Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
576/08.4TBAVR..C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: CHEQUE
RECUSA DE PAGAMENTO
BANCO
SACADO
EXTRAVIO
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 11/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - AVEIRO - JUÍZO DE MÉDIA E PEQUENA INSTÂNCIA CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 29.º E 32º DA DA LEI UNIFORME SOBRE CHEQUES
Sumário: I. À situação de recusa de pagamento do cheque por parte do banco (sacado), com fundamento na declaração de extravio por parte do sacador, durante o prazo de apresentação a que se refere a primeira parte do artigo 29.º da LU, não é aplicável o Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008, proferido no Processo n.º 06A542, que preconiza a responsabilidade por perdas e danos por parte do banco.

II. A ordem de proibição de pagamento do cheque, dada pelo sacador ao banco sacado com fundamento em “extravio”, não se confunde com a revogação prevista no artigo 32.º da Lei Uniforme Sobre Cheques.

III. No caso de extravio ou qualquer outra forma de “ilegítima apropriação”, o que está em causa não é a revogação. Nestes casos o sacador proíbe o pagamento por considerar inválido o seu saque. Logo, não o revoga, porque a revogação pressupõe a validade do acto que, por esse efeito, se extingue.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
«A...», com sede em ....., Itália, propôs a presente acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, contra «Banco B......», com sede na ..... Funchal, pedindo que o Réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 25.162,00, acrescida de juros vincendos desde a data da entrada da petição inicial até integral pagamento.
Para tanto e em síntese, alegou ter vendido mercadorias à sociedade «C....», a qual para pagamento das mesmas emitiu cheques, designadamente o cheque identificado no artigo 1º da petição, que apresentado a pagamento foi devolvido com a menção de revogação por justa causa – extravio. Mais alegou que esta menção de extravio é falsa, tendo sido aceite pelo Réu, sem que antes cuidasse de averiguar da veracidade de tal declaração, designadamente interpelando o banco italiano. Conclui que o Réu não poderia aceitar tal revogação, sendo responsável pelo pagamento à Autora da quantia titulada pelo cheque, acrescida de juros.
Citado, o Réu apresentou contestação, alegando, em suma, que o cheque em causa não lhe foi apresentado a pagamento, mas antes a um banco italiano que, por sua vez, solicitou ao Réu que efectuasse a cobrança do mesmo junto da « C...», efectuando os procedimentos previstos nas Regras Uniformes Relativas às Cobranças da Câmara de Comércio Internacional – Publicação n.º 522, Revisão de 1995. Nesse seguimento o Réu solicitou à C...» instruções, sendo que no caso presente esta sociedade já tinha comunicado o extravio desse cheque. Assim conclui que o caso dos autos não é subsumível no âmbito do regime jurídico aplicável aos cheques. Finalmente alega que, caso assim se não entenda, se deverá considerar que, tendo-lhe sido comunicado o extravio não teria de averiguar mais factos concretos a fim de aferir da veracidade de tal declaração, pelo que inexiste nexo de causalidade entre o facto e o dano. Conclui pedindo a improcedência da acção.
A Autora apresentou resposta referindo, além do mais, que o cheque foi apresentado a pagamento ao Réu e que foi este e não a «C....», que recusou o seu pagamento, tendo concluído como na petição.
Foi proferido despacho saneador com selecção da matéria de facto nos termos constantes de fls. 196, tendo-se procedido à realização de audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença na qual se decidiu julgar a acção parcialmente procedente por parcialmente provada e em consequência condenar o Réu na quantia de € 21.880,00, acrescida dos juros legais, contados desde 19.09.2006, até efectivo e integral pagamento, absolvendo o Réu do mais que foi pedido.

Inconformado, apelou o Réu, apresentando as seguintes conclusões:

A. Estão inverificados nos presentes autos, porque não provados, dois dos pressupostos da responsabilidade civil: a culpa e o dano;

B. Com efeito, a Autora não provou que o réu tenha agido com culpa;

C. Desde logo porque os factos dados como provados não são suficientes para que se possa concluir ter o banco réu agido com culpa;

D. De facto, a Autora apenas conseguiu provar, no que a esta questão da apreciação da culpa diz respeito, o que consta dos artigos 8.º a 10.º da Base Instrutória;

E. E o que consta destes artigos 8.º a 10.º da Base Instrutória não é suficiente para se considerar que o banco réu devia ter concluído ser o extravio falso, como se reconhece a págs. 17 da douta sentença de que ora se recorre quando se escreve: «É certo que apenas perante a emissão dos outros três cheques, que foram protestados por falta de pagamento, a Ré não poderia concluir ser o extravio falso».

F. Por outro lado, verifica-se que a Mma. Juíz a quo faz assentar a culpa do banco ora recorrente, no essencial, na consideração de que o mesmo não agiu diligentemente como um bom pai de família, porque, e passa-se a citar: «deveria ter sido mais insistente com a sacadora, confrontando-a com o pedido de pagamento do cheque que anteriormente havia dado como extraviado e porque deveria ter entrado em contacto com o banco italiano, o que não fez».

G. Sucede que, na realidade, não foi dado como provado que o banco réu não tivesse confrontado a sacadora, sendo certo que até que a confrontou por escrito, através do envio que lhe fez da carta de 06.09.2006 junta aos autos;

H. Acresce não ter ficado provado que o banco réu soubesse, aquando da aposição no cheque da menção de extravio, que tal extravio era falso.

I. Ora, se o banco réu não tinha conhecimento, no momento da aposição no cheque da menção de extravio, da falsidade desse extravio, este facto implica que não tinha motivo para confrontar a sacadora, não sendo por isso exigível que o fizesse, nem reprovável que não o fizesse

J. Acresce que já não teria qualquer efeito, no que respeita ao pagamento à Autora, fazer essa confrontação depois de já ter colocado a menção de extravio e enviado o cheque para o banco italiano;

K. A consideração de que o banco réu não contactou com o banco italiano, a qual está implícita ou subjacente à afirmação produzida na sentença a quo de que o banco réu. «deveria ter entrado em contacto com o banco italiano, o que não fez» está em contradição com a resposta negativa ao artigo 13.º da base instrutória;

L. Com efeito, o facto de se dar como não provado o artigo 13.º da base instrutória significa que não se apurou se esse contacto podia e devia ter sido feito.

M. Ora, se não se sabe se o contacto podia e devia ter sido feito, não se pode presumir que o mesmo não foi feito.

N. No que respeita ainda à ausência de culpa do ora recorrente cumpre ainda acrescentar, que todos os factos dos quais eventualmente poderia ser extraída a culpa do banco recorrente foram dados como não provados.

O. Com efeito, foi dado como não provado que:

1 - o banco réu tivesse optado por favorecer a sacadora do cheque sua cliente (resposta negativa ao artigo 17.º da B.I.);

2 - que fosse evidente para o banco réu que estava perante um abuso do instrumento de revogação, como forma ilegítima para evitar um pagamento devido (resposta negativa ao artigo 15.º da B.I.);

3 - que o banco réu devia interpelar a Autora, através do banco italiano apresentante relativamente ao pedido de revogação por extravio recebido (resposta negativa ao artigo 13.º da B.I.);

4 - que o banco réu sabia que o pedido de revogação era falso (resposta negativa ao artigo 12.º e restritiva ao artigo 7.º da B.I.);

5 - que o banco réu tivesse aceitado a revogação por extravio apresentada pela sacadora porque tivesse feito tábua rasa do acontecido relativamente aos anteriores três cheques (resposta restritiva ao artigo 14.º da B.I.).

P. Ao dar-se como não provados todos estes factos excluiu-se por completo a culpa do banco réu por ausência de prova nesse sentido.

Q. Foi considerado provado que o cheque dos autos não foi apresentado a pagamento ao banco réu no sentido que resulta da Lei Uniforme de Cheques, mas antes no sentido de que o mesmo foi entregue pela Autora ao banco italiano com o qual a mesma trabalha e com o esclarecimento de que este banco, por sua vez, o apresentou em nome da Autora à cobrança junto da Ré;

R. Esta forma de apresentar o cheque ao banco réu determinou que o mesmo fosse forçado a adoptar os procedimentos previstos nas Regras Uniformes da Câmara de Comércio Internacional relativas a Cobranças, uma vez que foi isso que a Autora, através do Banco Italiano, lhe pediu expressamente e por escrito, para fazer;

S. Estes procedimentos são diversos daqueles a que o banco réu estaria obrigado se o cheque lhe tivesse sido apresentado a pagamento «no sentido que resulta da Lei Uniforme de Cheques» e implicam designadamente que o banco réu não podia examinar o cheque.

T. Se não podia examinar o cheque não podia averiguar sobre a eventual autenticidade do mesmo nem comparar o mesmo com cheques anteriores emitidos pela Autora

U. Assim, os procedimentos que o banco recorrente cumpriu de acordo com as instruções recebidas do banco Italiano, não permitiam, nem tinham como pressuposto, uma averiguação da veracidade do motivo da declaração de recusa de pagamento do cheque por parte do banco réu.

V. Não sendo assim exigível esse comportamento ao banco réu, nem por consequência reprovável que não o tenha adoptado no caso dos autos.

W. A apresentação apagamento de um cheque que não seja feita a uma câmara de compensação envolve, para além do acto de mera exibição física do cheque (que serve para o portador tentar demonstrar ao banco sacado a aparente legitimidade da sua posse), o pedido. ao banco sacado, de que pague ou entregue a quantia inscrita no mesmo.

X. No caso dos autos, este pedido de pagamento não foi feito ao banco sacado, podendo por isso concluir-se que este cheque não lhe foi apresentado apagamento.

Y. Não foram dadas como provadas circunstâncias concretas relativas à aceitação da declaração de extravio que tornassem exigível outro comportamento por parte dos funcionários do banco ora recorrente.

Z. O banco recorrente entende por isso que a sua culpa foi deduzida de factos que não foram dados como provados.

AA. Não está assim provada a culpa, mas também não foi provado o dano.

BB. Com efeito, a única matéria que se encontra dada como provada nos autos a respeito do dano, encontra-se no artigo 17.º da petição e consiste no facto de se ter dado como provado que a Autora não recebeu a importância de € 21.880,00 que se encontrava titulada pelo cheque.

CC. Ora deste facto apenas, não de pode imediatamente concluir, como faz a Mma. Juíz a quo na sentença, que foi esse o prejuízo da Autora.

DD. A sentença tem subjacente a ideia de que o portador de um cheque sofre automaticamente danos e que estes se medem pelo valor nele titulado.

EE. Sucede que os danos não se presumem, nem a sua medida se poderá aferir por tal critério.

FF. Como não se presumem, os danos ou os factos que os originaram, têm que ser alegados, o que não ocorreu no caso dos autos.

GG. Acresce não revelarem os factos provados que a conduta do banco réu tenha provocado à recorrida, em termos de causalidade adequada, algum prejuízo, além do mais acima exposto, porque para o pagamento do cheque não havia provisão na conta.

HH. Sendo o dano um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, a sua inexistência, tem que conduzir à inviabilidade da pretensão formulada pela recorrida.

II. Acresce ainda que, como é apontado pela mais recente jurisprudência, a emissão de um cheque como a que foi feita pela Autora no caso dos autos, não extingue o direito de crédito derivado da relação subjacente ao cheque, pelo que a Autora ora recorrida, continua assim titular do direito cambiário respectivo, bem como da relação jurídica subjacente.

JJ. Assim, o dano indemnizável não corresponde ao valor do cheque mas antes aos incómodos, despesas, lucros cessantes e risco acrescido, os quais não foram dados como provados porque não chegaram sequer a ser alegados.

KK. Por último, o ora recorrente discorda ainda da fixação e cálculo dos juros de mora feitos na sentença a quo, uma vez que considera que os mesmos apenas são devidos após ter sido proferida a sentença de 1ê instância, ou, no limite, a partir da interpelação do recorrente para o pagamento, através da sua citação para os presentes autos.

LL. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo não fez interpretação e aplicação das disposições legais e convencionais aplicáveis, violando por isso, nomeadamente, o disposto nos artigos 342.º, 483.º e 563.º do Código Civil, 659.º n.º 2 e 3 do Código de Processo Civil e nos artigos 1.º, 2.º, 3.º , 4.º e 5.º das Regras Uniformes relativas às Cobranças da Câmara de Comércio Internacional - Publicação 522 (Revisão de 1995 ).

MM. À cautela, e por economia processual, dão-se aqui por integralmente reproduzidos e integrados todos os factos referidos nas alegações supra.
A Autora contra-alegou, preconizando a total improcedência do recurso da Ré, e ampliando, a título subsidiário, o âmbito do recurso, nos termos do artigo 684.º-A, n.º 2, co Código de Processo Civil.
Em suma, alega a Apelada que, caso seja dado provimento ao recurso da Apelante, e apenas nessa eventualidade, pretende recorrer da decisão da matéria de facto, relativamente aos pontos 12.º a 16.º da base instrutória.
Invoca os seguintes fundamentos, nas suas doutas conclusões, no que respeita à ampliação do âmbito do recurso:
XXXII. No caso de ser considerado procedente o recurso da Ré, a A. pretende recorrer da matéria dada como não provada pelo Tribunal Recorrido, isto é art. 12º a 16º da BI.
XXXIII. De facto o tribunal a quo considerou não provados os factos alegados pela A. e constantes do art.12º, 13°, parte do 14°; 15° e 16° da BI.
XXXIV. A Autora não concorda com tais conclusões face aos documentos n.º 1°, 35°, 36°, 37° da PI, e doc. 1, 3 e 4 da contestação, e conjugação do ponto A) factos assentes e art.s 5°, 6°, 7°, 8°, 9°, 10°, 11º da BI.
XXXV. Os art. 12° a 16° dados como não provados dizem respeito à actuação da Ré, mais especificadamente ao seu dolo eventual, na medida em que previu uma lesão e se conformou com o resultado não se importando com as consequências que a A. teria sofrido.
XXXVI. Ora, e salvo o devido respeito para com o tribunal recorrido, julgamos que a prova constante dos autos, nomeadamente da conjugação dos documentos n.º 1°, 35°, 36°, 37° da PI, dos docs. 1, 3 e 4 da contestação, do ponto A) dos factos assentes, e dos art. 5°, 6°, 7°, 8°, 9°, 10°, 11° da BI, deve conduzir a solução contrária.
105. De facto da conjugação dos documentos n.º 1°, 35°, 36°, 37° da PI, dos doc. 1°, 3° e 4° da contestação, do ponto A) dos factos assentes e art.s 5°, 6°, 7°, 8°, 9°, 10°, 11° da BI, resulta provado que:
- A A. era legítima portadora do cheque;
- A A. era entidade conhecida pela Recorrente;
- A Recorrente, sabia que a A. mantinha relações comerciais com a sacadora, pois poucos dias antes da revogação (ocorrida com fax de 1.09.2006), e mais precisamente em 14.08.2006; 16.08.1006 e 25.08.2006, a pedido da A., a Ré efectuou protestos por falta de pagamento de outros 3 cheques idênticos ao 4° revogado, emitidos pela mesma sacadora;
- A numeração do cheque extraviado, em relação aos outros 3 protestados por falta de pagamento, é sequencial;
- O cheque dado falsamente como extraviado tinha sido preenchido com a mesma letra, caligrafia e caneta em todas as suas partes (o que por si só exclui a hip6tese de preenchimento abusivo aventada pela recorrente no seu recurso);
- O cheque dado falsamente como extraviado tinha sido avalizado pelo gerente da sacadora, cuja assinatura é reconhecida pelos funcionários do banco;
- O cheque dado falsamente como extraviado tinha sido emitido com a menção não à ordem, (o que impede que terceiros que não a legítima portadora inscrita o apresentem a pagamento);
- O cheque dado falsamente como extraviado era igual, no seu preenchimento e características {aval, não à ordem, caneta, letra, caligrafia, etc.) aos anteriores 3 cheques protestados pela Recorrente, a pedido da A., por falta de pagamento.
XXXVII. Dando assim como provado os factos alegados nos art. 12 a 16 da BI.
XXXVIII. O Tribunal recorrido deu como não provados os factos alegados nos art. 12 a 16 da BI, porque partiu de uma conclusão errada, da qual discordamos, e que consta da fundamentação dada da matéria não provada na resposta aos quesitos.
XXXIX. O Tribunal recorrido, conforme resulta da fundamentação da matéria dada como não provada, considerou que o 4° cheque, o que foi falsamente dado como extraviado, não foi “materialmente” enviado para o balcão de Aveiro, tendo ficado na sede de Lisboa.
XL. Este facto resulta da fundamentação à matéria dada como não provada quando o tribunal a quo refere que “[...] Quando foi solicitada a cobrança do chegue dos autos não foi visualizado o próprio chegue, mas apenas a comunicação com o número e o montante. O cheaue ficou em Lisboa”, e ainda “É certo que os outros três chegues tinha sido protestados, que estes tem numeração seguida e se encontram preenchidos da mesma forma, mas também é verdade que aguando da comunicação de extravio pela C..., apenas se referiu o número e posteriormente aquando da cobrança não foi apresentado/visualizado o qual apenas foi identificado”
XLI. Tais conclusões, que levaram o tribunal recorrido a não considerar provados os factos constas dos art. 12 a 16 da BI, são errados.
XLII. O cheque foi visualizado pela Ré, e é isso que interessa, sendo irrelevante se internamente a sede de Lisboa o enviou ou não para Aveiro.
XLIII. Este factor resulta provado pelo carimbo aposto no verso do mesmo (doc. 1 PI), tal como da carta enviada à sacadora (Doc. 3 Cont.) pela Ré, a qual confirma a posse do 4° cheque dado como extraviado.
XLIV. Assim como foram visualizados os outros cheques, protestados por falta de pagamento, em tudo idênticos ao 4° dado falsamente como extraviado, conforme resulta dos doc. 35°, 36° e 37 PI.
XLV. O Tribunal recorrido considerou que os funcionários da Ré de Aveiro (…) não tiveram conhecimento do 4.º cheque extraviado, porque ficou este na sede de Lisboa.
XLVI. O juízo de valor sobre a actuação da Ré deve ser único. A Ré deve ser considerada como uma só entidade e vontade, e não dividida em tantas vontades quantos são os seus funcionários.
XLVII. Se a sede da Ré em Lisboa decidiu não enviar para Aveiro o cheque falsamente dado como extraviado (conforme tinha feito pelos anteriores 3 cheques), impedindo assim que os funcionários de Aveiro tivessem conhecimento material do mesmo, é um problema interno da Ré que “ultrapassa” a A.
XLVIII. A Ré é uma entidade única, tanto a de Lisboa como a de Aveiro, sendo irrelevante os problemas internos desta, e de comunicação de Lisboa para Aveiro.
XLIX. Pelo que, deverá este Venerando Tribunal na reapreciação da matéria de facto e de forma subordinada dar como provados os factos 12 a 1 6 da BI e consequentemente concluir pela condenação da Ré conforme pedido na PI.
Conclui preconizando a improcedência do recurso mantendo-se na integra a douta sentença recorrida, ou subsidiariamente ampliar o objecto do presente recurso, alterando a matéria de facto dada como não provada, de forma a dar como provados os factos constantes dos artigos 12.º a 16.º da BI, e, consequentemente, condenada a Ré/Recorrida, conforme pedido da petição inicial.

II. Fundamentos de facto
A primeira instância considerou provados os seguintes factos:
1. A Autora é legítima portadora do cheque número 3904668634, datado 30-08-2006, no montante de 21.880,00 euros, emitido à sua ordem e sacado sobre o banco Réu (doc. de fls. 26) [Alínea A) dos factos assentes];
2. Tal cheque foi emitido por «C....» (de agora em dianteC...), relativamente à conta número 0039949377/10, da agência de Aveiro do banco Réu (mesmo doc.) [Alínea B) dos factos assentes];
3. A Autora emitiu em nome da C..., as facturas seguintes:
Factura n.º 0100391, de 01.07.2005, no montante de 20.750,00 €; Factura n.º 0100392, de 15.04.2005, no montante de 24.585,00 €; Factura n.º 0100717, de 01.07.2005, no montante de 51.000,00 €; Factura n.º 0100718, de 01.07.2005, no montante de 43.400,00 €; Factura n.º 0100738, de 06.07.2005, no montante de 13.000,00 €; Factura n.º 0100777, de 15.07.2005, no montante de 67.000,00 €; Factura n.º 0100816, de 21.07.2005, no montante de 24.000,00 €; Factura n.º 0100817, de 21.07.2005, no montante de 8.500,00 €; Factura n.º 0100818, de 21.07.2005, no montante de 20.000,00 €; Factura n.º 0100819, de 11.07.2005, no montante de 861,40 €; Factura n.º 0100919, de 05.08.2005, no montante de 21.500,00 €; Factura n.º 0100920, de 05.08.2005, no montante de 4.900,00 €; Factura n.º 0100921, de 05.08.2005, no montante de 806,00 €; Factura n.º 0101027, de 29.08.2005, no montante de 3.858,32 €; Factura n.º 0101072, de 07.09.2005, no montante de 17.452,00 €; Factura n.º 0101073, de 07.09.2005, no montante de 7.408,00 €; Factura n.º 0101074, de 07.09.2005, no montante de 196,16 €; Factura n.º 0101113, de 13.09.2005, no montante de 17.000,00 €; Factura n.º 0101114, de 13.09.2005, no montante de 8.500,00 €; Factura n.º 0101115, de 13.09.2005, no montante de 14.280,00 €; Factura n.º 0101116, de 13.09.2005, no montante de 14.000,00 €; Factura n.º 0101117, de 13.09.2005, no montante de 174,16 €; Factura n.º 0101178, de 16.09.2005, no montante de 1.001,00 €; Factura n.º 0101200, de 20.09.2005, no montante de 1.930,00 €; Factura n.º 0101201, de 20.09.2005, no montante de 19.000,00 €; Factura n.º 0101202, de 20.09.2005, no montante de 27.790,00 €; Factura n.º 0101243, de 23.09.2005, no montante de 6.620,00 €; Factura n.º 0101432, de 27.10.2005, no montante de 10.149,90 €; Factura n.º 01001629, de 12.12.2005, no montante de 3,333,00 €; Factura n.º 0101630, de 12.12.2005, no montante de 90,00 €; Factura n.º 0101663, de 16.12.2005, no montante de 3.916,00 €; Factura n.º 0100182, de 20.07.2006, no montante de 929,00 €, e Factura n.º 0100216, de 23.02.'2006, no montante de 31.000,00 €.
4. Do verso do cheque referido em 1) consta "CHEQUE DEVOLVIDO POR PAGAR - MOTIVO CHEQUE EXTRAVIADO" - "B... - 06-09-19" (doc. de fls. 26 e tradução de fls. 184) [Alínea D) dos factos assentes];
5. A « C...» foi declarada insolvente no Processo n.º 2553/07.3TBAVR, a correr termos no 3° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Aveiro, no qual o crédito da Autora foi reconhecido pelo Exm.º Administrador da Insolvência, pelo montante de € 408.622,03 (doc. fls. 83 a 88 e 94 a 115) [Alínea E) dos factos assentes];
6. O cheque referido em 1) foi entregue pela « C...» à Autora em pagamento parcial de mercadoria por esta fornecida àquela (máquinas e demais acessórios para viticultura), titulada pelas facturas aludidas em 3) [Resposta ao item 1º da B.I.];
7. Tal cheque foi entregue pela Autora ao banco italiano «D...», com o qual aquela trabalha, o qual, por sua vez, o apresentou em nome da Autora à cobrança junto do Réu [Resposta ao item 2º da B.I.];
8. E foi devolvido com a indicação referida em 4) [Resposta ao item 3º da B.I.];
9. A informação de Extravio aposta na parte posterior do cheque é falsa [Resposta ao item 4º da B.I.];
10. O dito cheque foi avalizado pessoalmente pelo gerente da sacadora « C...» [Resposta ao item 5º da B.I.];
11. E foi emitido com a cláusula «não à ordem» [Resposta ao item 6º da B.I.];
12. O Réu tinha conhecimento dos factos aludidos em 1º, 2º, 3º,5º e 6º [Resposta ao item 7º da B.I.];
13. No mesmo mês e no mês anterior ao vencimento do cheque referido em 1), tinham-se vencido mais três cheques do Réu, emitidos pela « C...» à ordem da Autora, preenchidos e assinados na mesma forma (com a mesma letra, caligrafia e caneta) que esse cheque referido em 1) [Resposta ao item 8º da B.I.];
14. Estes três cheques não foram pagos [Resposta ao item 9º da B.I.];
15. Tendo sido, a pedido do Réu, sujeitos a formal protesto junto do Primeiro Cartório Notarial de Competência Especializada de Aveiro [Resposta ao item 10º da B.I.];
16. Foi o Réu quem apresentou os ditos três títulos a protesto a pedido do banco italiano que referiu agir em nome da Autora [Resposta ao item 11º da B.I.];
17. O Réu aceitou a declaração da « C...» de que o cheque se havia extraviado [Resposta ao item 14º da B.I.];
18. O Réu aceitou a declaração de extravio feita [Resposta ao item 16º da B.I.];
19. A Autora não recebeu a importância de € 21.880,00 que se encontrava titulada pelo cheque referido em 1) [Resposta ao item 11º da B.I.];
20. Por carta datada de 04.09. o banco italiano «D...», em nome da Autora A... solicitou ao Réu que: «(…) proceda à cobrança; reconheça o produto líquido apenas após o pagamento final (…)» do cheque n.º 3904668634, sacado pela « C... com Serv. Vit, solicitando ainda o protesto do mesmo por falta de pagamento [cfr. doc. de fls. 133 e tradução de fls. 190, que não foi impugnado, cujo teor se considera reproduzido];
21. Por carta datada de 06.09.2006 o Réu comunicou à « C...» ter recebido o cheque aludido em 1) para pagamento [cfr. doc. junto a fls. 147, não impugnado, cujo teor se considera reproduzido];
22. Entre as datas 22.08.2006 a 11.09.2006 a conta a que respeita o cheque aludido em 1) teve saldo negativo [cfr. doc. junto a fls. 239 a 252, não impugnado, cujo teor se considera reproduzido].

III. Do mérito do recurso

1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se na resposta às seguintes questões:
1) Averiguação sobre se estão reunidos os requisitos da responsabilidade civil, e consequente obrigação de indemnizar por parte do Apelante, particularmente no que concerne à culpa e ao dano;
2) Na eventualidade de resposta negativa à primeira questão, apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto relativamente aos pontos 12.º a 16.º da base instrutória.

2. Apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil.
2.1. Enquadramento da questão:
Partimos da definição doutrinária de cheque, como «escrito datado e assinado (…) através do qual uma pessoa ordena incondicionalmente a um banco ou outra instituição de crédito a tanto autorizada e onde tem provisão, que desembolse, à vista, a quantia nele inscrita»[1].
A relação titulada pelo cheque, envolve três sujeitos - sacador, sacado e tomador – como refere José Maria Pires[2]: «No que se refere aos seus elementos essenciais, o cheque é um meio de pagamento pelo qual uma pessoa (sacador) ordena ao banco (sacado), onde tenha fundos disponíveis (provisão), o pagamento à vista de determinada importância, a seu favor ou de terceiro (tomador ou beneficiário)
Desta definição doutrinária e do regime jurídico que a suporta, previsto na Lei Uniforme Sobre Cheques, emerge como dever principal do Banco, o «dever de pagamento».
Decorre do disposto no artigo 28.º da citada Lei Uniforme, que o cheque é pagável à vista, ou seja, logo que apresentado a pagamento, e que se considera não escrita qualquer menção em contrário.
Nos termos do artigo 29.º do citado diploma legal, o cheque pagável no país onde foi emitido, deve ser apresentado a pagamento (cobrança mediante a apresentação do mesmo ao banco sacado) no prazo de oito dias.
O cheque em causa nos autos foi emitido em Portugal sobre um banco português, devendo ser pago em Aveiro, pelo que estava sujeito ao prazo de oito dias, previsto no artigo 29.º da Lei Uniforme.
Como se refere na douta sentença recorrida, o cheque em causa, datado de 30.08.2006, foi entregue pela Autora ao banco italiano «D.,..a», com o qual aquela trabalha, o qual, por sua vez, por carta datada de 04.09.2006, o apresentou em nome da Autora à cobrança junto do banco Apelante/réu, que por carta datada de 06.09.2006 o Réu comunicou à « C...» ter recebido tal cheque para pagamento. E foi devolvido com a indicação do banco sacado de «cheque devolvido por pagar - motivo cheque extraviado. (…) 06.09.19».
Em suma, o cheque foi apresentado a pagamento ao Réu, no prazo de 8 dias, ou seja entre os dias 04.09.2006 (cfr. doc. de fls. 133) e 06.09.2006 (doc. de fls. 147), não obstante constar do verso do mesmo como data de devolução: 19.09.2006.
Ora, uma vez apresentado à cobrança/pagamento ao banco Apelante/réu/sacado, sobre esta entidade incumbia o dever de pagar.
O Apelante não procedeu ao pagamento do cheque, com fundamento no facto de o sacador – seu cliente, ter comunicado o extravio.
A questão que se suscita consiste em saber se tal procedimento (recusa de pagamento nas circunstâncias referidas), poderá considerar-se como integrante dos pressupostos da responsabilidade civil (artigo 483.º do CC) e, em consequência, da obrigação de indemnizar (artigos 562.º e seguintes do CC).
Na douta sentença recorrida, a M.ª Juíza considerou aplicável a doutrina do acórdão de uniformização de jurisprudência, do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.02.2008[3].
Vejamos se é aplicável a doutrina do referido acórdão.

2.2. A não aplicação da doutrina do acórdão uniformizador, na questão sub judice.
Em anotação ao artigo 32.º da Lei Uniforme do Cheque, escreve Abel Delgado[4], em consonância com a doutrina tradicional: «(…) o art.º 32.º respeita ao cheque como título cambiário que subsiste e resiste incólume a quaisquer revogações emanadas do emitente; nem o art.º 32.º nem a L.U. em geral visam as relações internas entre sacador e sacado; o contrato de cheque envolve um mandato sem representação; esse mandato, desde que há cheques emitidos, só deve ser revogado se houver justa causa (n.º 2 do art.º 1170.º do Cód. Civil); quer haja ou não justa causa, o sacado tem de obedecer às instruções do sacador; o portador não tem quaisquer direitos contra o sacado, quer no âmbito do direito cambiário quer fora dele (…)».
O mesmo autor cita em abono do entendimento expendido, um acórdão do STJ, onde se conclui que o portador de um cheque não tem direito de acção nem cambiária nem de responsabilidade civil por facto ilícito contra o sacado que obedecendo a recomendações posteriores do sacador, o não paga no prazo de apresentação.
Tal entendimento tinha o apoio doutrinário de Ferrer Correia, tendo este Professor e Almeno de Sá, em parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XV-1990, tomo I, pp. 40-56, defendido que o portador de um cheque não tem direito de acção contra o Banco sacado que se recusa a pagá-lo dentro de prazo de apresentação, seja com fundamento em responsabilidade civil de natureza contratual, como a fundada em cessão de créditos, seja com fundamento em responsabilidade extracontratual, como a emergente de violação da lei, por considerarem, neste âmbito, que a Lei Uniforme sobre Cheques revogou tacitamente todo o art. 14.º do Decreto n.º 13004, cujo regime os referidos autores consideravam «frontalmente contrário ao sistema da L.U. e designadamente ao disposto no art. 32.º, que assenta na ideia de não vinculação do sacado perante o portador».
O mesmo entendimento se revelava pacífico na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, anterior ao acórdão uniformizador n.º 4/2000, de 19-01-2000 (publicado no Diário da República, Série I-A, n.º 40, de 17-02-2000), projectando-se mesmo para data posterior ao referido acórdão uniformizador, como se conclui do acórdão do mesmo Supremo, de 16.09.2001[5], onde se decidiu: «O contrato do cheque representa um meio posto à disposição do titular da provisão de aceder aos fundos depositados. Os sujeitos da relação jurídica do contrato do cheque são, assim, o sacador e o Banco sacado. O beneficiário do cheque é estranho a esta relação, pelo que não tem qualquer direito de acção contra o sacado
José Maria Pires faz na obra citada[6] o resumo histórico da evolução da doutrina e da jurisprudência sobre esta matéria, onde se afirma como claramente maioritária durante várias décadas, a corrente jurisprudencial e doutrinária que, apesar do artigo 32.º da Lei Uniforme, defendia a revogabilidade do cheque, citando a título exemplificativo os acórdãos da Relação do Porto, de 21.12.89 e 5.4.90, publicados na Colectânea de Jurisprudência, Tomo 2, pág. 237, respectivamente, e o da Relação de Lisboa, de 5.4.90, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Tomo 2, pág. 227, bem como a posição de Filinto Elísio favorável à revogabilidade nestes termos: «... o sacado em nenhuma hipótese é responsável quer haja ou não justa causa. Ele está ao serviço do sacador, único protagonista que conhece e com quem contratou, e enquanto não houver preceito a responsabilizá-lo não pode sofrer as consequências desfavoráveis de qualquer acto impensado ou mal pensado do sacador
A favor da irrevogabilidade durante o prazo da apresentação a pagamento, susceptível de levar à consequente responsabilidade do sacado (banco), erguia-se já uma voz de peso na doutrina: Adelino da Palma Carlos[7], vindo essa posição a ser assumida na jurisprudência pelo acórdão da Relação do Porto de 24.04.1990[8] (que pensamos ter sido pioneiro), onde se questiona a jurisprudência dominante, que negava a possibilidade de o banco (sacado) poder ser responsabilizado pelo tomador (portador do cheque), ao abrigo dos princípios gerais da responsabilidade civil por acto ilícito (art. 483.º e seguintes CC), com fundamento na circunstância de o delegado português à Conferência de Genebra ter proposto sem êxito que se aditasse à LU, de acordo com o nosso direito então vigente (art. 14.º, alínea 2.ª do Dec. n.º 13 004), que o sacado, ao recusar o pagamento do cheque no decurso do prazo de apresentação com fundamento em revogação, respondesse por perdas e danos.
No douto aresto citado, o Tribunal da relação do Porto não só punha em causa a jurisprudência que entendia não haver qualquer dever do sacado para com o portador do cheque, considerando o banco mero depositário das quantias do sacador, não lhe competindo mais do que obedecer às ordens que este lhe dava, como contrariava a doutrina que considerava revogado o artigo 14.º n.º 2 do Decreto n.º 13 004 «por conter princípios incompatíveis com a Lei Uniforme».
Concluía o douto aresto que vimos citando, pela enorme dificuldade em conciliar o teor da 1.ª parte do artigo 32.º da LUC com a doutrina que defende a irresponsabilização do banco sacado, considerando que tal irresponsabilização, pura e simplesmente esvaziava o citado preceito do seu principal conteúdo.
Em coerência com os fundamentos explanados, conclui-se no sumário do citado aresto: «Incorre em responsabilidade civil para com o portador do cheque o banco que deixa de o pagar com fundamento na sua revogação apesar da apresentação apagamento se efectuar dentro do prazo legal».
Também na doutrina ganha terreno a tese da irrevogabilidade, defendida, nomeadamente, por José Maria Pires faz na obra citada[9], com esta sintética fundamentação: «… pela convenção do cheque, o sacado obriga-se perante o sacador a pagar ao beneficiário por ele indicado. Desta convenção, em si mesma, não resulta para o beneficiário qualquer direito sobre o sacado. Não é um contrato a favor de terceiro. No entanto, o instrumento pelo qual o sacador vai exercer o seu direito também não é um instrumento qualquer, apenas regulado pelas partes, antes está sujeito a um regime jurídico legalmente imperativo
A tese da irrevogabilidade e da consequente responsabilidade do sacado, ainda em momento anterior ao Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2000, de 19-01-2000 (publicado no D.R. n.º 40, Série I-A, de 17-02-2000), afirma-se na Relação do Porto, nomeadamente nos acórdãos de 18-03-2003, 19-02-2004 e 20-11-2007, proferidos respectivamente nos Processos n.º 0121360, 0430270 e 0725169[10], citados na Apelação n.º 3892/08 – 2.ª Secção.
A título exemplificativo, refere-se no acórdão de 20.11.2007, proferido no Processo n.º 0725169: «O Banco que, acedendo a solicitação do sacador sem justa causa, se recusa a pagar um cheque apresentado dentro do prazo legal, viola os arts. 32º da LUCH e 14º, 2ª parte, do Decreto nº 13.004, de 12.01.1927 e responde pelos danos causados ao portador legítimo».
Na sua fundamentação, o citado Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2000 deixa definitivamente aberto o caminho para a responsabilização do sacado (banco), perante o tomador (portado do cheque), nas situações em que a instituição financeira recusa o pagamento com fundamento da revogação efectuada durante o prazo de apresentação à cobrança, ao declarar em vigor (não revogado pela LU), a segunda parte do corpo do artigo 14.º do Decreto n.º 13 004, que tem o seguinte teor: «… No decurso do mesmo prazo (de pagamento) o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento na referida revogação».
Nos fundamentos de tal conclusão, o Supremo Tribunal contorna a argumentação contrária, alicerçada na relatividade decorrente da natureza contratual da convenção de cheque, desta forma: «… a acção de perdas e danos a que alude o preceito em análise não tem como fundamento a violação do contrato de cheque nem o incumprimento de qualquer obrigação cambiária do sacado. Ou seja: nem o sacado é demandado como obrigado cambiário nem o fundamento da sua responsabilidade reside na violação de uma relação jurídica que, entre ele e o portador, já estivesse estabelecida antes de se produzir o facto gerador da responsabilidade. Logo, a referida acção não colide em nada com o princípio de que o sacado não responde perante o portador, nem como obrigado cambiário, nem por incumprimento do contrato de cheque.»
É este, em síntese, o historial doutrinário e jurisprudencial que culmina no Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008, proferido no Processo n.º 06A542, em que se funda a douta sentença recorrida.
Por força do citado aresto, foi uniformizada a jurisprudência nos termos seguintes: «Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no art. 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1.ª parte do art. 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos arts. 14.º, 2.ª parte do Dec. n.º 13.004 e 483.º,n.º 1, do Código Civil.»
No entanto, salvo todo o respeito devido, a doutrina do citado acórdão uniformizador não é aplicável ao caso sub judice.
Como refere José Maria Pires faz na obra citada[11], no caso de extravio ou qualquer outra forma de “ilegítima apropriação” «… o que está em causa não é a revogação – o sacador proíbe o pagamento por considerar inválido o seu saque. Logo, não o revoga, porque a revogação pressupõe a validade do acto que por esse efeito, se extingue».
Em suma, o facto de se considerar em vigor a segunda parte do corpo do artigo 14.º do Decreto n.º 13 004, como o fizeram os acórdãos uniformizadores citados (Assento do STJ 4/2000 e Acórdão de 28.02.2008), não implica necessariamente a responsabilidade civil do sacado, decorrente da recusa de pagamento, nas situações em que o sacador declara a ocorrência do extravio do cheque.
Nesse sentido, veja-se o que lapidarmente decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 16.06.2009, proferido no Processo n.º 5479/07.7TVLSB.L1-1[12], cujo sumário se transcreve parcialmente:
«… pedindo-se o não pagamento de um ou mais cheques, com base em extravio, o banco deve abster-se de proceder ao seu pagamento, sem que para isso tenha de desenvolver diligências aferidoras da veracidade do motivo invocado. (…) Um caso destes não afronta o disposto no ainda vigente artigo 14.º, 2.ª parte, do Decreto n.º 13 004, de 12-1-1927, que responsabiliza civilmente o banco que se negue a pagar um cheque, no prazo de apresentação, com fundamento em revogação.».
Sintetizando, revogação e extravio são realidades distintas, de acordo com o que defende José Maria Pires na obra citada, pelo que não poderemos sem mais aplicar ao “extravio” as consequências da revogação, sendo certo que no Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008, a responsabilidade civil extracontratual do banco sacado se funda numa dupla violação: i) da segunda parte do corpo do artigo 14.º do Decreto n.º 13 004 - que se refere à recusa de pagamento baseada na revogação pelo sacador; ii) da primeira parte do artigo 32.º da LU - que se refere também à revogação pelo sacador no prazo de apresentação.
Ora, no caso dos autos, não há revogação pelo sacador, no prazo de apresentação para pagamento, mas sim declaração de extravio.
Não se revela assim aplicável in casu, a doutrina do Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008, ao contrário do que se afirma na sentença recorrida, improcedendo a argumentação da sentença nessa parte.
2.3. Aferição da existência dos pressupostos da responsabilidade civil
Poderá, ainda assim, questionar-se a aplicação dos mecanismos da responsabilidade civil por facto ilícito (artigos 483.º e seguintes do Código Civil).
Nas suas doutas conclusões, o Apelante coloca a tónica na ausência de culpa (conclusões A a P), concluindo pela não verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar.
Vejamos.
O instituto jurídico em causa pressupõe cinco requisitos cumulativos: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante e o nexo causal entre o facto e o dano, não se tendo provado tais pressupostos, como se passa a demonstrar.
No que concerne ao pressuposto ilicitude, resulta do citado artigo 483.º do CC, que pode consistir: i) na infracção de um direito subjectivo (violação de um direito de outrem); ii) na violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
Afastando desde logo a violação de disposição legal, porque, como já vimos, contrariamente à situação prevista e julgada no acórdão uniformizador de 28.02.2008, não são aplicáveis à invocação de extravio por parte do sacador, nem a segunda parte do corpo do artigo 14.º do Decreto n.º 13 004, nem a primeira parte do artigo 32.º da LU (reportam-se exclusivamente à revogação, que é uma realidade distinta), parece não se verificar a violação do direito subjectivo do tomador do cheque, na medida em que este apenas terá direito ao pagamento se o banco (sacado) estiver obrigado a fazê-lo, por não se verificar qualquer fundamento (justa causa) de recusa, como a inexistência de provisão (que se provou), ou a indicação de extravio (que também se provou).
Finalmente, há que referir o pressuposto essencial da culpa.
A culpa é sempre um juízo de censura ético-social e agir com culpa, segundo Pires de Lima e Antunes Varela[13], significa actuar de forma que a conduta do agente mereça a reprovação ou censura do direito: «o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas, podia e devia ter agido de outro modo».
Era o seguinte o teor dos quesitos 4.º e 7.º da base instrutória:
4.º. «A informação de extravio aposta na parte posterior do cheque é falsa?»
7.º: «Factos esses (quesitos 1.º a 6.º) dos quais a Ré (banco sacado) tinha conhecimento?»
A estes quesitos, o Tribunal de 1.ª instância respondeu desta forma: «Facto 4º: Provado; (…) Facto 7º: Provado apenas que a Ré tinha conhecimento dos factos aludidos em 1º, 2º, 3º,5º e 6º».
Tais respostas não foram impugnadas – a Apelada requer a título subsidiário a ampliação do âmbito do recurso nos termos do artigo 684.º-A, n.º 2 do CPC, recorrendo apenas da matéria dada como não provada referente aos artigos 12.º a 16.º da base instrutória.
Ou seja, não se provou que o banco sacado tivesse conhecimento da falsidade da declaração de extravio, não tendo sido impugnada a decisão da matéria de facto sobre esta questão.
Ora, a prova de tal facto (conhecimento), integrador do pressuposto da culpa, incumbia na íntegra à Apelada, nos termos do artigo 342.º do CC.
Refere-se na fundamentação do aresto do Tribunal da Relação de Lisboa, citado supra, proferido no Processo n.º 5479/07.7TVLSB.L1-1[14],: «No caso dos autos, a fundamentação invocada pela sacadora, para pedir o não pagamento dos cheques, foi o extravio. Aqui coloca-se normalmente outra dúvida que é se o banco sacado deve contentar-se com a mera invocação dessas causas de não pagamento ou se deverá fazer algumas diligências de certificação da veracidade do motivo em que se baseia o pedido ou a contra-ordem de não pagamento. Esta exigência ao banco para que investigue, fazendo-o assumir a responsabilidade pela não detecção da falsidade de um invocado motivo, afigura-se exagerada e estranha à vocação financeira e comercial de uma instituição bancária».
Acompanhamos o entendimento expresso no acórdão citado: não se tendo provado, no caso dos autos, o conhecimento da falsidade de declaração de extravio por parte do banco (Apelante), no âmbito da relação contratual entre o banco (sacado) e o cliente (sacador) não faria sentido a investigação por parte do banco, sobre a veracidade e boa fé da declaração do seu cliente.
Decorrem de todo o exposto, as seguintes conclusões:
1) À situação de recusa de pagamento do cheque por parte do banco (sacado), com fundamento na declaração de extravio por parte do sacador, durante o prazo de apresentação a que se refere a primeira parte do artigo 29.º da LU, não é aplicável o Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008, proferido no Processo n.º 06A542, que preconiza a responsabilidade por perdas e danos por parte do banco.
2) À Apelada (beneficiária) incumbia a prova dos pressupostos da responsabilidade civil enunciados no artigo 483.º do Código Civil, nomeadamente o da culpa, o qual não se verifica perante a resposta negativa ao quesito da base instrutória em que se questionava se o sacado tinha conhecimento da falsidade da declaração de extravio.
Perante tais conclusões, merecerá provimento o recurso, devendo ser revogada a douta sentença recorrida.

3. Apreciação do recurso subordinado
Como se referiu, a Autora contra-alegou, preconizando a total improcedência do recurso da Ré, e ampliando, a título subsidiário, o âmbito do recurso, nos termos do artigo 684.º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Em suma, alega a Apelada que, caso seja dado provimento ao recurso da Apelante, e apenas nessa eventualidade, pretende recorrer da decisão da matéria de facto, relativamente aos pontos 12.º a 16.º da base instrutória.
Vejamos a matéria de facto em causa:

12°: Bem sabia a Ré que, se a sacadora pediu a revogação do cheque aludido em A), tratava-se de uma revogação falsa, afim de evitar mais um protesto e consequente incidente de não pagamento junto do Banco de Portugal?

13°: A Ré podia e devia, perante tais factos, interpelar a Autora, através do banco italiano apresentante, relativamente ao pedido de revogação por extravio recebido?

14°: Mas a Ré fez tábua rasa do acontecido relativamente aos anteriores três cheques, aceitando a revogação por extravio apresentada pela sacadora?

15°: Era evidente para a Ré de que estava perante um abuso do instrumento de revogação, como forma ilegítima por evitar um pagamento devido?

16°: Perante tal situação, a Ré optou por favorecer a sua cliente (sacadora)?
Foram as seguintes as respostas do Tribunal de 1.ª instância:

Facto 12º: Não provado;

Facto 13º: Não provado;

Facto 14º: Provado apenas que a Ré aceitou a declaração da « C...» de que o cheque se havia extraviado;

Facto 15º: Não provado;

Facto 16º: Provado apenas que a Ré aceitou a declaração de extravio feita pela Autora.
Funda a Recorrente a sua divergência quanto à decisão da matéria de facto, no seguinte raciocínio: «a conjugação dos documentos n.º 1°, 35°, 36°, 37° da PI, dos docs. 1, 3 e 4 da contestação, do ponto A) dos factos assentes, e dos art. 5°, 6°, 7°, 8°, 9°, 10°, 11° da BI, deve conduzir a solução contrária.»
A M.ª Juíza do Tribunal a quo fundamentou nestes termos as repostas negativas:

«No que concerne aos factos não provados.

Poderia o tribunal concluir que:

- A Ré sabia que a declaração de extravio feito pela « C...» era falsa e concomitantemente a declaração que aí apôs? Bem como de que sabia bem que a « C...» apenas fez tal declaração a fim de evitar mais um protesto e consequente incidente de não pagamento junto do Banco de Portugal (artigos 7º e 12º da b.i.)?

- A Ré podia e devia interpelar a Autora através do banco italiano relativamente ao extravio? A Ré fez tábua rasa do que aconteceu quanto aos anteriores três cheques?

- Seria evidente para a Ré que a « C...» queria de forma ilegítima (declaração de extravio) evitar um pagamento devido?

Para responder a estas questões analise-se o depoimento das testemunhas, bem como o teor dos documentos juntos aos autos.

As testemunhas E... eF...., funcionários da Ré, referiram conhecer a Autora de nome, pelo facto de este aparecer em documentos ligados à « C...». No que respeita à declaração de extravio referiram que o cliente fez a declaração nesse sentido por escrito, só mencionando o número do cheque. Nessa altura não costumavam confirmar a veracidade da declaração, tanto mais que existiam situações de extravio com outros clientes. Ademais os outros cheques mencionados na declaração de extravio nunca apareceram. Acrescentaram que não vêem fisicamente o cheque. Não obstante já tinham feito os protestos dos demais três cheques, mas não fizeram a ligação com aquele que foi dado como extraviado.

Acrescentou a primeira testemunha que um cheque não pago por extravio não é protestado e a outra que tem conhecimento de tal. A testemunha F... disse ainda que além da declaração de extravio a « C...», por telefone, lhe referiu que o cheque em causa tinha sido remetido para Itália.

Quando foi solicitada a cobrança do cheque dos autos não foi visualizado o próprio cheque, mas apenas a comunicação com o número e o montante. O cheque ficou em Lisboa. A decisão da declaração de extravio é feita em equipa. Não estranhou a declaração de extravio nem supôs que fosse falsa. Aceitaram o extravio.

Dos documentos juntos aos autos constata-se que: O cheque (fls. 26) em causa nos autos tem como data de emissão o dia 30.08.2006.

Os outros três cheques têm como data de emissão 18.07.2006, 26.07.2006 e 07.08.2006 e foram protestados por falta de pagamento em 21.08.2006, 23.08.2006 e 01.09.2006 (fls. 70 a 75 e 216 a 221).

A sociedade « C...» comunicou à Ré o extravio do cheque em 01.09.2006 (cfr. fls. 148).

A cobrança do cheque dos autos foi solicitada em data anterior a 06.09.2006 e posterior a 04.09.2006 (cfr. fls. 133 e 147 e tradução de fls. 190 a 192).

Todos os quatro cheques foram preenchidos e assinados da mesma forma, com a mesma letra caligrafia e caneta.

Todos os cheques têm numeração seguida.

Atentas as regras de experiência comum, face aos depoimentos das testemunhas e ao teor dos aludidos documentos afigura-se-me não poder, com grau de certeza razoável, responder afirmativamente às questões acima referidas.

É certo que os outros três cheques tinham sido protestados, que estes têm numeração seguida e se encontram preenchidos da mesma forma, mas também é verdade que aquando a comunicação de extravio pela « C...» apenas se referiu o número do cheque e posteriormente, aquando a cobrança, não foi apresentado/visualizado o cheque, o qual apenas foi identificado.

Donde, se por uma lado se pode concluir que a Ré deveria ter sido mais rigorosa e atenta, por outro o supra exposto não permite concluir, com um grau de certeza, que a Ré sabia que a declaração de extravio feito pela « C...» era falsa, bem como sabia que esta apenas fez tal declaração a fim de evitar mais um protesto e o consequente incidente de não pagamento junto do Banco de Portugal, assim como a Ré podia e devia interpelar a Autora através do banco italiano relativamente ao extravio, ligando este cheque aos outros três anteriores, sendo evidente que a « C...» queria evitar um pagamento devido.»
Dispõe o n.º 4 do artigo 646.º do CPC: «Têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes
Afigura-se, por demais evidente, que as afirmações: A Ré podia e devia, perante tais factos, interpelar a Autora, através do banco italiano apresentante, relativamente ao pedido de revogação por extravio recebido (quesito 13.º); Mas a Ré fez tábua rasa do acontecido relativamente aos anteriores três cheques, aceitando a revogação por extravio apresentada pela sacadora (quesito 14.º); Era evidente para a Ré de que estava perante um abuso do instrumento de revogação, como forma ilegítima por evitar um pagamento devido (quesito 15.º); Perante tal situação, a Ré optou por favorecer a sua cliente – sacadora (quesito 16.º), contêm matéria de natureza conclusiva, ou seja: não se trata de factos concretos, mas sim de conclusões a extrair desses factos.
Com efeito, as expressões “podia e devia”, “fez tábua rasa”, “forma ilegítima” “opção por favorecer”, têm inegável pendor conclusivo.
Mesmo seguindo a opção pragmática preconizada por Abrantes Geraldes[15], no sentido de, em situações de dúvida «ser preferível o juiz responder à matéria de facto, considerando-a provada ou não provada, do que omitir qualquer decisão e correr assim o risco da repetição (ainda que parcial) do julgamento», revela-se incontornável, face ao disposto no n.º 4 do artigo 646.º do CPC, que, por se tratar de matéria absolutamente conclusiva, o tribunal não pode considerar: todo o quesito 13.º, a 1.ª parte do quesito 14.º, todo o quesito 15.º e todo o quesito 16.º.
Ficam assim em causa apenas dois quesitos:
12.º: Bem sabia a Ré que, se a sacadora pediu a revogação do cheque aludido em A), tratava-se de uma revogação falsa, afim de evitar mais um protesto e consequente incidente de não pagamento junto do Banco de Portugal?
14.º A Ré aceitou a revogação por extravio apresentada pela sacadora?
No que se reporta à decisão referente ao artigo 14.º (na parte aproveitável), a resposta do tribunal de 1.ª instância foi favorável à Recorrente: Provado apenas que a Ré aceitou a declaração da « C...» de que o cheque se havia extraviado.
A resposta, para além de ser favorável à Recorrente A..., depura o quesito de matéria conclusiva e da manifesta confusão entre os conceitos de “extravio” e “revogação”.
Fica apenas em causa a resposta ao quesito 12.º.
Perante a argumentação da Recorrente, concluímos que pretende a alteração da decisão com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 712.º do CPC, do qual decorre que a decisão da 1.ª instância pode ser alterada se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.
Com efeito, a Recorrente não impugna a decisão com base nos depoimentos gravados [art. 712.º, n.º 1, alínea a)].
A situação em causa traduz-se, como refere Manuel de Andrade, citado por Fernando Amâncio Ferreira[16] de o tribunal a quo ter desprezado a força probatória dum documento não impugnado nos termos legais. Encontrando-se junto aos autos documento que faça prova plena de certo facto e o juiz, na sentença, não o der com provado, incumbe à Relação alterar a decisão da 1.ª instância, nessa parte, fazendo prevalecer a força probatória do documento (arts. 371.º, n.º 1, 376.º, n.º 1, e 377.º do CC).
A Recorrente A..., aponta os seguintes documentos: n.º 1, 35, 36, 37 da PI, e 1, 3 e 4 da contestação.
Visionados os referidos documentos (cheque de € 21.880,00; cópia de cheque de € 11.000,00; instrumento de protesto; cópia de cheque de € 11.330,00; instrumento de protesto; cópia da carta remetida ao B..., pelo banco italiano; carta do B..., remetida à C...; carta da C... a solicitar ao B... a “anulação por extravio”), não se vislumbra, salvo o devido respeito, como possa o teor dos mesmos pôr em causa a fundamentação da decisão de facto reproduzida supra.
O que a Recorrente pretenderia, como transparece das suas doutas conclusões XXXII a XLIX, seria a utilização por parte deste tribunal, do recurso à presunção judicial, para, perante os factos provados, com base nas regras da experiência comum, extrair a conclusão de que a falsidade da declaração de extravio era do conhecimento do Apelante B... (banco sacado)).
Como regista Fernando Amâncio Ferreira[17] na obra citada, com apoio na jurisprudência e na doutrina dominantes «a Relação pode, mediante presunções judiciais, fundadas nas máximas da experiência, nos princípios da lógica ou nos juízos correntes probabilidade, deduzir outros factos a partir dos factos apurados na 1.ª instância, mas não pode, em regra, alterar as presunções judiciais utilizadas na l.ª instância, com base nos factos nela averiguados». 
Na situação sub judice, o tribunal da 1.ª instância fundamenta de forma coerente a decisão da matéria de facto, abordando o meio probatório indirectamente invocado e preconizado pela Recorrente, chegando no entanto, com toda a coerência, à conclusão contrária da pretendida pela Recorrente:

«… Atentas as regras de experiência comum, face aos depoimentos das testemunhas e ao teor dos aludidos documentos afigura-se-me não poder, com grau de certeza razoável, responder afirmativamente às questões acima referidas.

É certo que os outros três cheques tinham sido protestados, que estes têm numeração seguida e se encontram preenchidos da mesma forma, mas também é verdade que aquando a comunicação de extravio pela « C...» apenas se referiu o número do cheque e posteriormente, aquando a cobrança, não foi apresentado/visualizado o cheque, o qual apenas foi identificado.

[…]o supra exposto não permite concluir, com um grau de certeza, que a Ré sabia que a declaração de extravio feito pela « C...» era falsa, bem como sabia que esta apenas fez tal declaração a fim de evitar mais um protesto e o consequente incidente de não pagamento junto do Banco de Portugal, assim como a Ré podia e devia interpelar a Autora através do banco italiano relativamente ao extravio, ligando este cheque aos outros três anteriores, sendo evidente que a « C...» queria evitar um pagamento devido.»
Na fundamentação da decisão, o tribunal recorrido alude ainda aos depoimentos das testemunhas (a Recorrente não impugna a decisão com base nos depoimentos gravados), conjugando de forma global e crítica todos os meios probatórios, afigurando-se que os documentos invocados pela Recorrente como susceptíveis de fundar a alteração das respostas não têm essa virtualidade, não demonstrando só por si o invocado conhecimento da falsidade da declaração de extravio, e não bastando para legitimar tal conclusão com base nas regras da experiência comum, como bem e fundadamente concluiu a M.ª Juíza na sua douta decisão.
Perante o exposto, revela-se manifesta, salvo o devido respeito, a improcedência do recurso da A..., relativamente à decisão da matéria de facto.
Em conclusão:
a) Procede na íntegra o recurso do Apelante B..., pelo que deverá ser revogada a douta sentença, decretando-se a absolvição da Apelante;
b) Improcede na íntegra o recurso subsidiário sobre parte da decisão da matéria de facto, interposto pela A..., nos termos do artigo 684.º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil.
                                                              *

Sumário a que se refere o n.º 7 do artigo 713.º do Código de Processo Civil:
I. À situação de recusa de pagamento do cheque por parte do banco (sacado), com fundamento na declaração de extravio por parte do sacador, durante o prazo de apresentação a que se refere a primeira parte do artigo 29.º da LU, não é aplicável o Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008, proferido no Processo n.º 06A542, que preconiza a responsabilidade por perdas e danos por parte do banco.
II. A ordem de proibição de pagamento do cheque, dada pelo sacador ao banco sacado com fundamento em “extravio”, não se confunde com a revogação prevista no artigo 32.º da Lei Uniforme Sobre Cheques.
III. No caso de extravio ou qualquer outra forma de “ilegítima apropriação”, o que está em causa não é a revogação. Nestes casos o sacador proíbe o pagamento por considerar inválido o seu saque. Logo, não o revoga, porque a revogação pressupõe a validade do acto que, por esse efeito, se extingue.


IV. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação:
a) Em julgar procedente a apelação do B...., e, em consequência, em revogar a douta sentença recorrida, decretando a absolvição do Apelante, de todos os pedidos formulados pela Apelada A...;
b) Em negar provimento ao recurso subsidiário sobre parte da decisão da matéria de facto, interposto pela A..., ao abrigo do disposto no artigo 684.º-A, n.º 2, do CPC.
Custas da acção e do recurso pela A....
                                                          *
O presente acórdão compõe-se de sete folhas com os versos não impressos e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.


[1] Pinto Furtado, Títulos de Crédito, pág. 225 e seguintes.
[2] O Cheque, Editora Rei dos Livros, pág. 25.
[3] Proferido no Processo n.º 06A542, disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Lei Uniforme Sobre Cheques Anotada, 4.ª Edição, pág. 185.
[5] Proferido no Processo n.º 01A1330, disponível em http://www.dgsi.pt
[6] O Cheque, Rei dos Livros, pág. 104, 105
[7] Revista da Ordem dos Advogados, n.º 6, pág. 449
[8] Publicado na CJ, Ano XV, 1990, pág. 238.
[9] O Cheque, Rei dos Livros, pág. 104, 105
[10] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[11] O Cheque, Rei dos Livros, pág. 107
[12] Disponível em http://www.dgsi.pt
[13] Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 474.
[14] Disponível em http://www.dgsi.pt
[15] Temas da reforma do Processo Civil, pág. 232
[16] Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª Edição, pág. 215 e seguintes.
[17] Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª Edição, pág. 215 e seguintes.