Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1598/14.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
PROCESSO DISCIPLINAR
PRESUNÇÃO DE CULPA
JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
Data do Acordão: 03/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – INST. CENTRAL – 1ª SEC. DE TRABALHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 640º NCPC; 799º C. CIVIL; 126º, Nº 1, E 351º, Nº 1, ESTES DO C. TRABALHO.
Sumário: I – Sempre que o recorrente impugne a decisão sobre a matéria de facto, deve observar o ónus de impugnação previsto no artº 640º do nCPC, nomeadamente deve indicar as exatas passagens da gravação dos depoimentos testemunhais em que se baseia para discordar do decidido, sob pena de rejeição do recurso quanto à reapreciação da prova.

II – É possível aplicar a presunção da culpa prevista no artº 799º do C. Civil num contexto disciplinar.

III – Constituindo o contrato de trabalho uma relação jurídica de natureza obrigacional, sinalagmática, o incumprimento da prestação obrigacional deve reger-se pelas normas da responsabilidade civil, na falta de disposição legal específica.

IV – Uma trabalhadora que se recusa a cumprir ordens legítimas emanadas da empregadora, que não realiza as tarefas para que foi contratada e pelas quais é paga, que põe em causa a qualidade dos serviços prestados pela empregadora junto de quem utiliza esses serviços e que perturba colegas de trabalho comunicando que vão ser despedidas, revelando desrespeito e deslealdade para com a entidade patronal, assume condutas que quebram definitivamente a confiança que tem de existir no contrato de trabalho, sendo adequada e proporcional a aplicação da sanção disciplinar de despedimento.

Decisão Texto Integral:



Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

A... intentou a presente ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, manifestando, por via da apresentação do requerimento a que alude o artigo 98º - C do Código de Processo do Trabalho, a sua oposição ao despedimento promovido por B... , ambas com os demais sinais identificadores nos autos.

Realizada a audiência de partes, na mesma não foi possível obter a conciliação dos intervenientes processuais.

            Devidamente notificada para o efeito, veio a empregadora apresentar o articulado mencionado no artigo 98º - J do supra aludido código, alegando resumidamente, como consta da sentença proferida, que devido ao comportamento culposo da trabalhadora a despediu com justa causa no final do respetivo procedimento disciplinar, requerendo a exclusão da sua reintegração.

            A trabalhadora contestou, por impugnação, peticionando a declaração da ilicitude do seu despedimento e a condenação da empregadora a reintegrá-la no seu posto de trabalho, bem como a pagar-lhe todas as retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão final.

            Mais deduziu pedido reconvencional, pretendendo, por esta via, que a empregadora, nos termos legais e em virtude da ilicitude do despedimento, seja condenada a pagar-lhe: i) a quantia de € 45,99 relativa a 3 dias de férias vencidas e não gozadas no ano de 2014; ii) a quantia de € 4.500,00 a título indemnizatório por danos não patrimoniais sofridos.      

            A empregadora respondeu ao articulado, concluindo pela improcedência do peticionado.

            Atenta a simplicidade da causa, dispensou-se a realização da audiência prévia, bem como a seleção dos factos assentes e controvertidos.

            Foi admitido o pedido reconvencional.

            Proferiu-se despacho saneador tabelar.

            Após a realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo a empregadora dos pedidos contra si deduzidos.

            Fixou-se à ação o valor de € 2.000,00.

            Não se conformando com tal decisão, veio a trabalhadora interpor recurso da mesma, finalizando a sua alegação com as conclusões que se transcrevem:

«DA MATÉRIA DE FACTO

[…]

Contra-alegou a empregadora, concluindo:

[…]

            Admitido o recurso pelo tribunal de 1ª instância, os autos subiram à Relação, tendo sido dado cumprimento ao preceituado no artigo 87º, nº3 do Código de Processo do Trabalho.

            O Exmo. Procurador- Geral Adjunto emitiu o douto parecer de fls. 188 a 191, pronunciando-se pela rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto e pela sua improcedência, em matéria de direito.

            Não foi oferecida qualquer resposta.

            Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


*

            II. Objeto do Recurso

            É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635º n.º 4 e 639º n.º 1 do Código de Processo Civil aplicáveis por remissão do artigo 87º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).

            Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso são:

            - Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

            - Violação do dever de fundamentação da sentença;

            - Inexistência de justa causa de despedimento.


*

            III. Matéria de Facto

            O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte factualidade:

            […]


*

            IV. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

            Em sede de recurso, vem a apelante impugnar a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1ª instância.        

De harmonia com o normativo inserto no nº1 do artigo 662º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 87º, nº1 do Código de Processo do Trabalho, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Este dever consagrado no preceito abrange, naturalmente, situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelo recorrente.

Em tal situação, deve o recorrente observar o ónus de impugnação previsto no artigo 640º do Código de Processo Civil.

Preceitua este dispositivo legal o seguinte:

«1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.».

Vejamos, então, se a apelante cumpriu o ónus de impugnação do qual depende a admissão do recurso.

E o que se constata é que, nem nas conclusões nem nas alegações do recurso, a apelante indica com exatidão os momentos ou as passagens da gravação dos depoimentos testemunhais em que funda o seu recurso.

            Por conseguinte, não tendo o ónus de impugnação legalmente previsto sido devidamente observado pela recorrente, há que rejeitar o recurso na parte que visava a reapreciação da prova (cf. “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, de António Santos Abrantes Geraldes, 2013, págs. 128/129).

Esta Secção Social entendia, anteriormente, que nas situações em que o ónus de impugnação previsto no artigo 640º do Código de Processo Civil, não era cumprido, não deveria o recorrente beneficiar do prazo ampliado para a interposição do recurso, previsto no nº3 do artigo 80º do Código de Processo do Trabalho.

Todavia, tendo em consideração o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/10/2015, P.2394/11.3TBVCT.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, flexibilizou-se tal posição mais formal.

Refere-se especificamente no sumário do aludido acórdão:

«Contendo a alegação apresentada pelo recorrente uma impugnação séria, delimitada e minimamente consistente da decisão proferida acerca da matéria de facto, deve ter-se por processualmente adquirido, em termos definitivos, que se verificou a prorrogação do prazo para recorrer por 10 dias, independentemente do preciso juízo que ulteriormente se faça acerca do cumprimento do ónus de exata indicação das passagens da gravação – que naturalmente poderá condicionar o conhecimento de tal impugnação, sem, todavia, pôr em causa a tempestividade do recurso de apelação.»

Por conseguinte, resultando claro da alegação apresentada pela recorrente que a impugnação quanto à decisão de facto é séria e consistente, muito embora não tenha cumprido o ónus de especificar com exatidão os momentos ou as passagens da gravação dos depoimentos testemunhais em que se baseia, afigura-se-nos que a recorrente deve beneficiar do prazo ampliado para a interposição do recurso, previsto no artigo 80º, nº3 do Código de Processo do Trabalho.

Assim, nada obsta ao conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.


*

VI. Violação do dever de fundamentação

Nas alegações e conclusões de recurso, a apelante refere, por diversas vezes, que a sentença recorrida violou o dever de fundamentação consagrado no artigo 607º, nº4 do Código de Processo Civil, não indicando as normas jurídicas concretamente violadas para o preenchimento da noção de justa causa de despedimento, consagrada no artigo 351º do Código do Trabalho, aplicado à situação sub judice, bem como não explicou em que medida o trabalhador cumpriu defeituosamente o contrato ou de forma continuada, incumpriu os deveres laborais.

É consabido que, nos termos do preceituado no artigo 205º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente devem ser fundamentadas, nos termos previstos na lei.

Como corolário deste dever de fundamentação, o artigo 607º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 1º, nº2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho, concretiza o modo de exercício do aludido dever nas sentenças cíveis/laborais.

E a violação do consagrado dever de fundamentação constitui uma causa de nulidade da sentença, nos termos previstos pela alínea b) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.

Deste modo, a acusada violação do dever de fundamentação na sentença recorrida, apenas poderia ter relevância enquanto causa de nulidade da sentença.

Todavia, para que o tribunal ad quem apreciasse tal questão, mostrava-se necessário que a mesma tivesse sido apresentada com observância do formalismo legal.

Efetivamente, no processo laboral, o regime de arguição de nulidades da sentença diverge do regime geral adotado nos recursos cíveis.

No ordenamento processual-laboral existe uma norma específica que exige que a arguição de nulidades seja feita expressa e separadamente no requerimento de recurso (cf. artigo 77º, nº1 do Código de Processo do Trabalho).

Na base de tal dispositivo legal estão os princípios de economia e celeridade processuais subjacentes às leis reguladoras do processo de trabalho. Visa-se dar ao tribunal que proferiu a sentença a possibilidade de suprir as nulidades de que a mesma eventualmente enferme antes de mandar subir o recurso. Para que tal faculdade possa ser exercida, é necessário que a arguição da nulidade seja feita na parte do requerimento que é dirigido ao juiz do tribunal onde a decisão foi proferida.
Nos casos em que o recorrente não respeita o formalismo exigido pelo artigo 77º, nº1 do Código de Processo do Trabalho, a jurisprudência dos tribunais superiores, tem entendido que a arguição da nulidade se mostra intempestiva ou extemporânea, pelo que o tribunal ad quem não deve conhecer de tal nulidade. Veja-se a título de exemplo: Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20/9/2006, P.06S574; de 5/7/2007, P. 06S4283; de 10/10/2007, P. 07S048, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Este tem sido, igualmente, o entendimento adotado por este tribunal.
Apreciando agora, em concreto, o requerimento de interposição do recurso, que foi dirigido ao Juiz de Direito do Tribunal do Trabalho de Leiria, verificamos que, no mesmo, não foi suscitada qualquer nulidade da decisão recorrida.
A fundamentação relevante para a apreciação da verificação de uma causa de nulidade da sentença, apenas consta das alegações e das conclusões de recurso (e de modo implícito).
Pelo exposto, não tendo sido observado o estatuído pelo artigo 77º, nº1 do Código de Processo de Trabalho, há que considerar que a implícita questão da nulidade foi arguida intempestivamente, pelo que não se apreciará a mesma.
Sem embargo, sempre se dirá que a sentença recorrida se mostra fundamentada, em matéria de facto e de direito, nos termos legalmente exigidos.

*

VI. Justa causa de despedimento

Em sede de recurso, e no que concerne à suscitada temática relacionada com a inexistência de justa causa de despedimento, começa a apelante por argumentar que o tribunal a quo recorreu ao regime da presunção da culpa consagrado no artigo 799º do Código Civil para concluir pela existência do comportamento infrator imputado pela empregadora e que esteve na base da sanção disciplinar de despedimento aplicada.

Ora, no âmbito da apreciação da mais grave das sanções disciplinares, entende a apelante, que é desproporcionada a aplicação do aludido regime da presunção da culpa.

Apreciemos!

No âmbito do recurso, a apelante não impugna os comportamentos que lhe são atribuídos e que constam dos factos assentes.

Insurge-se sim, em relação à consideração constante da página 14 da sentença que atribuiu à recorrente uma violação culposa “por a Ré /Trabalhadora, intencionalmente, não ter cumprido os seus deveres como trabalhadora, desde logo o resultante no art.º 126.º, n.º 1 do Código do Trabalho” e, por se ter recorrido na considerada violação ao regime de presunção de culpa previsto no art.º 799.º do Código Civil.

Na sentença recorrida escreveu-se, com relevância, para a apreciação da questão:

«Analisando o quadro fáctico dado como assente, vemos que a Ré/Trabalhadora, a partir de Janeiro de 2014, mas sobretudo no período de Agosto e Setembro, se desinteressou das suas obrigações, não procedendo às tarefas de limpeza de que estava incumbida com a diligência devida, desobedecendo por isso às ordens que lhe eram dadas pelos seus superiores, o que de igual modo fez no dia 22 de Setembro 2014, não se vendo qualquer razão para considerar ilegítima a tarefa que a Entidade Empregadora lhe ordenou, por se conter no âmbito das funções que lhe incumbiam (a Trabalhadora alude a determinada CCT aplicável, referindo que tal ordem postergava os seus direitos enquanto tal, mas sem concretizar que tipo de CCT, não se vendo que ocorra qualquer violação, mormente face ao clausulado no seu contrato de trabalho); igualmente, nesse período, mais concretamente em Setembro, dirigindo-se a terceiros (pessoas que confiavam os seus filhos à Autora), reportou-se à comida fornecida às crianças e ao modo como eram tratadas de forma desprestigiante para a entidade para quem trabalha, que tem como objeto praticar tarefas de cariz social, pretendendo com tal atuação lesar interesses sérios (até patrimoniais) desta; no mesmo período, deu a entender a determinada colega que iria ser despedida e tomaria o seu lugar (sendo que a justificação que alegou para tal – que teria falado com o presidente da Direção e este lhe transmitiu a necessidade de reduzir pessoal, o que implicaria o despedimento das funcionárias com admissão mais recente, que era a Ré e a funcionária com quem esta falou – não se mostra coerente com o discurso que teve com tal funcionária), sem qualquer fundamento para tal, potenciando conflitos de forma gratuita.

Estamos, pois, perante uma violação culposa (que se presume enquanto tal, por força do disposto no art. 799º do Código Civil), por a Ré/Trabalhadora, intencionalmente, não ter cumprido os seus deveres como trabalhadora, desde logo o resultante do art. 126º, nº 1 do Código do Trabalho, que prevê um dever geral de boa-fé por parte do empregador e do trabalhador na execução do contrato de trabalho, e os deveres previstos nas als. a) (“Respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa, com urbanidade e probidade”), c) (“Realizar o trabalho com zelo e diligência”) e e) (“Cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho […], que não sejam contrários aos seus direitos ou garantias”).» (realce da nossa responsabilidade).

De harmonia com o preceituado no artigo 351º, nº1 do Código do Trabalho, o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho constitui justa causa de despedimento.

Segundo tal normativo, a existência de justa causa de despedimento exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

a) um, de natureza subjetiva, traduzido num comportamento culposo do trabalhador;

b) outro, de natureza objetiva, que se traduz na impossibilidade de subsistência da relação de trabalho;

c) e, ainda, a existência de nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade de subsistência da relação laboral.

Assim, para que se esteja perante justa causa de despedimento, torna-se necessário que haja um comportamento culposo do trabalhador e que a sua gravidade seja de tal ordem que torne impossível a subsistência da relação de trabalho.

A justa causa do despedimento pressupõe pois, uma ação ou uma omissão imputável ao trabalhador a título de culpa e violadora dos deveres a que o trabalhador, como tal, está sujeito, deveres esses emergentes do vínculo contratual, cuja observância é requerida pelo cumprimento da atividade a que se obrigou ou pela disciplina da organização em que essa atividade se insere.

Ora, a questão suscitada pela apelante sob análise incide precisamente no requisito subjetivo exigido para a justa causa de despedimento. Entende a apelante que o tribunal de 1ª instância, para considerar preenchido este requisito, não poderia ter recorrido à presunção da culpa consagrada no artigo 799º do Código Civil.

No fundo a questão sub judice resume-se em saber se é possível aplicar a presunção de culpa num contexto disciplinar.

Esta questão foi tratada no âmbito de um interessante artigo, intitulado “ O incumprimento do contrato de trabalho imputável ao trabalhador numa perspetiva não disciplinar”, disponível no link https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/70266/2/12901.pdf

Escreveu-se no mencionado artigo:

«6.3 Presunção de culpa

6.3.1 Presunção de culpa em contexto de responsabilidade disciplinar

Em segundo lugar, é preciso também ter em conta que a aplicação da presunção de culpa prevista no art. 799.º do Código Civil tem de ser interpretado igualmente com cautelas. Com efeito, a violação dos deveres laborais por parte de um trabalhador pode gerar, como já vimos, responsabilidade disciplinar. No entanto, uma infração disciplinar não pode deixar de ser um incumprimento contratual. Daí que seja pertinente questionar se existe uma presunção de culpa no âmbito de um processo disciplinar por assumir a natureza de um verdadeiro incumprimento contratual. Ou, pelo menos, se existe diferença de regimes.

De acordo com o SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA “o dever de assiduidade – consagrado no art. 121.º, n.º 1, al. b) – está relacionado com a diligência que o trabalhador coloca na realização da sua atividade, sendo certo que o enunciado preceito proíbe as faltas e os atrasos injustificados”. Ainda neste acórdão, foi defendido que “visto que a relação laboral pressupõe uma execução continuada, as faltas sucessivas integram um cumprimento defeituoso do vínculo, suscetível de gerar na entidade patronal a quebra de confiança no trabalhador e, em consequência, potenciar o seu legítimo despedimento”. Ora, na esteira desta decisão judicial, face ao incumprimento continuado do dever de assiduidade e pontualidade por parte de um trabalhador, estamos, perante um cumprimento defeituoso do contrato. Aliás, resulta deste acórdão que “as faltas, sendo injustificadas, integram um comportamento ilícito, presumindo-se a culpa do trabalhador”. Este acórdão assume uma extrema importância porque associa o regime do art. 799.º do Código Civil à infração disciplinar enquanto cumprimento defeituoso do contrato.

A questão que importaria aqui analisar, numa fase preliminar, é se a infração disciplinar pode ser considerada como um incumprimento do contrato com a necessária presunção de culpa e em que medida é que este artigo é compatível com as regras referentes ao poder disciplinar do empregador. Parece ser este o caminho sufragado pelo referido acórdão. Em sentido contrário a este entendimento, temos JÚLIO GOMES que, apesar de aceitar o carácter contratual da responsabilidade do trabalhador por violação dos deveres emergentes de contrato de trabalho, considera despropositado aplicar a presunção da culpa, nomeadamente em contexto disciplinar124. Também neste sentido temos MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO que procura associar o regime civil resultante do art. 323.º, n.º 1 ao “incumprimento dos deveres negociais das partes, com destaque para os deveres principais” especificando ainda a sua aplicação às secções II e IV do capítulo do incumprimento.

Por sua vez, LUÍSA ANDIAS GONÇALVES, debruçando-se sobre a presunção de culpa em sede de incumprimento por ausência ao trabalho, entende que ao processo disciplinar deve ser aplicado o princípio da presunção da inocência por se tratar de um processo sancionatório. Esta autora identifica como problema a compatibilização entre a presunção civil da culpa e o princípio do in dubio pro reo resultante dos preceitos penais, quedando-se no sentido de que “o automatismo direto da atribuição da culpa, no caso da inércia probatória do trabalhador, não joga bem com a relação de sujeição do trabalhador à entidade empregadora, nomeadamente com o exercício do poder disciplinar como consequência de condutas presumidamente culposas”. Também neste sentido temos PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE que entende como excessiva a aplicação da presunção de culpa prevista no art. 799.º do Código Civil ao trabalhador, devido ao facto de se encontrar num contexto de subordinação jurídica.

Assim, é importante a tónica utilizada no sentido que a presunção de culpa não pode ser aplicada em contexto disciplinar por assumir uma maior proximidade com as sanções penais. Neste contexto, MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO inova ao construir a sua posição com base numa interpretação sistemática do Código do Trabalho e colocando enfâse nas características próprias do contrato de trabalho que o torna diferenciador dos demais contratos civis.

É, pois, de difícil análise a questão da aplicação da presunção da culpa num contexto disciplinar. Relembramos que toda a infração disciplinar é necessariamente um incumprimento do contrato na medida em que o trabalhador violou um dos seus deveres laborais. Parece evidente e pacífico que o art. 32.º, n.º 10 da Constituição Portuguesa aplica-se à estrutura do processo disciplinar. O processo disciplinar deve estar imbuído de mecanismos que permitam o pleno exercício do contraditório por parte do trabalhador. Temos mais dúvidas quanto à aplicação do princípio da inocência previsto no art. 32.º, n.º 2 da Constituição. Na verdade, mesmo em sede de contraordenações laborais este princípio tem sofrido algumas restrições, nomeadamente através dos efeitos probatórios do auto de notícia. Por outro lado, ao contrário do processo penal e mesmo do processo contraordenacional, no processo disciplinar não está em causa qualquer interesse público. Os únicos interesses salvaguardados pelo processo disciplinar são os privados do empregador. Daí que a comparação do processo disciplinar ao processo penal parece ser excessiva. Aliás, mesmo a ação especial de regularidade da licitude do despedimento onde são discutidos os factos e a culpa do trabalhador despedido, assume uma tramitação muito próxima do processo civil. Para além disso, do ponto de vista sistemático, constatamos que o poder disciplinar está enquadrado no Capítulo VI do Código do Trabalho referente ao “incumprimento do contrato”. O art. 323.º, n.º 1 do Código do Trabalho está na Secção I deste Capítulo designando-se como “disposições gerais”. Parece, pois, ter sido opção do legislador integrar os efeitos gerais do incumprimento do contrato ao poder disciplinar. Para haver um afastamento do art. 799.º do Código Civil ao exercício do poder disciplinar, importava que tal aplicação colocasse em causa a proteção especial do trabalhador enquanto contraente tendencialmente débil da relação laboral.

Não nos podemos esquecer que a responsabilidade contratual implica a violação de uma obrigação a que cujo cumprimento as partes se vincularam. Como define CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, a responsabilidade contratual “é originada pela violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico; é a responsabilidade do devedor para com o credor pelo não cumprimento da obrigação”. Daí que é compreensível o iter da decisão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA acima identificada, uma vez que é difícil sustentar a não aplicação do art. 799.º do Código Civil em situações em que claramente existe uma modalidade de incumprimento do contrato de trabalho por parte do trabalhador.

Temos, assim, de separar o ónus da prova dos factos imputados ao trabalhador da inversão do ónus da prova quanto à culpa. Ora, o art. 342.º, n.º 1 do Código Civil estabelece o princípio geral que aquele que invocar um direito tem de fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. Neste contexto, o empregador que alega o incumprimento contratual do trabalhador tem de provar os factos invocados. Num contexto disciplinar torna-se complicado, contudo, compatibilizar o art. 799.º do CC com o princípio in dubio pro reo que se defende aplicar a processos sancionatórios.

No entanto, na esteira da solução do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, parece indicar PEDRO ROMANO MARTINEZ que defende que “qualquer incumprimento dos deveres emergentes do contrato de trabalho, por parte do trabalhador ou do empregador presume-se culposo”. Aliás, este autor vai ainda mais longe equiparando o artigo 128.º, alíneas a) e b) do Código do Trabalho como o fundamento legal do cumprimento defeituoso da atividade laboral. Acrescenta ainda que a realização da atividade com falta de zelo gera uma perda de confiança do empregador face ao trabalhador, daí que o cumprimento defeituoso funda-se na presunção de culpa.

Ora, como o ónus da prova da culpa em sede disciplinar não é objeto do presente estudo, não vamos tomar uma posição. Pretendeu-se, isso sim, demonstrar que a aplicação do art. 799.º do Código Civil pode ser discutida em sede de responsabilidade disciplinar ou contratual com argumentos distintos.» [A identificação das obras dos autores referidos poderá ser encontrada no artigo]

O excerto do artigo transcrito, permite-nos ter uma ideia da controvérsia existente sobre a aplicação da presunção de culpa prevista no artigo 799º do Código do Trabalho num contexto disciplinar.

Quanto a nós, salvaguardado o muito respeito que nos merecem os autores que têm propugnado pela afastamento da aludida presunção no âmbito disciplinar, afigura-se-nos que tal a presunção de culpa prevista no referido artigo 799º é aplicável para aferir o preenchimento do requisito subjetivo exigido para a existência de justa causa de despedimento.

No nosso entender, não obstante as particulares e finalidade específicas do contrato de trabalho, com um regime legal próprio, o mesmo constitui uma relação jurídica de natureza obrigacional, sinalagmática, em que cada sujeito se obriga ao cumprimento de uma prestação, com o recíproco direito de exigir a prestação da parte contrária.

Assim, o incumprimento da prestação obrigacional deve reger-se pelas normas da responsabilidade civil, na falta de disposição legal específica, nomeadamente no que concerne à presunção de culpa pelo incumprimento da prestação.

O poder disciplinar do empregador é um reflexo da existência de trabalho subordinado. E, não obstante se reconheçam, no contexto disciplinar, alguns direitos ao trabalhador que são retirados das garantias de defesa em processo criminal (direito de audição; direito de consulta do processo disciplinar; direito de defesa e apresentação de provas), por forma a controlar a supremacia do empregador e equilibrar, tanto quanto possível, o desequilíbrio natural da relação de trabalho, não podemos esquecer que o contrato de trabalho é um negócio jurídico com obrigações sinalagmáticas, pelo que, o incumprimento de deveres a que os outorgantes do contrato se obrigaram não pode ter a mesma proteção ou garantias do processo criminal.

E, parece ser essa a opção do legislador.

Veja-se por exemplo, que em matéria de resolução com justa causa do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador, motivada por falta culposa de pagamento pontual da retribuição por período inferior a 60 dias se tem considerado ser aplicável a presunção de culpa prevista no artigo 799º do Código do Trabalho, em relação ao empregador. E a resolução do contrato pelo trabalhador é, também, uma declaração extintiva da relação laboral, à semelhança do despedimento disciplinar.

Pelo exposto, consideramos, na senda do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/12/2010, P. 637/08.0TTBRG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt (referido no artigo supra mencionado) e da posição defendida por Pedro Romano Martinez (“Direito do Trabalho”, 3ª edição, pág.958), que a presunção de culpa prevista no artigo 799º do Código Civil é aplicável no contexto laboral, não sendo a mesma desproporcionada e excessiva uma vez que estamos perante uma responsabilidade civil obrigacional.

E tendo a mesma sido aplicada na sentença recorrida em termos que não nos merecem censura e que se encontram devidamente fundamentados, improcede argumentação explanada pela apelante para impugnar a verificação do requisito subjetivo da justa causa de despedimento.

Prosseguindo na apreciação da impugnação da justa causa de despedimento, verificamos que no recurso interposto, a apelante sustenta igualmente o não preenchimento do terceiro dos pressupostos para a aplicação da sanção disciplinar expulsiva – o nexo de causalidade entre o comportamento culposo infrator e a impossibilidade de subsistência da relação laboral.

Argumenta a apelante que o tribunal a quo não ponderou devidamente e globalmente os interesses em causa e desconsiderou a regra da proporcionalidade da aplicação da sanção. Mais invoca a violação do artigo 53º da Constituição da República Portuguesa.

Cumpre apreciar.

Afigura-se-nos que a apreciação do comportamento da trabalhadora/apelante exposta na sentença respeita e analisa criteriosamente os comportamentos apurados: «Analisando o quadro fáctico dado como assente, vemos que a Ré/Trabalhadora, a partir de Janeiro de 2014, mas sobretudo no período de Agosto e Setembro, se desinteressou das suas obrigações, não procedendo às tarefas de limpeza de que estava incumbida com a diligência devida, desobedecendo por isso às ordens que lhe eram dadas pelos seus superiores, o que de igual modo fez no dia 22 de Setembro 2014, não se vendo qualquer razão para considerar ilegítima a tarefa que a Entidade Empregadora lhe ordenou, por se conter no âmbito das funções que lhe incumbiam (a Trabalhadora alude a determinada CCT aplicável, referindo que tal ordem postergava os seus direitos enquanto tal, mas sem concretizar que tipo de CCT, não se vendo que ocorra qualquer violação, mormente face ao clausulado no seu contrato de trabalho); igualmente, nesse período, mais concretamente em Setembro, dirigindo-se a terceiros (pessoas que confiavam os seus filhos à Autora), reportou-se à comida fornecida às crianças e ao modo como eram tratadas de forma desprestigiante para a entidade para quem trabalha, que tem como objeto praticar tarefas de cariz social, pretendendo com tal atuação lesar interesses sérios (até patrimoniais) desta; no mesmo período, deu a entender a determinada colega que iria ser despedida e tomaria o seu lugar (sendo que a justificação que alegou para tal – que teria falado com o presidente da Direção e este lhe transmitiu a necessidade de reduzir pessoal, o que implicaria o despedimento das funcionárias com admissão mais recente, que era a Ré e a funcionária com quem esta falou – não se mostra coerente com o discurso que teve com tal funcionária), sem qualquer fundamento para tal, potenciando conflitos de forma gratuita.»

Os comportamentos assumidos pela trabalhadora violam, tal como foi apreciado, o dever geral de boa fé para com a empregadora na execução do contrato de trabalho (artigo 126º do Código do Trabalho) e os deveres de respeito, urbanidade e probidade, de zelo e diligência na realização do trabalho e de obediência às ordens e instruções do empregador [artigo 128º, alíneas a), c) e e) do Código do Trabalho]. É culposo, o comportamento infrator.

Será então este comportamento tão grave em si e pelas suas consequências que tenha tornado imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho? – artigo 351º, nº1 do Código do Trabalho.

O tribunal a quo apreciou a questão nos seguintes termos:

«Não basta, porém, como referimos, que se verifique uma das situações previstas no art. 351º, nº 2 do Código do Trabalho, mesmo que conjugada com outros comportamentos culposos para que se verifique inelutavelmente a ‘justa causa’ de despedimento, sendo necessário que o comportamento do trabalhador tenha gravidade e consequências que impossibilitem a manutenção da relação de trabalho – “A justa causa de despedimento assume (…) um carácter de infração disciplinar, de incumprimento contratual particularmente grave, de tal modo grave que determine uma perturbação relacional insuperável, isto é, insuscetível e ser sanada com recurso a medidas disciplinares não extintivas” (vide J. Leal Amado, op e loc cit).

A gravidade da conduta “deve ser apreciada em termos objetivos e concretos, de acordo com o entendimento de um bom pai de família ou de empregador normal, face ao caso concreto e segundos critérios de objetividade e de razoabilidade” (vide, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.01.1996, retirado do sítio www.cidadevirtual.pt/stj).

De facto, não se pode pretender analisar a conduta do trabalhador do ponto de vista da sua entidade empregadora; pois é claro que esta considerou a conduta como grave, tão grave que a despediu no fim do processo disciplinar - “A gravidade do comportamento [do trabalhador]”, como ensina Jorge Leite (citado por J. Leal Amado, op cit., nota de rodapé p. 370) “deve entender-se como um conceito objectivo-normativo e não subjetivo-normativo, isto é, a resposta à questão de saber se um determinado comportamento é ou não grave em si e nas suas consequências não pode obter-se através do recurso a critérios de valoração subjetiva do empregador, mas a critérios de razoabilidade (ingrediente objetivo), tendo em conta a natureza da relação de trabalho, as circunstâncias do caso e os interesses em presença”.

A lei impõe que se faça uma ponderação global de diversos fatores, de acordo com o concreto quadro fáctico sub judice, a apreciar objetivamente, segundo o critério de um bonus pater familias.

Existe, assim, justa causa de despedimento quando não é exigível ao empregador a manutenção do vínculo laboral, por constituir uma injusta imposição a este, sendo que esta inexigibilidade deve ser, como referimos, avaliada objetivamente, de acordo com o critério de um homem médio colocado na situação da entidade patronal e está intimamente ligada com a quebra de confiança resultante da atuação do trabalhador.

De facto, o princípio da confiança e da boa-fé no cumprimento dos contratos é especialmente importante nos contratos de trabalho, de longa duração e que originam uma série de vínculos pessoais, por força, desde logo, do disposto no art. 762º do Cód. Civil.

Assim, é necessário que a conduta do trabalhador seja “suscetível de destruir ou abalar essa confiança, de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da sua conduta” (vide, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.01.2001, in Prontuário de Direito do Trabalho nº 60, p. 53).

Nesta decorrência, ponderando a factualidade dada como provada, temos que ficou destruída totalmente esta relação de confiança decorrente do contrato de trabalho celebrado pelas partes, atenta a gravidade da conduta da trabalhadora – não podendo deixar de se entender como tal a conduta de uma trabalhadora que não executa, ou executa mal, as tarefas que lhe são destinadas, e que, de forma maldizente, põe em causa o bom nome da Autora, reportando-se a assuntos relativos ao tratamento que esta dá às crianças que são confiadas pelos pais ao seu cuidado, matérias de cariz sempre delicado, sem qualquer razão, nem sequer aparente, para o fazer.

Neste quadro, não se vê como é que o empregador da Trabalhadora pode continuar a ter alguma confiança num seu trabalhador subordinado que, tendo a referida categoria profissional, age desta forma.

Num juízo de probabilidade sobre a viabilidade do vínculo laboral, como aquele que o tribunal tem de fazer a final (vide BERNARDO XAVIER, «Justa causa de despedimento: conceito e ónus da prova» in Revista de Direito e de Estudos Sociais XXX, 1, p. 65), considera-se que a relação entre empregador e trabalhador, claramente, posta em crise pelo comportamento do trabalhador, foi suficientemente afetada para que deixe de ser exigível a sua manutenção ao seu empregador, pelo que se considera que o interesse do empregador em lhe pôr termo é, claramente, superior ao interesse do seu trabalhador na manutenção do contrato de trabalho.

Vigora nesta matéria vigora o princípio da proporcionalidade, por força do preceituado no artigo 367º do Código do Trabalho de 2003, o qual deve ser aplicado “de modo a que entre a sanção e o facto que a origina haja um natural equilíbrio, de molde a que aquela não se mostre desajustada com este” (vide neste sentido, Acórdão da Relação de Coimbra de 9 de Novembro de 2000, disponível em www.trc.pt), sendo que, deste ponto de vista, o despedimento, deve ser utilizado apenas em última instância, como “última ratio” (vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Outubro de 1999, disponível em www.cidadevirtual.pt/stj).

A sanção aplicada à A... mostra-se proporcionada e adequada aos factos praticados pela Trabalhadora, que agiu intencional, culposamente e de forma grave, pelo que não se adequaria a aplicação de qualquer outra sanção disciplinar à Trabalhadora, antes sendo necessário e ajustado, face à quebra total da relação fiduciária existente entre si e a sua entidade empregadora, o seu despedimento.»

O critério para aferir do nexo de causalidade entre o comportamento culposo infrator e a impossibilidade de subsistência da relação laboral, mostra-se correto. Efetivamente, esta Secção Social tem entendido que a gravidade do comportamento do trabalhador não pode aferir-se em função do critério subjetivo do trabalhador, devendo atender-se a critérios de razoabilidade, considerando a natureza da relação laboral, grau de lesão dos interesses da entidade empregadora, o carácter das relações entre as partes ou entre os seus trabalhadores e os seus companheiros e demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes - nº3 do artigo. 351º do Código do Trabalho.

Por isso, a gravidade do comportamento e consequências deve ser apreciada em termos objetivos e concretos, de acordo com o entendimento de um bom pai de família ou de um empregador normal, em face do caso concreto, e segundo critérios de objetividade e razoabilidade.

Assim, existirá impossibilidade prática de subsistência da relação laboral sempre que, nas circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações pessoais e patrimoniais que ele importa, sejam de forma a ferir, de modo exagerado e violento, a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal, colocada na posição do empregador, ou seja, sempre que a continuidade do vínculo represente uma injusta imposição ao empregador (cf. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, vol. 1º, p. 461 e segs; Menezes Cordeiro, Manual do Direito do Trabalho,p.822; Lobo Xavier, Curso do Direito do Trabalho, 1992, p.488; Jorge Leite e Coutinho de Almeida, Coletânea de Leis do Trabalho, 1985, p. 249).

Na concreta situação dos autos, temos:

- uma trabalhadora que se recusa a cumprir ordens da empregadora [ponto factual 9], sendo certo que tais ordens eram legítimas em função das funções contratadas [ponto factual 2];

- deixou de fazer o serviço de limpeza a que estava obrigada, em tempo útil e de forma correta, ficando a conversar e a descansar durante o seu horário de trabalho, levando, inclusive, a que uma colega sua tivesse que realizar as tarefas da limpeza que à trabalhadora/apelante incumbiam, [pontos factuais 10, 11];

- dirigindo-se a mães que tinham os seus filhos ao cuidado da associação empregadora, proferiu as seguintes afirmações : “Não fazes a mínima ideia da merda que os vossos filhos estão a comer”; “Tem cuidado porque na creche batem às crianças, amarram-nas à cadeira da mesa e obrigam-nas a comer” [pontos factuais 7 e 8];

- telefonou para uma trabalhadora da B... e transmitiu-lhe “estou aqui para ajudar, vais ser despedida e eu vou para o teu lugar, mas vou-te arranjar emprego nas AEC’s em Ansião”, deixando a sua colega perturbada [ponto factual 12];

- a trabalhadora/apelante tinha a consciência da existência de normas de trabalho e dos seus deveres que constantemente lhe eram transmitidos pela empregadora [ponto factual 13].

Ora, resulta deste contexto factual que a trabalhadora/apelante não só não cumpria as tarefas para as quais foi contratada e estava a ser paga, como punha em causa a qualidade dos serviços prestados pela empregadora, junto de pessoas que utilizavam tais serviços, para além de criar instabilidade na organização da empregadora, perturbando colegas e assumindo comportamentos desleais e rudes.

E, considerando a atitude deliberada e voluntária da trabalhadora de violar os seus deveres laborais e a boa-fé sobre a qual se ergue o vínculo laboral, o contexto factual em que foram praticados os comportamentos infratores e os deveres que concretamente foram violados, consideramos que a empregadora, inevitavelmente, teve de perder toda a confiança na trabalhadora.

O comportamento assumido põe necessariamente em causa a idoneidade da trabalhadora para o futuro desempenho das suas funções.

A confiança que tem de existir entre trabalhador e empregadora mostra-se irremediavelmente quebrada, pelo comportamento que a trabalhadora assumiu.

Inexiste outra sanção suscetível de sanar a crise contratual aberta pelo comportamento culposo da trabalhadora.

Em síntese, verificam-se claramente no caso sub judice, cumulativamente, os requisitos supra enunciados para a existência de justa causa de despedimento.

Pelo exposto, apenas resta afirmar que julgamos verificada a justa causa de despedimento, invocada pela empregadora, pelo que a sanção aplicada se mostra válida e legal.

Destarte, improcede, também, a argumentação explanada no recurso quanto ao carácter excessivo da sanção aplicada.

Finalmente, perante a legalidade e validade da sanção aplicada não consideramos que a sentença recorrida tenha violado o artigo 53º da Constituição da República Portuguesa.

Concluindo, a sentença recorrida não nos merece qualquer censura, pelo que há que julgar o recurso improcedente.


*

VII. Decisão

Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar o recurso de improcedente e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Notifique.

Coimbra, 16 de março de 2016


 (Paula Maria Videira do Paço - Relatora)

 (Ramalho Pinto)

 (Azevedo Mendes)