Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1762/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: ARTICULADO SUPERVENIENTE
INADMISSIBILIDADE NOS PROCESSOS DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA E
CONSEQUENTEMENTE
NO INQUÉRITO JUDICIAL A SOCIEDADE
Data do Acordão: 09/23/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: REC. APELAÇÃO E AGRAVO
Decisão: NEGADO PRVIMENTO AOS RECURSOS DE AGRAVO E IMPROCEDENTE O RECURSO DE APELAÇÃO
Área Temática: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Legislação Nacional: ART. S 1409º, 1479º E 1480º DO C.P.C.
Sumário:
I- Não é admissível articulado superveniente nos processos de jurisdição voluntária, em virtude de a lei apenas prever a apresentação de dois articulados: o requerimento inicial e a oposição - cfr. Art. 303°, ex vi art. 1409° do C.P.C.
II- Por isso, não é admissível tal articulado no processo de inquérito judicial a sociedade, que está inserido nos processos de jurisdição voluntária, em relação ao qual apenas estão previstos dois articulados: o requerimento inicial e a resposta - cfr. Art. s 1479° e 1480° do C.P.C.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

João ... requereu, em 17/07/2001, pelo Tribunal da comarca da Figueira da Foz, contra José ... e Mond..., Ldª., inquérito judicial a esta sociedade, nos termos do artº 1479º e ss. do Código de Processo Civil, alegando, em síntese, o seguinte:
O requerente e o requerido são os únicos sócios-gerentes da 2ª requerida, aquele com uma quota de 1.200.000$00 e este com uma quota de 300.000$00, consistindo o objecto da 2ª requerida no comércio de peixe, marisco, moluscos e bivalves, na helicicultura e comércio de caracóis.
Era o requerido que, de facto, conduzia os negócios da sociedade, comprando e distribuindo o pescado pelos clientes, com acesso total à brochura dos cheques.
Em Maio de 1995 o requerente descobre que a firma tem negócios com uma empresa espanhola que gira sob o nome de Lonja El Rompido, não tendo sido informado pelo 1º requerido do negócio, das condições em que o mesmo estava a ser cumprido e nem sequer foi apresentado como sócio maioritário da firma.
Entretanto, o requerente consegue apoderar-se do livro de cheques da firma e dos documentos da contabilidade e é então que começa a aperceber-se dos verdadeiros contornos da questão.
Na verdade, o 1º requerido vendia pescado a clientes sem emitir qualquer tipo de factura, recebendo dinheiro por fora.
Outras situações gravosas para a sociedade foram entretanto descobertas, como quantias que a cliente da 2ª requerida, José Carlos de Sousa, Ldª, transferiu para uma conta particular do 1º requerido, e outras quantias houve que este embolsou em proveito próprio e depositou noutra sua conta particular, embolsando também determinadas verbas pertencentes à 2ª requerida mediante o saque de cheques emitidos sobre uma conta daquela, as quais foram depositadas numa conta particular do 1º requerido.
Todas estas e outras irregularidades, que descreve, encontram-se discriminadas no relatório que se junta.
Dado que o 1º requerido sempre se recusou a dar-lhe explicações, nada mais resta ao requerente do que requerer inquérito judicial à sociedade, nos termos dos artºs 216º e 292º do Cód. Soc. Comerciais e 1479º e ss. do C.P.Civil, nomeadamente:
a) Devendo ser inspeccionados (por parte) os bens, livros e documentos da sociedade, ainda que estejam em poder de terceiros;
b) Recolher por escrito, as informações prestadas por titulares de órgãos da sociedade (os sócios-gerentes), pessoas ao serviço destas (contabilista) e quaisquer outras pessoas que os peritos entendam dever ouvir;
c) Indicar ao Tribunal, quais as pessoas que devem prestar depoimentos, no caso de recusa em depor perante peritos.
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Contestou o requerido José Manuel Correia Paixão, pugnando pela não realização do inquérito, por não existir qualquer fundamento legal para a sua instauração, já que esta não tem outro objectivo que a tentativa de encontrar mero expediente dilatório para o requerente não pagar ao contestante quantia superior a 8.500.000$00 conforme está judicialmente obrigado.
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Com a resposta à contestação, não admitida, apresentou o requerente um articulado superveniente, alegando que após a apresentação da contestação do contestante, o requerente iniciou novas diligências no sentido de procurar novos factos que pudessem de alguma forma rebater as alegações daquele e sustentar cabalmente e idoneamente a necessidade da realização do inquérito peticionado.
Os pretensos factos aí descritos ter-se-ão passado todos no ano de 1995.
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O articulado superveniente não foi admitido (despacho de 31/10/2001 – fls. 177/178), por se considerar que, alegada a superveniência do conhecimento, nada se refere quanto à circunstância de tais factos não poderem ter sido detectados na anterior pesquisa efectuada, de forma a demonstrar que não houve culpa da parte no seu não conhecimento prévio.
O requerente interpôs recurso de agravo, admitido com subida diferida.
Foi indicada data para inquirição de testemunhas.
Entretanto, veio o requerente, em 10/05/2002, apresentar novo articulado superveniente, fundamentando-o em novos factos de que teria tido conhecimento há cerda de duas semanas, factos esses importantíssimos para ajuizar da necessidade da instauração do inquérito, porque indiciariam administração danosa.
Os pretensos factos aí descritos ter-se-ão passado em Julho de 1995.
O articulado superveniente não foi admitido (despacho de 24/05/2002 – fls. 259vº/260), por se entender que, estando perante um processo especial, não há necessidade de recurso ao formalismo do articulado superveniente, bastando-se a averiguação pelo Tribunal da necessidade de inquérito com os fundamentos já constantes dos articulados previstos na lei: o requerimento inicial e a oposição, sem prejuízo de, todos os demais pontos que, a decidir-se pelo inquérito mostrem acuidade, poderem ser livremente investigados, oficiosamente ou a requerimento de qualquer um dos interessados (cfr. artºs 1409º, nº 2, e 1480º, nº 4, do C.P.C.), sem necessidade de protelar através do formalismo próprio do processo declarativo um processo especial que se prevê breve e maleável.
O requerente interpôs novo recurso de agravo, admitido com subida diferida.
Inquiridas as testemunhas arroladas pelo requerente e pelo 1º requerido, foi proferida decisão, que indeferiu o requerido inquérito judicial à sociedade Mondepeixe – Comércio de Peixe, Ldª.
Por dela discordar, interpôs o requerente recurso de apelação.
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São do seguinte teor as conclusões das alegações dos recursos interpostos pelo requerente:
1º Recurso de agravo:
1. O ora recorrente alegou factos de que só teve conhecimento após a petição de inquérito;
2. Alegou, igualmente, a respectiva superveniência e juntou prova.
3. Não lhe é exigível, porem, face à lei, que alegue outros factos demonstrativos da sua não culpa no não conhecimento prévio.
4. Pelo que a decisão fez errada interpretação e aplicação do nº 4 do artº 506º do Código de Processo Civil.
2º Recurso de agravo:
1. O articulado superveniente cumpriu todos os requisitos exigidos pelo artº 506º do Código de processo Civil;
2. Pelo que deve o mesmo ser aceite;
3. Na verdade, não pode ser cerceada ao requerente a possibilidade de alegar e provar todos os factos que poderão integrar o conceito ou requisito legal de “fundamento do pedido de inquérito”, contido no artº 1479º do Código de Processo Civil;
4. Afirmando que para o efeito, tais factos poderão ser investigados livremente pelo Tribunal;
5. Logo, o despacho violou o preceituado no artº 506º do Código de Processo Civil.
Recurso de apelação:
1ª. O requerente solicitou um pedido de inquérito judicial à sociedade, o qual no seu entender deve proceder, ao contrário do decidido na douta sentença.
2ª. De facto, ficou provado que – pelo menos – a partir de meados de Outubro de 1995, o requerido utilizou a sua conta bancária pessoal para os recebimentos e pagamentos da sociedade, emitindo as respectivas facturas e recibos em nome da firma Mondepeixe.
3ª. E que saíram montantes da caixa social da firma Mondepeixe sem a existência de facturas que o justifiquem e que dizem respeito à compra de pescadinhas que, por não possuírem as medidas mínimas exigidas por lei, são adquiridas fora dos circuitos normais de comércio de peixe, sendo desse facto conhecedor o requerente.
4ª. E que os cheques emitidos ao portador a favor de pescadores e vendedoras de peixe eram descontados a outras pessoas a quem os primeiros conseguiam efectuar a correspondente troca.
5ª. Ora, não se encontra provado que – conforme alegado pelo requerido – o conhecimento que o requerente tinha destes factos, o adquiriu por intermédio do requerido.
6ª. E que tais factos expliquem completa e elucidativamente o que é peticionado pelo requerente.
7ª. Pelo que, não se pode dar por cumprido o disposto no artº 216º do Código das Sociedades Comerciais, como faz a sentença recorrida.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O Sr. Juiz sustentou, tabularmente, os despachos recorridos.
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Corridos os legais vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Na 1ª instância foi dado como assente o seguinte:
a) - Por escritura pública de 19/12/1991 foi constituída a sociedade por quotas designada por Mondepeixe – Comércio de Peixe, Ldª, tendo por objecto social o comércio, a grosso e a retalho, de peixe, marisco, moluscos e bivalves, a helicicultura e o comércio de caracóis.
b) - João Andrade e José Paixão são os únicos sócios e gerentes da firam Mondepeixe, possuindo o requerente uma quota no valor de 1.200.000$00, a que corresponde a quantia de 5.985,57 € , pertencendo ao 1º requerido uma quota de 300.000$00, a que corresponde a quantia de 1.496,39 €.
c) - O requerente, como sócio gerente da 2ª requerida, sempre esteve informado do que se passava na firma Mondepeixe, deslocando-se regularmente ao armazém da sociedade, tratando dos pagamentos e da contabilidade com o técnico oficial de contas da sociedade.
d) - A requerida teve negócios com a empresa espanhola “Lonja El Rompido”, sendo conhecedores dos termos desses negócios ambos os sócios gerentes.
e) - O sócio gerente José Paixão emitiu um cheque da firma Mondepeixe no montante de 616.170$00, para liquidação de uma reparação de um veículo pesado pertencente à firma espanhola Lonja El Rompido, tendo depois esta reembolsado a firma Mondepeixe.
f) -Em Outubro de 1995 os sócios da firma Mondepeixe desentenderam-se.
g) - Em Outubro de 1995 foi realizado contrato-promessa de cessão de quota entre o requerente e o 1º requerido pelo preço de 11.800.000$00, a que corresponde a quantia de 58.858,15 €, tendo o José Paixão entregue ao João Andrade, a título de sinal, um cheque datado de 31/10/1995, no montante de 5.800.000$00, a que corresponde a quantia de 28.930,28 €.
h) - O negócio referido em g) ficou sem efeito.
i) - Na mesma data da promessa da cessão de quota, requerente e 1º requerido convencionaram que, desde esse momento, seria José Paixão o único sócio e gerente, com total autonomia e independência.
j) - A partir de meados de Outubro de 1995, o requerido utiliza a sua conta bancária pessoal para os recebimentos e pagamentos da sociedade, emitindo as respectivas facturas e recibos em nome da firma Mondepeixe.
k) - Saíram montantes da caixa social da firma Mondepeixe sem a existência de facturas que os justifiquem e que dizem respeito à compra de pescadinhas que, por não possuírem as medidas mínimas exigidas por lei, são adquiridas fora dos circuitos normais de comércio de peixe, sendo desse facto conhecedor o requerente.
l) - Ao cheques emitidos ao portador a favor de pescadores e vendedoras de peixe eram descontados a outras pessoas a quem os primeiros conseguiam efectuar a correspondente troca.
m) - O requerente ficou na posse de cheques e documentos da requerida.
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É sabido que delimitação do objecto do recurso é feito pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil – diploma a que pertencerão os restante normativos citados sem menção de origem ou proveniência).
Como os recursos são julgados, em princípio, pela ordem da sua interposição, de acordo com o disposto no artº 710º, vamos conhecer primeiro dos recursos de agravo e, posteriormente, se for caso disso, do recurso da decisão final, se e na medida em que não for prejudicado pela eventual procedência de algum dos agravos.
Recursos de agravo.
Vamos conhecer simultaneamente dos dois recursos de agravo, visto ser a mesma a questão neles suscitada – saber se é admissível articulado superveniente nos processos especiais, nomeadamente, no inquérito judicial a sociedade.
O inquérito judicial a sociedade está regulado nos artºs 1479º e ss.
Dos artºs 1479º e 1480º parece dever extrair-se que apenas são admissíveis dois articulados: o requerimento inicial e a resposta.
Com efeito, de acordo com essas normas, o interessado que pretenda a realização do aludido inquérito alegará os fundamentos do pedido de inquérito, indicará os pontos de facto que interesse averiguar e requererá as providências que repute convenientes, seguindo-se a citação da sociedade e dos titulares de órgãos sociais a quem sejam imputadas irregularidades no exercício das suas funções, e, haja ou não resposta dos requeridos, a decisão do juiz.
Isto dá-nos a ideia de que o legislador quis impor uma certa simplicidade e celeridade a este tipo de processo.
Tal é corroborado pelo disposto no nº 1 do artº 1409º (que regula as regras dos processos de jurisdição voluntária, onde está inserido o processo de inquérito), que dispõe que são aplicáveis aos processos de jurisdição voluntária as disposições dos artºs 302º a 304º.
Ora, o artº 303º é peremptório em afirmar que as partes devem oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova no requerimento em que se suscite o incidente e na oposição que lhe for deduzida.
O que tudo se pode apenas justificar pela celeridade que, em princípio, se quis imprimir aos processos de jurisdição voluntária, nos quais se inclui, como se disse, o inquérito judicial a sociedade.
Isto só não é assim se o tribunal entender que há que investigar melhor os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher informações (cfr. nº 2 do artº 1409º).
A estrutura simplificada e mais ajustada ao fim que é especifico dos processos de jurisdição voluntária não se coaduna com a morosidade que caracteriza os articulados supervenientes contemplados no artº 506º.
Com efeito, apresentado o articulado superveniente, o processo vai ao juiz para proferir despacho liminar, a rejeitar o articulado, ou a ordenar a notificação da parte contrária. Esta dispõe de 10 dias para responder, voltando o processo, de novo, ao juiz para se pronunciar sobre a admissibilidade do articulado.
De qualquer modo, ainda que não se concorde com o que se acabou de expor, terá de se concluir que, como refere o Sr. Juiz a quo, não se justifica o recurso ao formalismo do articulado superveniente face ao disposto no nº 2 do artº 1409º, segundo o qual, como já referimos, o tribunal pode, se assim o entender, investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes.
Concluindo pela inadmissibilidade do articulado superveniente nos processos de jurisdição voluntária, e, consequentemente, no processo de inquérito judicial a sociedade, há que negar provimento aos agravos.
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Recurso de apelação.
O requerido inquérito judicial à sociedade Mondepeixe – Comércio de Peixe, Ldª, foi indeferido com o fundamento de não se ter provado que o requerido José Paixão alguma vez tenha recusado algum esclarecimento ou informação, nem que as informações por ele fornecidas fossem falsas, incompletas ou não elucidativas, nem ter ficado demonstrado o propósito de apropriação, por parte desse mesmo requerido, de dinheiros da sociedade.
Parece-nos ser de confirmar inteiramente a sentença recorrida, para cujos fundamentos da decisão se remete, fazendo uso da faculdade conferida pelo nº 5 do artº 713º, uma vez que a mesma interpretou e aplicou correctamente o direito aos factos provados.
Com efeito, embora o recorrente, como sócio gerente, tenha direito a informação sobre a gestão da sociedade, nos termos do artº 214º do Código das Sociedades Comerciais, não se provou que o requerido José Paixão lhe tenha recusado quaisquer informações ou esclarecimentos ou que lhe tenha prestado qualquer informação presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa, de forma a facultar-lhe a possibilidade de requerer inquérito à sociedade Mondepeixe, ao abrigo do disposto no artº 216º do mesmo Código.
E não é o facto de terem sido detectadas certas irregularidades contabilísticas que vai determinar a realização do inquérito, uma vez que se provou que o requerente, ora recorrente, como sócio gerente da segunda requerida, sempre esteve informado de tudo o que se passava na firma Mondepeixe, deslocando-se regularmente ao armazém da sociedade, tratando da contabilidade com o técnico oficial de contas.
Isto explica o conhecimento que o requerente teve desses factos, não importando se o adquiriu por intermédio do requerido, ou se foi na sua qualidade de sócio gerente e do acesso que tinha aos documentos da empresa.
Improcede, assim, também, o recurso de apelação.
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Pelo exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em:
A) - Negar provimento aos recursos de agravo, mantendo-se os despachos recorridos;
B) - Julgar improcedente o recurso de apelação interposto da sentença que, assim, se confirma; e
C) - Condenar o recorrente nas custas