Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
773/06.7TTAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: ARTICULADO SUPERVENIENTE
TRABALHADOR
ESTRANGEIRO
FALTA
AUTORIZAÇÃO
REGIME APLICÁVEL
Data do Acordão: 03/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE AVEIRO – 2ª SECÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 506º CPC; 87º E 282º DO CÓDIGO DE TRABALHO
Sumário: I – Nos termos do artº 506º do CPC, se a parte tiver conhecimento de factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito ocorridos anteriormente ao termo dos prazos dos articulados mas de que apenas tenha tido conhecimento posteriormente a tais prazos, pode alegar tais factos em articulado superveniente, devendo, neste caso, produzir–se prova da superveniência.

II – Ao cidadão estrangeiro que se encontra a trabalhar em Portugal sem a respectiva autorização, não se tratando de um caso de destacamento (artº 7º Código do Trabalho), não se aplica o regime laboral estabelecido no Código do Trabalho, excepto no que respeita a acidentes de trabalho – artº 282º do C. Trabalho.

III – Isso mesmo resulta do disposto no artº 87º do C. T., quando determina que “o trabalhador estrangeiro que esteja autorizado a exercer uma actividade profissional subordinada em território português goza dos mesmos direitos e está sujeito aos mesmos deveres do trabalhador com nacionalidade portuguesa”, ou seja, para que o trabalhador estrangeiro beneficie do regime específico do C.T., maxime o que resulta da caracterização jurídica da relação como de trabalho subordinado é necessário que esteja autorizado a exercer a sua actividade em território nacional.

IV – Em relação a cidadão estrangeiro que não esteja autorizado a exercer uma actividade profissional em Portugal não há que falar em contrato de trabalho e muito menos em despedimento ilícito e nas suas consequências: direito à indemnização por antiguidade (em substituição da reintegração do trabalhador) e aos salários intercalares.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – A... , solteira, de nacionalidade brasileira, residente na Rua ...., intentou a presente acção declarativa emergente de contrato de trabalho contra o B..., com sede em ....., pedindo:

1) A declaração de ilicitude do seu despedimento.

2) A condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 7.400,00, acrescida dos salários de tramitação e dos juros que, à taxa legal, se vencerem até integral pagamento legais a título de diferenças salariais;

c) A pagar-lhe as retribuições que normalmente auferiria até à data do trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida

b) A pagar-lhe os juros calculados à taxa legal sobre as importâncias em dívida desde a data da citação e até integral pagamento.

Alegou em síntese ter outorgado com a Ré um contrato de trabalho tendo esta procedido ao seu despedimento sem que o mesmo tivesse sido precedido de processo disciplinar encontrando-se ainda em divida créditos laborais.

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Realizada sem êxito a audiência de partes foi a ré notificada para contestar, o que fez alegando em resumo não ter outorgado qualquer contrato de trabalho com a autora, a qual prestou a sua actividade ao abrigo de um contrato de prestação de serviços devendo a acção ser julgada improcedente e a autora condenada como litigante de má fé.

Respondeu a autora concluído da forma como o havia feito na petição inicial.


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II. Foi proferido despacho saneador não se fixando base instrutória.

A ré veio apresentar articulado superveniente o qual, por despacho de fls.158, foi indeferido liminarmente.

Inconformada com esta decisão dela agravou[1] a ré alegando e concluindo:

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Respondeu a autora alegando em conclusão

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O Exmo Juiz “a quo” manteve tabelarmente o despacho impugnado.

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III – Prosseguiram os autos a sua normal tramitação com prolação da sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu julgar ilícito o despedimento da autora com condenação da ré a pagar-lhe:

a) o montante de € 3.600 (três mil e seiscentos euros), a titulo de indemnização em substituição da reintegração, acrescido de juros de mora à taxa legal, desde 3/11/2006 e até efectivo e integral pagamento.

b) os salários intercalares desde a data do despedimento até à data em que a autora abandonou o território nacional - relegando-se para liquidação posterior a fixação de tal data -, deduzido o montante das retribuições respeitantes ao período decorrido desde a data do despedimento até 30 dias antes da data da propositura da acção.

c) o montante de € 733,33 (setecentos e trinta e três euros e trinta c três cêntimos) a título ele subsídio de Natal referente ao trabalho prestado em 2005, acrescido de juros de mora à taxa legal, desde 15/12/2005 e até efectivo e integral pagamento.

d) o montante ele € 600 (seiscentos euros) a título de subsídio de Natal referente ao trabalho prestado em 2006, acrescido de juros de mora à taxa legal desde a data do despedimento (30 de Junho) e até efectivo e integral pagamento.

e) o montante de € 1.200 (mil e duzentos euros) a título de subsídio das férias vencidas em 1/1/2006 e referentes ao trabalho prestado em 2006 acrescido de juros de mora a taxa legal desde a data do despedimento (30 de Junho) e até efectivo e integral pagamento.

- o montante de € 1.200 (mil e duzentos euros) a título de proporcionais de férias e subsídio de ferias referentes ao trabalho prestado em 2006, acrescido de juros de mora à taxa legal desde a data do despedimento (30 de Junho) e até efectivo e integral pagamento.


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IV – Inconformada veio a ré apelar, alegando e concluindo:

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Em resposta alegou a autora em síntese conclusiva:

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O Exmo PGA emitiu parecer no sentido de que quer o agravo quer a apelação devem ser julgados improcedentes.

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V – Dos factos:

Da 1ª instância vem assente a seguinte matéria de facto, que se fixa:

1. A Ré dedica-se à actividade de consultoria em programação informática a qual corresponde o CAE 72220.

2. No exercício da sua actividade profissional a Ré assumiu a representação e a função de único distribuidor em Portugal e nos PALOPS da RM Sistemas, a empresa Unidata - Sistemas e Tecnologia, Lda., com sede em Cuibá, Brasil.

3. A autora era engenheira informática na indicada empresa brasileira.

4. Atendendo à experiência da autora nos produtos de software vendidos pela RM Sistemas, e que a Ré ficou como representante da RM Sistemas em Portugal, a Ré acordou com a autora que esta viesse trabalhar para a Ré em Portugal, devendo a Ré tratar de toda a documentação necessária para a legalização da autora como residente e trabalhadora em Portugal.

5. Nesse sentido a Ré manifestou Junto do Instituto de Emprego e Formação Profissional interesse na contratação da autora e pediu à mesma que viesse imediatamente para Portugal assumir as suas funções.

6. A autora veio para Portugal com um visto de férias.

7. Desde 1º de Maio de 2005 a Autora integrou-se na equipa de trabalhadores da Ré a exercer funções de analista e consultora de implementação de sistemas informáticos.

8. Tais funções consistiam em autora prestar assistência aos clientes da Ré, instalando os programas informáticos por eles adquiridos, dando-lhes formação sobre os mesmos, inserindo dados naqueles e prestando todo o apoio após venda, funções que exercia de Segunda a Sexta, das 9 às 18 horas, com interregno para almoço compreendido entre as 12,30 e as 14 horas.

9. A autora trabalhava com os meios fornecidos pela Ré e pelo salário mensal de € 1.200,00, a que acresciam despesas de deslocação e alimentação, tudo pago por transferência bancária.

10. A Ré raramente lhe pagou o salário por inteiro de uma só vez e atempadamente.

11. A autora sempre desempenhou a sua actividade com zelo e assiduidade, ao ponto de a gerência da Ré ter tecido elogios quanto ao seu trabalho.

12. Com vista à obtenção da documentação necessária para a legalização da autora, a Ré, decorridos dois meses do início da prestação de trabalho daquela, mais concretamente em 28 de Julho de 2005, celebrou com a mesma um contrato promessa de trabalho, destinando-se o mesmo, única e exclusivamente, a obter junto do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho a documentação necessária para apresentar no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

13. No mesmo sentido a Ré escreveu ao Cônsul de Portugal em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, pedindo a apreciação positiva do Visto de Trabalho a conceder à Autora.

14. A Ré perdeu a representação da RM Sistemas.

15 Em 30 de Junho a Ré informou autora que deixaria de trabalhar a partir daquela data porque a empresa iria deixar de laborar, pelo que desde tal data a Autora não mais trabalhou para a Ré.

16. A Ré não pagou à autora qualquer quantia a título de subsídio de férias e de Natal de 2005 e proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal de 2006.

17. A Ré não efectuou qualquer desconto para a Segurança Social.

18. C... nunca exerceu funções de gerente da Ré.

19. Em reunião havida nos escritórios da Ré, C... foi apresentado a todos os colaboradores da Ré, incluindo autora, como Director Geral.

20. A autora deslocava-se aos clientes em transporte públicos que a Ré pagava ou transportada por C..., para prestar assistência técnica, apresentando depois à Ré, um relatório da assistência prestada.

21. Sempre que não tinha que se deslocar aos clientes a autora trabalhava nas instalações da Ré cumprindo o horário de trabalho referido no artigo 13 da petição inicial.

22. A Ré nunca concedeu férias à autora nem lhe pagou quaisquer quantias a título de subsídio de férias ou de Natal.

23. A Ré nunca procedeu à retenção na fonte para o IRS de qualquer quantia que tenha sido disponibilizada à Autora .

24. Não foi efectuado qualquer desconto e pagamento de contribuições para a Segurança Social.

25. A Ré deixou de ser distribuidora em Portugal do software produzido pela RM Sistemas em Junho de 2006.

26. Sempre foi C..., intitulando-se como legal representante da Ré, quem contactou a Autora, assinou todos os documentos relativos a mesma, nomeadamente, a manifestação junto do Instituto do Emprego e Formação Profissional do interesse da Entidade Empregadora na contratação de cidadão estrangeiro, a carta enviada ao Cônsul de Portugal em Belo Horizonte, o contrato promessa de trabalho e as mensagens de correio electrónico que enviava à autora.

27. Como sempre foi ele quem deu ordens e instruções à autora e fiscalizou o seu trabalho.

28. Era C... que indicava à autora quais os clientes da Ré a quem a autora deveria dirigir-se para instalar os programas definidos pela Ré e prestar a assistência contratada entre a Ré e os seus clientes, limitando-se a Autora a preencher os relatórios de atendimento técnico para que a Ré pudesse controlar o seu desempenho e a facturação do cliente.

29. A maior parte das vezes era C... quem transportava A Autora aos clientes, sem que, outras vezes, a mandava ir de táxi ou comboio, dizendo-lhe para apresentar depois as despesas para reembolso.

30. C... era Director Geral da Ré.


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VI - Do Direito:

Conforme decorre das conclusões da alegação dos recorrentes que, como se sabe, delimitam o objecto do recurso (artºs 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), as questões que importa dilucidar e resolver são as seguintes:

ü Recurso de agravo.

Saber se o articulado superveniente apresentado pela ré deve ou não ser admitido.

ü Recurso de apelação.

Saber se a autora tem direito à indemnização por antiguidade e a receber os salários intercalares


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Do agravo:

Em 23/02/2007 a ré apresentou um articulado superveniente pedindo que “devem ser considerados assentes, por provados por documentos, os factos alegados nos artºs 1º a 5º, de que a ré apenas tomou conhecimento depois de ter apresentado a sua contestação e, a final, ser a presente acção julgada improcedente”.

Nos citados artigos dava conta a ré de que, por requerimento da A notificado à ré em 13/02/07, tomou conhecimento de que o SEF indeferiu o pedido de prorrogação da permanência da autora, notificando-a para abandonar voluntariamente o país, em 25 de Julho de 2006, no prazo de vinte dias.

Mais dava a ré conta que a autora, após ter reentrado em Portugal, em 14/12/05 requereu em 10/03/06 a prorrogação da sua permanência em território nacional alegando estar a preparar o seu casamento em Portugal, não tendo invocado perante o SEF a qualidade de trabalhadora da ré, pelo que o indeferimento da prorrogação de permanência da autora não resultou da falta de visto de trabalho, mas por motivo imputável à autora, dado que “fundamentou mal o pedido” como reconheceu nas alegações entradas no SEF em 20/04/2006.

Na sequência da apresentação do aludido articulado o Juiz “a quo” proferiu o seguinte despacho:

A autora deduziu oposição ao articulado superveniente invocando, desde logo, a sua extemporaneidade. Alega, para tanto, que a ré sempre soube do processo que corria no SEF.

Os factos que estão em causa ocorreram em 2005.

A ré alega que tomou conhecimento daqueles apenas em 13/02/07. Porém, os documentos juntos não demonstram a data em que a ré teve conhecimento de tais factos mas somente a data em que lhe foram remetidos os documentos juntos.

Com o articulado a ré deveria ter arrolado prova da tempestividade. Não o tendo feito e invocando a autora a sua extemporaneidade, indefere-se liminarmente o articulado”.

Apreciando:

Em processo de trabalho os articulados supervenientes seguem o regime processual previsto no artº 506º do CPC (artº 60º nº 2 do CPT).

Segundo este normativo se a parte tiver conhecimento de factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito ocorridos anteriormente ao termo dos prazos dos articulados mas de que apenas tenha tido conhecimento posteriormente a tais prazos, pode alegar tais factos em articulado superveniente, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência.

Ora, conforme se decidiu no despacho recorrido a ré não apresentou qualquer prova da superveniência, sendo que dos documentos juntos não resulta a data ou momento em que a ré teve conhecimento de tais factos

Por outro lado, alegando a autora que a ré tinha conhecimento quer do teor do processo que corria no SEF, quer do resultado do mesmo (indeferimento do pedido de prorrogação), comunicado pela A. à Ré, via correio electrónico e pessoalmente, no mês de Outubro de 2006 (quando foi receber o salário referente ao mês de Junho) e sabendo a ré que a autora se encontrava no Brasil (conforme decorre da acta da audiência de partes de fls. 48), era exigível á autora que apresentasse prova da superveniência.

Como não o fez, bem andou o tribunal “a quo” em indeferir liminarmente o articulado apresentado.

Acresce, por último que, conforme se irá dizer aquando da apreciação da apelação, os factos constantes do articulado superveniente não tem interesse para a decisão da questão de direito.

Consequentemente decide-se em manter integralmente o despacho recorrido.


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Da apelação:

A questão de direito tem de ser analisada na perspectiva de que a autora é uma cidadã estrangeira; e este facto altera a forma como a questão foi abordada pelas partes e pela decisão impugnada.

Com efeito, a autora, cidadã de nacionalidade brasileira, apenas estava autorizada a permanecer em Portugal com base num visto turístico, visto este que a autorizava apenas a permanecer em território nacional e não já a trabalhar neste mesmo território[2].

Não se tratando de um caso de destacamento (artº 7º do CT), ao trabalhador estrangeiro que se encontra a trabalhar em Portugal sem a respectiva autorização não se aplica o regime laboral estabelecido no Código do Trabalho, excepto no que respeita a acidentes de trabalho (artº 282º do CT) – cfr Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 3ª edição, págº 378[3]..

Isso mesmo resulta do disposto no artº 87º do CT quando determina que “o trabalhador estrangeiro que esteja autorizado a exercer uma actividade profissional subordinada em território português goza dos mesmos direitos e está sujeito aos mesmos deveres do trabalhador com nacionalidade portuguesa”, ou seja, para que o trabalhador estrangeiro beneficie do regime específico do CT “maxime” o que resulta da caracterização jurídica da relação como de trabalho subordinado é necessário que esteja autorizado a exercer a sua actividade em território nacional, o que não se passava com a autora.

E isto em nada colide com o princípio constitucional consagrado no artº15º da CRP porquanto estepressupõe que os cidadãos estrangeiros tenham legalizado a sua situação em território nacional.

Do exposto resulta que no caso em apreciação não há que falar em contrato de trabalho[4] e muito menos em despedimento ilícito e nas suas consequências: direito à indemnização por antiguidade e aos salários intercalares.

Assim, embora por fundamentos diferentes, não são devidas à autora as quantias arbitradas a título de indemnização e de salários intercalares.

A apelação procede.


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VII Termos em que se decide:

1) Julgar totalmente improcedente o recurso de agravo com integral manutenção do despacho impugnado.

2) Julgar totalmente procedente o recurso de apelação em função do que se revoga a sentença recorrida na parte impugnada indo a ré absolvida dos pedidos de condenação na quantia de € 3.600 (três mil e seiscentos euros), a titulo de indemnização em substituição da reintegração e do pagamento dos salários intercalares ou de tramitação.


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Custas do agravo a cargo da ré.

Não é devida tributação pela apelação.


[1] Recurso de agravo que foi recebido com subida deferida (“com o primeiro que depois dele haja de subir imediatamente”)
[2] Esta autorização dependia da concessão do visto de trabalho previsto no então em vigor artigo 36.º do DL 44/98 de 8/8 que disponha. “1 - O visto de trabalho destina-se a permitir ao seu titular a entrada em território português a fim de exercer temporariamente uma actividade profissional, subordinada ou não, nos termos do disposto nos números seguintes.
[3] Segundo este autor há a distinguir três situações no que concerne aos trabalhadores estrangeiros a saber. Trabalhadores destacados ao abrigo do disposto no artº 7º do CT; cidadãos não autorizados a exercer a sua actividade em Portugal e trabalhadores autorizados a exercer a sua actividade no território nacional para os quais são estabelecidas as regras dos artºs 86º a 90º do CT e, acrescentamos nós, nos artºs 157º a 159º do DL Regulamentar.
[4] Tal como a relação entre autora e ré foi juridicamente caracterizada em 1ª instância e com a qual a s partes concordaram.