Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
440/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: FÉLIX DE ALMEIDA
Descritores: REVOGAÇÃO DE PERDÃO
Data do Acordão: 03/29/2006
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº. 4º DA LEI 29/99, DE 12/5
Sumário: Só a condenação em pena de prisão determina a revogação do perdão concedido pela Lei 29/99, de 12 de Maio.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, na secção criminal:
1. A douta decisão ora recorrida, no nosso entendimento é ilegítima, uma vez que deveria ser tomada no processo que correu no Tribunal Judicial da Marinha Grande, conforme está previsto no Art0 4º da Lei 29/9 de 12 de Maio.
2. De todo o modo, sempre a pena em que o arguido foi condenado nos autos “a quo”, estaria prescrita, quatro anos após o transito em julgado que a aplicou, sendo que o transito em julgado ocorreu em 15.6.2000, logo prescreveu em 15.6.2004. Já há muito tempo.
Pelo que a pena está prescrita, nos termos do Art0 122º n01 alínea d) e n02 do Código de Processo Penal.
3. A aplicação hoje de uma pena de prisão ao arguido não se enquadra em qualquer principio ou razão objectiva de dissuasão ou de repressão, urna vez que estaria a aplicar—se uma pena a um homem totalmente distinto daquele que praticou os factos.
Os mais altos valores da Justiça impõem que não seja de aplicar penas — em casos como o do arguido, em que em determinada época, já longe no tempo, errou, e hoje é um homem diferente e totalmente integrado na sociedade.
4. Requer-se assim que seja revogada a douta sentença de fls.., (sic).
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É do seguinte teor, o despacho recorrido:
Conforme decorre da sentença proferida nestes autos a fls. 60 e ss., de 5/6/2000, foi o arguido condenado na pena única de 8 meses de prisão, tendo-lhe sido declarado perdoado a totalidade da pena de prisão, sob a condição resolutiva constante do artigos 4º da Lei 29/99, ou seja, de não praticar infracção dolosa nos três anos subsequentes à entrada em vigor da referida lei.
Atendendo aos elementos constantes dos autos decorre que o arguido não cumpriu a condição prevista no artigo 4º da Lei 29 99.
Com efeito, resulta do CRC do arguido junto aos autos, bem como da certidão da decisão de fIs. 133 e ss. que o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução de veiculo cm estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º n0 1 do Código Penal, e de um crime de condução ilegal, p. e p. no artigo 30, n0s. 1 e 2 do D.L. n0 2/98, de 3 de Janeiro, na pena única de 120 dias de multa à taxa diária de 2,50 Euros, tendo sido tais factos praticados em 9 de Agosto de 2000, ou seja, nos três anos subsequentes à entrada em vigor da Lei 2/99.
Deste modo, e tratando-se da prática de crimes dolosos, não subsistem quaisquer dúvidas de que o arguido não cumpriu a condição constante do artigo 40, havendo por isso lugar à revogação do perdão de um ano (lapso manifesto, por similitude com outro processo?) quc lhe havia sido concedido.
Face ao exposto decide-se revogar o perdão de 8 meses de prisão concedido ao arguido, pelo que, consequentemente, deverá o mesmo cumprir tal período de prisão.
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À motivação do recorrente respondeu o Ministério Público no tribunal a quo, defendendo a manutenção do decidido - fls.181/190.
Nesta Instância foi emitido, pelo Ex.mo PGA, Parecer de provimento, com que se concorda e que, por tal se irá seguir .
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Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Não se emite decisão de rejeição, face à não indicação das normas jurídicas violadas – artº 412º nº 2 a) CPP – porquanto se torna redundante o obrigatório convite a tal indicação, sendo que se apreende, sem grande esforço intelectual, a razão do recurso.
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São , de todo, irrelevantes os argumento da “ilegitimidade da decisão(?) – o tribunal que concedeu o perdão até foi o mesmo que, ora, o revogou – e de “os mais altos valores da justiça” por insuportado apoio normativo, quer a nível substantivo, quer adjectivo, de ordem penal.
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Ainda não houvera decorrido o prazo prescricional, aquando da interposição do recurso porque, contrariamente ao referido a sentença condenatória não transitou em 5/6/00, mas sim em 12.11.2001 - cfr. Certidão de fls. 81.
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Por sentença de 5/6/00 – fls. 68 e sgs. - foi o arguido condenado na pena de 8 meses de prisão pela prática de um crime de furto pp pelo art.0 203, 1, do Código Penal, que foi declarada perdoada ao abrigo do preceituado nos art.0s 1º e 2º da Lei 29/99, de 12/5 e sob a condição resolutiva prevista no art.º 4º da mesma Lei.
Tal sentença só veio a ser notificada pessoalmente ao arguido no dia 26.10.2001 - cfr. Certidão de fls.86.v. -, já que, o julgamento se realizou na sua ausência, tendo transitado em 12.11 .2001 - cfr. Certidão de fls. 81.
O arguido veio a ser condenado por sentença de 21/5/02, transitada, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez e de um crime de condução ilegal, praticados em 09.8.2.000, isto é, antes de ter sido notificado daquela sentença.
Ora, desconhecendo o arguido o perdão que lhe havia sido concedido e (bem, diga-se) fundamentam a decisão recorrida, isto é, não sabia que havia sido condenado, nem tão pouco que o fora em 8 meses de prisão e bem assim que tal pena lhe havia sido perdoada com a condição de não praticar nova infracção dolosa no prazo de 3 anos, quer-nos parecer, que a condenação por esse(s) crime(s) não tem a virtualidade de revogar, automaticamente, o perdão concedido.
Com efeito, segundo o Relatório do C.Penal, “um dos princípios basilares do diploma reside na compreensão de que toda a pena tem de ter como suporte axilògico-normativo uma culpa concreta. O princípio nula poena sine culpa, combatido ultimamente em certos quadrantes do pensamento jurídico-penal, embora mais, ou quase exclusivamente, contra a vertente que considera a culpa como fundamento da pena, ganhou o voto unânime de toadas as forças políticas representadas no parlamento alemão, quando se procedeu à apreciação dos grandes princípios orientadores da reforma daquele sistema penal. E mais. Podemos dizer, sem querer entrar em pormenores, que ela corresponde, independentemente da perspectiva em que se coloque o investigador, a uma larga e profunda tradição cultural portuguesa e europeia”.
Ainda, nesta perspectiva, se lê em Germano Marques da Silva, in Direito Penal português, Verbo, I, 81 e segs., que “fundamento e limite de qualquer política criminal num Estado de Direito, o princípio da culpabilidade significa que a pena se funda na culpa do agente pela sua acção ou omissão, isto é, em juízo de censura ao agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo.
“…
Por isso que a exigência constitucional da culpabilidade se deduz da dignidade da pessoa humana (cf. artº 1º da CRP).
“…
O homem é delinquente por haver agido, violando o dever de não agir ou omitido o cumprimento de um dever jurídico de agir, por própria opção, com consciência e vontade de desobedecer à lei”.
A automática revogação do perdão concedido vê-se desapoiada nestas interpretações do princípio geral de processo penal sobre a culpabilidade do agente: não tinha sequer conhecimento do benefício concedido, para que se possa falar em omissão ou incumprimento.
Ainda que assim não fosse entendido, por proibição de uma eventual alegado interpretação restritiva - valendo, sempre, a interpretação de que o perdão concedido em leis de clemência funciona independentemente de qualquer decisão judicial ou de qualquer aviso aos beneficiários – já tal obstáculo se veria removido, a nosso ver, se se aderir á interpretação de que é necessário que a pena imposta pelo crime praticado nos três anos subsequentes seja uma pena de prisão, para que se considere preenchida a condição resolutiva prevista no citado artº 4º.
“Uma das linhas de força de toda a reforma do direito penal português empreendida nos últimos 20 anos é, no dizer de Figueiredo Dias, a da utilização da pena privativa da liberdade como ultima ratio da política criminal, o que se traduz na pretensão da sua substituição sempre que possível por uma pena não institucional. E o que resulta da aplicação dos «princípios político-criminais da necessidade, da proporcionalidade e da subsidiariedade da pena de prisão» Se isso ocorre com o direito de punir, não acontece de modo diferente com o direito de graça, que constitui a sua contra face. Através dele o legislador, num acto de magnanimidade e tolerância, visa reagir à severidade da lei e, corrobora «a defesa dos valores sociais considerados imprescindíveis á realização da pessoa humana livre e corresponsável pela comunidade onde está inserida». A esta luz, dificilmente se compreenderia que o perdão que, num esforço de luta contra a prisão e os seus efeitos criminógenos, foi concedido através do artigo 4º da Lei n0 29/99, de 12 de Maio, viesse a ser revogado de forma automática em consequência da prática de um qualquer crime, por mais pequena que fosse a sua gravidade e independentemente da natureza da pena que com base nele viesse a ser aplicada.
Tal consequência, implicando uma completa inversão dos princípios político-criminais adoptados pelo legislador em consonância com a Constituição, não teria qualquer justificação material e contribuiria, em muitos casos, para o retrocesso no processo de socialização alcançado” - ACRL de 9.1.03, disponível em www.dgsi.pt., citado no referido Parecer.
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Acresce que, a interpretação restritiva que aqui se acolhe, para além de teleològicamente fundada, tem claro suporte na letra da lei, quiçá no seu espírito, quando nesta se refere, na parte final do citado artigo 4º, que «à pena aplicada á infracção superveniente acrescerá a pena ou parte da pena perdoada».
Deste trecho transparece, de uma forma nítida, que a pena que origina a revogação do perdão é necessariamente uma pena de prisão. Só a sua execução pode acrescer, em normalidade, à da pena de prisão que havia sido perdoada.
Ora, subscrevendo tal entendimento e porque o recorrente pelos crimes que fundamentam a decisão recorrida apenas foi condenado em pena de multa, não impõe nem implica e muito menos automaticamente, a revogação do perdão concedido.
Destarte que, “a esta luz, dificilmente se compreenderia que o perdão que, num esforço de luta contra a prisão e os seus efeitos criminógenos, foi concedido através do artigo 4º da Lei n0 29/99, de 12 de Maio, viesse a ser revogado de forma automática em consequência da prática de um qualquer crime, por mais pequena que fosse a sua gravidade e independentemente da natureza da pena que com base nele viesse a ser aplicada” – supra mencionado Ac. R. L.xa.

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Termos em que se acorda em conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido.
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Sem tributação.
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Coimbra,
Arlindo Félix de Almeida.