Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
288/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ART. 1775°, NOS 2 E 3, DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário:
I - No divórcio por mútuo consentimento, os cônjuges devem acordar quanto ao destino da casa de morada de família e quanto à sua utilização na pendência do processo - cfr. Art. 1775°, nos 2 e 3, do Código Civil.
II - Se o acordo não disser respeito ao destino da casa de morada de família, mas apenas à sua utilização na pendência do processo, e se, não obstante isso, o divórcio for decretado, então tem de se concluir que os cônjuges só pretenderam regular a utilização da casa na pendência do processo, terminando o acordo com o decretamento do divórcio, pelo que, findo o processo, deverá o cônjuge que a vem utilizando desocupá-la, se ela lhe não pertencer ou não lhe for atribuída a propriedade da mesma em posterior partilha dos bens do casal.
III - Omitido o acordo quanto ao destino da casa de morada de família, não é possível obter a mesma finalidade através do art. 1793° do Cód. Civil (que está mais vocacionado para os casos de divórcio litigioso ), já que não teria sentido que este norrnativo tivesse aplicação no caso de divórcio por mútuo consentimento, em relação ao qual a lei exige, corno se disse em I, que os cônjuges acordem quanto a tal destino, constituindo um dos requisitos para que seja decretado o divórcio.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

AA requereu, em 13/09/2002, contra o seu ex-cônjuge BB, por apenso ao processo de divórcio por mútuo consentimento nº 107/97, do 2º Juízo da comarca de Torres Novas, a atribuição da casa de morada de família, mediante o pagamento da renda mensal de 150 euros, alegando, em síntese, que as partes acordaram, nos autos de divórcio, que a casa de morada de família ficasse atribuída à ora requerente na pendência da acção, pretendendo agora que lhe seja atribuído tal direito, por ser ela e a filha menor do casal quem mais necessita da habitação.
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Foi realizada a tentativa de conciliação prevista no nº 2 do artº 1413º do Código de Processo Civil, que se frustrou.
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O requerido deduziu oposição, defendendo o indeferimento da pretensão da requerente, em virtude de não ser admissível a alteração do acordo respeitante ao destino da casa de morada de família por iniciativa apenas de uma parte, só podendo a alteração da situação ter lugar nos termos do artº 437º do Código Civil, e, ainda que a requerente tivesse esse direito, o mesmo seria atentatório dos mais elementares princípios da boa-fé e por isso o seu exercício seria abusivo.
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Efectuada a produção de prova documental e testemunhal, foi proferida decisão que atribuiu a casa de morada de família à requerente, a título de arrendamento, pela renda mensal de 170 euros.
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Inconformado, recorreu o requerido, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
- O acordo celebrado entre A. e R. nos autos de divórcio foi feito para vigorar apenas e só durante na pendência do divórcio, pelo que, findo este, deixou de existir qualquer acordo válido, vigente e eficaz entre requerente e requerido, devendo por isso considerar-se que a recorrida passou a ocupar a casa sem justo título ou direito que lho permita.
- Aceitar e apoiar a violação do acordo feito pelos ex-cônjuges quanto ao destino da casa de morada de família seria desvirtuar o instituto e compactuar com uma fraude à lei do regime do divórcio por mútuo acordo.
- O acordo quanto à casa de morada de família entre os ex-cônjuges foi celebrado conscientemente e no pleno exercício da autonomia de vontade de ambos, sem intervenção do Tribunal com os poderes que o nº 7 do artº 1407º do CPC lhe atribuía, tendo sido celebrado com o intuito de afastar a interpretação a contrario do nº 2 do artº 1419º do CPC;
- Tendo o acordo celebrado entre os ex-cônjuges sido realizado num contexto económico-social que não sofreu quaisquer alterações, não existem quaisquer alterações circunstanciais comprovadas que justifiquem a sua alteração e o prolongamento da sua eficácia material e temporal.
- A entender-se que as culpas dos cônjuges se equilibram (porque no divórcio por mútuo consentimento tudo se passa como se tais culpas não existissem), então a solução mais justa é a de regressarem ambos os cônjuges, no aspecto da sua residência particular, à situação anterior ao casamento, e a situação anterior ao casamento é precisamente a livre propriedade e disposição que o requerido possuía sobre a casa ora em questão, livre disposição essa que não poderá deixar de ser restabelecida.
- Convirá não só à menor habitar uma casa mais próxima da sua escola (evitando as despesas e os transtornos dos transportes públicos e os custos das refeições fora de casa), mas também à própria requerente, que poupará despesas de combustível em deslocações para o local de trabalho e lhe evitará transtornos e perdas de tempo em filas de trânsito.
- Não foram provados quaisquer interesses legítimos da filha do ex-casal em permanecer naquela específica casa, a sentença sob recurso carece de fundamento


fáctico e legal, pelo que, também por esse motivo, deve ser revogada.
- O Tribunal a quo, ao atribuir a casa de morada de família à requerente, concedeu relevo excessivo ao facto de ter sido atribuído à requerente o exercício do poder paternal.
- Tendo ficado provado a requerente receber mensalmente cerca de 1300 euros, e não tendo de forma alguma sido provadas quaisquer despesas significativas feitas pela requerente, não existe fundamento factico que comprove uma situação económica difícil por parte da requerente, pelo que o requisito da carência económica na determinação do destino da casa de morada de família carece em absoluto de base realística.
- Em parte alguma do processamento dos presentes autos resultou provado que aquelas necessidades da requerente, como as de qualquer outra pessoa, apenas pudessem ser realizadas e satisfeitas naquela específica casa, pelo que o requisito da necessidade do cônjuge na atribuição da casa de morada de família deve ser tido por não cumprido e, igualmente por esse motivo, não pode deixar de se considerar a pretensão da requerente como manifestamente abusiva e absolutamente carente de fundamentação fáctica e legal.
- O valor da renda a pagar pela requerente ao requerido determinado na sentença é manifestamente reduzido, ínfimo mesmo, porquanto a casa do primeiro andar do mesmo prédio é arrendada por 515 euros/mês e porque a requerente não sofre de quaisquer dificuldades económicas, bem podendo pagar mensalmente uma renda equivalente (500 euros/mês).
- Foram violados os artºs 1407/7, 1413º e 1419º/2 do CPC, o artº 62º da CRP, os artºs 1673º, 1775º e 1793º do C.C. e o artº 84º do RAU.
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A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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Corridos os legais vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Na 1ª instância foi dado como provado o seguinte:
A) - BB e AA casaram um com o outro no dia 05/09/1987.


B) - CC nasceu no dia 18/01/1988 e é filha do BB e da AA.
C) - O casamento foi dissolvido por divórcio decretado a 10/10/1997, nos autos de divórcio por mútuo consentimento a que os presentes autos se encontram apensos.
D) - Nos autos de divórcio o BB e a AA declararam que acordavam na atribuição da casa de morada de família à requerente mulher, vigorando este acordo na pendência da acção de divórcio.
E) - A casa de morada de família estava instalada no r/c e cave do prédio urbano composto por cave para estacionamento, arrecadação, r/c e 1º andar, sito na DD, freguesia de S.Pedro, concelho de Torres Novas, inscrito na matriz sob o artº 2410 e descrito na Conservatória do Reg. Predial de Torres Novas sob o nº 599.
F) - O prédio referido em E) encontra-se registado a favor do BB como bem próprio deste.
G) - A filha da requerente e do requerido reside com a mãe na casa mencionada em E) desde a compra da mesma até à presente data.
H) - O requerido pretende que lhe seja entregue a referida casa, tendo dado entrada neste Tribunal (de Torres Novas, entenda-se) uma acção ordinária com o nº 291/2002, na qual peticiona a entrega do imóvel.
I) - A filha da requerente e do requerido sofre de patologia neurológica crónica, necessitando de vigilância médica periódica e de medicação contínua, não colidindo tal doença com as tarefas próprias da sua idade.
J) - A requerente é professora do ensino básico e aufere o vencimento mensal líquido de cerca de 1.122,62 euros.
K) - O requerido paga, de pensão de alimentos devidos à menor, o valor de 174,58 euros.
L) - A menor frequenta um ginásio e os escuteiros.
M) - Todos os dias úteis a requerente dá 5 € à filha para esta almoçar na escola.
N) - O requerido é accionista maioritário da sociedade EE, e seu Presidente do Conselho de Administração e ainda sócio gerente da sociedade FF.
O) - O requerido aufere o salário de 450 € como gerente da sociedade FF, e o salário de 600 € como administrador da sociedade EE
P) - A sociedade GG, entre finais de 1996 e 1999, recebeu 900.000.000$00.
Q) - O requerido utiliza na sua vida diária um Mercedes modelo 350 SL e um Jeep marca Toyota, pertencentes à sociedade EE
R) - Tem uma mota e uma mota de água.
S) - O requerido reside numa moradia sita na Albufeira de Castelo de Bode, pertencente à sociedade EE, cujos terrenos foram vendidos a esta pelo requerido, por escritura pública de 18/12/2000, pelo preço de 5.400.000$00.
T) - O requerido é proprietário de duas lojas em Torres Novas que se encontram arrendadas.
U) - O requerido é proprietário do 1º andar do prédio descrito em E), que está arrendado e do qual recebeu, no ano de 1999, a renda anual de 984.640$00, no ano de 2000 a renda anual de 784.896$00 e no ano de 2001 a renda anual de 6.183,01 €.
V) - O requerido auferiu ainda, no ano de 2000, 5.775.600$00, e no ano de 2001 17.191,97 €, rendimentos de categoria F – rendimentos prediais, relativos a rendas de um prédio sito em Marrazes, Leiria, inscrito sob o artº 6079.
W) - O requerido declarou, no ano fiscal de 1999, o rendimento bruto de 4.578.370$00, no ano fiscal de 2000 o rendimento bruto de 5.447.076$00 e no ano fiscal de 2001 o rendimento bruto de 19.602,76 €.
ª
Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Proc. Civil).

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Começa o recorrente por dizer que o acordo celebrado entre ele e a requerente nos autos de divórcio foi feito para vigorar apenas e só na pendência do divórcio, pelo que, findo este, deixou de existir qualquer acordo válido, vigente e eficaz entre eles, devendo por isso considerar-se que a recorrida passou a ocupar a casa sem justo título ou direito que lho permita.

A requerente e o requerido foram casados um com o outro, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio por mútuo consentimento, decretado a 10/10/1997.
Os cônjuges declararam, nos autos de divórcio, que acordavam na atribuição da casa de morada de família à requerente mulher, vigorando esse acordo na pendência da acção de divórcio.
Não há dúvida, pois, que tal acordo terminou com o decretamento do divórcio.
Nem a requerente vem invocar esse acordo nos presentes autos, fazendo-o, antes ao abrigo do disposto no artº 1793º do Código Civil (diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).
E foi com base neste normativo que, nestes autos, foi atribuída à requerente a casa de morada de família.
Vejamos se isso é legalmente possível.
O artº 1775º (que tem a epígrafe “Requisitos”), estipula no seu nº 2, na parte que aqui interessa, que os cônjuges que pretendam divorciar-se por mútuo consentimento devem acordar sobre o destino da casa de morada de família.
O nº 3, por sua vez, dispõe que os cônjuges devem acordar ainda sobre o regime que vigorará, no período da pendência do processo, quanto à utilização da casa de morada de família.
Estes e os restantes acordos aí previstos revestem-se de primordial importância no decretamento do divórcio.
De tal forma que, como referem os Profs. Pereira Coelho e G.Oliveira (Curso de Direito de Família, I, 3ª ed., pág. 660/661), entre o acordo sobre o divórcio e estes acordos há uma união ou coligação negocial genética que se traduz aqui numa


relação de dependência bilateral: por um lado, esses acordos caducam e ficam sem efeito se os cônjuges ou algum deles, na conferência, não derem o seu acordo ao divórcio por mútuo consentimento e, por outro lado, o acordo sobre o divórcio depende daqueles acordos e da sua homologação; se no termo do processo esses acordos não forem homologados por não acautelarem suficientemente os interesses de algum dos cônjuges ou dos filhos, o pedido de divórcio é indeferido (cfr. artºs 1778º e 1778º-A).
Conclui-se destes normativos que o divórcio por mútuo consentimento não deve ser decretado sem que do requerimento apresentado por ambos os cônjuges conste o acordo sobre o destino da casa de morada de família.
Mas, o que é facto é que, no presente caso, não foi apresentado tal acordo, mas apenas quanto à utilização da casa de morada de família na pendência da acção – o que, como é obvio, é coisa diferente, conforme se vê dos nºs 2 e 3 do artº 1775º citado -, o que não impediu que fosse decretado o divórcio.
E agora levanta-se a questão de saber se, face a tal omissão, é possível obter a mesma finalidade através do artº 1793º.
Entendemos que não, uma vez que este normativo está mais vocacionado para os casos de divórcio litigioso (cfr. autores e ob. cit., pág. 719).
Não faria sentido que este normativo tivesse aplicação no caso de divórcio por mútuo consentimento, em relação ao qual a lei exige, como vimos, que os cônjuges acordem quanto ao destino da casa de morada de família, constituindo um dos requisitos para que seja decretado o divórcio (cfr. artigos atrás citados e 1419º, nº 1, al. f), do Código de Processo Civil).
Não se compreende que, tendo os cônjuges oportunidade (e obrigação) de decidir do destino da casa de morada de família na pendência da acção de divórcio, de acordo com as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal, se abstivessem de o fazer, podendo vir mais tarde requerer a atribuição da casa de morada de família, invocando tais necessidades e interesses, em muitos casos já conhecidos anteriormente.
Se o acordo sobre a casa de morada de família não disser respeito ao seu destino, mas apenas à sua utilização no período da pendência do processo, e se, não obstante isso, o divórcio for decretado, então tem de se concluir que os cônjuges só pretenderam tal objectivo, isto é, regular a utilização da casa na pendência do processo,


terminando o acordo com o decretamento do divórcio, pelo que, findo o processo, deverá o cônjuge que a vem utilizando desocupá-la, se ela lhe não pertencer ou não lhe for atribuída a propriedade da mesma em posterior partilha dos bens do casal.

No caso sub iudice, os cônjuges apenas acordaram sobre a utilização da casa de morada de família na pendência da acção de divórcio.
Decretado este em 10/10/1997 e dado que a casa pertence ao requerido, deveria a requerente ter desocupado a casa nessa data e tê-la entregue àquele, em virtude de os efeitos do acordo se restringirem ao período da pendência do processo do divórcio.
Em vez disso, continuou a requerente a ocupar a casa e só quando o requerido a accionou no sentido de lhe entregar a casa é que aquela veio requerer a atribuição da casa de morada de família.
Não tendo os cônjuges providenciado, em devido tempo, quanto ao destino da casa de morada de família em relação ao período posterior ao decretamento do divórcio, não pode agora a requerente ver provida a sua pretensão de lhe ser atribuída a casa em questão.

Poder-se-ia aceitar que, estando no campo dos processos de jurisdição voluntária, seria possível a alteração com fundamento em circunstâncias supervenientes que justificassem tal alteração, face ao disposto no artº 1411º do Cód. Proc. Civil.
No entanto, independentemente da posição que se tenha acerca dessa possibilidade de alteração, tal não é possível no presente caso, uma vez que a requerente não provou (já que nem, sequer, alegou na petição inicial) a existência de quaisquer circunstâncias supervenientes que justificassem que a mesma continuasse a usufruir da casa de morada de família.
Concluímos, por isso, que o requerimento inicial deveria ter sido julgado improcedente, não podendo, pois, o recurso deixar de proceder, com a consequente revogação da decisão recorrida.
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Decidida a questão abordada em primeiro lugar no sentido acabado de expor, fica prejudicada a apreciação das restantes questões apresentadas pelo recorrente.

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Termos em que se acorda nesta Relação em dar provimento ao recurso, julgando improcedente a acção e absolvendo o requerido do pedido, com a consequente revogação da decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrida.