Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
217/19.4T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
PRINCÍPIO DA ESTABILIDADE CONTRATUAL
DIREITO DE CRÉDITO DO TRABALHADOR
ÓNUS DE PROVA
Data do Acordão: 10/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUÍZO DO TRABALHO DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 342º E 406º C. CIVIL.
Sumário: I – No âmbito dos contratos de trabalho, tendencialmente duradouros e de forma reforçada, rege o denominado princípio da estabilidade contratual emergente, v.g., do estatuído no art. 406º do CC, nos termos do qual “O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.”.

II - Com efeito, uma vez celebrado, o contrato plenamente válido e eficaz constitui lei imperativa entre as partes, imperatividade essa que se concretiza através de outros três princípios: o da pontualidade, utilizando a lei a palavra “pontualmente” com o alcance de que o contrato deve ser executado ponto por ponto, quer dizer, em todas as suas cláusulas; os da irretractabilidade ou da irrevogabilidade dos vínculos contratuais; e o da intangibilidade do seu conteúdo.

III - Arrogando-se a autora determinados direitos de crédito salariais referentes a diferenças entre o que lhe foi pagou e o que lhe deveria ter sido pago segundo o instrumento de regulamentação colectiva de trabalho aplicável, compete-lhe a ela alegar e provar os factos necessários ao reconhecimento desses créditos (art. 342º/1 do CC).

IV - Em especial, compete-lhe alegar e provar que montantes lhe foram pagos pela ré, os elementos de facto necessários ao enquadramento da autora nos diferentes níveis da tabela salarial aplicável segundo o IRC aplicável, por forma a que o tribunal possa concluir, se for o caso, no sentido de que os montantes pagos são inferiores aos devidos.

Decisão Texto Integral:




Autora: P...

: Escola N..., Lda

Relator: Jorge Manuel Loureiro

1ª adjunta: Paula Maria Roberto

2º adjunto: Ramalho Pinto


Acordam na 6.ª secção social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

A autora propôs contra a ré a presente acção com a forma de processo comum e emergente de contrato de trabalho, tendo deduzido o pedido seguidamente transcrito:

Nestes termos e no mais de direito, deve a presente ação ser julgada procedente e provada e consequentemente ser a R. condenada a:

a) Reconhecer que entre ela R. e a A., existe desde 23 de setembro de 2005, um contrato de trabalho sem termo e a tempo completo;

b) Reconhecer que por força desse mesmo contrato de trabalho, existe entre a A. e a R., desde 23 de Setembro de 2005, um vínculo laboral mediante o qual a A. foi contratada para sob as ordens, direção e orientação da R., mediante retribuição, exercer as funções inerentes à categoria profissional de professora, vínculo laboral esse que ainda hoje se mantém;

c) Reconhecer que desde o início do contrato nunca pagou à A., o montante dos vencimentos, legalmente fixados e previstos no respectivo Contrato Coletivo de Trabalho;

e) Reconhecer que desde o início do vínculo laboral, 23 de setembro de 2005, até ao presente, deve à A. as diferenças indicadas nos nºs 47 a 57 desta petição inicial, as quais no seu total atingem, nesta data (Janeiro 2019), o montante global de 78.936.82€;

f) Reconhecer que a sua supra referida conduta provoca também prejuízos não patrimoniais na A.;

g) Pagar a A. a título de diferenças salariais desde 23 de Setembro de 2005 até à presente data, Janeiro de 2019, o montante global de 78.936.82€;

h) Pagar à A., enquanto o contrato de trabalho vigorar, o vencimento mensal estabelecido no CCT para o setor, vencimento mensal, esse atualmente de 1.010,00€;

j) Pagar à A. a quantia de 10.000,00 a título de danos não patrimoniais;

l) Pagar os juros que se vencerem à taxa legal a contar da citação até efetivo e integral pagamento;

m) Pagar as custas processuais.”.

 Alegou, em síntese, ter celebrado com a ré contrato de trabalho a termo, sem que, todavia, a justificação aposta correspondesse à realidade, devendo considerar-se que existe e desde o início da relação contratual um contrato sem termo, a tempo integral, pois que apesar do número de horas de prestação de trabalho contratadas e prestadas, não se encontram verificados os requisitos para se considerar estar em causa um contrato de trabalho a tempo parcial.

Tem créditos sobre a ré referentes a diferenças salarias entre o que a ré lhe pagou e aquilo que lhe deveria ter pago, tendo em conta o IRCT aplicável à relação de trabalho e a circunstância não reconhecida pela ré de que o contrato de trabalho era a tempo integral.

Citada, a ré contestou, pugnando pela improcedência da acção.

Alegou, em resumo, estar em causa uma relação de trabalho que sempre foi e é a tempo parcial, tendo a ré liquidado todas as remunerações a que a autora tinha direito.

Respondeu a autora para, no essencial, reafirmar o alegado na petição e concluir como já aí tinha concluído.

A acção prosseguiu os seus regulares termos, acabando por ser proferida sentença de cujo dispositivo consta, designadamente, o seguinte:

Em face do exposto decide o Tribunal:


I.

Julgando parcialmente procedente a ação, condenar a ré «Escola N..., Lda» a:

i. Reconhecer que entre a ré «Escola N..., Lda» e a autora P... existe, desde 23 de setembro de 2005 até à presente data, um contrato de trabalho sem termo, que é a tempo completo desde 1 de setembro de 2012;

ii. Pagar à autora P... a importância que se vier a liquidar em incidente posterior respeitante à diferença entre os montantes que pagou desde 23 de setembro de 2005 a 31 de agosto de 2012 e aqueles que devia ter pago por aplicação do contrato coletivo de trabalho supra identificado e entre aqueles que pagou, desde 1 de setembro de 2012, e aqueles que devia ter pago por aplicação do dito contrato coletivo de trabalho, tendo por referência o horário completo;

iii. Pagar à autora P..., enquanto o contrato de trabalho vigorar, a retribuição mensal prevista no contrato coletivo de trabalho por referência a um horário completo;

iv. Pagar os juros que se vencerem, à taxa legal, a contar da data da liquidação até efetivo e integral pagamento.


II.

Condenar a autora P... e a ré «Escola N..., Lda» no pagamento das custas do processo, na proporção de ⅓ (um terço) para a primeira e ⅔ (dois terços) para a segunda.

Não se conformando com o assim decidido, apelou a ré, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

...

Contra-alegou a apelada, pugnando pela improcedência da apelação.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deve improceder.

Cumpre decidir.

II – Questões a resolver

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 – NCPC – aplicável “ex-vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho – CPT), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

1ª) se a matéria de facto foi incorrectamente julgada, devendo ser alterada;

2ª)  se a partir de 1/9/2012, o contrato de trabalho da autora se converteu de contrato de trabalho a tempo parcial em contrato de trabalho a tempo integral;

3ª) se a autora é titular de qualquer crédito sobre a ré partir de 1/9/2012, pela circunstância de em alguns anos subsequentes ter prestado menos horas de trabalho do que aquelas a que estava obrigada a partir daquela data;

4ª) se a autora é titular de qualquer crédito sobre a ré até 1/9/2012, pela circunstância de os valores pagos pela ré serem inferiores aos que resultam do IRCT aplicável.

III – Fundamentação

A) De facto

Factos provados

O tribunal recorrido descreveu como provados os factos seguidamente transcritos:

1.

A autora é titular de licenciatura em ciências religiosas, lecionando a disciplina de EMRC – Educação Moral e Religiosa Católica.

2.

A ré é uma sociedade por quotas que tem como objeto social, que efetivamente exerce e para o qual se encontra devidamente licenciada, o ensino.

3.

Atividade que desenvolve no seu estabelecimento denominado Escola N..., sita em ...

4.

Por contrato de trabalho celebrado em 23 de setembro de 2005, a autora foi admitida ao serviço da ré, para, sob as suas ordens, direção, autoridade e mediante retribuição, desempenhar as funções inerentes à categoria de professora.

5.

Por tal contrato, a autora exerceria e exerceu a função para que foi contratada, mediante a retribuição mensal de €229,17, em horário com componente letiva semanal de 7 horas.

6.

O mesmo contrato, denominado de “Contrato de Trabalho a Termo Certo”, vigoraria até 31 de agosto de 2006 e tinha como causa justificativa do termo, a alínea f) do nº 2 do artigo 129º do Código do Trabalho então em vigor, ou seja, o acréscimo excecional da atividade da empresa.

7.

Em 31 de agosto de 2006, data em que terminaria o contrato acima referido, foi celebrado, com efeitos e início em 1 de setembro de 2006, pelo prazo de 12 meses, ou seja, com o seu termo em 31 de agosto de 2007, novo contrato de trabalho entre autora e ré, com os fundamentos e nas demais condições do anterior, apenas divergindo a componente letiva semanal, que passou a corresponder a um horário semanal de 15 horas, e o vencimento mensal que passou a ser de €491,10.

8.

Posteriormente, em 11 de setembro de 2007 e com termo em 31 de agosto de 2008, novo contrato foi celebrado em idênticas condições, agora com a componente letiva correspondente a um horário semanal de 13 horas e o vencimento mensal de €442,78.

9.

Em 1 de setembro de 2008 novo contrato foi celebrado, em iguais circunstâncias, pelo prazo igualmente de 12 meses, com início em 1 de setembro de 2008 e termo em 31 de agosto de 2009.

10.

Seguidamente, em 1 de setembro de 2009 e termo em 31 de agosto de 2010, idêntico contrato foi celebrado nas mesmas condições, correspondendo agora a componente letiva ao horário semanal de 18 horas e o vencimento mensal de €631,44.

11.

Em 1 de setembro de 2010 e termo em 31 de agosto de 2011, com a carga horária semanal de 16 horas e vencimento mensal de € 561,31, novo contrato foi celebrado entre autora e ré.

12.

Em 1 de setembro de 2011, com início nessa data e termo em 31 de agosto de 2012, novamente foi celebrado contrato de trabalho com uma componente letiva correspondente ao horário semanal de 14 horas e um vencimento mensal de €491,14.

13.

Posteriormente a 31 de agosto de 2012, mais nenhum contrato escrito foi celebrado, não obstante a autora ter continuado a prestar os mesmos serviços para a ré, nos termos e condições em que sempre o fez, ou seja, tendo a autora continuado, deste então, sem qualquer interrupção e até à atualidade, sob a direção, ordens, autoridade e instruções da ré entidade patronal, mediante retribuição mensal, a prestar para aquela, as funções inerentes à sua categoria profissional de professora.

14.

Imediatamente ao termo fixado para o contrato, era de imediato celebrado outro, com a mesma trabalhadora, igualmente a termo, para a mesma função, isto apesar de a ré também nunca haver comunicado à autora, de acordo com o clausulado no contrato de trabalho, a sua intenção de fazer cessar o mesmo.

15.

Nem a contratação a termo teve alguma vez, desde o início do vínculo laboral, como causa o “acréscimo excecional da atividade da empresa”, nem dos contratos de trabalho outorgados constam factos que integrariam a justificação do termo consignado.

16.

A autora exerceu e desempenhou cargos de diretora de turma, desenvolveu atividades, substituiu colegas, acompanhou e deu apoio aos alunos, organizou e participou na organização de iniciativas, participou na organização e acompanhou os alunos em passeios e viagens de estudo.

17.

Nos seguintes anos letivos, a autora desempenhou um horário de trabalho de:

i. 7 horas letivas por semana, em 2005/2006;

ii. 15 horas letivas por semana, em 2006/2007;

iii. 13 horas letivas por semana, em 2007/2008;

iv. 13 horas letivas por semana, em 2008/2009;

v. 18 horas letivas por semana, em 2009/2010;

vi. 16 horas letivas por semana no período de 1 a 30 de setembro de 2010 e de 1 de janeiro a 31 de agosto de 2011, sendo de 18 horas letivas de 1 de outubro a 31 de dezembro de 2010, em 2010/2001;

vii. 14 horas letivas por semana, em 2011/2012;

viii. 14 horas letivas por semana, em 2012/2013;

ix. 12 horas letivas por semana no período de 1 de setembro a 1 de outubro de 2013 e de 1 de novembro de 2013 a 31 de agosto de 2014, sendo de 15 horas letivas de 2 a 31 de ou-tubro de 2013, em 2013/2014;

x. 11 horas letivas por semana no período de 1 de setembro a 26 de outubro de 2014, bem como de 8 de julho a 31 de agosto de 2015, sendo 14 horas letivas de 27 de outubro a23 de dezembro de 2014, bem como de 29 de janeiro a 7 de julho de 2015, em 2014/2015;

xi. 9 horas 30 minutos letivos por semana no período de 1 a 28 de setembro de 2015, sendo de 11 horas 30 minutos letivos por semana de 29 de setembro de 2015 a 31 de agosto de 2016, em 2015/2016;

xii. 9 horas 15 minutos letivos por semana, em 2016/2017;

xiii. 2 horas 15 minutos letivos por semana, em 2017/2018;

xiv. 1 hora 45 minutos letivos por semana, em 2018/2019.

18.

Para além das horas letivas lecionadas, a autora foi diretora de turma nos anos letivos de 2011/2012 a 2016/2017, tendo sido remunerada pelo exercício desse cargo.

19.

A autora não tinha habilitação adequada para lhe poder ser completado o horário com outras tarefas letivas, não sendo portadora de grau académico, seja bacharelato ou licenciatura, não sendo profissionalizada para lecionar outra disciplina que não fosse Educação Moral e Religiosa Católica, por indicação da Diocese da Guarda.

20.

A licenciatura em Ciências Religiosas, reconhecida em Portugal a 6 de julho de 2018, apenas habilita a autora a lecionar a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica e não qualquer outra.

21.

No ano letivo de 2018/2019, a autora lecionou Educação Moral e Religiosa Católica em outra escola.

22.

A autora, desde o início do vínculo laboral em setembro de 2005, era portadora de habilitação suficiente para a disciplina que leciona, EMRC – Educação Moral e Religiosa Católica, até 2016, ano em que por ter concluído a respetiva licenciatura, adquiriu habilitação própria para lecionar a mesma disciplina, sendo igualmente, desde o início do vínculo laboral, até à atualidade, validada, pela entidade eclesiástica competente, a sua idoneidade para lecionar essa disciplina.

23.

Em 2015/2016 a ré mudou de gerência e de direção pedagógica.

24.

Ao longo dos anos a ré pagou à autora montantes não apurados.

25.

A autora mostrava-se insatisfeita com a retribuição auferida.

26.

Até 31 de agosto de 2018 a autora perfez 2662 dias de serviço na ré.

27.

Até 2012 a nomeação para lecionar Educação Moral e Religiosa Católica era feita pela Diocese, no caso em apreço pela Diocese da Guarda, limitando-se a ré a informar a Diocese da Guarda do número de horas que terá a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica em cada ano letivo, mais lhe solicitando a nomeação de docente para preencher o número de horas indicado, que corresponde ao número de horas da disciplina em cada ano letivo.

28.

A disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica é opcional, na qual apenas se escrevem os alunos que o pretendam, o que faz com que, em cada ano letivo, o número de horas desta disciplina varie.

29.

A ré, no início de cada ano letivo, apenas tem noção do número de horas da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica para esse mesmo ano letivo, desconhecendo se, no ano letivo seguinte, terá horas desta disciplina, para solicitar à Diocese da Guarda a nomeação de um docente para o efeito ou se a Diocese da Guarda, havendo horas, nomeará a mesma docente.

30.

Nesta conformidade, a ré, após nomeação daquela Diocese, foi celebrando contratos de trabalho com a autora.

31.

A Diocese da Guarda, após ser informada pela ré do número de horas disponíveis para a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica, contacta a docente, no caso em apreço a autora, dando-lhe conhecimento do número de horas disponíveis, a fim de verificar se a docente tem interesse em lecioná-las e, só após obter o aval da docente, é que a Diocese da Guarda designa à Escola o(a) docente que vai lecionar tal disciplina.”.

B) De Direito

Primeira questão: se a matéria de facto foi incorrectamente julgada, devendo ser alterada.

Consta do ponto 13º) dos factos provados que “Posteriormente a 31 de agosto de 2012, mais nenhum contrato escrito foi celebrado, não obstante a autora ter continuado a prestar os mesmos serviços para a ré, nos termos e condições em que sempre o fez, ou seja, tendo a autora continuado, deste então, sem qualquer interrupção e até à atualidade, sob a direção, ordens, autoridade e instruções da ré entidade patronal, mediante retribuição mensal, a prestar para aquela, as funções inerentes à sua categoria profissional de professora.”.

Em alternativa pretende a apelante que a esse mesmo ponto seja conferida a seguinte redacção: ““No período compreendido entre Setembro de 2012 até hoje, vigora o último contrato de trabalho reduzido a escrito, designadamente a 01 de Setembro de 2011, nos termos do qual a autora acorda com a ré a prestação de um horário de trabalho a tempo parcial”.

Não pode proceder essa pretensão.

Na verdade, a celebração do contrato de trabalho reduzido a escrito no dia 1/9/2011 está dada como provada no ponto 12º) dos factos provados.

Saber se esse contrato se manteve ou não em vigor após 31/8/2012 e, na afirmativa, em que termos, corporiza uma das questões jurídicas sujeitas à apreciação e decisão judiciais a executar e produzir no âmbito deste processo.

Trata-se, por isso, de matéria de direito que, por definição, não pode constar da decisão sobre a matéria de facto, pois que de outro modo legalmente não consentido estará a decidir-se imediatamente ao nível da decisão de facto uma questão de natureza jurídica que só deve ser equacionada e decidida em sede de integração de factos que foram dados como provados e como não provados na anterior decisão sobre a matéria de facto.

...

O assim propugnando pela apelante não é suficiente para que possa proceder a sua pretensão jurídica fáctica, pois que a apelante não procede, como devia, ao correspondente exame crítico tendente a demonstrar que o tribunal recorrido deveria ter retirado desse meio de prova uma conclusão diferente daquela que foi explicitada no referenciado pontos 13º).

Com efeito, segundo o enunciado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Dezembro de 2015, proferido pela Secção Social, P.1348/12.7TTBGR.G1.S1, disponível in www.dgsi.pt, “Na verdade, o recorrente ao dizer que determinado facto não devia ser dado como provado pelo confronto da prova testemunhal com a documental fazendo uma transcrição da primeira, não está a fazer uma análise critica da prova, nem sequer a fornecer os elementos necessários para permitir que o tribunal a faça, deixando nas mãos do tribunal uma actividade “recolectora” de todos os documentos e dos depoimentos identificados, não sendo assim possível ao tribunal de recurso refazer o percurso/raciocínio lógico-jurídico que o próprio recorrente fez para concluir de forma diferente daquilo que a instância inferior decidiu.

Uma correta impugnação que cumpra o ónus previsto no art. 640º do Código de Processo Civil, passaria por identificar que determinado facto provado foi incorrectamente julgado, enunciando-o e apresentando o porquê de tal incorreção, isto é, dever-se-ia apresentar uma análise crítica dos elementos de prova de que o julgador deveria retirar uma conclusão diferente da que retirou, e apresentar o facto tal como deveria ter sido dado como provado e não provado”.

A necessidade do recorrente fáctico proceder a uma análise crítica da prova também foi referida acórdão do STJ proferido nos autos 8948/15.1T8CBR.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt/jstj, onde se considerou  que “A omissão, a insuficiência ou a suficiência da análise crítica, pelo recorrente, das provas a reapreciar é questão que tem a ver com o mérito da impugnação, com a procedência ou improcedência do recurso, mas não com a sua liminar rejeição ou aceitação”.

A significar que para a procedência de qualquer pretensão recursiva fáctica, o recorrente tem de proceder a uma apreciação crítica dos elementos de prova convocados pela decisão fáctica recorrida e de outros que o próprio apelante invoque em benefício da sua pretensão recursiva, apresentando as concretas razões pelas quais desses meios de prova se impunha retirar conclusões fácticas diversas daquelas a que chegou o tribunal recorrido, sendo que no domínio da prova testemunhal essa apreciação crítica não se basta com a invocação de alguns depoimentos e com a mera transcrição dos mesmos.

Ora, lidas as alegações e correspondentes conclusões, constata-se que das mesmas não emerge qualquer argumentação que permita perceber as razões pelas quais as declarações daquela testemunha deveriam ter sido ponderadas em termos diferentes daqueles em que o foram pelo tribunal recorrido.

A significar que o recorrente não cumpriu o pressuposto básico de procedência da sua pretensão recursiva fáctica e referente ao mencionado exame crítico.

Assim sendo, não se detectando erro de relevo em que tenha incorrido o tribunal recorrido na valoração (positiva e negativa) das declarações daquela testemunha, por si ou conjugadas com outros meios de prova, tudo no uso de uma imediação que exclusivamente lhe assistiu, não vislumbramos razão consistente para censurar tal decisão no segmento que está em apreço.


Δ

Consta do ponto 27º) dos factos provados que “Até 2012, a nomeação para lecionar Educação Moral e Religiosa Católica era feita pela Diocese, no caso em apreço pela Diocese da Guarda, limitando-se a ré a informar a Diocese da Guarda do número de horas que terá a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica em cada ano letivo, mais lhe solicitando a nomeação de docente para preencher o número de horas indicado, que corresponde ao número de horas da disciplina em cada ano letivo.”.

Pretende a apelante que desse ponto passe a constar, em alternativa, que “A nomeação para lecionar Educação Moral e Religiosa Católica é feita pela Diocese, no caso em apreço pela Diocese da Guarda, limitando-se a ré a informar a Diocese da Guarda do número de horas que terá a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica em cada ano letivo, mais lhe solicitando a nomeação de docente para preencher o número de horas indicado, que corresponde ao número de horas da disciplina em cada ano letivo”.

Oferece como suporte da sua pretensão recursiva o depoimento de ..., assim como os documentos 15 a 27 da contestação.

Comece por referir-se que os documentos 15 a 27 da contestação não gozam de qualquer força probatória vinculada que se mostre beliscada pela decisão de facto produzida pelo tribunal recorrido no concreto segmento que está em análise.

O mesmo se diga relativamente ao depoimento testemunhal que a apelante convoca conjugadamente com aqueles documentos.

Tratam-se, assim, de meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal, que os ponderou no exercício de uma imediação que exclusivamente lhe assistiu e sem que este tribunal divise erro relevante que importe corrigir.

E isso é tanto mais assim, quanto é certo que em relação a estes meios de prova a apelante também não procedeu ao necessário exame crítico dos mesmos apresentando as concretas razões pelas quais desses meios de prova se impunha retirar conclusões fácticas diversas daquelas a que chegou o tribunal recorrido, sendo que no domínio da prova testemunhal essa apreciação crítica não se basta com a invocação de alguns depoimentos e com a mera transcrição dos mesmos, assim como em relação à prova documental não se basta com a convocação de determinados documentos, sem concreta explicitação das razões pelas quais o tribunal recorrido os deveria ter ponderado  de forma e com conclusões diferentes.

Improcede, pois, esta pretensão recursiva fáctica.


Δ

Pretende a apelante, em reversão do decidido quanto aos factos não provados, que se dê como provados o seguinte: “No período compreendido entre Setembro de 2012 até hoje, vigora o último contrato de trabalho reduzido a escrito, designadamente a 01 de Setembro de 2011, nos termos do qual a autora acorda com a ré a prestação de um horário de trabalho a tempo parcial.”.

O ora em apreço representa uma duplicação da primeira pretensão recursiva fáctica da apelante relativamente ao ponto 13º) dos factos e que, como visto, improcedeu.

Dando aqui por reproduzidas todas as considerações feitas para declinar o pretendido pela ré em relação a esse ponto 13º), declinamos, igualmente e sem necessidade de argumentação adicional, a pretensão recursiva fáctica que ora está em apreciação.

Segunda questão: se a partir de 1/9/2012, o contrato de trabalho da autora se converteu de contrato de trabalho a tempo parcial em contrato de trabalho a tempo integral.

Por reporte a esta questão importa sublinhar o que foi decidido pelo tribunal recorrido, sem oposição das apelante e apelada, e por isso com trânsito em julgado: 1º) o contrato de trabalho entre a autora e a ré iniciou-se em 23/9/2005, devendo ser configurado desde então como contrato de trabalho sem termo, com a consequente ineficácia de todos os subsequentes contratos celebrados entre ambas e por via dos quais pretendia conferir-se a natureza de “contrato a termo” àquele que já era “contrato sem termo”;  2º) esse mesmo contrato sem termo deveria ser qualificado como contrato de trabalho a tempo parcial, inicialmente em horário com componente lectiva semanal de sete horas acordado no contrato identificado nos pontos 4º) e 5º) dos factos provados; 3º) apesar da ineficácia dos contratos a termo celebrados entre a autora e a ré nos anos de 2006 a 2011, no que concretamente respeita ao ali acorado quanto à natureza a termo do contrato de trabalho, que já era sem termo, ainda assim deveria atender-se a cada um desses contratos para efeitos de se determinar quantificadamente o período normal de trabalho a tempo parcial a que a autora ficava obrigada para com a ré; ) por via do referido em 3º) e dos contratos aí mencionados, a autora e a ré foram introduzindo alterações no período normal de trabalho a tempo parcial a que a autora ficava obrigada – 15 horas lectivas semanais no ano de 2006/2007; 13 horas lectivas semanais nos ano de 2007/2008 e 2008/2009; 18 horas lectivas semanais no ano de 2009/2010; 16 horas lectivas semanais no ano de 2010/2011; 14 horas lectivas semanais no ano de 2011/2012; ) a partir 31/8/2012, nunca mais foi celebrado nenhum contrato entre a autora e a ré, designadamente para fixação do período normal de trabalho a tempo parcial a que a autora ficava obrigada.

Partindo da circunstância referida em 5º), o tribunal recorrido considerou que “… as partes não formalizaram a intenção de manter o contrato como de trabalho a tempo parcial…”, daí emergindo como consequência a “…. que se encontra determinada no artigo 153º, nº 3, do Código do Trabalho, isto é, “quando não tenha sido observada a forma escrita, considera-se o contrato celebrado a tempo completo.”.

Com o devido respeito, não acompanhamos o tribunal recorrido.

Com efeito, o autor e a ré vincularam-se, em Setembro de 2005, por um contrato trabalho escrito e a tempo parcial, com a particularidade de que esse contrato deveria considerar-se sem termo, ao invés no que nele se tinha clausulado quanto à aposição de um termo certo.

Ora, também no âmbito dos contratos de trabalho, tendencialmente duradouros e de forma reforçada, rege o denominado princípio da estabilidade contratual emergente, v.g., do estatuído no art. 406º do CC, nos termos do qual “O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.”.

Com efeito, uma vez celebrado, o contrato plenamente válido e eficaz constitui lei imperativa entre as partes, imperatividade essa que se concretiza através de outros três princípios: o da pontualidade, utilizando a lei a palavra “pontualmente” com o alcance de que o contrato deve ser executado ponto por ponto, quer dizer, em todas as suas cláusulas; os da irretractabilidade ou da irrevogabilidade dos vínculos contratuais; e o da intangibilidade do seu conteúdo.

Assim, o contrato deve ser cumprido “pontualmente”, quanto ao tempo, lugar e modo da prestação, devendo ser executado de forma a satisfazer plenamente todos os deveres dele resultantes; só poderá modificar-se ou resolver-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.

Ora, no caso em apreço, em Setembro de 2011 apelante e apelada acordaram por escrito em fixar o tempo de trabalho parcial a prestar pela segunda à primeira em 14 horas lectivas mensais (ponto 12º dos factos provados), assim alterando consensualmente o tempo de trabalho parcial então em vigor.

A partir de tal data nenhuma outra modificação foi introduzida no contrato de trabalho entre a autora e a apelante.

Assim sendo, de 2011 em diante o contrato de trabalho a tempo parcial entre a autora e a ré passou a ter um período normal de trabalho reduzido de 14 horas lectivas semanais.

É certo que em anos posteriores, designadamente a partir de Outubro de 2013, a autora prestou menos e mais horas do que aquelas a que se tinha comprometido em 2011 (ponto 17º dos factos provados).

Sucede que os factos provados não suportam qualquer conclusão no sentido de que tal alteração do período de trabalho tenha sido acordada com a autora, assim como não suportam qualquer conclusão no sentido de que se trataram de alterações impostas ao abrigo de previsões legais ou contratuais que as legitimassem.

Não pode proceder, pois, qualquer pretensão da autora e que lhe foi reconhecida na sentença recorrida, no sentido de lhe ser paga “… a diferença entre o que foi pago à autora e o montante a que tem direito pela prestação do trabalho a tempo completo, em conformidade com o definido no contrato coletivo de trabalho.”.

Terceira questão: se a autora é titular de qualquer crédito sobre a ré partir de 1/9/2012, pela circunstância de em alguns anos subsequentes ter prestado menos horas de trabalho do que aquelas a que estava obrigada a partir daquela data.

Como visto a respeito da questão segunda, o período normal de trabalho parcial a que a autora e a ré ficaram vinculadas a partir de Setembro de 2012 é 14 horas lectivas mensais

Sucede que a autora apenas prestou as seguintes horas: 12 horas lectivas por semana no período de 1 de Setembro a 1 de Outubro de 2013 e de 1 de Novembro de 2013 a 31 de Agosto de 2014;  11 horas lectivas por semana no período de 1 de Setembro a 26 de Outubro de 2014, bem como de 8 de Julho a 31 de Agosto de 2015; 9 horas 30 minutos lectivas por semana no período de 1 a 28 de Setembro de 2015, sendo de 11 horas 30 minutos lectivas por semana de 29 de Setembro de 2015 a 31 de Agosto de 2016, em 2015/2016; 9 horas 15 minutos lectivas por semana, em 2016/2017;  2 horas 15 minutos lectivas por semana, em 2017/2018;  1 hora 45 minutos lectivas por semana, em 2018/2019.

Por outro lado, a ré confessa no seu art. 57º) da contestação, que “A Autora foi corretamente remunerada pelo número de horas efetivamente prestadas junto da Ré.”.

A significar que a ré confessa não ter pago à autora, sempre, as 14 horas lectivas semanais que tinha de pagar, devendo ser condenada a pagar, a partir de 1/9/2012, quando existam e sempre que existam, as diferenças entre os montantes pagos pela ré efectivamente e aqueles que deveriam ser pagos por correspondência a um horário parcial de 14 horas lectivas semanais.

A quantificação dos valores a pagar pela ré deverá ser relegada para ulterior liquidação, pois que não são conhecidos os reais valores pagos pela ré à autora por correspondência às horas de trabalho efectivamente prestadas.

Com efeito, consta da sentença recorrida, sem divergência recursiva manifestada, que “… não constando dos autos os recibos de retribuição, não foi possível apurar os valores pagos.”.

Em qualquer caso, os créditos da autora jamais poderão superar os 48.579,60 euros peticionados pela autora a título de diferenças salariais subsequentes a Setembro de 2012.

Quarta questão: se a autora é titular de qualquer crédito sobre a ré até 1/9/2012, pela circunstância de os valores pagos pela ré serem inferiores aos que resultam do IRCT aplicável.

A este respeito comece por recordar-se que arrogando-se a autora determinados direitos de crédito salariais referentes a diferenças entre o que lhe foi pagou e o que lhe deveria ter sido pago segundo o instrumento de regulamentação colectiva de trabalho aplicável[1], competia-lhe a ela alegar e provar os factos necessários ao reconhecimento desses créditos (art. 342º/1 do CC).

Em especial, competia-lhe alegar e provar que montantes lhe foram pagos pela ré, os elementos de facto necessários ao enquadramento da autora nos diferentes níveis da tabela salarial aplicável segundo o IRC aplicável, por forma a que o tribunal pudesse concluir, se fosse o caso, no sentido de que os montantes pagos eram inferiores aos devidos.

Sucede que a autora não logrou fazer essa prova, como claramente consta da decisão recorrida, onde se afirma, sem divergência recursiva de quem quer que fosse, o seguinte: “No que tange às retribuições auferidas pela autora, o Tribunal atendeu ao teor dos contratos de trabalho juntos aos autos.

Todavia, o facto de os contratos terem sido celebrados com indicação de determinados montantes de retribuição não significa que tenha sido esse efetivo valor a ser pago, designadamente se tiver havido alteração por efeito da contratação coletiva.

Assim, não constando dos autos os recibos de retribuição, não foi possível apurar os valores pagos.”.

Não se tendo apurado os valores pagos pela ré, competindo à autora tal ónus (art. 342º/1 do CC), fica inviabilizado reconhecer-se à autora qualquer crédito correspondente à diferença entre o que seria devido e o que foi pago.

Improcede, assim, esta pretensão da autora.

IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta sexta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação parcialmente procedente, alterando-se o dispositivo condenatório nos seguintes termos:

Julgando parcialmente procedente a acção, condenar a ré «Escola N..., Lda» a:

i. Reconhecer que entre a ré «Escola N..., Lda» e a autora P... existe, desde 23 de Setembro de 2005 até à presente data, um contrato de trabalho sem termo, a tempo parcial de 14 horas lectivas semanais a partir de 1 de Setembro de 2011;

ii. Pagar à autora P... a importância que se vier a liquidar em incidente posterior respeitante à diferença entre os montantes que pagou desde 1 de Setembro de 2012 e aqueles que devia ter pago por aplicação contrato colectivo de trabalho aplicável, tendo por referência o horário parcial de 14 horas lectivas semanais, com o limite de 48.579,60 euros;

iii. Pagar à autora P..., enquanto o contrato de trabalho vigorar e não for modificado quanto ao tempo de trabalho parcial, a retribuição mensal prevista no contrato colectivo de trabalho aplicável por referência a um horário parcial de 14 horas lectivas semanais;

iv. Pagar os juros que se vencerem, à taxa legal, a contar da data da liquidação até efectivo e integral pagamento.

No mais, revoga-se a decisão recorrida, absolvendo-se a apelante das condenações adicionais que nela lhe foram impostas.

Autora e ré suportarão, provisoriamente e em partes iguais, as custas correspondentes a 48.579,60 euros; no remanescente, as custas serão suportadas pela autora.

Coimbra, 23/10/2020


(Jorge Manuel Loureiro)

 (Paula Maria Roberto)

 (Ramalho Pinto)



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[1] CCT celebrado entre a AEEP – Associação dos Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo e a FNE – Federação Nacional da Educação (BTE nº 46, de 2005), nº 11 de 2007, nº 10 de 2008, nº 5 de 2009, n.º 30, de 2011; deliberação da comissão paritária publicada no BTE nº 10, de 2014, e no BTE nº 30, de 2014.