Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1675/18.0T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
CONSUMIDOR
INCÊNDIO
DEFEITOS
RESOLUÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 06/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JL CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 289, 432, 433, 434, 496, 801, 808, 914 CC, LEI Nº 24/96 DE 31/7, DL Nº 67/2003 DE 8/4, DL Nº 24/2014 DE 14/2
Sumário: I - Do ter-se apurado que, em consequência de incêndio e imediatamente perante o mesmo, a autora ficou abalada e teve medo, não pode, sem mais prova, dar-se como provado que esta, posteriormente, e por causa daquele sinistro, perdeu o apetite e passou a dormir mal.

II - A qualidade de consumidor, para efeitos de aplicação da legislação pertinente – vg. DL 67/2003, de 8.04 –, apenas é excluída se o adquirente do bem o destinar à revenda, ou o usar exclusivamente numa actividade comercial/industrial para obtenção de lucro; factos a provar pelo demandado.

III - O regime jurídico fixado pelo aludido DL assume-se, por reporte ao regime geral do CC, mais favorável para o consumidor, o que decorre, essencialmente: de o produtor/vendedor/empreiteiro responder ex vi da desconformidade do bem/obra - presumida em função dos factos índice estabelecidos no nº2 do artº 2º -, mesmo que tenha agido sem culpa; e de, para se eximir de tal responsabilidade, ter de provar que atuou diligentemente e sem culpa.

IV –A indemnização por danos patrimoniais, assume natureza mista visando compensar o lesado, e punir, civilisticamente, o lesante; pelo que provando-se que a autora, confrontada com um incêndio na viatura que conduzia, que a consumiu totalmente, e que comprara à ré, « temeu pela vida e pela vida do seu companheiro» e que «Durante algum tempo (semanas ou meses) sentiu-se nervosa e angustiada.», à mesma assiste jus aquela compensação.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO  TRIBUNAL DA  RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

E (…), instaurou contra “A (…), Lda, acção declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediu:

 Seja a Ré condenada a pagar-lhe a quantia global de € 7.500,00, sendo € 5.500,00 de danos patrimoniais e € 2.000,00 de danos não patrimoniais.

Alegou:

No dia 10 de Abril de 2018 comprou à Ré um veículo automóvel da marca “Citroen”, modelo “Xsara Picasso”, de cor cinzenta, com a matrícula (...) XZ pelo preço de € 5.000,00 e que o mesmo, desde logo, apresentou problemas, tendo ido a reparar pelo menos três vezes ao agente indicado pela sociedade Ré, tendo despendido com essas reparações cerca de € 500,00.

No dia 25 de Junho de 2018, quando Autora e o companheiro se encontravam dentro da viatura na Curva do Lena, na Estrada Nacional 343, Aldeia Nova do Cabo, e sem que nada o fizesse esperar, o veículo incendiou-se e foi totalmente consumido pelas chamas, tendo sido necessária a presença dos bombeiros no local para extinguir o incêndio.

Sentiu pânico ao ver o veículo a arder e temeu pela sua vida, pela vida do seu companheiro e pela vida do cavalo que transportava e que durante muito tempo sentiu-se nervosa e angustiada, dormia mal e não tinha apetite.

A Ré contestou.

Alegou:

A própria Autora admite que desconhecia a existência de qualquer problema com o automóvel e nem sequer alega que a sociedade Ré sabia da existência de qualquer problema ou que foi esta que causou o alegado sinistro da viatura.

A Autora desconhece por completo a causa do incêndio e autora não alegou a existência de qualquer defeito de que o veículo fosse portador.

O veículo não apresentava qualquer defeito aquando da sua venda e o incêndio não foi causado por qualquer peça protegida por qualquer garantia legal.

 As partes convencionaram que o veículo era vendido por € 5.000,00 desde que a Autora prescindisse de toda e qualquer garantia.

 A aposição de atrelado no veículo constitui uma má utilização do mesmo podendo ser essa a origem do incêndio.

Pediu:

A improcedência da acção.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual oi decidido:

«Nestes termos, tudo visto e ponderado, julgo a acção totalmente improcedente por não provada e, em consequência:

1. Absolvo a sociedade Ré “A (…) Lda.” do pedido formulado pela Autora E (…).»

3.

Inconformada recorreu a autora.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª -  Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

2ª - Procedência da acção.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente; mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

Nesta conformidade,  constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

Finalmente, urge atentar que a lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.

Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da, convicção, mais ou menos subjectiva, do recorrente,  sobre a prova.

Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve ele efetivar uma análise concreta, discriminada, objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

 A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório  com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito probatório permitida e que lhe é concedida.

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.– cfr. neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 17.05.2016, p. 339/13.1TBSRT.C1; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos  in dgsi.pt;

5.1.2.

O caso vertente.

Pretende a recorrente que se dêem como provados os seguintes factos dados como não provados:

b)- Durante muito tempo após o incêndio do veículo identificado em 1., a Autora dormia mal.

c)-E perdeu o apetite.

A julgadora fundamentou a decisão nos seguintes termos:

«Relativamente a estes factos, o tribunal deu-os como não provados por ausência de prova sobre os mesmos. De facto, a Autora apenas declarou que o cheiro a fumo a atormenta mas nada mais do que isso.»

Já a recorrente pretende a sua prova porque a autora relatou que o incêndio constituiu para ela uma uma «experiência devastadora, que poderia ter tido consequências avassaladoras, tendo ela sentido medo»  e que, assim, «É normal que a Autora tenha perdido o apetite e tenha dormido mal».

Perscrutemos.

Ouvidas as declarações da autora  verifica-se que ela não verbalizou que, após o sinistro, e por causa dele, perdeu o apetite e dormiu mal.

E outra prova não feita nesse sentido.

Aliás, se tais problemas tivessem atingido um patamar de gravidade – os quais apenas neste estádio, merecem a tutela do direito – a autora certamente, ou em termos de normalidade, teria recorrido a auxílio médico; pelo que, outrossim por esta via, tal prova poderia ser consecutida.

Ademais, a verbalização de que, com o incêndio, teve medo, constituindo ele uma experiência devastadora, não pode, só por si, levar à conclusão de que os factos ora pretendidos provar se verificaram.

Inexiste entre tais factos e realidades qualquer  comum identidade/idiossincrasia e/ou intrínseca ligação, que  acarretem um nexo lógico o qual imponha ou do qual se deva retirar uma necessária e inelutável relação de causa/efeito, de tal sorte que a prova daqueles factos acarrete a prova destes.

Tais factos são realidades diversas que não se confundem, e, necessáriamente, se condicionam.

Consequentemente, retirar das simples consequências imediatas do sinistro, outras consequências futuras, de jaez diverso, seria um salto lógico inadmissível, porque extravazante da margem de álea em direito probatório concedida ao julgador.

Destarte, porque prova objectiva direta bastante não foi feita  de que a autora, por causa do sinistro,  perdeu o apetite e  passou a dormir mal, estes factos não podem ser dados como provados.

5.1.3.

Por conseguinte, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:

1. Encontra-se matriculado na Conservatória do Registo Automóvel o veículo da marca “Citroen”, modelo “Xsara Picasso”, de cor cinzenta, a gasóleo, com a matrícula (...) XZ.

2. Sobre o veículo foram registadas as seguintes inscrições de propriedade:

Nº 02514 de 13/10/2004 - Aquisição a favor de (…)

Nº 03297 de 21/10/2004 - Aquisição a favor de (…)

Nº 03073 de 25/06/2009 - Aquisição a favor de (…)

Nº 02228 de 20/10/2015 - Aquisição a favor de (…)

Nº 08575 de 30/12/2016 - Aquisição a favor de (…)

Nº 09623 de 11/04/2018 - Aquisição a favor de (…)

3. Em 10 de Abril de 2018, sociedade “A (…) Lda.” declarou vender e E (…) declarou comprar o veículo identificado em 1. Pelo preço de € 5.000,00.

4. A sociedade Ré informou a Autora que caso precisasse de assistência deveria enviar o veículo para a garagem de “A (…), Lda.”.

5. Em data não concretamente apurada, a Autora deslocou-se à garagem de “A (…)Lda.”, indicada pela sociedade Ré, com o objectivo de carregar o ar condicionado do veículo identificado em 1..

6. Passadas cerca de três semanas, em data não concretamente apurada, ao ligar a ignição, o veículo identificado em 1. fazia um barulho cadenciado.

7. A Autora desligou o veículo, chamou o reboque e enviou o veículo para a garagem de “A (…) Lda.”, tendo sido substituído o tensor e a correia de acessórios.

8. A Autora pagou pela reparação cerca de € 80,00.

9. Em meados de Junho e porque o veículo começou a deitar fumo pelo capô, a Autora chamou o reboque e mandou o veículo para a garagem de “A (…), Lda.”, tendo o veículo ficado na oficina cerca de uma semana.

10. Nessa altura foi substituída a junta da cabeça do motor, tendo o custo da reparação ascendido a cerca de € 500,00, pago por acordo das partes 1/2 pela Autora e 1/2 pela sociedade Ré.

11. No dia 25 de Junho de 2018 junto à curva do Lena, na Estrada Nacional nº 343, Aldeia Nova do Cabo o veículo identificado em 1. incendiou-se.

12. O veículo era conduzido por C (…), companheiro da Autora, e tinha efectuado o percurso Castelo Branco-Picadeiro (...) X na Aldeia de Joanes, Fundão, e fazia o percurso de regresso.

13. O incêndio ocorreu a cerca de 200m do picadeiro (...) X.

14. O veículo identificado em 1. tinha atrelado o reboque com a matrícula AV-4 (...) , propriedade de E (…), onde seguia uma égua.

15. O veículo foi totalmente consumido pelo fogo tendo-se deslocado ao local quer a Guarda Nacional Republicana quer os bombeiros voluntários.

16. A responsabilidade civil emergente de acidente de viação ocorrido com o veículo identificado em 1. encontrava-se transferida à data do acidente para a “L (…)” através de contrato de seguro titulado através da apólice nº (...) .

17. A apólice não cobria danos por incêndio.

18. Correu no Ministério Público do Fundão, secção de inquéritos, o processo de inquérito n.º (…) que foi arquivado por despacho de 7 de Setembro de 2018 com a informação “(…) resulta que o incêndio do veículo automóvel de matrícula (...) XZ teve origem indeterminada, mas de carácter acidental e não resultante da prática de conduta humana.”.

19. No momento em que o veículo identificado em 1. era consumido pelo fogo, a Autora temeu pela vida, pela vida do seu companheiro e pela vida da égua transportada no reboque.

20. Durante algum tempo, a Autora sentiu-se nervosa e angustiada.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

Desde logo urge apurar se ao caso é, ou não, aplicável a lei do consumidor - DL 67/2003, de 8 de Abril.

A julgadora entendeu que não.

Aduzindo que:

« Vale entre nós, portanto – segundo um entendimento maioritário – uma noção estrita de consumidor, entendendo-se como tal, a pessoa singular que adquire a fornecedor profissional bens ou serviços para uso não profissional.

…em face da matéria de facto apurada, não está demonstrada a qualidade de consumidor da Autora, visto que não se provou – nem, aliás, foi objecto de adequada alegação – que o bem tenha sido adquirido por aquela para um uso não profissional. Ou seja, a factualidade provada é omissa sobre qual o destino do veículo automóvel.»

Perscrutemos:

Vale aqui o, em tese, já decidido por este mesmo colectivo no Ac. da RC de 2018.04.12., p. nº 88/16.2T8TBU.C1 in dgsi.pt., a saber:

«Estabelece o artº 1º-A  do DL nº 67/2003 de 8 de Abril:

1 - O presente decreto-lei é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores.

Mais estatuindo  e definindo, no seu artº 1º-B:

a) «Consumidor», aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho;

Por sua vez, o DL 24/2014, de 14 de Fevereiro, que transpôs para o nosso ordenamento jurídico a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, define como consumidor a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional artigo 3º, alínea c).

Para além destes subsídios fornecidos pela lei, inexiste um conceito legal de consumidor comummente aceite na doutrina e jurisprudência.

Destarte «a amplitude do conceito de consumidor tem variado, consoante as cambiantes factuais de cada caso…Cabe, por isso, aos tribunais trabalhar esse conceito casuisticamente, a partir da indispensável componente factual, uma vez que não se trata de uma questão estritamente jurídica. » - Ac. do STJ de  31.10.2017, p. 353/14.3T8AMT-E.P1.S1,  in dgsi.pt.

E, assim,  existindo  posições mais estritas e mais latas sobre o conceito de consumidor.

Naquela perspectiva, consumidor é apenas a pessoa singular destinatária final do bem transacionado, sendo-lhe alheio qualquer propósito de revenda lucrativa, estando assim excluídos todos os sujeitos que tenham a qualidade de comerciantes e aqueles que destinem  negociar o bem.

Nesta ótica, só está excluído do conceito de consumidor aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante e o destine a futura alienação,  aceitando-se porém que seja taxado de  consumidor quem não o adstrinja apenas a mero uso particular, mas outrossim  dele retire algum provento/proveito.

Parece ser este o conceito mais defendido pelo STJ, no qual se: « acentua a qualidade de sujeito final na transação do bem, excluindo apenas os comerciantes e aqueles que destinam o imóvel (bem)  a revenda para obtenção de lucro» - Ac. do STJ de  16.02.2016, p. 135/12.7TBMSF.G1.S1 in gsi.pt.

(Itálico nosso)

Na verdade: «Tem sido ponderada a possibilidade de estender o conceito de consumidor ao profissional que adquire um bem para uso profissional, sendo o bem é alheio à sua área de actuação, à sua especialidade, mas mostrando-se necessário para satisfazer as necessidades da sua actividade profissional, apresentando-se, portanto, como um consumidor normal.» - Ac. do STJ de  31.10.2017, sup. Cit.

No caso vertente o autor, adquirente, é pessoa singular.

Nada nos autos indicia minimamente que ele adquiriu o carro para revenda.

Assim, e mesmo que ele o utilize quer na sua actividade meramente privada/pessoal/familiar quer em uso profissional, tal não lhe retira a qualidade de consumidor,  ao menos atenta a conceção mais alargada defendida pelo STJ e  supra aludida.»

Continuamos a defender esta posição interpretativa.

A qual se bem vislumbramos, é a que, hodiernamente, se mostra maioritariamente plasmada na jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal, vg. noutros campos do direito,  nos quais a qualidade de consumidor coincide com a que no presente caso releva.

Assim:

«Configurando os contratos promessa negócios jurídicos em curso, para efeitos do disposto nos artigos 102.º e ss. do CIRE, há que fazer observar a jurisprudência fixada no AUJ n.º 4/2014; como tal, o reconhecimento do direito de retenção ao promitente-comprador depende da sua qualidade de consumidor ao intervir nos negócios que firmou com a sociedade declarada insolvente.

É consumidor para tal efeito o promitente-comprador que destina o imóvel a uso particular, no sentido de não o comprar para revenda nem o afectar a uma actividade profissional ou lucrativa.» -  Ac. do STJ de 02.04.2019, p. 882/14.9TJVNF-G.G1.G1.S1 in dgsi.pt

(sublinhado nosso)

O caso sub judice encerra a singularidade de nenhum dos litigantes ter invocado, quer na pi quer na contestação, um único preceito legal no qual subsumissem os factos articulados e a sua pretensão.

Certo é que, no rigor dos princípios, sobre o demandante incide o ónus de provar os factos dos quais decorra a sua qualidade de consumidor.

Mas este ónus não lhe pode ser imputado em termos de uma total e acabada completude e perfeição.

Até porque, como se viu, esta qualidade apenas lhe pode ser negada se se provar que ele não é o destinatário final do bem ou se, sendo-o, ele o usar com finalidade meramente lucrativa, rectius de índole comercial.

Nesta conformidade, se factos apurados indiciarem, com alguma verosimilhança, que estas circunstâncias exceptivas ou impeditivas de atribuição de tal qualidade não se verificam, ao profissional que vendeu o bem cumpre ilidir tais indícios, provando factos dos quais se possa concluir que a qualidade de consumidor não pode ser concedida.

Este é o entendimento que melhor se compagina com a protecção do consumidor, a qual, como dimana da legislação atinente, se mostra mais generosa por contraponto com a lei geral.

Se assim não fosse, a aplicação de tal legislação e a pretendida acrescida protecção do consumidor quedaria,  liminarmente, frustrada, porque não  se poderia dar como provada esta qualidade, muitas vezes por razões meramente formais ou por dificuldade probatória.

No caso vertente assim é.

A autora, compradora, é pessoa singular; e nada se provou que  convença que ela não foi a destinatária final do automóvel, antes o tendo  adquirido para revender.

 Ou que apenas o destinasse a uma actividade industrial  ou comercial lucrativa.

Até porque se tratava de veículo automóvel já idoso, presumivelmente em estado de conservação já algo desgastado – a autora era a 4ª ou 5ª proprietária – o qual não se compadece com um uso intensivo que tais actividades reclamam.

Por conseguinte, e versus o entendido pela julgadora, a qualidade de consumidora deve ser concedida à autora, com a aplicação da legislação atinente/pertinente.

5.2.2.

Devendo o autor ser considerado consumidor, são os seguintes os preceitos das leis do consumidor a considerar:

Do DL  67/2003.

Artº 2º

1 - O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda.

2 - Presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:

a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor…;

b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;

c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;

d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem …

Artº 3.º

1 - O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.

2 - As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente,  presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.

Artº 4º:

1 - Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.

5 - O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.

Da Lei 24/96 de 31.07.

Artº 12º

1 - O consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.

Sendo a autora consumidora, é de aplicar, em primeira mão, o disposto nestes diplomas.

E, apenas subsidiariamente, nos casos omissos ou duvidosos, o disposto na lei nacional.

Na verdade, com a directiva europeia que esteve na origem do aludido DL pretendeu-se a harmonização da legislação europeia nesta área e uma proteção acrescida do consumidor.

Pelo que a legislação nacional, apenas, por via de regra, deverá ser aplicada, quando se revelar mais favorável ou aquele corpo normativo se mostrar lacunoso.

Desde logo, tal acrescida proteção dimana  do facto de, versus o que sucede na legislação nacional, os direitos permitidos ao consumidor em caso de incumprimento do contrato, poderem, por via de regra, ser exercidos por escolha  incondicionada, não estando eles sujeitos a um  qualquer exercício sequencial decorrente de uma pré-determinada e fixa  hierarquização de tais direitos.

 E excluindo-se de tal hipótese de escolha apenas os casos de intolerável desequilíbrio na composição dos direitos e interesses em presença e, bem assim, os casos  de atuação com  má fé, ou com  abuso de direito -cfr. Ac. do STJ de 30.09.2010, p. 822/06.9TBVCT.G1.S1 e João Calvão da Silva in  Vendas de Bens de Consumo, 4ª edição, página 110.

Depois e determinantemente, tal acrescida proteção ressuma do facto de, desde logo  no que concerne à compra e venda defeituosa:

«contrariamente ao que consta do artigo 914º do Código Civil, para o Decreto-Lei nº 67/2003 o desconhecimento, “sem culpa”, do “vício ou falta de qualidade de que a coisa padece” não afasta a correspondente responsabilidade do vendedor (artigos 2º, nº 1 e nº 3º).»-  Ac. do STJ de 30.09.2010, p. 822/06.9TBVCT.G1.S1.

É que o conceito relevante para o efeito do artº 2º de tal DL é o de conformidade dos bens com o contrato, advindo a responsabilidade do vendedor, pelo menos por via de regra, independentemente da existência, ou não, de culpa, stricto sensu, desde que se verifiquem os factos índice estabelecidos  no nº2 e em função dos quais a desconformidade se presume.

E devendo o devedor, ilidir tal presunção, provando  que  a desconformidade inexiste.

Ou que agiu diligentemente - o que não seria o bastante pois que assim o tribunal ficaria na ignorância de qual a causa  do defeito - e que as causas deste lhe são completamente estranhas, porque  nada tiveram a ver com a  sua atuação, ou seja, que atuou sem culpa – cfr.  João Cura Mariano, in “Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra”, Almedina, 2004, p. 58.

Efetivamente: «Ao vendedor, para se ilibar da responsabilidade, incumbirá alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa vendida e imputável ao comprador, a terceiro ou devida a caso fortuito» - Ac. da RL de 04.11.2011, p. 391/09.8YXLSB.L1-1.

5.2.3.

Por outro lado, o direito de resolução dum contrato, enquanto meio de extinção do vínculo contratual, quando não convencionado pelas partes, depende da verificação de um fundamento legal, correspondendo, nessa medida, ao exercício de um direito potestativo vinculado  - artigo 432º CC.

Assim, a parte que invoca o direito à resolução  fica obrigada a alegar e a demonstrar o fundamento que justifica a destruição do vínculo contratual.

Na verdade, o direito de resolução está sempre condicionado a uma situação de inadimplência, seja ele o incumprimento definitivo, propriamente dito, seja a conversão da mora em incumprimento definitivo.

Este incumprimento definitivo pode advir de uma impossibilidade de cumprimento (objetivo/naturalística ou subjetiva porque imputável a título de culpa ao devedor) – artº 801º do CC.

Ou advir  da transformação da simples mora em incumprimento definitivo, o que pode ocorrer por três vias:

a) convencer o credor da sua perda de interesse na prestação  ex vi da demora no cumprimento; ´

b) demonstrar que a prestação não foi efetivada no prazo razoável que, admonitoriamente, fixou ao devedor – artº 808º do CC;

c) provar que o devedor se recusou, absoluta, perentória e definitivamente, a cumprir.

Importando ainda reter que a simples emergência ou verificação dos fundamentos resolutivos do contrato não opera automaticamente no sentido de atribuir imediatamente jus ao direito à resolução.

Pois que esta: «além de pressupor o incumprimento definitivo de uma prestação contratual, exige a gravidade da violação, não sendo esta apreciada em função da culpa do devedor mas das consequências desse incumprimento para o credor. Não é, portanto, qualquer incumprimento, ainda que definitivo, que viabiliza a resolução»  - Ac do STJ de  18.12.2012, p. 5608/05.5TBVNG.P1.S1.

Assim, e desde logo no que concerne à impossibilidade de cumprimento, importa ter presente que a lei não se contenta apenas com uma mera dificuldade em se efetivar a prestação, exigindo uma efetiva, real e total não consecução da prestação.

No que tange à perda do interesse convém não descurar que ela não pode ser relevada apenas pela convicção ou perspetiva do credor, tendo antes de ser apreciada objetivamente, ie., em função da análise do homem médio, do homo prudens, sopesando-se v.g., a duração da mora e as suas consequências nocivas, o comportamento do devedor e o propósito do credor – nº2 do artº 808 – cfr. Acs. do STJ de 27.05.2010, p. 6882/03.7TVLSB.L1.S1, de 14.04.2011, p. 4074/05.0TBVFR.P1.S1.  e de 13.09.2012, p. 4339/07.6TVLSB.L1.S2, todos in dgsi.pt.

 Pois que: «Não basta que o credor afirme, mesmo convictamente, que a prestação já não lhe interessa para se considere que perdeu o interesse na prestação: há que ver, em face das circunstâncias, concretas e objectivas, se a perda de interesse corresponde à realidade das coisas» - Ac. do STJ de 05.05.2005, p. 05B724.

Quanto aos efeitos da resolução: «na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico…»  -artº 433º do CC -  e «tem efeito retroactivo, salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução» - artº 434º.

E, assim, «devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente» - artº 289º.

 5.2.4.

No caso vertente.

A causa foi decidida nos seguintes, ora sintetizados, termos:

«…o lesado pelo cumprimento defeituoso … deverá, nos termos do artigo 342.º do Código Civil, invocar os factos (concretos e específicos) donde decorre o direito para que tenciona obter a respectiva tutela jurídica.

…a coisa objecto do contrato de compra e venda é um veículo automóvel usado: é de 2004 e teve, pelo menos, quatro proprietários antes da Autora. Por isso, porque a coisa usada tem o desgaste normal que a torna de qualidade inferior a coisa nova idêntica, só haverá vício ou defeito na medida em que a falta de qualidade exceda o desgaste natural, excesso a provar pelo comprador como facto constitutivo do seu direito.

No que diz respeito ao incêndio, o ponto está, também, em saber se está provado o defeito e, portanto, se está demonstrada a falta de qualidade do veículo e a inexistência do desempenho habitual que seria razoavelmente expectável.

…não será um qualquer facto concreto que levará a concluir pela desconformidade, mas apenas aquele ou aqueles que, de acordo com as regras de experiência comum, tenham aptidão, em geral, para provocar um resultado desconforme com o que normalmente seria expectável obter do bem em causa, atenta a sua natureza.

…sabendo-se apenas que o veículo da Autora se incendiou quando era conduzido com um atrelado, não nos parece possível concluir que o incêndio teve origem em qualquer deficiência interna do veículo.

…a Autora não tinha de demonstrar a causa do defeito, competia-lhe, no entanto, provar o defeito.

A verdade é que o incêndio não é um defeito, uma falta de qualidade, um deficiente funcionamento, é, antes, a consequência de um processo causal anterior e é no interior desse processo causal que há-de encontrar-se o defeito, isto é, o facto concreto (curto-circuito, ligação mal efectuada, instalação eléctrica com comportamento anormal, etc., etc..), a partir do qual se deduz a falta de qualidade e a inexistência do desempenho que seria, nascircunstâncias, expectável, o que, por sua vez leva a concluir pela desconformidade da coisa…

Ora, são as regras da experiência comum e do bom senso que nos levam a dizer que um veículo automóvel, dotado de todas qualidades normais que lhe são características, com desempenho também perfeitamente normal, pode, não obstante, incendiar-se por motivos totalmente alheios e exteriores ao próprio veículo, designadamente, por acção de terceiro ou caso fortuito.

Aliás, o veículo tinha sido objecto de reparação …alguns dias antes do sinistro…pelo que a causa do incêndio até poderá estar relacionada com a reparação efectuada. »

Não se corrobora e chancela esta interpretação.

Desde logo porque, como se viu, ao caso é aplicável a lei do consumidor.

E, perante esta, não apenas o conceito de culpa do vendedor é desvalorizado, relevando essencial e determinantemente a prova de uma desconformidade do bem, termo este entendido e interpretado  por o mesmo  não ser adequado ao uso específico para o qual o consumidor os destine ou não ser adequado às utilizações que  habitualmente  lhe são dadas  ou não apresentar as qualidades e o desempenho habituais.

Ora provou-se que o carro se incendiou quando circulava.

Mais se provou que tal incêndio ocorreu pouco mais  de dois meses após a aquisição do veículo pela autora à sociedade  ré, pelo que ainda dentro do período de garantia de um ano que, obrigatória e imperativamente, tinha de ser concedido.

E, the last but not the least, passe ou anglicismo, ou seja, por último mas não de somenos,  está ainda assente que  ocorreu cerca de dez dias depois de ter sido submetido a uma reparação pelo facto de ter começado a deitar fumo pelo capô.

Perante isto não é arriscado concluir, antes sendo o mais natural e lógico, que o veículo apresentava defeitos que despoletaram o sucessivo indício e foco de incêndio.

Face a estes factos claramente indiciadores de um defeito do veículo, estar a aventar-se, como se faz na sentença, que o incêndio pode ter sido provocado «por motivos totalmente alheios e exteriores ao próprio veículo, designadamente, por acção de terceiro ou caso fortuito» é que se afigura uma exegese infundamentada,  rebuscada e peregrina.

Ainda que se entenda, como na sentença, que o incêndio, em si mesmo, não é um defeito, mas antes uma consequência de um defeito, ele não  é exterior ou alheio ao veículo e à exigibilidade de o mesmo não pegar fogo.

Versus o entendido na decisão, o facto de ser um veículo usado e com vários proprietários em nada justifica abolir-se ou atenuar-se esta exigência.

Caso contrário estaria  escancarada a porta para que os profissionais do comércio automóvel vendessem autenticas sucatas não  inspeccionadas e revisionadas, com os inerentes perigos para a segurança e vida dos seus condutores e demais utilizadores das rodovias.

Antes se impondo, com tal exigência de adequada e ampla inspecção e revisão antes da venda, uma cultura de rigor nesta matéria, de sorte a evitarem-se o mais possível eventos infortunísticos  do jaez do presente ou ainda piores.

Assim, à autora não era nem é exigível provar qual a causa, ou sub causa, do incêndio.

Até porque, como se viu, a desconformidade do bem presume-se existente já na data da venda – artº 3º nº2 sup. cit.

E, por conseguinte, impendendo sobre a ré, para se eximir da sua responsabilidade, provar que o incêndio foi derivado de atuação culposa da autora ou de força maior ou caso fortuito.

O que, apesar de tal alegar, não logrou provar.

A ré deve, pois, ser responsabilizada.

Os factos apurados e a interpretação ora deles operada, clamam a conclusão de que à autora assiste jus à resolução do contrato, pois que fundamento válido para esta provou.

Decretada a resolução as partes devem ser restituídas ao statuo quo ante negocial; sendo que, quanto à indemnização atribuída ao lesado,  atém-se apenas ao interesse negativo, ou seja,   aos danos que não existiriam se o contrato não tivesse sido celebrado.

No caso vertente e por impossibilidade físico material, o veículo não pode ser restituído à vendedora; mas sempre ela terá direito ao salvado calcinado se assim o entender.

Quanto à autora ela tem direito ao ressarcimento dos prejuízos patrimoniais, quais sejam, o valor do veículo – 5000 euros e os gastos provados que teve com as reparações – 330 euros.

No que tange aos danos não patrimoniais.

Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – artº 496º nº1 do CC.

  O merecer a tutela do direito significa que não são indemnizáveis «...os prejuízos insignificantes ou de diminuto significado… que todos devem suportar num contexto de adequação social, cuja ressarcibilidade estimularia uma exagerada mania de processar …Assim não são indemnizáveis os diminutos incómodos, desgostos e contrariedades, embora emergentes de actos ilícitos, imputáveis a outrem e culposos» - R. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, 1995 p.555/556.

Mas o dano não patrimonial não se reconduz a uma única figura, tendo vários componentes e assumindo variados modos de expressão, abrangendo o chamado quantum doloris, que sintetiza as dores físicas e morais sofridas; o “dano estético”, que simboliza, nos casos de ofensa à integridade física, o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões; o “prejuízo de afirmação social”, dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afetiva, recreativa, cultural, cívica); o prejuízo da “saúde geral e da longevidade”, em que avultam o dano da dor e o défice de bem-estar e que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem-estar da vítima; o pretium juventutis, que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida – cfr. Ac. do STJ de 18.06.2009, dgsi.pt, p. 1632/01.5SILSB.S1.

Acresce que a indemnização por danos não patrimoniais reveste uma natureza acentuadamente mista.

 Por um lado visa, mais do que indemnizar, reparar os danos sofridos pela pessoa lesada; pretende-se proporcionar ao lesado uma compensação ou benefício de ordem material - a única possível -, que lhe permite obter prazeres ou distrações - porventura de ordem puramente espiritual - que, de algum modo, atenuem o desgosto sofrido: não consiste num pretium doloris, mas antes numa compensatio doloris.

Por outro lado não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.

Certo é que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, e designadamente, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso  - arts. 496º, nº 3 e 494º do C.C.

Resta sempre difícil apurar, com rigor, a adequação do montante compensatório dos danos não patrimoniais, de sorte a que com o mesmo se possam minorar as afetações negativas sofridas, operando-se, assim, com a maior aproximação possível, a justiça do caso concreto.

A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objetivo, que tenha em conta o circunstancialismo de cada caso, e não por padrões subjetivos, resultantes de uma sensibilidade particular.

No caso vertente apurou-se que «a Autora temeu pela vida, pela vida do seu companheiro e pela vida da égua transportada no reboque». E que «Durante algum tempo…sentiu-se nervosa e angustiada.»

O momento do incêndio, dada a sua inopinada emergência e intensidade fulminante, foi certamente paroxístico e até, quanto mais não seja por alguns momentos ou minutos, traumatizante para a autora.

O conceito indeterminado de «algum tempo» deve aqui, atentos os contornos circunstancias envolventes dos autos, ser densificado como alcandorando-se a, pelo menos,  largas semanas e, até, meses.

Sendo, inclusive, de admitir, que tal sentimento de angústia e nervosismo continuam a existir até que a questão esteja definitivamente decidida, pois que, a final, está em causa o recebimento, ou não, de um valor não despiciendo de alguns milhares de euros,   posto que com graduação e cambiantes que tenderão gradualmente a desvanecer-se.

Assim se concluindo que o presente sinistro e as consequências nocivas psíquico emocionais que causou na autora, saem da mediania e vulgaridade e merecem a tutela do direito para o efeito que nos ocupa.

Atentos os critérios legais supra mencionados e considerando que nada se apurou quanto à situação económica da ré, que a sua  culpa aqui mais deve ser taxada de negligência, e que o  valor em causa, apesar de não despiciendo, não é exorbitante, consideramos, ex vi de um juízo équo, ínsita em limites ou parâmetros admissíveis, a quantia de  mil euros como adequada a compensar a autora a título de danos não patrimoniais.

Procede, parcialmente, o recurso.

6.

Sumariando- artº 663º nº7 do CPC.

I - Do ter-se apurado que, em consequência de incêndio e imediatamente perante o mesmo,  a autora ficou abalada e teve medo, não pode, sem mais prova,  dar-se como provado que esta, posteriormente, e por causa daquele sinistro, perdeu o apetite e passou a dormir mal.

II - A qualidade de consumidor, para efeitos de aplicação da legislação pertinente – vg. DL67/2003, de 8.04 –, apenas é excluída se o adquirente do bem o destinar à revenda, ou o usar exclusivamente numa actividade comercial/industrial para obtenção de lucro; factos a provar pelo demandado.

III - O regime jurídico fixado pelo aludido DL assume-se, por reporte ao regime geral do CC, mais favorável para o consumidor, o que decorre, essencialmente: de o produtor/vendedor/empreiteiro responder ex vi da desconformidade do bem/obra - presumida  em função dos factos índice estabelecidos  no nº2 do artº 2º -, mesmo que tenha agido sem culpa; e de, para se eximir de tal responsabilidade, ter de provar  que atuou diligentemente e sem culpa.

IV –A indemnização por danos patrimoniais, assume natureza mista visando compensar o lesado, e punir, civilisticamente, o lesante; pelo que provando-se que a autora, confrontada com um incêndio na viatura que conduzia, que a consumiu totalmente, e que comprara à ré, « temeu pela vida e pela vida do seu companheiro»  e que «Durante algum tempo (semanas ou meses) sentiu-se nervosa e angustiada.»,  à mesma assiste jus aquela compensação.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revoga-se a sentença absolutória, decreta-se a resolução do contrato  e condena-se a ré a pagar à autora a quantia  de cinco mil trezentos e trinta euros a título de danos patrimoniais e de mil euros a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros, à taxa legal, desde a citação quanto aqueles danos, e desde a data do presente  acórdão no atinente a estes.

Custas nas instâncias na proporção da presente sucumbência.

Coimbra, 2019.06.11.

Carlos Moreira ( Relator)

Moreira do Carmo

Fonte Ramos