Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1442/03.5TBVNO.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
INADMISSIBILIDADE
POSSE
BOA-FÉ
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 05/19/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 394.º, N.º 1; 1251.º; 1256.º; 1287.º; 1296.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Indemonstrado o erro notório de julgamento, não resulta contrariada a convicção do julgador, formada ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova.
2. A inadmissibilidade da prova testemunhal a que alude o artigo 394.º, n.º 1 do Código Civil opera, tão-somente, em relação a clausulado contrário ou adicional de documento.
3. A boa fé, referenciada à posse, é um conceito psicológico, que consiste na ignorância de se estar a lesar direitos de outrem.
4. A prova positiva da boa fé afasta a presunção de que a posse não titulada é de má fé.
5. Nessa circunstância, o prazo para a aquisição de imóveis por usucapião é de 15 anos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


I. Relatório:

A....e mulher, B...., residentes em Vilar dos Prazeres, Ourém, intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra C...., solteiro, residente ….., alegando, em resumo, que:
A 16 de Setembro de 2003, o Réu outorgou, no Segundo Cartório Notarial de Tomar, uma escritura pública de justificação, mediante a qual declarou que, com exclusão de outrem, era dono e legítimo possuidor de um prédio que identifica, o qual foi por si adquirido por compra verbal aos Autores, em Março de 1983, sendo que, desde então, o possui de forma pública, continuada e de boa fé, na convicção de ser seu proprietário.
Todavia, tais declarações não são verdadeiras, porquanto nunca o Réu possuiu tal prédio, pertencendo este aos Autores. O prédio em causa veio à posse do Autor marido por morte de seu avô (sendo seu pai pré-falecido), ocorrida em Março de 1976, e cujos bens foram partilhados em Dezembro desse ano. Tal prédio correspondia a 3/4 de um prédio que pertencia ao de cujus, sendo que, por acordo com a sua irmã, veio o Autor a ficar com a parte do mesmo correspondente àquele que o Réu declarou ser seu.
Desde Dezembro de 1976, que eles, autores, exercem sobre o identificado prédio actos de posse, os quais são públicos, continuados e de boa-fé, na convicção de serem os seus legítimos proprietários, razão pela qual, celebraram, em 28 de Janeiro de 2002, uma escritura pública de justificação, declarando-se adquirentes do mesmo por usucapião.
É certo que os Autores celebraram com o Réu um contrato-promessa de compra e venda do referido prédio, mediante o qual prometeram vender-lho, tendo recebido deste um sinal. Porém, nunca o Réu lá exerceu quaisquer actos de posse, estando emigrado para o estrangeiro desde 1985.
O Autor marido contactou, por diversas vezes, o Réu para realizarem a escritura pública de compra e venda, tendo este sempre dito que não tinha pressa e que a mesma se realizaria quando calhasse.
Hoje, já não têm interesse em vender, pelo que pretendem devolver ao Réu, em dobro, o sinal por este entregue.
Concluíram pedindo se declarasse nula e de nenhum efeito a escritura pública de justificação notarial celebrada pelo réu em 16 de Setembro de 2003, no Segundo Cartório Notarial de Tomar, com o consequente cancelamento de todos os registos que o mesmo tenha feito ou venha a fazer em seu favor sobre o mencionado prédio.
Regularmente citado, o Réu contestou e deduziu reconvenção, afirmando, em breve síntese, o seguinte:
As declarações por si vertidas na escritura pública de justificação são verdadeiras, uma vez que possui o prédio em questão desde Março de 1983. Com efeito, desde então, à vista de toda a gente e de forma continuada, ali plantou árvores de frutos, nivelou o terreno, fez uma placa para um poço existente e fez criação de gado suíno, tudo no convencimento de ser seu legítimo proprietário. E, mais, autorizou a sua mãe e outras pessoas por si contratadas a amanhar e cultivar o prédio.
Os Autores, proprietários do prédio até Março de 1983, venderam-lho pelo preço de 900.000$00, valor este integralmente entregue. Tal venda foi negociada verbalmente entre os Autores e o pai do Réu, que agiu em nome deste, o qual prestou, desde logo, um sinal de 50.000$00.
Os Autores, na altura, comprometeram-se a legalizar o prédio, criando um artigo matricial próprio, destacado do prédio onde o mesmo estava inserido. Porém, como tal legalização demorava, acordaram em celebrar um contrato-promessa de compra e venda, o que vieram a concretizar no dia 29 de Março de 1985, sendo que o restante da quantia que faltava para o preço de 900.000$00 (ou seja, 850.000$00) foi entregue no dia 1 de Abril de 1985, emitindo os Autores o correspondente recibo de quitação.
Em 28 de Janeiro de 2002, os Autores celebraram uma escritura pública de justificação, mediante a qual se declararam donos e legítimos possuidores do prédio, aduzindo, falsamente, que o possuíam desde 1983, sendo, por isso, seus adquirentes por usucapião.
Terminou pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção, com a declaração de nulidade da escritura de justificação outorgada pelos autores em 28 de Janeiro de 2002 e o cancelamento dos registos efectuados em nome deles e, bem assim, com a declaração de ser o Réu o dono e legítimo proprietário do prédio.
Os Autores responderam à reconvenção, impugnando os factos alegados pelo réu e concluindo como na petição inicial.
No despacho saneador foram declaradas a validade e a regularidade da instância.
Os factos assentes e os que constituem a base instrutória não foram objecto de reclamação.
Realizada a audiência de discussão e julgamento e dadas as respostas aos pontos controvertidos da base instrutória, foi proferida sentença que julgou improcedente a acção e parcialmente procedente a reconvenção, mas este Tribunal da Relação ordenou a repetição parcial do julgamento, devido à falta de registo dos depoimentos de quatro testemunhas.
Recolhidos esses depoimentos e fixada a matéria de facto, foi elaborada nova sentença, que julgou a causa nos mesmos termos da anterior.
Outra vez inconformados, os autores interpuseram recurso (recebido como apelação, com efeito devolutivo) e apresentaram as suas alegações, que concluíram desta forma (transcrição “ipsis verbis”):
1) Julgou incorrectamente ao considerar o provado nas alíneas 20 e 25 da douta sentença porquanto não resultam dos depoimentos do réu, nomeadamente das testemunhas do réu factos de que resultasse com a precisão que exige o artigo 638, nº 1 do CPC a prática de actos de posse antes de 1985;
2) Mesmo a admitir-se que resultasse prova testemunhal para o provado em 20 e 25 da, a venda da parcela de terreno em 29/03/1985 está provada por documento com força probatória plena nos termos dos artigos 373 a 379 do Código Civil, pelo que, nesta parte não poderão estar admitidos os factos dados como provados na alínea 25 da douta sentença de que: “Em 1983 os autores declararam verbalmente vender o referido terreno ao réu, pelo preço de 900.000$00”, violando-se o disposto no n.º 1 do artigo 394 do Código Civil;
3) Não se dando por provada a venda em 1983 mas em 29/03/1985 o réu não adquiriu por usucapião a parcela de terreno na medida em que estamos perante uma posse sem título (artigo 1296 Código Civil), de má fé, cujo prazo para aquisição por usucapião é de 20 anos e uma vez que a escritura de justificação notarial foi outorgada em 16/09/2003, ainda não estava preenchido o referido prazo de 20 anos, concluindo-se aquele prazo só após 29/03/2005; pelo que, violou o disposto no artigo 1294 e 1296 do Código Civil;
4) O prazo de 20 anos deve considerar-se interrompido face à citação do réu operada em Novembro de 2003, pelo que, o prazo de 20 anos ainda não se completou não podendo considerar-se a aquisição da propriedade pelo réu por usucapião;
5) O animus possidendi refere-se a 3/4 indivisos de um terreno registado na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o n.º 21.189 do Livro B-48, a fls. 121 verso e inscrito na Repartição de Finanças sob o artigo matricial nº 922, ambos da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias e não à parcela objecto de usucapião a qual não é indivisa e da qual não existiu acto de divisão ou demarcação dessa indivisibilidade, pelo que, não existe harmonia quanto à descrição predial e inscrição matricial, violando-se desta forma o artigo 28 do Código de Registo Predial;
6) Ao não ter decidido em conformidade ao exposto neste recurso violou a decisão recorrida as disposições dos artigos 638 do C.P.C., dos artigos 394, nº 1, 1294 e 1296 do Código Civil e artigo 28 do Código Registo Predial, razão pela qual deve ser revogada e substituída.
O réu não contra-alegou.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, já que nada obsta ao conhecimento de mérito.
São as seguintes as questões a decidir:
a) A alteração da matéria de facto;
b) A propriedade do prédio identificado nos autos.


II. A matéria de facto dada por provada na sentença:
1) O Réu outorgou uma escritura de justificação notarial no 2.º Cartório Notarial de Tomar, a 16 de Setembro de 2003, no Livro de Notas n.º 153-I, a fls. 14, conforme publicação no jornal «Notícias de Fátima», em 10 de Outubro de 2003 (alínea A) da matéria assente);
2) Nos termos da referida escritura, o Réu declarou: «que com exclusão de outrem é dono e legítimo possuidor do seguinte prédio: Rústico, composto de terra de semeadura com oliveiras e árvores de fruto, com dois mil, cento e oitenta metros quadrados, no sítio de Vale Coelho, limite de Vilar dos Prazeres, freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias, concelho de Ourém, a confinar do norte e nascente com Amaro Faria Eugénio, sul H....e poente Rui Santos, inscrito na matriz sob o artigo 12.098 com o valor patrimonial de 49,88 € a o atribuído de cem euros» (alínea B) da matéria assente);
3) Mais tendo declarado que o referido prédio não se acha descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém, encontrando-se na matriz inscrito em nome do justificante, e tendo vindo à sua posse por compra verbal que fez a A.... e mulher B...., residentes em Vilar dos Prazeres, em Março de mil novecentos e oitenta e três, sem que dela ficassem a dispor de título suficiente e formal que lhe permita o respectivo registo (alínea C) da matéria assente);
4) Que possui o indicado prédio, em seu nome próprio, há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, posse que sempre exerceu sem interrupção e ostensivamente com o conhecimento de toda a gente da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias, lugares e freguesias vizinhas, traduzida em actos materiais de fruição, conservação de defesa, nomeadamente, usufruindo dos seus rendimentos, cultivando e colhendo os respectivos frutos, pagando os respectivos impostos e contribuições, agindo sempre pela forma correspondente ao exercício do seu direito de propriedade, sendo por isso uma posse pública, pacífica, contínua e de boa fé, pelo que adquiriu o dito prédio por usucapião (alínea D) da matéria assente);
5) Em 24 de Março de 1976, faleceu o avô do autor marido, sucedendo o autor e sua irmã em representação de seu pai pré-falecido (alínea E) da matéria assente);
6) Foi feita escritura de partilha, em 9 de Dezembro de 1976, onde se declarou que ficava atribuída ao autor marido metade indivisa do terreno correspondente aos ¾ registado na Conservatória do Registo Predial de Ourém, sob o n.º 21.189, do livro B-48, a fls. 121 v.º, e inscrito na Repartição de Finanças sob o artigo matricial n.º 922, ambos da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias (alínea F) da matéria assente);
7) E a outra metade indivisa atribuída a sua irmã Ana dos Reis (alínea G) da matéria assente);
8) Em 28 de Janeiro de 2002, os Autores realizaram escritura de usucapião correspondente ao exercício da posse sobre as parcelas de terreno, resultado da divisão e demarcação da metade indivisa da parcela de terreno de ¾ indivisos com sua irmã (alínea H) da matéria assente);
9) Tendo registado tal situação (alínea I) da matéria assente);
10) Os Autores celebraram com o Réu contrato-promessa de compra e venda de metade indivisa da parcela de terreno correspondente aos ¾ registado na CRPO, sob o n.º 21.189 do Livro B-48, a fls. 121 v.º, e inscrito na Repartição de Finanças sob o artigo matricial n.º 922, ambos da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias, com reforço de sinal (alínea J) da matéria assente);
11) O Autor recebeu a quantia de esc. 900.000$00 do Réu (alínea K) da matéria assente);
12) No contrato-promessa referido em 10), diz-se na cláusula quinta que «comprometendo-se o segundo outorgante a dar água a partir do prédio ora prometido em venda para casa de habitação dos primeiros outorgantes enquanto esta não for abastecida pela água da rede camarária» (alínea L) da matéria assente);
13) Na cláusula quarta refere-se que a escritura será feita logo que o segundo outorgante o pretenda fazer, mas depois de reunidas as condições legais para efectivação da escritura definitiva (alínea M) da matéria assente);
14) Após a partilha referida em 6), o Autor e sua irmã dividiram e demarcaram entre si a parcela de terreno correspondente aos ¾ do registado na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o n.º 21.189 do Livro B-48, a fls. 121 v.º e inscrito na Repartição de Finanças sob o artigo matricial n.º 922, ambos da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias (quesito 4.º da base instrutória);
15) O Autor marido passou amanhar a sua parcela de terreno (quesito 5.º da base instrutória);
16) Desde o momento referido em 14), o Autor marido passou cultivar a sua parcela de terreno, aí colhendo os respectivos frutos, cortando erva, guardando lenha, tratanto e cuidando das árvores nela existentes (quesito 6.º da base instrutória);
17) O que fez à vista de toda à gente, de forma contínua, sem oposição de quem quer que seja, e na convicção de que não ofendia os direitos de propriedade de outrem (quesito 7.º da base instrutória);
18) O Réu, desde 1985, que se encontra emigrado, regressando a Vilar dos Prazeres uma vez por ano e aí permanecendo durante um mês (quesito 8.º da base instrutória);
19) Os Autores não pretendem a realização da escritura a que se alude em 13) (quesito 14.º da base instrutória);
20) Desde 1983, os pais do Réu, com autorização deste, cultivaram e amanharam o prédio melhor identificado em 2), 3) e 4), de forma ininterrupta, continuada, e à vista de toda a gente (quesito 15.º da base instrutória);
21) Os pais do Réu ali plantaram várias árvores de fruto (quesito 16.º da base instrutória);
22) O Réu mandou nivelar o terreno (quesito 17.º da base instrutória);
23) O Réu mandou rebaixar um poço ali existente (quesito 18.º da base instrutória);
24) O Réu autorizou um tio seu a criar ali um porco por ano (quesito 19.º da base instrutória);
25) Em 1983, os Autores declararam verbalmente vender o referido terreno ao Réu, pelo preço de 900.000$00 (quesito 20.º da base instrutória);
26) Os pais do Réu, com a autorização deste, começaram a cultivar e a amanhar o mesmo, estando aquele convencido que era o dono e legítimo proprietário do terreno (quesito 21.º da base instrutória);
27) Aquando da celebração do contrato verbal, os Autores comprometeram-se a legalizar o terreno para que se efectuasse a venda, isto é, a criar um artigo matricial próprio para a parte vendida, uma vez que o primitivo artigo era um artigo fraccionado e não pertencia na totalidade aos Autores (quesito 23.º da base instrutória);
28) Como os Autores não mais trataram de legalizar o terreno, e como o Réu insistia pela realização da escritura, foi acordado entre ambos elaborar um contrato-promessa de compra e venda, o qual foi reduzido a escrito em Março de 1985 conforme referido em 10) (quesito 24.º da base instrutória);
29) O Réu desloca-se sazonalmente a Portugal, sendo que, na sua ausência, e após o falecimento do marido, é a sua mãe quem, por conta daquele, amanha e cultiva o dito terreno (quesito 25.º da base instrutória);
30) Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Ourém, sob o n.º 3541/20020401, o prédio rústico, sito em Vale Coelho, Vilar dos Prazeres, composto por terra de semeadura com oliveiras e um poço, com 912 m2, a confrontar do Norte com Amaro Faria Eugénio, a Sul com serventia, a Nascente com António Pereira Sapateiro e a poente com Rui Santos, inscrito na matriz com o artigo 12.112, conforme resulta da certidão junta a fls. 30 e 31;
31) O prédio supra identificado mostra-se registado a favor dos Autores;
32) Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Ourém, sob o n.º 3542/20020401, o prédio rústico, sito em Vale Coelho, Vilar dos Prazeres, composto por terra de semeadura com oliveiras e um poço, com 910 m2, a confrontar do Norte com Maria da Piedade Santos, a Sul com Adelino Matias, a Nascente com Custódia Vitorino e a poente com Armando Manuel Silva Reis, inscrito na matriz com o artigo 12.113, conforme resulta da certidão junta a fls. 32 e 33;
33) O prédio supra identificado mostra-se registado a favor dos Autores;
34) Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Ourém, sob o n.º 3941/20040423, o prédio rústico, sito em Vale Coelho, Vilar dos Prazeres, composto por terra de semeadura com oliveiras e um poço, com 2.180 m2, a confrontar do norte e nascente com Amaro Faria Eugénio, do sul com H....e do poente com Rui Santos, inscrito na matriz sob o artigo 12.098, com o valor patrimonial de 49,88 €, conforme resulta da certidão junta a fls. 97.


III. O direito:

A) A alteração da matéria de facto

Dispõe o artigo 712.º, n.º 1, do CPC (redacção anterior à introduzida pelo Decreto-lei 303/07, de 24 de Agosto) que a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos seguintes casos:
1) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida.
2) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
3) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Segundo o artigo 690.º-A, o recorrente que impugne a decisão de facto deve especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa (n.º 1); na hipótese de os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas terem sido gravados, incumbe, ainda, ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C (n.º 2).
Preceitua, por fim, este normativo que, quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, devem ser assinalados na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos.
Entendem os apelantes que a matéria de facto dos pontos 20 e 25 da sentença foi incorrectamente julgada, invocando, para tanto, depoimentos gravados, cuja localização no registo áudio indicaram, e, ainda, mas só quanto ao ponto 25, um documento constante dos autos, que, segundo eles, não poderia ser contrariado por qualquer outras provas, designadamente de ordem testemunhal. Estão em causa, portanto, as hipóteses referidas nas alíneas a), última parte, e b) do n.º 1 do artigo 712º, que se apreciarão por essa ordem.

a) A alteração com base nos depoimentos gravados:

Os pontos 20 e 25 da matéria de facto da sentença resultaram das respostas aos artigos 15.º e 20.º, respectivamente, da base instrutória.
Foram estas as perguntas e pertinentes respostas:
Quesito 15.º: “Desde Março de 1983 que o réu possui o terreno objecto da escritura de justificação, ininterrupta, pública, reiterada e continuadamente, à vista de toda a gente?”.
Resposta. “Provado apenas que, desde 1983, os pais do réu, com autorização deste, cultivaram e amanharam o prédio melhor identificado nas alíneas B), C) e D) da matéria assente, de forma ininterrupta, continuada e à vista de toda a gente”.
Quesito 20.º: “De facto em Março de 1983, os autores venderam verbalmente o referido terreno ao réu pelo preço, recebido, de esc. 900.000$00?”.
Resposta: “provado apenas que, em 1983, os autores declararam verbalmente vender o referido terreno ao réu, pelo preço de 900.000$00”.
Aparentemente, a impugnação não se dirige a toda a matéria de facto dada por provada, mas, tão-somente, à parte em que se refere o ano de 1983 (“não se aceita que se dê como provado que os actos de posse ter-se-ão iniciado em 1983”, diz-se no ponto 5.º das alegações de recurso), que, segundo os apelantes, deveria ser o ano de 1985, como emerge do ponto 15.º das mesmas alegações (“face ao depoimento prestado pelas testemunhas dos autores e conjugando com o depoimento das testemunhas do réu não poderá resultar que os actos de posse praticados pelo réu na pessoa de seus pais se terão verificado antes de 1985”).
A lógica argumentativa dos apelantes desdobra-se em duas vertentes: a primeira é a de que os depoimentos das testemunhas H....e Manuel de Oliveira Pereira, mencionados na fundamentação da decisão de facto, não apontam no sentido das respostas dadas; a segunda, a de que os factos insertos nos pontos 15 16 da sentença (consta daquele que “o autor marido passou a amanhar a sua parcela de terreno” e deste que “desde o momento referido em 14, o autor marido passou a cultivar a sua parcela de terreno, aí colhendo os respectivos frutos, cortando erva, guardando lenha, tratando e cuidando das árvores nela existentes”), porque praticados pelo réu até 1989, pelo menos, como deflui dos depoimentos das testemunhas D....e Ana dos Reis Silva Oliveira, arredam a possibilidade de o réu ter feito o que quer que fosse no prédio em 1983.
Em qualquer caso, é a prova testemunhal que se discute, pelo que há que a avaliar.
Antes, porém, convirá, para uma melhor compreensão dos dados do problema, traçar uma breve panorâmica da situação, conforme o que se extrai da matéria de facto:
O autor e sua irmã, a testemunha Ana dos Reis Silva Oliveira, em 9 de Dezembro de 1976, efectuaram escritura de partilhas relativamente a 3/4 de um prédio que receberam por via hereditária, ficando cada qual com metade indivisa do mesmo; subsequentemente, dividiram materialmente o terreno, passando o autor a cuidar de uma parcela e a sua irmã de outra; o autor terá vendido a terceiros parte da parcela que lhe foi atribuída (isto não consta dos factos provados, nem releva para a questão, mas foi referenciado por algumas testemunhas), tendo ficado com a outra parte, que é a litigada nos autos.
A discussão começa exactamente aqui; de acordo com os factos provados, esta parte sobrante foi vendida ao réu em 1983, por forma meramente verbal, que, a partir de então, passou a comportar-se em relação a ela como seu proprietário e, posteriormente, curou de a “justificar”; segundo os autores, nunca existiu uma venda verbal, mas, apenas, uma promessa de venda, em 1985, razão pela qual o réu não poderia tê-la adquirido por usucapião.
O que disseram as testemunhas inquiridas?
D....– conhece o prédio já desde o tempo do avô do autor, a quem procurou comprá-lo, mas sem sucesso; era ele que o explorava; com a morte deste, ocorrida em 1976, o prédio ficou para os netos, o autor e sua irmã, que o dividiram, segundo lhe parece; passou pelo local, por diversas vezes, no exercício da sua profissão de instrutor de condução e, nessas alturas, via o autor a amanhar a parte que lhe calhou (cultivo, corte de silvas e limpeza de árvores); isto aconteceu entre 1976 e 1989, altura em que a testemunha foi para o estrangeiro, de onde regressou em 1993; o autor disse-lhe, então, que tinha vendido, mas que se ia negar ao contrato; havia uma barraca no terreno, onde o autor guardava lenha, que, na década de 80, era utilizado para ensaios por um conjunto de que aquele fazia parte; viu lá gado, mas não sabe de quem era; não conhece o réu, mas ouviu falar dele, dizendo-se que é emigrante.
Nota: começou por dizer que havia um conjunto entre 70 e 80, mas à pergunta do ex.mo mandatário dos autores, sobre se isso foi até à década de 90, respondeu:”não, foi de 70 a 80, foi em 84 ou 85 que andava por lá o conjunto, década de 80”.
A perguntas da ex.ma advogada do réu, por seu turno, disse não saber qual era a parte do autor e qual a da irmã e que não podia afirmar se os actos praticados por aquele haviam tido lugar na parte que lhe coubera ou na parte da irmã.
E....– é parente, embora afastado, de ambas as partes e dá-se bem com elas; o terreno em questão pertencia ao avô do autor e terá sido dividido materialmente por este e pela irmã; a parte do autor tinha um barracão, onde ensaiou um conjunto durante cerca de dez anos, entre 1970 e 1980; o autor tratava do terreno, mas não se recorda já do que fazia; o depoente chegou a ter lá gado, autorizado por ele, nos princípios da década de 80, mas só durante poucos meses, devido a uma peste que matou todos os animais; nunca lá viu o réu, mas, também, não voltou ao local depois da morte do gado; ouviu dizer que, depois de o conjunto acabar, o que aconteceu em 1980, o autor havia vendido o terreno ao réu, mas que, mais tarde, se arrependera e queria negar-se ao negócio; as poucas vezes que passava por ali via o prédio minimamente limpo; pensa que eram os pais do comprador (réu) que tratavam dele, por ter sido vendido ao filho.
A perguntas do ex.mo juiz, esclareceu que a venda teria sido pouco depois de a banda acabar.
F....(mãe do réu) – não se relaciona com os autores; o autor pôs o terreno em venda e o marido da depoente perguntou-lhe o preço, com vista à sua aquisição para o filho, tendo ele dito que eram 950 contos; o marido deu-lhe logo 50 contos e mandou, de imediato, alisar o terreno; dias depois, colocou uma placa no poço e plantou árvores; isto passou-se em 1983; o autor ficou de legalizar o prédio, porque estava em nome do avô do autor, para poder efectuar a escritura de venda; mais de dois anos depois, foi celebrado contrato-promessa de compra e venda, mas o marido, que nada sabe destas coisas, até pensava que era a escritura definitiva; nessa altura, deu-lhe os restantes 900.000$00; a perguntas do ex.mo juiz, admitiu poder estar enganada e o preço total ter sido 900.000$00; aquilo foi sempre amanhado por si e seu marido, sendo a testemunha Adelino que lhe dava água para regar; a perguntas do ex.mo mandatário dos autores, disse que quando compraram já estava tudo dividido e que o autor, da parte dele, já tinha vendido um bocado a outra pessoa; manda limpar o terreno todos os anos, o que é feito com uma máquina que aluga para o efeito; ainda este ano foi limpo.
G....(irmã do autor) – receberam o prédio de seu avô (o pai falecera antes deste), efectuaram escritura de partilhas e, depois, dividiram materialmente o terreno entre ambos; “isto foi quase após a morte do meu avô, isto deve ter sido por volta de 85, que nós dividimos o terreno”; após a divisão, cada qual passou a explorar a parte que lhe coube; tanto ela como o irmão tiveram gado no barracão; o irmão amanhava, semeava batatas e outras coisas e limpava o terreno todos os anos; fazia lá hortas e tinha um poço com muita água; tinha lenha no barracão; ela viu tudo isso, porque, na altura, morava lá ao pé; desde noventa e tais, mora em Ourém; teve conhecimento que o irmão vendeu o terreno ao réu; sabe que isso foi em 1985, porque o irmão lho ofereceu, em primeiro, a ela, que recusou a compra por falta de meios; tinha vindo há poucos anos de África (1976) e não havia dinheiro; ele informou-a do preço e mostrou-lhe, até, um papel em como já tinha promessa de venda; não tem dúvidas que isto aconteceu em 1985, porque, ao tempo, andava a fazer umas modificações na casa e, tendo faltado a água, disse ao irmão que tinha sido uma pena ele vender o prédio, pois que tinha um poço com muita água, ao que ele retorquiu que se havia negado ao negócio e iria tentar reaver o terreno; a partir de 1985, o prédio esteve sempre em pousio, nunca tendo visto ninguém a trabalhar nele; a única coisa que lá fizeram foi escavar um bocado de terreno com uma máquina.
H....– o prédio em questão pega com um terreno seu e, também, com a sua casa de habitação; pertencia ao avô do autor, que o deixou a este e à irmã; eles dividiram-no e, da parcela com que ficou, o autor vendeu uma parte a um vizinho; no que sobrou, num barracão existente, chegou a haver ensaios de um conjunto musical de que o autor fazia parte; o conjunto acabou e, depois, há vinte ou vinte e tal anos, o réu comprou o terreno; após a venda, o autor nunca mais foi ao prédio; eram, então, o pai e a mãe do réu que amanhavam o terreno e tratavam de gado e um tio dele criava ali um porco, todos os anos, assim como frangos, tudo para consumo próprio; esse tio morreu em Fevereiro de 1988 (o depoente foi ao cemitério verificar a data da morte), mas criou lá animais durante 4, 5 ou 6 anos; para além disso, guardava materiais no barracão; plantavam couves, que davam para alimentar os animais, assim como plantaram, também, pelo menos, algumas laranjeiras; o depoente dava a água para o amanho; depois da compra, o terreno foi endireitado com uma máquina; de resto, o mesmo continua a ser limpo todos os anos.
I....– o prédio era do avô do autor, que o deu aos netos; a determinada altura, o pai do réu foi perguntar ao depoente, que tinha lá uma serventia, se estava interessado nele, ao que respondeu que não; então, aquele levou lá uma máquina, cortou a serventia, cultivou a fazenda e pôs lá árvores; disse ao depoente que tinha comprado; isso terá acontecido “para o lado de vinte”; não sabe precisar o ano, mas, na altura, já tinha netos, que hoje já têm “vinte e tal anos, vinte e três”; entretanto, foi para França, onde esteve dez anos; o pai do réu amanhava aquilo e tinha lá gado; o autor nunca chegou a amanhar o terreno, só para lá ia quando era garoto com uma banda; o pai e o tio do réu já faleceram há bastante tempo, mas não é capaz de o precisar; depois do pai do réu, o terreno não voltou a ser amanhado.
Nota: a perguntas do ex.mo juiz, disse que a mãe do réu continua a fazer a limpeza do terreno.

As três primeiras testemunhas foram arroladas pelos autores e as restantes pelo réu.
A prova dos factos ora em discussão baseou-se nos depoimentos de D...., que “mostrou saber que o autor marido amanhava a sua parcela de terreno, que ali colhia frutos e lá guardava lenha, até ao momento em que a vendeu ao réu, facto esse de que, depois, se veio a arrepender”, E...., que “disse ter visto o autor a limpar o terreno e a guardar nele lenha, durante um período curto de tempo, viu-o até a criar ali porcos, no início da década de 80, deixou de ver o autor a tratar daquele prédio, altura em que, segundo ouviu dizer, aquele o vendeu ao réu”, G...., que disse que “o seu irmão, em data que não se recorda, acordou em vender tal parcela ao réu, sendo que, posteriormente, se arrependeu do negócio, querendo reaver o terreno”, H...., que declarou que “um tio do réu ali criou um porco por ano, sendo que o pai do réu também ali amanhava desde essa altura, que o réu mandou proceder ao nivelamento do terreno em causa e ao rebaixamento de um poço ali existente, o que foi feito com o uso de uma máquina e que o réu ali mandou plantar árvores de fruto, as quais eram regularmente regadas pela mãe daquele”, I...., que disse que, ”após a venda do mesmo ao réu, este rebaixou um poço ali existente, nivelou-o e, através de seus pais, ali plantou árvores de fruto e ia tratando do mesmo”, e F...., que, “pese embora mãe do réu, revelou-se credível pelo modo objectivo e coerente como depôs, tendo mostrado conhecer, de forma directa, a factualidade ocorrida, designadamente, o acordo de venda efectuado em 1983, que presenciou, aquando deste acordo foi paga a importância de 50.000$00 por conta do preço convencionado de 900.000$00, tendo os autores ficado de regularizar a situação do prédio, designadamente, criando um artigo matricial próprio, todavia, porque os autores nunca mais procediam a tal regularização, foi celebrado o acordo aludido na alínea J) da matéria assente, o qual foi subscrito por si, em nome de seu filho, sendo que, depois, foi entregue ao autor a restante quantia de 850.000$00, que, desde 1983, o autor nunca mais tratou de tal terreno, tendo sido ele e o seu marido, enquanto vivo, que dele tratavam, por conta e com autorização do réu, designadamente, plantando árvores, colhendo os seus frutos e limpando o solo”.
Na perspectiva dos apelantes, dos depoimentos de H....e de I....não teria resultado que os actos de posse do réu se tivessem iniciado em 1983, ao passo que dos depoimentos de D....e de G....teria resultado que o autor possuiu o prédio até 1989 e até 1985, respectivamente, razão pela qual o réu não poderia ter praticado quaisquer actos antes de 1985, pelo menos.
Reconheça-se, antes de tudo, que a fundamentação da decisão de facto não é exemplar, sobretudo, por ser efectuada em globo e não quesito a quesito, como mandam as boas práticas processuais; para além disso, é pouco precisa e nem sempre reproduz com inteira fidelidade o que foi dito, como se pode ver em relação ao depoimento da testemunha G…, que, segundo a decisão, teria declarado que o irmão acordou em vender a parcela em data que não recorda, quando o que a mesma referiu foi que o irmão acordou em vender o terreno ao réu em 1985.
Só que estes lapsos não interferem com o essencial, que é o acerto material da decisão, inquestionável, em face da prova produzida. Senão, vejamos:
Não é verdade que do depoimento da testemunha H....resulte que o réu não tenha (por si ou por intermédio de outrem) tratado do prédio em 1983; se o seu tio, com a sua autorização, lá criou porcos e galinhas durante 4, 5 ou 6 anos antes de morrer, e faleceu em Fevereiro de 1988, então o início dos actos de posse cabe no período de entre 1982 e 1984.
Do depoimento da testemunha I....não se podem extrair conclusões quanto a datas, porque o mesmo se pautou, nessa matéria, por uma grande imprecisão; não sabe quando morreram o pai ou o tio do réu, dizendo só que foi há bastante tempo; não é capaz de precisar, sequer, quando foi para França, o que teria podido fazer luz sobre o assunto; os netos já eram nascidos aquando da venda, mas que idade tinham, concretamente, nessa altura, e que idade têm agora? Não soube precisá-lo (e, aparentemente, ninguém teve a curiosidade de esmiuçar a questão). Como quer que seja, não é possível, com base no seu depoimento, saber se a venda (a verbal, claro) foi em 1983 ou depois disso.
O depoimento da testemunha D...., que referiu ter o autor cuidado do terreno até 1989, não pode senão ser ignorado; desde logo, porque começou por falar no ensaio de uma banda nos anos de 70 a 80 para, de seguida, dizer que foi em 84 ou 85, na década de 80 (quando instado pelo ex.mo mandatário dos autores, note-se, a dizer se tal não teria ocorrido até à década de 90); depois, porque acabou por admitir que não conhecia os terrenos, mormente o que calhara ao autor, e que não podia afirmar se os actos que viu praticar haviam tido lugar, ou não, no prédio em disputa; por fim, e decisivamente, porque afirmou aquilo que nem os autores ousaram: que os actos praticados por estes se verificaram até 1989, pelo menos.
E o mesmo se diga da testemunha G…, irmã do autor, que pretende situar a “posse” do réu em 1985, apenas; é tão grande a sua fixação nesta data que não hesitou em dizer que ela e o irmão dividiram o terreno em 1985, “quase após a morte do meu avô” e que criou um porco no terreno, à sociedade com o irmão, a partir daquele ano. Mas como é que criou um porco a partir de 1985, se o contrato-promessa, a cuja celebração parece associar o início da “posse” por parte do réu, só teve lugar em Março desse ano? E como compatibilizar a asserção de que o terreno foi dividido em 1985, “quase após a morte do avô”, quando este morreu em 1976? Será que nove anos são, apenas, um “quase”?
Se o seu depoimento não é parcial, então padece de lapsos que o desacreditam por completo; em qualquer caso, o seu valor probatório é praticamente nulo.
Julga-se que a data reportada nos quesitos cujas respostas foram impugnadas, 1983, é a que melhor corresponde ao conjunto da prova produzida, de que se realçam os depoimentos das testemunhas F...., E....e H...., acima sintetizados; é verdade que a primeira, que situou a venda verbal em 1983 (e foi a única testemunha a fazê-lo com precisão) é mãe do réu; mas se atentarmos em que a segunda se referiu à venda como tendo sido feita pouco depois de ter acabado a banda que ensaiava no barracão, o que aconteceu em 1980, e que a terceira situou os actos de posse dos familiares do réu 4, 5 ou 6 anos antes de 1988, fácil é de ver que a data indicada pela primeira faz todo o sentido e que o seu depoimento merece credibilidade, como se acentuou na decisão de 1.ª instância.
Em qualquer caso, os depoimentos a que os apelantes se ativeram não logram demonstrar o erro notório de julgamento e, nessa medida, contrariar a convicção do julgador, formada ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova (artigo 655.º, n.º 1, do CPC), pelo que a decisão de facto não merece censura.
Por esta via, portanto, não poderá proceder a alteração da matéria de facto.

b) A alteração com fundamento em documento:

De acordo com o que consta das conclusões dos apelantes, «mesmo a admitir-se que resultasse prova testemunhal para o provado em 20 e 25 da, A frase não ficou completa, devido a lapso material evidente, parecendo não haver dúvidas de que ficou em falta a palavra “sentença”. a venda da parcela de terreno em 29/03/1985 está provada por documento com força probatória plena nos termos dos artigos 373.º a 379.º do Código Civil, pelo que, nesta parte, não poderão estar admitidos os factos dados como provados na alínea 25 da douta sentença de que: “em 1983 os autores declararam verbalmente vender o referido terreno ao réu pelo preço de 900.000$00”, violando-se o disposto no n.º 1 do artigo 394.º do Código Civil» (conclusão 2.ª).
O menos que se pode dizer é que os apelantes lavram em tremenda confusão, acentuada pela circunstância de nem sequer conseguirem fazer a destrinça entre contrato-promessa e contrato definitivo; alegam, com efeito, que a data da venda está provada por documento com força probatória plena, quando o documento chamado à colação é, na realidade, um contrato-promessa de compra e venda.
De toda a maneira, e para o que ora interessa, o fio do seu raciocínio é razoavelmente simples: existindo contrato-promessa de compra e venda do terreno litigado, celebrado em 29 de Março de 2985, que não foi impugnado, não pode ser dada por provada a venda verbal em 1983, com base em prova testemunhal, por ser inadmissível a prova desta natureza, nos termos do artigo 394.º, n.º 1, do Código Civil.
É evidente que interpretaram menos bem a disposição legal em apreço; o que a mesma prevê é a inadmissibilidade de prova testemunhal que tenha por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento.
Mas não é isso o que está em causa no quesito 16.º, de cuja resposta resultou a matéria de facto constante do ponto 20 da sentença. O que ali se contempla nada tem a ver com clausulado contrário ou adicional ao contrato-promessa. O que se pretende saber, muito simplesmente, é se os autores emitiram declaração verbal de venda do prédio ao réu cerca de dois anos antes da realização do contrato-promessa; e a resposta afirmativa em nada colide com os termos deste, pois que se trata de situações absolutamente distintas. Venda e promessa de venda são figuras com sentido próprio e diverso entre si.
De resto, a situação está perfeitamente explicada na matéria de facto constante dos pontos 25, 26 e 28 da sentença: o contrato-promessa só foi celebrado, porque os autores tardavam em cumprir o compromisso de legalizar o terreno, assumido aquando da venda verbal efectuada em 1983; digamos que se tratou de uma espécie de garantia para o réu, que nada tinha que comprovasse a venda.
De toda a sorte, a venda informal não é, em circunstância alguma, uma cláusula do contrato-promessa.
Por este lado, portanto, não pode, igualmente, proceder a pretendida alteração, pelo que os factos dados por provados no tribunal “a quo” têm de se considerar definitivamente assentes.

B) A questão da propriedade

Os autores peticionaram se declarasse nula a escritura de justificação celebrada pelo réu relativamente ao prédio em disputa, alegando não ser verdade que ele o possuisse há mais de vinte anos; quem o possuiu foram eles, autores, que o receberam por via hereditária em 1976.
O réu, por seu turno, asseverou a realidade das declarações prestadas e pediu, em reconvenção, a declaração de ser ele o proprietário do prédio, por o ter adquirido por usucapião.
Na sentença apelada considerou-se que o réu alegou e provou factos conducentes à aquisição do prédio por usucapião, pelo que julgou improcedente a acção e procedente a reconvenção.
A argumentação dos autores, vertida nas alegações de recurso, é a de que o réu não pode ter adquirido o prédio por usucapião, por não ter decorrido, ainda, à data da escritura de justificação (16.09.2003), o prazo de 20 anos necessário à sua verificação, dado o facto de a venda só ter ocorrido em 29.03.1985 e a posse ser de má fé, porque não titulada; por outro lado, a posse refere-se a 3/4 indivisos de um prédio “e não à parcela objecto de usucapião a qual não é indivisa e da qual não existiu acto de divisão ou demarcação dessa indivisibilidade, pelo que, não existe harmonia quanto à descrição predial e inscrição matricial, violando-se desta forma o artigo 28.º do Código do Registo Predial”.
É claro, no que concerne ao primeiro segmento da argumentação, que partem de um pressuposto errado: o de que o réu só possui o terreno desde 29.03.1985, que foi, aliás, o cerne da sua discussão em termos de matéria de facto.
Mas não é isso o que resulta da matéria de facto provada, que, no que para o caso diz respeito, foi, em síntese, a seguinte:
Em 1983, os Autores declararam vender ao Réu, por forma meramente verbal, um prédio rústico, composto de terra de semeadura com oliveiras e árvores de fruto, com dois mil, cento e oitenta metros quadrados, no sítio de Vale Coelho, limite de Vilar dos Prazeres, freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias, concelho de Ourém, a confinar do norte e nascente com Amaro Faria Eugénio, sul H....e poente Rui Santos, inscrito na matriz sob o artigo 12.098, pelo preço de 900.000$00, integralmente recebido por aqueles. Desde então, os pais do Réu, com autorização deste, cultivaram e amanharam o referido prédio e plantaram nele árvores de fruto, o que fizeram de forma ininterrupta, continuada, sem oposição de quem quer que seja e à vista de toda a gente; o réu, por outro lado, mandou nivelar o terreno e rebaixar um poço ali existente e autorizou um tio seu a criar lá um porco; e tudo isto foi levado a cabo, estando o Réu convencido que era o dono e legítimo proprietário do prédio.
A verificação da usucapião comporta dois pressupostos, como deflui do disposto no artigo 1287.º do Código Civil, diploma a que pertencerão os demais preceitos a citar sem indicação de origem: a posse e o decurso do tempo.
A posse, definida no artigo 1251.º, integra dois elementos: o “corpus” (actuação de facto correspondentes ao exercício do direito) e o “animus” (intenção de agir como beneficiário do direito).
Conquanto os apelantes não discutam propriamente a posse, mas o seu tempo de duração, convirá deixar claro que os apontados elementos resultam, com toda a clareza, dos factos assentes e acima rememorados; o “corpus” está materializado no cultivo, amanho, plantação de árvores, nivelamento do terreno, rebaixamento de um poço e cedência a terceiros e o “animus” no convencimento do apelado de agir como dono do prédio.
A verdadeira batalha dos apelantes é contra o tempo necessário à aquisição por usucapião, que, no seu entender, não teria decorrido quando o apelado foi citado para a acção, como antes se esclareceu.
Mas é evidente que laboram em equívoco, porque a posse se iniciou em 1983, quando o apelado passou a cuidar do terreno (por si ou por intermédio de outrem), e não em 1985, quando foi celebrado o contrato-promessa. A realização deste, destinada a dar alguma garantia ao apelado contra a inércia dos apelantes, que não legalizaram o terreno, condição “sine qua non” para poder ser levada a efeito a escritura pública de compra e venda, é rigorosamente inócua, pois que não interrompeu, não suprimiu e nem sequer modificou a posse daquele, que continuou em relação ao prédio como se seu dono fosse.
Suposto que o prazo necessário à verificação da usucapião fosse de 20 anos, nos termos do artigo 1296.º, como pretendem os apelantes, a verdade é que, aquando da citação para a acção, o mesmo já tinha decorrido por inteiro.
No rigor dos princípios, a posse até poderia ser temporalmente superior; bastaria, para tanto, que o réu juntasse à sua a posse dos autores, nos termos do artigo 1256.º.
Não interessa, no entanto, especular, porque, na realidade, nem o aludido prazo de 20 anos é necessário.
Tal prazo só é exigível quando a posse é de má fé, o que não é, manifestamente, o caso dos autos. O conceito de boa é de natureza psicológica, e não ética ou moral, consistindo na simples ignorância de se estar a lesar os direitos de outrem (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume III, comentário ao artigo 1260; cfr., também, Oliveira Ascensão, Direitos Reais, páginas 279/280).
Continuando a acompanhar os mestres citados em primeiro lugar, a ignorância de que se lesa o direito de outrem resulta, na generalidade dos casos, da convicção (positiva) de que se está a exercer um direito próprio, adquirido por título válido, por se desconhecerem, precisamente, os vícios da aquisição; mas a lei não exige que assim seja, devendo considerar-se de boa fé a posse que resulta de negócios não titulados, como a venda efectuada de maneira informal (obra e local citados). Ponto, obviamente, é que exista a convicção de se não lesarem direitos alheios.
Ora, a matéria de facto inserta no ponto 17 da sentença retrata, sem margem para dúvidas, a posse de boa fé, o que quer dizer que é de, apenas, quinze anos, o prazo necessário à verificação da usucapião.
A presunção (juris tantum) de que a posse não titulada se presume de má fé fica completamente arredada pela prova (positiva) de que o apelado actuou no convencimento de não prejudicar quem quer que seja.
Assim, ainda que a posse do réu só se tivesse iniciado em 29 de Março de 1985, como sustentam os apelantes, a aquisição por usucapião teria ocorrido em 2002, antes, portanto, da própria propositura da acção.
Por aqui não poderá proceder a pretensão dos autores.
E pelo argumento da falta de harmonia quanto à descrição predial e inscrição matricial?
É notória, mais uma vez, a confusão dos apelantes. O artigo 28.º do Código do Registo Predial, que chamam em seu socorro, tem implicações meramente registrais; proíbe actos de registo que entrem em contradição com a inscrição matricial.
Nada tem a ver com a aquisição da propriedade e muito menos com o funcionamento da usucapião, cujos efeitos, aliás, até conseguem tornear proibições legais (é o que se passa, por exemplo, com a divisão de prédios de área inferior à unidade de cultura).
A usucapião, como forma originária de adquirir, que é, opera por si, sem sujeição a condicionantes de qualquer natureza, mormente de ordem registral.
Não é verdade, de resto, que a posse do apelado se referisse a 3/4 de um prédio, como asseveram os apelantes nas suas alegações. A posse, como bem se vê dos factos provados, foi exercida sobre um trato de terreno bem definido e demarcado pelos próprios vendedores.
Diga-se, aliás, que este segmento da alegação se afigura como algo abusivo, quando os apelantes outorgaram, também, escritura de justificação, em que declararam ter adquirido o prédio por usucapião (n.º 8 dos factos provados). Será que o óbice que agora levantam não existiu em relação a eles?
Em síntese, a sua alegação não colhe, pelo que a sentença não pode deixar de ser confirmada.


IV. Resumindo:

1) Indemonstrado o erro notório de julgamento, não resulta contrariada a convicção do julgador, formada ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova.
2) A inadmissibilidade da prova testemunhal a que alude o artigo 394.º, n.º 1 do CC opera, tão-somente, em relação a clausulado contrário ou adicional de documento.
3) A boa fé, referenciada à posse, é um conceito psicológico, que consiste na ignorância de se estar a lesar direitos de outrem.
4) A prova positiva da boa fé afasta a presunção de que a posse não titulada é de má fé.
5) Nessa circunstância, o prazo para a aquisição de imóveis por usucapião é de 15 anos.


V. Decisão:

Presente tudo quanto se expôs, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.