Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
738/04.TBTMR
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
SUMÁRIO
Descritores: RECURSO DE APELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
Data do Acordão: 01/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: 690.º-A DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; DEC.LEI N.º 39/95, DE 15/02; ARTIGO 2.º DO CÓDIGO DA ETRADA
Sumário: 1. O princípio fundamental que subjaz à natureza do recurso sobre a decisão da matéria de facto objecto de registo de prova é o de que o tribunal ad quem não vai em busca de um julgamento ex novo, substituindo-se ao tribunal recorrido, antes se limita a sindicar a actividade deste em face dos elementos que lhe são postos em crise no momento e nas circunstâncias em que aprecia o recurso.
2. A instância de recurso, sem que isso se justifique, não tem que enveredar sistematicamente pelo reexame integral de todas provas produzidas sobre a factualidade posta em ênfase pelo recorrente.
3. Para a caracterização de um acidente como de viação, ao qual seriam aplicáveis as disposições do Código da Estrada (e a regulamentação que com ele se conexiona) e para o qual se tornava necessária a efectivação do seguro de responsabilidade civil obrigatória (destinada a cobrir o risco de circulação de veículos), é imprescindível que o lesado alegue e prove que o mesmo se desencadeou numa via aberta à circulação de veículos.
4. Embora para efeito de responsabilidade civil se deva considerar em circulação um veículo parado ou estacionado - mesmo na berma - numa via aberta ao trânsito público, é fundamental que se prove que o acidente se desenrolou numa via com essa característica, isto é, destinada à circulação indiscriminada de veículos.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A… instaurou no 2º Juízo da Comarca de Tomar acção declarativa com processo sumário contra COMPANHIA DE SEGUROS FIDELIDADE SA pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de € 68.363,56, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação, por força dos danos patrimoniais e não patrimoniais que decorreram de determinado acidente de viação em que interveio um tractor agrícola cuja responsabilidade nesse âmbito se encontrava à altura validamente transferida para a Ré por contrato de seguro titulado pela apólice nº 60/6566805.
Para tanto alega – além do mais e para o que ora interessa – que, encontrando-se o aludido tractor, conduzido pelo seu proprietário, parado junto a uma estrada municipal no lugar da Charneca de Peralva, o A., desejando falar com o referido condutor e proprietário, resolveu aproximar-se a pé; entretanto, quando este pôs o tractor a trabalhar e em movimento, foi o A. surpreendido pela libertação da alfaia que estava incorrectamente atrelada ao veículo, o que lhe provocou o esmagamento de dois dedos de uma das mãos.

Contestou a Ré, negando a versão do acidente alegada na petição - que reputa de litigância de - - dizendo, em suma, que o mesmo se deu quando o tractor estava em laboração no interior de um terreno pertencente ao irmão do A., pelo que não é enquadrável no âmbito do contrato de seguro celebrado entre ela e o A.; e impugna por desconhecimento todas as consequências do sinistro invocadas pelo A.. Termina com a improcedência da acção.

Respondeu o A. mantendo a versão da petição e sustentando a respectiva boa fé, para concluir nos mesmos termos.

O processo seguiu a respectiva tramitação e, no final, foi proferida sentença julgando a acção improcedente e absolvendo a Ré do pedido.

Irresignado, recorreu o A., recurso admitido como apelação.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

*

Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

A - No dia 8 de Outubro de 2001, cerca das 15h30m, nesta comarca de Tomar, verificou-se um acidente (alínea A) da matéria assente);
B - No qual foram intervenientes o tractor agrícola com a matrícula QI-38-90 e o Autor António Henrique Oliveira Nunes (alínea B) da matéria assente);
C - À data referida em A), o tractor QI-38-90 pertencia a José Carlos de Oliveira Nunes Simões (alínea H) da matéria assente);
D - E era conduzido por este (alínea I) da matéria assente);
E - Com a caixa engatada, no mesmo tractor (alínea J) da matéria assente);
F - Nas circunstâncias de tempo mencionadas em A), o tractor QI-38-90 estava em laboração (resposta ao nº 30 da base instrutória);
G - No interior de um terreno pertencente a José Carlos Oliveira Nunes Simões, irmão do Autor (resposta ao nº 31 da base instrutória);
H - Tendo-se o acidente verificado, quando o autor procedia à colocação de uma cavilha no hidráulico da freza (resposta ao nº 32 da base instrutória);
I - O condutor José Carlos Oliveira Nunes Simões tentado travar a subida da freza, antes do acidente (resposta ao nº 34 da base instrutória);
J - Tendo tal freza entalado a mão direita do Autor, na parte superior do hidráulico (resposta ao nº 35 da base instrutória);
L - Do que resultou para o Autor o esmagamento de dois dedos da mão (alínea C) da matéria assente);
M - Pelo que o Autor foi transportado ao Hospital Distrital de Tomar (alínea D) da matéria assente);
N - De onde foi transferido para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa (alínea E) da matéria assente);
O - Onde esteve internado (alínea F) da matéria assente);
P - Após o que teve alta para o domicílio (alínea G) da matéria assente);
Q - Por causa do esmagamento dos dedos da sua mão a que alude a alínea C), o Autor, após a alta, foi seguido nas consultas externas, durante vários meses (resposta ao nº 10 da base instrutória);
R - E foi seguido nas consultas do médico de família durante cinco meses (resposta ao nº 11 da base instrutória);
S - Em virtude desse esmagamento dos dedos, o Autor ficou portador de uma incapacidade geral permanente parcial de 6% (resposta ao nº 12 da base instrutória);
L - E ficou com incapacidade profissional total, desde 8 de Outubro de 2001, até 8 de Março de 2002 (resposta ao nº 13 da base instrutória);
M - À data do acidente, o Autor era um homem sem qualquer defeito físico e sem doenças (resposta ao nº 14 da base instrutória);
N - Era agricultor (resposta ao nº 15 da base instrutória);
O - E dedicava-se à criação de gado caprino (resposta ao nº 15 da base instrutória);
P - À data mencionada em A), o Autor tinha um rebanho com cerca de 170 ovelhas (resposta ao nº 17 da base instrutória);
Q - Do que retirava um rendimento médio mensal de 590 euros (resposta ao nº 18 da base instrutória);
R - Durante o período descrito em 13º, o Autor teve de contratar outra pessoa, para dar de comer aos animais, nos pastos, para limpar e desinfectar os currais (resposta ao nº 19 da base instrutória);
S - O Autor prometeu, como contrapartida, pela realização desses trabalhos, a importância de 140 euros, por semana, que ainda não entregou (resposta ao nº 20 da base instrutória);
T - Em medicamentos, o Autor gastou 40,47 euros (resposta ao nº 21 da base instrutória);
U - Em transportes para se deslocar a consultas médicas e tratamentos, o Autor gastou 123,09 euros (resposta ao nº 22 da base instrutória);
V - Em virtude do esmagamento dos seus dedos a que se refere a alínea C), o Autor passou a ter dificuldades em agarrar em pesos (resposta ao nº 23 da base instrutória);
X - Em virtude das lesões que sofreu, o Autor sente-se diminuído perante si próprio (resposta ao nº 25 da base instrutória);
Z - E perante os seus amigos e familiares (resposta ao nº 26 da base instrutória);
AA - O que lhe causa desgosto (resposta ao nº 27 da base instrutória) e complexos de inferioridade física (resposta ao nº 28 da base instrutória);
AB - O Autor sentiu dores, quer, em resultado dos ferimentos referidos em C, quer durante os tratamentos médicos (resposta ao nº 29 da base instrutória);
AC - À data mencionada em A, a responsabilidade por estragos causados com a circulação do tractor QI-38-90 encontrava-se transferida para a Ré, através da apólice nº 60/6566805 (alínea L) da matéria assente);

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A apelação.

O apelante encerra a sua minuta alegatória com conclusões delimitadoras do objecto recursivo Ex vi do disposto nos art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC. em que é possível surpreender as questões de saber se:

1º - Se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto.
2º - Se deve ser anulado o julgamento, nos termos do art.º 712, nº 3 do CPC.
3º - Se o acidente em causa deve ser qualificado de viação e, por via disso, estão reunidos todos os pressupostos para a condenação da Ré no pagamento indemnização pedida.
4º - Se não existem elementos bastantes para ilustrar litigância de má-fé por parte do A.

Não houve resposta da apelada.

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A alteração da decisão de facto.

O apelante pretende ver modificadas as respostas dadas aos nºs 1 a 9 e 30 a 35 da base instrutória, cujo teor é o seguinte:…..




Defende o apelante que houve erro na apreciação da prova e que, por isso, os nºs 1 a 9 sejam respondidos provado.
Aduz para isso o concurso dos depoimentos das testemunhas ……/……/……../……
Nos termos do art.° 712, nº l do CPC, "A decisão do tribunal de 1ª Instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690. °-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir aprova em que a decisão assentou.

Nos termos do nº 1 do art.º 690-A do CPC deve o recorrente - que pretender objectar contra a decisão proferida com base em depoimentos gravados - não só indicar os pontos que considera incorrectamente julgados como discriminar os meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que no seu critério implicariam uma resposta diversa.

E a propósito do recurso em matéria de facto importa lembrar que no preâmbulo do diploma conformador do registo da prova nos moldes que hoje no essencial subsistem (o DL 39/95 de 15/02) foi traçado do seguinte modo o objectivo que com essa reforma processual se quis alcançar no que concerne à garantia do 2º grau de jurisdição na apreciação daquela matéria: (a garantia) "nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência — visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso".
Resultando de tais parâmetros com suficiente clareza ser princípio fundamental que subjaz à natureza do recurso sobre a decisão da matéria de facto objecto de registo de prova o de que o tribunal ad quem não vai em busca de um julgamento ex novo, substituindo-se ao tribunal recorrido, antes se limita a sindicar a actividade deste em face dos elementos que lhe são postos em crise no momento e nas circunstâncias em que aprecia o recurso. Ou seja, nada inculca que a instância de recurso – ou seja, sem que isso se justifique – enverede sistematicamente pelo reexame integral de todas provas produzidas sobre a factualidade posta em ênfase pelo recorrente.
Com todo o respeito por todos aqueles que entendem conferir ao recurso de facto aquela maior amplitude, a existência de um sistemático novo julgamento no âmbito factual, sempre circunscrito aos elementos - audíveis e documentais - disponíveis para a instância de recurso, acabaria por implicar, para os próprios recorrentes, uma inevitável diminuição de base qualitativa nas decisões assim proferidas. Com efeito, toda a indescritível panóplia de elementos visualizáveis que necessariamente rodeia imediação da apreciação da prova na 1ª instância estaria então absolutamente ausente na instância de recurso. Permitir um segundo julgamento sem a riqueza de um tal cenário de análise seria o mesmo que deliberadamente retirar ao novo julgador um considerável número de instrumentos para uma conscienciosa formação da respectiva convicção, porventura tão ou mais determinantes do que os facultados pelo mero registo magnético, amputando-se o processo decisório da possibilidade de crítica dos elementos genéticos globalmente nele influentes, com um natural e acrescido risco de erro para o resultado final.
De forma que, sem prejuízo do indispensável cotejo com todo o sustentáculo fundamentador da decisão impugnada, só limitando a intervenção do tribunal de recurso à detecção de flagrantes e excepcionais situações de inadequação ou irrazoabilidade do juízo e convicção que integram aquele sustentáculo, sindicados no confronto com o peso de certos e discriminados elementos probatórios (a que o recorrente atribui uma relevância desprezada pela instância recorrida) se consegue o desiderato de um melhor julgamento do ponto ou pontos em questão. Na respectiva essência a função do recurso é essa mesma: a da correcção do julgado onde tal deva ocorrer, sendo excepcionais normas que prevêem a substituição ao tribunal recorrido (como acontece com a do art.º 715 do CPC, que atribui ao tribunal de recurso uma jurisdição em primeiro grau). Por isso é que o recorrente suporta o ónus de indicar os elementos probatórios que, segundo ele, foram indevidamente sopesados – art.º 690 - A nº 1 al.ª b) do CPC - ónus que só se compreende diante da dita função limitada da actuação do tribunal de recurso; que a reapreciação das provas se efectua, em primeira linha – no dizer do nº 2 do art.º 712 - "tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido"; e que o nº 3 do art.º 712 só admite que a Relação determine a renovação dos meios de prova que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade.
Se o tribunal de recurso estivesse obrigado, como regra, a um julgamento inteiramente novo a incidir sobre os pontos de facto postos em crise, em paralelismo com a ritologia observada pela 1ª instância, não haveria necessidade de impor ao recorrente a especificação do erro, a explicitação da origem da divergência perante a posição impugnada. Bastaria que, mediante o recurso, se lhe permitisse que, por dissentir da orientação decisória, viesse a exigir esse novo julgamento.

Neste enquadramento, vejamos então se através dos mencionados depoimentos é possível descortinar os pontuais e seguramente excepcionais erros que teriam sido cometidos na instância recorrida na valoração da prova produzida tendo em vista a decisão da matéria em causa.
Tendo-se procedido à audição das gravações dos ditos depoimentos de modo algum se afigura que os mesmos impusessem respostas diversas das que efectivamente foram encontradas.
Na verdade, a testemunha (……), condutor e proprietário do tractor, irmão do A., prestou um depoimento incoerente e até absurdo, denotando forte empenho na versão de que o acidente derivou do salto de uma cavilha para o Autor, em circunstâncias que não se mostram plausíveis - nomeadamente em local que não situa claramente numa via de circulação. É que não se afigura verosímil ou até possível que o desprendimento da dita cavilha tenha ocasionado o tipo de lesão sofrida pelo A.: o esmagamento dos dedos da mão.
Por sua vez, ……, electricista e cunhado do A., nada podia modificar uma vez que não presenciou o acidente e só viu o A. após este haver ocorrido.
Tal como Maria ………, que não tendo estado presente, também nem sequer depôs aos pontos de facto em causa.
Os depoimentos dos peritos …., ….. e ….., explicam que as lesões sofridas pelo A. não podiam advir da passiva proximidade deste, mas antes tiveram como causa um facto positivo do mesmo A.: a interferência do mesmo na ligação do tractor à freza que lhe estava acoplada, em terreno agrícola, conforme a descrição por ele feita por escrito perante os peritos …. e …... O perito ….. foi mesmo peremptório quanto à impossibilidade física da cavilha de ligação saltar do tractor e dessa forma causar o tipo de lesão em apreço, o esmagamento de dedos.
Esses depoimentos não só se harmonizam perfeitamente com as respostas aos nºs 1 a 9, como corroboram a tese constante dos nºs 30 a 35 da base instrutória.
Daí que, não se divisando os supostos erros do julgador na valoração e ponderação das provas submetidas ao respectivo escrutínio, faleça a argumentação do apelante no que toca ao vertente segmento do recurso.


A anulação do julgamento.

Almeja também o recorrente que esta Relação se pronuncie sobre uma suposta contradição entre a alínea J da matéria assente e as respostas dadas aos 32, 34 e 35 da base instrutória.
Importa observar que a matéria seleccionada como assente não pode estar em contradição com respostas à matéria da base instrutória mas sim com os próprios pontos da base instrutória que originaram tais respostas. Essa antítese, a ser real, tem de ser ultrapassada com a eliminação ou expurgação do facto indevidamente controvertido por não se harmonizar com outro ou outros que se mostravam acordados, confessados ou provados por documento Em sentido essencialmente coincidente, propondo que se considere não escrita a resposta a um facto quesitado em tal contexto, cfr., p. ex., o Ac. desta Relação de 7/04/94 in BMJ 436-441..
Segundo o nº 4 do art.º 712 do CPC "Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.° 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto (…)."
Donde que a anulação do julgamento apenas seja de decretar como forma de sanar a contradição que vicie internamente a harmonia e unidade do mesmo. Não para alcançar uma resposta que, de maneira pré-determinada, se possa conjugar com determinado facto oportunamente seleccionado como matéria assente.

Vejamos, todavia, se existe efectivamente a invocada contradição.
É esta a redacção da alínea J da matéria assente no despacho saneador:
"Com a caixa engatada no mesmo tractor".
Esta alínea conexiona-se com as precedentes H e I, onde se consignava que "À data referida em A, o tractor QI-38-90 pertencia a ……." "E era conduzido por este".
Das respostas aos nºs 32, 34 e 35 da b.i. resultou que o acidente se verificou quando o autor procedia à colocação de uma cavilha no hidráulico da freza, tendo o condutor tentado travar a subida da freza, antes do acidente, sem obstar a que a mesma freza fosse entalar a mão direita do autor na parte superior do hidráulico.
Ora, salvo devido respeito, não se percebe como o apelante só agora veio descobrir a apontada contradição. É que uma e outra factualidade não serão incompatíveis, porquanto a "caixa" a que se reporta a matéria assente, segundo a alegação do próprio A. – cfr. o teor do art.º 7º da petição inicial - corresponderia ou integraria uma alfaia agrícola. Não se afigura, por conseguinte, que o próprio A. e apelante tenha conotado essa palavra (caixa) com o conceito que identifica o elemento rebocado pelo tractor especificamente destinado ao acondicionamento e transporte de carga.
Tratar-se-ia, quando muito, de um mero equívoco terminológico que em nada modificaria a natureza do facto em discussão nos autos, uma vez que sempre emerge do referido circunstancialismo que foi a intervenção do A. na engrenagem de uma máquina no tractor a origem do esmagamento dos dedos de uma das respectivas mãos. Que máquina foi essa exactamente é questão que nem sequer se apresenta como fulcral para a análise e ponderação do mérito da causa.
Assim sendo, a decisão da matéria de facto além de se não mostrar contraditória com qualquer peça do processo, também não enferma de qualquer obscuridade que imponha a anulação parcial do julgamento.


A qualificação do acidente como de viação.

Propugna o apelante que estando demonstrado que "o acidente em apreço ocorreu quando o tractor estava parado com o motor a trabalhar na Rua de S. Miguel, no lugar de Charneca de Peralva, e porque o A. estava parado junto ao mesmo, soltou-se uma cavilha que segurava a caixa basculante ao tractor que atingiu os dedos da mão direita do demandante" haveria que concluir pela responsabilidade do condutor do tractor na produção do acidente, tendo a decisão violado o disposto nos art.ºs 1º, 2º e 3º do Cód. da Estrada.
Mas – diga-se já - sem fundamento.
Desde logo – em boa verdade - os precisos termos em que a acção foi proposta poderiam ser excludentes da possibilidade de o acidente se ter produzido com o QI em circulação.
Na realidade, o A. alegara no art.ºs 3º e 4º que "No lugar da Charneca da Caparica circulava o tractor agrícola com a matrícula QI-38-90 (…)" e que este "se encontrava parado junto à estrada municipal".
Ora ao afirmar-se que um tractor agrícola está parado "junto à estrada" não se quer significar rigorosamente que o mesmo está imobilizado "na estrada", ou seja, dentro da via, mas antes - o que é substancialmente diferente - exteriormente à via, ao lado dela. Esta particularidade não assume especial relevo sempre que se envolvam veículos exclusivamente concebidos para a circulação rodoviária. Mas é da maior importância quando os veículos acumulem a funcionalidade de máquinas industriais ou agrícolas. No caso dos autos o veículo é um tractor agrícola, sendo óbvio que os tractores agrícolas estão especialmente preparados para facilmente se deslocarem e movimentarem em espaços exteriores às vias de comunicação rodoviária, atenta a sua particular e natural capacidade de manobra em terrenos inacessíveis a outros veículos. Encontrando-se o tractor fora do leito da estrada nada permitiria concluir que o mesmo se aprestava para nela entrar ou que nela havia circulado.
Sem embargo, ainda que se interpretasse a expressão "junto à estrada" como equivalente a "na estrada", permanecendo inalterada a decisão de facto ora impugnada por via do vertente recurso, nunca o acidente sofrido pelo A. poderia ser classificado de viação.
Em primeiro lugar, para que estejamos diante de um acidente de viação, ao qual seriam aplicáveis as disposições do C. da Estrada (e a regulamentação que com ele se conexiona) e para o qual se tornava necessária a efectivação do seguro de responsabilidade civil obrigatória (destinada a cobrir o risco de circulação de veículos), é imprescindível que o lesado alegue e prove Como facto constitutivo do seu direito de crédito, nos termos do nº 1 do art.º 342 do CC. que o mesmo se desencadeou numa via aberta à circulação de veículos.
Embora para efeito de responsabilidade civil se deva considerar em circulação um veículo parado ou estacionado - mesmo na berma - numa via aberta ao trânsito público, é fundamental que se prove que o acidente se desenrolou numa via com essa característica, isto é, destinada à circulação indiscriminada de veículos, seja ela pública ou privada, como claramente decorre do art.º 2º do CE, aplicável e actualmente em vigor Sendo o seguinte o texto do referido art.º 2º, após a publicação do DL 2/98 de 3/01 e 265-A/2001 de 28/09:
"1 — O disposto no presente Código é aplicável ao trânsito nas vias do domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.
2 — O disposto no presente diploma é também aplicável nas vias do domínio privado, quando abertas ao trânsito público, em tudo o que não estiver especialmente regulado por acordo celebrado com os respectivos proprietários". . Se essa prova não for conseguida pelo lesado - ou se vier a apurar-se que o acidente se deu fora do domínio de uma via aberta ao público, p. ex. num caminho exclusivamente afecto ao uso particular ou em terrenos agrícolas (que não são vias de circulação de veículos) - o acidente não é passível de ser considerado de viação, embora, como qualquer outro facto danoso, esteja submetido aos princípios que regem a responsabilidade civil subjectiva e objectiva, nomeadamente os resultantes dos art.ºs 483 e ss. do CC Cfr. as posições jurisprudenciais oportunamente citadas na sentença a propósito da noção ampla de acidente de viação, em especial a plasmada no Ac. desta Relação de 14/03/2006, in http:/www.dgsi.pt.
.
Mas não só.
Ainda é essencial, para a concretização da responsabilidade com esta índole, que o acidente, se verificado em via de trânsito público, tenha resultado do risco próprio da função de, pelo menos, um veículo. E tal não acontece quando o dano se possa dizer consequência do risco de uma máquina estranha à funcionalidade meramente circulante de um tractor agrícola, mesmo que este se ache posicionado (em movimento ou não) numa via de trânsito público. Embora um tractor como veículo que é possa, como é evidente, circular - e pôr em risco a integridade de pessoas e bens por efeito dessa potencialidade de mobilização - nem sempre um acidente dele proveniente será de circulação, e não o será inexoravelmente, quando, no momento da sua produção, ele proceda de qualquer acto de preparação ou intervenção em elementos que se liguem ao tractor para outros fins, nomeadamente para a actividade agrícola.
Sendo certo que, se é ao lesado que compete a alegação e demonstração de que o veículo seguro se encontrava em circulação – ainda que, eventualmente, imobilizado - numa via aberta ao trânsito público - como elemento constitutivo do direito à indemnização sobre a seguradora estradal - já representará uma circunstância excepcional e impeditiva – a demonstrar pelo demandado - o facto de o acidente ter tido a sua génese em qualquer causa independente do risco de circulação do veículo.
Ora do acervo fáctico finalmente apurado não apenas não resulta que o acidente se deu numa qualquer via pública ou privada destinada à circulação de veículos, como inclusivamente nele é evidente que o esmagamento dos dedos da mão do A. foi corolário do facto de este ter querido apertar uma cavilha que prenderia o tractor à alfaia que lhe estava acoplada, facto, portanto, inteiramente alheio à circulação do tractor.
Temos, por conseguinte, que, por um lado, o A. não provou os elementos de facto que caracterizariam o acidente como de viação; e que, por outro lado, a Ré evidenciou um facto impeditivo do direito do lesado, atinente à circunstância de o dano do A. ter sido originado por um acto deste, por isso de todo estranho à função do tractor enquanto meio de circulação.
Sendo óbvio que a responsabilidade da Ré tem natureza concomitantemente convencional, radicada no contrato de seguro automóvel que outorgou com o A. e apelante, a falta do mencionado pressuposto inviabiliza inexoravelmente o êxito da pretensão contra ela formulada.
Donde a improcedência das conclusões – J, L e M – atinentes à questão enunciada.


A litigância de má-fé.

Insurge-se finalmente o apelante nas conclusões Q a T contra a sua condenação como litigante de má-fé.
Na sentença ponderou-se a este respeito que "não há dúvida de que (o A.) veio alegar factos com a consciência de que os mesmos não eram verdadeiros, concretamente, que o tractor QI se encontrava a circular numa estrada municipal, que foi quando parou ao lado do mesmo que a caixa se desengatou e o foi atingir na mão, tudo isto para fazer valer a sua tese, no sentido de se tratar de um acidente de viação, para, a coberto do seguro de responsabilidade civil automóvel, obter da ré uma indemnização, à qual não podia desconhecer que não tem direito".
Nos termos do nº 2 do art.º 456 do CPC considera-se litigante de má-fé, designadamente, quem com dolo ou negligência grave, "tiver alterado a verdade dos factos" ou "tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável" - alíneas b) e d).
Aparentemente a sentença terá integrado o comportamento processual do Autor em ambas as previsões legais.
Tê-lo-á feito adequadamente?
É o que importa averiguar.
Há que fazer notar que o uso do processo pelo A. para obtenção de indemnização da seguradora estradal do tractor só é reprovável na medida em que o mesmo sustentou uma versão distorcida dos factos de molde a reunir no processo os pressupostos da responsabilidade da apelada com base no contrato de seguro celebrado para cobrir os riscos inerentes à circulação do tractor.
Portanto a conduta que consubstancia a má fé imputada ao A. ora apelante é a da alteração da verdade dos factos.
A versão que vingou, e era contraposta à descrita na petição inicial, por um lado, situou o tractor, no momento do acidente, em terreno agrícola do respectivo condutor e, por outro lado, figurou o A. a colocar uma cavilha "no hidráulico da freza" ligada ao tractor.
O A. havia aduzido naquele articulado que o tractor estava parado junto a uma determinada estrada municipal e que ele A. teria sido atingido pela alfaia que estava ligada ("engatada") ao tractor mas que, entretanto, deste se desprendera.
Embora esta factualidade não tenha logrado demonstração, ficou no entanto positivamente provada a realidade inconciliável da contraversão da apelada. Tratando-se aqui de factos pessoais relativamente ao Autor, ou cujo conhecimento este não podia afastar, porque necessariamente os presenciou, o seu disfarce na petição inicial não pode ter efectivamente outra explicação que não seja o objectivo de, por esse modo, o apelante vir a obter a responsabilização da Ré no âmbito do seguro automóvel a que esta estava vinculada (no que concerne à circulação do tractor).
Por conseguinte, afigura-se correcta a ilação de que se deve ter por comprovado que houve intenção do A. em iludir o tribunal com a construção de um conjunto de circunstâncias que eram relevantemente influentes na condenação da Ré e apelada. Ou seja, que houve dolo da parte do apelante em alterar a verdade dos factos.
Pelo que, diante desse suporte material, nenhuma censura merece a decisão de condenar o A. como litigante de má fé. Não sendo consequentemente de acolher as proposições em apreço do segmento conclusivo do recurso.


Pelo exposto, julgando improcedente a apelação, confirmam a sentença.
Custas pelo apelante.