Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1747/06.3TJLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JACINTO MECA
Descritores: CONTRATO
CRÉDITO
MÚTUO
JUROS
OBRIGAÇÃO
RESTITUIÇÃO
PRESTAÇÃO
Data do Acordão: 09/16/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 781º C. CIV. E DEC. LEI Nº 359/91, DE 21/09
Sumário: I – O artº 2º, nº 1, al. a), do D. L. nº 359/91, de 21/09, prescreve que o contrato de crédito é o contrato por meio do qual um credor concede a um consumidor um crédito sob a forma de mútuo.

II – Da previsão legal enunciada nos nºs 1 e 3 do artº 4º do citado diploma, resulta que a obrigação a realizar pelo consumidor é única e representa a restituição da quantia mutuada e juros remuneratórios acordados.

III – Sendo única a obrigação de restituição – quantia mutuada + juros remuneratórios – e acordando as partes que o mutuário cumpre a sua obrigação pagando-a em 60 prestações, não se pode deixar de concluir que cada uma das 60 prestações é composta por capital e juros remuneratórios.

IV – O artº 781º do C. Civ. deve ser interpretado no sentido de o plural do substantivo “prestações” se reportar única e exclusivamente ao capital mutuado e porque se trata de uma obrigação liquidada fraccionadamente, a lei consagra que a falta de realização de uma das prestações importa o vencimento de todas.

V – A falta de pagamento de uma prestação importa, nos termos do artº 781º C.Civ., o vencimento das restantes, o que deve ser interpretado no sentido da sua imediata exigibilidade e não que a data do vencimento passe a ser a da prestação faltosa.

VI – Daí não se excluir a necessidade de interpelação do devedor, dado tratar-se de uma faculdade do credor que a exercerá se assim o entender.

VII – Sendo exigível a totalidade da dívida de capital, nos termos do artº 781º CC, a verdade é que não são exigíveis ipso facto os juros remuneratórios que correspondam a períodos futuros.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Coimbra.
1. Relatório

A... intentou contra B... a presente acção com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos. Para tanto alegou que no exercício da sua actividade comercial e com destino, segundo indicação da ré, à aquisição de um veículo automóvel concedeu-lhe crédito directo sob a forma de mútuo, emprestando-lhe a quantia de € 2.800,00, com juros à taxa nominal de 18,16% ao ano, devendo a importância do empréstimo, os juros devidos e o prémio do seguro de vida serem pagos, na sede da autora, em 60 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira a 10 de Novembro de 2005 e as seguintes no dia 10 de cada um dos meses subsequentes. Mais alegou que a requerida, apenas, pagou a primeira das prestações vencidas encontrando-se em dívida a vencida em 10 de Dezembro de 2005 e as seguintes, sendo que o contrato de seguro foi anulado em 10 de Maio de 2006. A quantia em dívida ascende a € 4.367,93, quantia esta a que acresce uma outra no valor de € 472,03 de juros vencidos até ao dia 6 de Junho de 2006, mais a quantia de € 18,88 de imposto de selo, mais os juros que à taxa de 22,16% se vencerem até integral pagamento.
Concluiu pela procedência da acção e pela condenação da requerida a pagar-lhe a importância de € 4.367,93, acrescida de € 472,03 juros vencidos até ao dia 6 de Junho de 2006 e de € 18,88 de imposto de selo sobre estes juros e, ainda, os juros que sobre a dita quantia de € 4.367,93 se vencerem à taxa anual de 22,16% desde 7 de Junho de 2006 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de 4%, sobre estes juros recair.
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Não foi possível a citação pessoal da requerida para contestar a acção, por ser desconhecido o seu paradeiro, daí que se tivesse procedido à sua citação edital, mas decorridos o prazo dos éditos não contestou.
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Cumpriu-se o disposto no artigo 15º do CPC, citando-se o Ministério Público para contestar, o que não fez.
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Realizada a audiência de julgamento com observância do legal formalismo, elaborou-se sentença que julgou a acção parcialmente procedente por provada e consequentemente condenou a ré a pagar à autora a quantia correspondente à soma das prestações vencidas e em dívida à data da propositura da acção e das subsequentes, estas expurgadas das quantias correspondentes aos juros, cláusula penal e imposto de selo.
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Notificado a autora da sentença e uma vez que com ela se não conformou interpôs recurso – folhas 169 – que foi admitido como apelação com subida imediata e nos próprios autos e ao qual foi fixado o efeito meramente devolutivo – folhas 173.
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A autora apresentou as suas alegações que rematou, na parte que releva ao conhecimento do recurso, formulando as seguintes conclusões:
[…]
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2. Delimitação do objecto do recurso
As questões a decidir na presente apelação e em função das quais se fixa o objecto do recurso sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do artigo 660º e artigos 661º, 664º, 684º, nº 3 e 685ºA, todos do Código de Processo Civil, são as seguintes:
¨ Impugnação da matéria de facto – alínea a) do nº 1 do artigo 712º do CPC.
¨ A interpretação do artigo 781º do CC não permite distinguir entre fracções de capital e fracções de juros, e menos ainda, que apenas se aplica a fracções de capital ou apenas a fracções de juros. Mútuo fraccionado.
¨ Juros remuneratórios
¨ Juros moratórios em obrigação com prazo certo – alínea a) do nº 2 do artigo 805º do CC
¨ Imposto de selo de 4% sobre juros remuneratórios e moratórios.
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3. Matéria de facto dada como provada
1. Através de documento particular denominado/epigrafado de «Contrato de Mútuo» o A... e B..., na qualidade de mutuária, declararam celebrar o contrato de mútuo constante das condições específicas e gerais seguintes e nos termos do qual o A... declarou conceder àquela um empréstimo no montante de € 2.800,00, destinando-se o mesmo à aquisição, pela mutuária, de um veículo automóvel; mais declararam que o empréstimo será reembolsado em 60 prestações mensais, no valor de € 73,57, vencendo-se a primeira em 10 de Novembro de 2005, reembolso este a efectuar-se por transferência de uma conta aberta pela mutuária, junto de uma instituição de crédito, para outra de que o A... seja titular, junto da mesma ou de outra instituição de crédito e com taxa de juros à taxa nominal de 18,16%.
2. No referido documento foi ainda consignado que durante a vigência do contrato, a mutuária beneficia de uma apólice de seguro de vida subscrita pelo A... e foi ainda consignado que, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada, acrescida de quatro pontos percentuais.
3. Através de documento particular, datado de 29 de Novembro de 2005 e denominado de «primeiro aditamento ao contrato de financiamento para aquisição de crédito», foi ainda declarado pelo A... e pela requerida que esta subscreve o contrato de seguro de vida “Protecção Total” que lhe foi apresentado pelo primeiro e nos termos do qual aquela aceitou quer o valor da prestação mensal da “Protecção Total” seja debitado conjunta e automaticamente na mesma conta bancária que o contrato de crédito, tendo-se estipulado que aquela pagará ao A... uma prestação mensal actualizada que inclui o prémio de seguro de “Protecção Total” no montante de € 79,03.
4. A requerida, apenas, pagou a primeira prestação vencida em Novembro de 2005.
5. O contrato de seguro foi anulado em Maio de 2006.
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4. Aplicação do direito
4.1 – Impugnação da matéria de facto
A apelante defende que devem ser considerados provados os factos constantes do artigo 5º da petição inicial de acordo com o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 712º do CPC.
Não existe a mais leve dúvida quanto aos poderes conferidos aos Tribunais da Relação em matéria de apreciação da matéria de facto – o chamado duplo grau de jurisdição. Nesse sentido, a alínea a) do nº 1 do artigo 712º do CPC determina que a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690ºA, a decisão com base neles proferida.
A apelante não se insurge contra nenhum dos factos dados como provados, o que afirma é que àqueles deve ser aditada a matéria alegada no artigo 5º da petição inicial, realidade esta que não se enquadra em qualquer das alíneas do nº 1 do artigo 712º do CPC já que a apelante não aponta ao Tribunal a quo qualquer erro na apreciação das provas que incidiram na matéria de facto provada, o que diz é que a esta devia ser aditado o descrito na alínea b) do ponto nº 9 do contrato que faz folhas 10 e vº.
Não concordamos com a apelante, na medida em que a alínea b) da cláusula 9ª do contrato de folhas 10 e vº, mais não faz do que reproduzir o conteúdo normativo vazado no artigo 781º do CC, nos termos do qual a falta de realização de uma das prestações importa o vencimento das restantes.
Devendo o Tribunal obediência à lei – artigo 8º, nº 2 do CC – então não pode deixar de lançar mão, se essencial à apreciação do recurso, do conteúdo daquela norma – 781º do CC – que se não configura como matéria de facto, mas antes como matéria de direito, que não pode nem deve, por isso mesmo, ser levada aos factos provados.
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4.2 – Interpretação a conferir ao artigo 781º do CC. Mútuo fraccionado.
Embora extensas, as doutas alegações/conclusões apresentadas pela apelante podem resumir-se à seguinte realidade: o artigo 781º do CC não distingue entre fracções de capital ou fracções de juros ou que se aplica apenas a fracções de capital ou apenas a fracções de juros. A obrigação do mutuário num mútuo oneroso é, desde logo, a restituição da quantia ou da coisa mutuada e a respectiva retribuição acordada.
A sentença recorrida defende o seguinte entendimento, contra o qual a apelante se insurge:
Mas já no que concerne ao facto de peticionarem tais “conteúdos prestacionais” por referência a todo o tempo de vigência do mútuo, ou seja, por referência a tais prestações – as vencidas por falta de cumprimento «tout court» e as vencidas antecipadamente por causa desse incumprimento e como é sabido não é pacífico o entendimento sobre o concreto conteúdo da expressão «prestações» inserta no artigo 781º do CC. Há na verdade quem entenda que desse conteúdo há que expurgar os juros e acessórios, circunscrevendo-se o mesmo ao capital (nominal) incluído em cada uma das prestações. (…). Certo é que a solução maioritária do nosso mais alto Tribunal vai no sentido da atrás referida expurgação dos juros e acessórios do conteúdo das prestações (antecipadamente) vencidas por incumprimento de uma delas. (…). Sendo que o pedido abarca o montante dos juros e acessórios relativamente a todas as prestações, o mesmo será de indeferir no que concerne às prestações de juros, cláusula penal e imposto de selo correspondente às prestações que apenas se consideram exigíveis/vencidas por incumprimento de anteriores prestações vencidas.
Delimitada a questão, vejamos se assiste razão à apelante.
O A... e B..., na qualidade de mutuária, celebraram um contrato nos termos do qual aquele declarou conceder a esta um empréstimo no montante de € 2.800,00, destinado à aquisição, pela mutuária, de um veículo automóvel, mais declarando que o empréstimo é reembolsado em 60 prestações mensais, vendendo-se a primeira em 10 de Novembro de 2005 (facto 1).
Estamos em presença de um contrato de crédito, sob a forma de mútuo, cujo regime legal decorre do DL nº 359/91, de 21 de Setembro que regula novas formas de crédito ao consumo – artigo 1º – prescrevendo a alínea a) do nº 1 do seu artigo 2º que «contrato de crédito» é o contrato por meio do qual um credor concede (…) a um consumidor um crédito sob a forma de (…) mútuo (…)[1] .
O presente contrato encontra-se vazado no documento junto a folhas 10 e vº epigrafado por «Contrato de Mútuo», subscrito, no rosto, por ambos os contraentes – folhas 10 – assumindo-se como uma emanação dos princípios da autonomia privada e da liberdade contratual consignados no artigo 405º do CC.
Por se tratar de um contrato que envolve riscos consideráveis para as entidades financiadoras, estas mitigam-nos ou compensam-nos onerando o capital mutuado com taxas de juros remuneratórias elevadas, taxa de juro que no caso em apreço foi fixada/acordada em 18,16%, acrescida de 4% em caso de mora – alínea c) da cláusula 9ª do contrato.
Ciente da necessidade de instituir um conjunto de regras, ainda que mínimas, o legislador no preâmbulo do DL nº 359/91, de 21.9 não deixou de dar nota da necessidade de «estabelecer mecanismos que permitam ao consumidor conhecer o verdadeiro custo total do crédito que lhe é oferecido», definindo na alínea d) do nº 1 do artigo 2º o que se deve entender por custo total do crédito para o consumidor, ou seja, a totalidade dos custos do crédito, incluindo juros e outras despesas que o consumidor deva pagar pelo crédito”.
Por sua vez, o artigo 4º deste mesmo decreto-lei – DL nº 359/91, de 21.9 – define a fórmula de cálculo da TAEG – taxa anual de encargos efectiva global – na qual se integra os reembolsos e encargos a realizar pelo consumidor, cálculo que é efectuado no pressuposto de que o contrato de crédito vigorará pelo período de tempo acordado e de que as respectivas obrigações serão cumpridas nos prazos e datas convencionadas – nº 3 daquele artigo 4º.
Sumariando a previsão legal enunciada nos nºs 1 e 3 do artigo 4º, diremos que a obrigação a realizar pelo consumidor é única e representa a restituição da quantia mutuada e juros remuneratórios acordados. Assim, sendo única a obrigação de restituição – quantia mutuada + juros remuneratórios – e acordando as partes que o mutuário cumpre a sua obrigação pagando-a (quantia mutuada + juros remuneratórios) em 60 prestações, então, não podemos deixar de concluir que cada uma das 60 prestações é composta por capital e juros remuneratórios.
De resto, uma leitura, ainda que superficial do contrato de mútuo de folhas 10, permite concluir que não fora a remuneração do capital através da taxa de juro acordada, então, a entidade financiadora não tinha qualquer interesse comercial em conceder empréstimos [2] . Com este tipo de contrato, o consumidor de baixos recursos financeiros consegue a disponibilidade imediata de uma determinada quantia em dinheiro; afecta-a à aquisição do bem de consumo que projectou adquirir; reembolsa-a à entidade financeira através do pagamento de prestações mensais. Já a entidade financeira que concede o empréstimo e suporta o risco tem apenas uma expectativa: que o consumidor cumpra o contrato, recuperando a quantia mutuada, mas sobretudo que lhe seja paga a remuneração do capital acordada, residindo aqui o seu único fito neste tipo de contrato.
Tanto assim é que nas situações de cumprimento antecipado (total ou parcial) por parte do mutuário, a lei estabelece uma taxa de actualização que corresponde a uma percentagem mínima de 90% da taxa de juro em vigor no momento da antecipação do contrato em causa – nº 1 do artigo 9º do DL nº 359/91, de 21.9, para no nº 4 deste mesmo preceito precisar que o credor pode, todavia, exigir os juros e outros encargos correspondentes a um período convencionado que não exceda a primeira quarta parte do prazo inicialmente previsto, quando o consumidor cumprir as suas obrigações antes do decurso daquele período.
Será este regime jurídico suficiente para afastar a tese que, em caso de incumprimento do mutuário, só há lugar a juros remuneratórios desde que exista decurso do tempo?
A resposta a dar a esta pergunta está longe de ser consensual, mostrando-se dividida a jurisprudência das Relações e do Supremo Tribunal de Justiça [3] .
No entanto, antes de tomarmos posição sobre o alcance do artigo 781º do CC e sobre os juros remuneratórios e respectivo vencimento, impõe-se que consideremos não escritas/excluídas do contrato de mútuo assinado pelas partes, todo o clausulado epigrafado por «condições gerais» e que constam do verso do contrato de folhas 10.
Resenhando as “Condições Gerais” vertidas no contrato subscrito pela apelada damos conta do seguinte: o empréstimo será reembolsado em prestações mensais, iguais e sucessivas (…). No valor das prestações, além do capital, estão incluídos os juros do empréstimo, o valor dos impostos devidos, bem como os prémios de seguro (alíneas a) e c) da cláusula 5). Os juros são contados dia-a-dia sobre o capital que em cada momento se encontrar em dívida (alínea b) da cláusula 6). A falta de pagamento de uma prestação, na data do respectivo vencimento, implica o imediato vencimento das restantes. Em caso de mora e sem prejuízo do disposto no número anterior, incidirá sobre o montante em débito e durante o tempo da mora, a título de cláusula penal, uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual acrescida de quatro pontos percentuais, bem como outras despesas decorrentes do incumprimento, nomeadamente uma comissão de gestão por cada prestação em mora (alíneas b) e c) da cláusula 9).
A alínea c) do artigo 19º DL 446/85, de 25.10, alterado pelo DL nº 220/95, de 31.8 e DL nº 249/99, de 9 de Julho dispõe que – são proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, designadamente, as cláusulas contratuais gerais que consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir.
Sabemos que nas “condições gerais” consignou-se que sobre o montante em débito e durante o tempo da mora, a título de cláusula penal, uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual acrescida de quatro pontos percentuais, bem como outras despesas decorrentes do incumprimento – alínea c) da cláusula 9 – que, em nosso modesto ver, não viola o disposto na alínea c) do artigo 19º, na medida que as entidades que concedem financiamento ao consumo não estão sujeitas às limitações impostas pelo nº 2 do artigo 1146º do CC ex vi artigo 102º, § 2º do C. Comercial [4] e daí que a taxa de 18,16% não possa ser considerada como desproporcionada.
No entanto a alínea d) do artigo 8º do DL nº 446/85 declara que: consideram-se excluídas dos contratos singulares as cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contratantes.
Analisando fisicamente o contrato de mútuo que faz folhas 10 e 10vº verificamos que a assinatura dos outorgantes aparece aposta no rosto do contrato e após a descrição das condições específicas. No que concerne às «condições gerais» aparecem as mesmas inscritas no verso daquele documento e no qual – verso – se não encontra aposta a assinatura da mutuária.
Debruçando-se sobre as alíneas c) e d) do artigo 8º do DL nº 446/85, o Sr. Prof. Menezes Cordeiro ensina que estas alíneas «penalizam as “cláusula-surpresa” que constem de formulários, depois da assinatura dos contratantes: em ambos os casos se verifica um condicionalismo externo que inculca a ideia da inexistência de qualquer consenso. As cláusulas-surpresa são aferidas, pela função de um de três vectores: o contexto, a epígrafe e a apresentação gráfica (…). A hipótese de cláusulas inseridas depois da assinatura do aderente deixa; à saciedade, a suspeita de que não foram lidas ou de que, quanto a elas não houve acordo: donde a não-inclusão prevista na alínea d) do artigo 8º da LCCG» [5] .
Ora, constando do verso do contrato de mútuo todas as «condições gerais» não podemos deixar de as considerar totalmente excluídas do contrato, já que nenhum dos outorgantes, em particular a mutuária, procedeu à sua assinatura.
Verificada a exclusão das cláusulas posteriores às assinaturas dos contratantes, por força do disposto na alínea d), então teremos que perguntar se a apelante tem base legal para continuar a exigir a totalidade das prestações?
Por força da exclusão das «condições gerais» temos que nos reposicionar e voltar a analisar o regime supletivo – artigo 781º do CC – aplicável por via do disposto no artigo 1º do artigo 9º do DL 446/85, de 25.10.
Tal com o acima deixámos expresso, interpretamos o artigo 781º do CC no sentido de o plural do substantivo «prestações» se reportar única e exclusivamente ao capital mutuado e porque se trata de uma obrigação liquidada fraccionadamente, a lei consagra que a falta de realização de uma das prestações importa o vencimento de todas.
Esta interpretação é conforme aos ensinamentos do Sr. Prof. Antunes Varela: se o comprador faltar ao pagamento de qualquer delas, imediatamente se vencerão (…) todas as que estejam em dívida. O inadimplemento do devedor, quebrando a relação de confiança em que assenta o plano de pagamento escalonado no tempo, justifica a perda do benefício do prazo quanto a todas as prestações previstas no futuro. O credor fica, por conseguinte, com o direito de exigir a realização, não apenas da prestação a que o devedor faltou, mas de todas as prestações restantes, cujo prazo ainda se não tenha vencido. Assim se deve interpretar o texto do artigo 781º e não no sentido de que, vencendo-se imediatamente «ex vi legis», as prestações restantes, o devedor comece desde esse momento a responder pelos danos moratórios (…). A falta de pagamento de juros não implica o vencimento imediato da dívida de capital, visto não se tratar de fracções da mesma dívida[6] .
Regime diverso do acima enunciado encontra-se vazado no artigo 1150º do CC – o mutuante pode resolver o contrato, se o mutuário não pagar os juros no seu vencimento – impondo-se que precisemos que nos reportamos a juros convencionados como retribuição do mútuo – artigo 1145º, nº 1 do CC – podendo opor-se a esta interpretação a previsão vazada no artigo 1147º do CC: no mútuo oneroso o prazo presume-se estipulado a favor de ambas as partes, mas o mutuário pode antecipar o pagamento, desde que satisfaça os juros por inteiro.
O Supremo Tribunal de Justiça [7] entende que se tratam de duas situações distintas, já que «no primeiro caso, se o mutuário quer encurtar o tempo e pode impor ao mutuante esse encurtamento, não poderá, todavia, fazer recair sobre quem se propõe cumprir os efeitos desse imposto encurtamento; no segundo caso, se é o mutuante que não quer esperar e prefere voltar ao quo ante, então ele receberá apenas tudo o que estiver vencido, o capital (no caso a totalidade dele) e os juros vencidos».
Por via deste entendimento, o Supremo Tribunal de Justiça [8] sustenta que dizer-se, tal como faz a apelante «que o entendimento oposto privilegia o incumprimento e é gerador de vantagens para o devedor relapso, no cotejo com o que antecipa o pagamento, é considerar, como regra, que os contraentes não se regem por princípios de boa-fé, de lisura negocial, de ética e de bons costumes e que um comportamento assim pautado não é normal no cidadão comum, primeiro destinatário da lei».
Resumindo, diremos que na falta de pagamento de uma prestação, importa, nos termos do disposto no artigo 781º do CC, o vencimento das restantes, o que deve ser interpretado no sentido da sua imediata exigibilidade e não que a data do vencimento passe a ser a da prestação faltosa, daí não se excluir a necessidade de interpelação do devedor 9] dado tratar-se de uma faculdade do credor que a exercerá se assim o entender. Sendo exigível a totalidade da dívida de capital nos termos do artigo 781º do CC, a verdade é que não são exigíveis ipso facto os juros remuneratórios que correspondam a períodos futuros. Assim e por referência às prestações já vencidas – artigo 805º, nº, 2, alínea a) do CC – está naturalmente afastada a necessidade de interpelação, a qual – interpelação – só se coloca relativamente às prestações cujo prazo ainda se não vencera – artigo 805º, nº 1 do CC.
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4.3 - Juros remuneratórios. Imposto de selo.
Os juros remuneratórios podem surgir como contraprestação onerosa pela disponibilidade do capital ou como indemnização devida pela mora no cumprimento de uma obrigação [10], definindo o Sr. Prof. Antunes Varela juros como frutos civis, constituídos por coisas fungíveis, que representam o rendimento de uma obrigação de capital. São, por outras palavras, a compensação que o obrigado deve pela utilização temporária de certo capital, sendo o seu montante em regra previamente determinado como fracção do capital correspondente ao tempo da sua utilização [11] ..
Remuneratórios ou compensatórios, os juros assumem a natureza de frutos civis – artigo 212º, nº 2 do CC – emergindo da leitura das condições específicas do contrato de mútuo – folhas 10 – que as partes convencionaram a fixação de uma taxa anual de 18,16% a título de juros remuneratórios de capital e em sede de condições gerais mencionou-se numa taxa de 4% no caso de atraso de qualquer uma das prestações.
Se não temos dúvidas quanto à taxa de juro remuneratória acordada em 18,16%, entendemos que não podemos sancionar a apelada com a componente moratória de 4%, uma vez que tal taxa de juro consta da alínea c) da cláusula 9 das condições gerais do contrato de mútuo que pelas razões acima enunciadas foi, tal como as restantes, considerada excluída por força do disposto na alínea d) do artigo 8º do DL nº 446/85, de 25.10.
O caso em apreço não é confundível com a situação vertida no artigo 934º do CC e ainda porque o obrigação fraccionada do artigo 781º do CC não implica o vencimento antecipado das prestações de juros que visam retribuir o capital mutuado, já que se tratam de juros remuneratórios que só se vencem com o decurso do tempo e até ao momento em que ocorrer a restituição do capital.
Relativamente ao imposto de selo, por via de imposição legal – Lei nº 150/99, de 11 de Setembro – não podemos deixar de deferir a pretensão da apelante quando reclama a condenação da apelada no pagamento do imposto de selo, tal como a sua condenação no pagamento da quantia de € 300,00 devida a título de comissão de gestão e despesas com a transferência de propriedade.
Assim, a apelante tem direito à totalidade da quantia mutuada no valor de € 2.500,00; tem direito aos juros que incidam sobre as prestações que se venceram até à citação, sobre cada uma delas e a partir das datas dos respectivos vencimentos – alínea a) do nº 2 do artigo 805º do CC – são devidos juros à taxa anual de 18,16%, para além do imposto de selo de 4%; quanto às restantes prestações – as que se venceram depois da citação (nº 1 do artigo 805º do CC) são-lhe devidos juros à taxa de 18,16%, para além do imposto de selo de 4%. É, também, devida à apelante a quantia de € 300,00 relativa a despesas que suportou por via do contrato.
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Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso e consequentemente:
1. Condena-se a ré/apelada a pagar à autora/apelante a quantia mutuada no valor de € 2.500,00.
2. Condena-se a ré/apelada a pagar à autora/apelante, por referência às prestações que se venceram até à citação, sobre cada uma delas e a partir das datas dos respectivos vencimentos, juros à taxa anual de 18,16%, para além do imposto de selo de 4%.
3. Quanto às restantes prestações – as que se venceram depois da citação – condena-se a ré/apelada a pagar à autora apelante juros à taxa anual de 18,16%, para além do imposto de selo de 4%.
4. Condena-se a ré/apelada a pagar à autora apelante a quantia de € 300,00 relativa despesas que suportou por via do contrato.
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Custas da acção e apelação na proporção do decaimento, fixando-se a proporção em 4/6 e 2/6, respectivamente para autora e ré.
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Notifique.
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Coimbra, 16 de Setembro de 2008
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[1] Ac. STJ, datado de 21.11.2006, proferido no âmbito do processo nº 06A3420, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Borges Soeiro; Ac. Do STJ, datado de 27.9.2007, proferido no âmbito do processo nº 07B2212, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro António Santos Bernardino e Ac. RC. Proferido no âmbito do processo nº 295/06.6TBCNT.C1 relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Teles Pereira, todos eles disponíveis no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[2] Recorde-se que este tipo de contrato de concessão de crédito, regra geral, não é acompanhado por qualquer garantia de cumprimento, caso se verifique o incumprimento da obrigação por parte do mutuário. Recorde-se que o seguro de vida a subscrever pelo mutuário tem uma cobertura específica e só funciona em caso de morte ou acidente grave.
[3] Ac. STJ, datado de 22.2.2005, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Pinto Monteiro defende que tendo sido convencionado que a falta de pagamento de uma prestação na data do respectivo vencimento implica o imediato vencimento de todas as restantes, entendemos que é devida a totalidade pela importância global, não se justificando o abatimento de juros remuneratórios de prestações vencidas posteriormente à data do incumprimento – CJSTJ, Ano XIII, tomo I, pág. 87; No acórdão da RL, datado de 5.2.2002 relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Abrantes Geraldes escreveu-se: o conteúdo dessa responsabilidade deve buscar-se recorrendo ao regime legal supletivo. (…) Em matéria de juros remuneratórios, salvo convenção das partes, reconhece-se ao credor o direito de exigir uma taxa correspondente à taxa de juros remuneratórios acordada, acrescida da sobretaxa de 2% (…). O mutuário que faltou ao cumprimento de todas as prestações acordadas (…) pelo que todas as restantes passaram a ser exigíveis (…). O vencimento de todas as prestações repercutiu-se, não apenas, no capital mutuado, como ainda nos juros remuneratórios e outras despesas que entraram na composição do custo total do crédito a que se alude no DL nº 359/91 – CJ, Ano XXVII, tomo I, pág. 100. No mesmo sentido se pronunciou o acórdão da RL, datado de 7.2.2006, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Luís Espírito Santo – CJ, Ano XXXI, tomo I, pág. 96. Em sentido contrário Ac. STJ, datado de 19.4.2005, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Faria Antunes ao considerar que não podem os suplementos de juros, incluídos nas prestações de capital cujo vencimento é antecipado, ser exigidos como juros remuneratórios, por não poderem ser calculados em proporção de um tempo decorrido, por não corresponderem a um tempo efectivamente gasto – processo nº 05A493, publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt; Ac. STJ, datado de 14.11.2006, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Bettencourt de Faria que defendeu num mútuo oneroso em que a obrigação de restituir integra diversas prestações, cada uma delas composta por capital e juros remuneratórios, o disposto no artigo 781º só é aplicável à parte de capital, pois só esta é que é uma obrigação cujo cumprimento foi dividido em diversas prestações – processo nº 06B2911, publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt. Ac. STJ, datado de 5.6.2007, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Camilo Moreira Camilo que defende – sem decurso do tempo, não existem juros, não existe remuneração do capital – CJSTJ, Ano XV, tomo II, pág. 105. No Ac. do STJ, datado de 12.9.2006, proferido no âmbito do processo nº 06A2338 relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Sebastião Povoas e publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt considera-se que sendo o mútuo liquidável por forma dividida, fraccionada ou repartida, a falta de pagamento de uma prestação tem as consequências do artigo 781º do CC. Os juros remuneratórios, que exprimem o rendimento financeiro do capital mutuado, não podem ser incluídos nas prestações de capital cujo vencimento é antecipado, mas apenas nas prestações vencidas.
[4] Ac. RL, datado de 15.12.1999, BMJ nº 492, pág. 483; Ac. RL, datado de 5.2.2002, CJ, Ano XXVII, tomo I, pág. 100.
[5] Tratado de Direito Civil Português – I parte geral – Tomo I – 2ª edição – Almedina – pág. 435/6.
[6] Das Obrigações em Geral, volume II, 6ª edição – Almedina, pág. 53 e 54.
[7] Ac. datado de 27.4.2005, proferido no âmbito do processo nº 04B2529, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Pires da Rosa e disponível no endereço electrónico www.dgsi.pt. Este entendimento é seguido pelo acórdão do STJ, datado de 19.9.2006, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Sebastião Povoas, proferido no âmbito do processo nº 06A 2338, publicado no mesmo endereço electrónico.
[8] Acórdão datado de 19.9.2006, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Sebastião Povoas, proferido no âmbito do processo nº 06A 2338, publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[9] Ac. STJ, datado de 14.1.2006, proferido no âmbito do processo nº 06B2911, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Bettencourt de Faria e publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt. Ac. Do STJ, datado de 13.1.2005, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Ferreira Girão, CJSTJ, Ano XIII, tomo I, pág. 37. Sr. Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II volume, 6ª edição, Almedina, pág. 53.
[10] Sr. Dr. Correia das Neves, Manual dos Juros, Almedina, pág. 28.
[11] Das Obrigações em Geral, I volume, 6ª edição, Almedina, pág. 885/6