter feito, à posterior, para reparar o alegado engano) que a arguida tivesse cancelado o cheque conscientemente, visando prejudicar o queixoso.
Ora para feito de responsabilidade civil é suficiente a mera culpa negligente (consciente ou inconsciente). Não sendo necessário o dolo, como sucede, no caso, em relação à responsabilidade penal. E para efeitos meramente civis a culpa é apreciada pelo critério do “bom pai de família”, nos termos previstos no art. 487º, n.º2 do C. Civil. Sendo de afastar liminarmente que o bonus pater famílias pudesse entregar um cheque como meio de pagamento de bens que recebeu e não tivesse a noção da falsidade da declaração de extravio desse mesmo cheque.
Não se verificando tão-pouco, no caso, qualquer das causas de exclusão da ilicitude ou da culpa relevantes para efeitos civis - previstas nos artigos 334º a 340º do C. Civil.
Aliás, civilmente, o cheque é pagável à vista, nos termos do art. 28º da Lei Uniforme Sobre Cheques.
Mostrando-se assim verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil previstos no art. 483º, 562º e 563º do C. Civil: acto ilícito culposo, dano e nexo causal.
Diga-se até que mal se compreende a dúvida – também ela sujeita ao dever de fundamentação – invocada quanto ao conhecimento e vontade, por parte da arguida, de praticar um acto ilícito, apenas com base na sua alegação de que “pensou” que o tivesse perdido ou lhe tivesse sido furtado. Quando a própria reconheceu que o preencheu e entregou para pagamento dos veículos adquiridos ao autor do pedido. E não consta que padeça ou tivesse sido acometida de qualquer doença que lhe tivesse afectado, ainda que momentaneamente, as faculdades mentais.
De qualquer forma, para a apreciação da pretensão do recorrente, como ficou evidenciado, torna-se desnecessário alterar a decisão, ou apreciar a existência do vício de erro notório na apreciação da prova, sendo suficiente a solução adoptada para satisfazer o interesse legítimo do autor do pedido com respeito dos superiores interesses da acção penal, sem necessidade da solução drástica do reenvio para efeitos civis, quando para efeitos penais se impõe o respeito pela absolvição decretada.
A solução adoptada não contraria o decidido pelo Acórdão do STJ para fixação de jurisprudência n.º. 7/99 do STJ (DR IS-A de 03.08.99): Se em processo penal for deduzido pedido de indemnização civil, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art. 377º, n.º1 do CPP, ou seja a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade civil extra-contratual.
Isto porque a indemnização, no caso, não assenta na responsabilidade contratual, mas, como acima se evidenciou, nos mesmos pressupostos da responsabilidade penal (acto ilícito) ainda que de âmbito menor, por prescindir apenas do pressuposto (dolo) bastando para a verificação da responsabilidade civil a mera culpa. Tal como sucede em caso de crime de homicídio negligente em que, ainda que não provada a culpa, deve o tribunal condenar em responsabilidade civil, se verificados os pressupostos da responsabilidade pelo risco, nos termos do art. 377º, n.º1 do CPP.
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Provados os pressupostos da indemnização pedida, importa defini-la.
O demandante tem direito ao montante do cheque, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data da apresentação do cheque a pagamento, nos termos dos artigos 805º, n.º2, al. b) e art. 804º do C. Civil.
Além do montante do cheque e juros legais, o autor reclama ainda a quantia de €200,00 a título de despesas suportadas para reaver o montante do cheque.
No entanto tais despesas não se provaram. Como não se provou o nexo de causalidade adequada entre a conduta da arguida e as ditas alegadas despesas. Pelo que nesta parte o pedido improcede.
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Termos em que se acorda em conceder parcial provimento ao recurso, condenando a arguida a pagar ao demandante cível o montante titulado pelo cheque (€3.750,00 - três mil, setecentos e cinquenta euros), acrescido de juros legais vencidos e vincendos desde a data da apresentação do cheque a pagamento até efectivo pagamento, absolvendo-a do mais que vem pedido. --------
Nos termos do art. 520º, al. a) do CPP, o autor pagará 20/415 das custas do recurso (proporção do decaimento).
A arguida, não tendo deduzido oposição, não paga custas.