Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
801/2002.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
CONCORRÊNCIA ENTRE RESPONSABILIDADE CIVIL COM BASE NA CULPA E RESPONSABILIDADE ASSENTE NO RISCO
DANO MORTE E DANOS MORAIS
Data do Acordão: 06/03/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 496º, NºS 1 E 3; 503º, NºS 1 E 3; 505º; 570º, Nº 1, DO C. CIV.
Sumário: I - Resultando uma decisão da prova concreta de determinados factos, e não do funcionamento, enquanto “regras de decisão” respeitantes à incerteza quanto a esses factos, das regras respeitantes ao ónus da prova, é irrelevante a parte de quem provém a prova desses factos.

II – A formulação de um juízo de culpa, enquanto elemento de uma imputação delitual espeitante à circulação automóvel, assenta na aferição da conduta do agente com base na antecipação preventiva dos riscos normais da condução e não de riscos excepcionais, referidos a um exacerbamento de cautelas para além daquilo que usualmente, naquelas condições concretas, é suficiente para evitar acidentes.

III – Numa acção destinada à efectivação da responsabilidade civil por acidente de viação, é o próprio acidente, enquanto evento juridicamente plurissignificativo, que integra a causa de pedir, sendo de presumir que ao aludir a uma responsabilidade assente na culpa, exclusiva ou concorrente, do lesante, o demandante não exclui a responsabilidade pelo risco.

IV – No caso de um veículo pesado de circulação terrestre, a responsabilidade pelo risco, referida a quem detém a “direcção efectiva” do mesmo (artigo 503º, nº 1 do CC), abrange as características desse tipo de veículo potenciadoras da magnitude do dano.

V – Tal responsabilização subsiste, relativamente a quem detém a “direcção efectiva” e, como tal, controla a utilização desse meio, mesmo face à prova da ausência de culpa por parte do condutor (artigo 503º, nº 3 do CC), sempre que o dano expresse (ainda expresse), na sua natureza ou intensidade, elementos ligados à particular natureza desse veículo.

VI – Actua nestes casos, na ponderação das contribuições para o dano, em sede de fixação do quantum indemnizatório, o disposto no artigo 570º, nº 1 do CC.

VII – A exclusão da responsabilidade objectiva do detentor do veículo, nos termos do artigo 505º do CC, só ocorre quando o acidente for unicamente devido ao próprio lesado ou a terceiro, ou resulte em exclusivo de causa estranha ao funcionamento do veículo, não tendo em nada contribuído a particular natureza deste para a ampliação dos danos.

VIII - Apreciando o dano morte, ponderando o sentido significativo do mesmo, enquanto dano respeitante a um valor, necessariamente idealizado, correspondente à supressão da vida da própria vítima, que se transmite aos seus herdeiros, nos termos do artigo 2024º do CC, considera-se adequado quantificá-lo em € 30.000,00.

IX - Quanto ao dano não patrimonial do A. (artigo 496º, nº 1 do CC), traduzido no desgosto correspondente à morte trágica da mãe, pessoa de 60 anos de idade, activa, alegre, vigorosa e sempre disponível para ajudar os filhos, que a ela estavam muito ligados, considera esta Relação adequado, funcionando aqui o critério da fixação equitativa (artigo 496º, nº 3 do CC), o montante de € 9.000,00.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


1. A... (A. e neste recurso Apelante) demandou, em 5 de Dezembro de 2002, B... (1º R.), C... (2ª R.), D... (3ª R.) e E... (4º R.; todos os RR. são neste recurso Apelados), pedindo a condenação solidária destes a satisfazerem-lhe a quantia de €37.500,00, a título de indemnização respeitante à morte por atropelamento da sua mãe, F..., evento ocorrido em 22/12/1995 quando a viatura atropelante (74-91-BE) era conduzida pelo 1º R.. Imputa a este o A. a responsabilidade pelo acidente e demanda a 2ª e 3ª RR., alternativamente, como comitentes do condutor, e o 3º R. em função da inexistência de seguro cobrindo, no momento do acidente, os riscos respeitantes à circulação da viatura BE.

Contestaram apenas os RR. B... e C... (fls. 16/21), imputando a culpa exclusiva do acidente à F..., acrescentando a 2ª R. que o 1º R. trabalhava, no momento do acidente, para a 3ª R. e que a viatura BE já era, então, propriedade desta última.

Saneado o processo, fixados os factos assentes na fase de condensação e elaborada a base instrutória (fls. 35/37), avançou-se para a fase de julgamento. Nesta, foi determinada, pelo despacho de fls. 191, a apensação a estes autos, nos termos do artigo 275º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (CPC), do proc. nº 811/2002 do 1º Juízo do Tribunal de Ourém (que aqui tomou o nº 801-A/2002.C1)[1].   Decorreu a audiência de julgamento nos termos documentados a fls. 376/385, 480/484 e 527/528, respondendo o Tribunal à base instrutória como consta de fls. 529/532 (a fls. 533/536 constam as respostas respeitantes à acção apensa), proferindo a Sentença de fls. 540/552 (constitui esta a decisão aqui recorrida) que, na improcedência da acção, absolveu todos os RR. do pedido formulado pelo A.[2].

1.1. Inconformado, interpôs o A. o presente recurso de apelação (v. fls. 560; cfr. despacho de admissão a fls. 566), alegando-o a fls. 592/610, formulando as seguintes conclusões:


“[…]
1- De acordo com o disposto no artigo 659º, nºs 2 e 3 do CPC, na fundamentação da sentença, o Tribunal deve ter em consideração os factos provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe compete conhecer e interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
2- No caso dos autos, na errada ponderação global e crítica dos factos provados (e dos não provados), a Mma. Juiz a quo foi conduzida a uma errada interpretação e visualização da dinâmica do acidente e, consequentemente, a uma incorrecta aplicação do direito, desde logo por violação das regras do ónus da prova aplicáveis ao caso (artigos 350º, 505º e 570º do [Código Civil]).
3- Impendendo sobre o condutor do pesado BE a presunção de culpa prevista no artigo 503º, nº 3 do [Código Civil], não tinha o A. ora recorrente, filho da vítima mortalmente atropelada por aquele, de provar a culpa na eclosão do acidente, competindo àquele condutor ilidir a presunção por prova em contrário (artigos 350º e 487º, nº 1 do [Código Civil]).
4- No caso dos autos, para que se tivessem por ilididas tais presunções, teria o condutor do BE que ter demonstrado que, naquelas concretas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o obstáculo constituído pela vítima que atropelou, tinha surgido na sua linha de trânsito de forma súbita e inopinada, ou seja, em circunstâncias que não lhe tivessem permitido, ou a qualquer homem médio, adoptar qualquer conduta adequada a evitar a colisão com a vítima, o que não aconteceu.
5- À luz do disposto no artigo 487º, nº 2 do [Código Civil], a conduta de um peão que atravessa à noite, numa rua urbana, iluminada, com 9,50 m de largura, a 20 m de distância de uma passadeira para peões, violando o disposto no artigo 99º do [Código da Estrada], não é, só por esse facto, idónea a ser causal de um acidente de viação (atropelamento), do qual resultou a sua morte, apesar de com tal conduta o peão F... ter criado, objectivamente, uma situação de perigo.
6- Mas agiu também com culpa, na perspectiva do recorrente, o condutor de um veículo pesado de mercadorias que, descendo à noite uma rua urbana iluminada, e em recta com 9,50 m de largura, circulando a cerca de 30Km/hora, e em condições que lhe permitiam ver a pelo menos 20 m de distância um peão, quando este já iniciara a travessia dessa rua, na faixa oposta àquela em que o pesado circulava, o atropela causando-lhe a morte. Quando o peão já havia atingido, nessa travessia, a faixa direita na qual circulava o pesado, o facto de este não parar de forma a evitar o acidente. Isto, não obstante o peão atravessar a rua fora da passadeira para peões, mas cerca de 20 m depois desta, considerando o sentido de circulação do pesado. Tal conduta evidencia que conduzia desatento, e sem os cuidados que lhe eram exigíveis, com imperícia e velocidade excessiva, pelo menos em termos relativos, pois não conseguiu dominar o veículo, parando no espaço livre e visível à sua frente, como podia e devia, por forma a evitar o acidente.
7- Nas circunstância de tempo, modo e lugar em que ocorreu o atropelamento dos autos, o condutor do BE violou o dever geral de cuidado e de prevenção do perigo, consagrado no artigo 3º do [Código da Estrada], bem como o disposto no nº 1 do artigo 24º do mesmo diploma.
8- Em tais circunstâncias, a conduta do condutor do pesado BE, por ilícita e culposa, concorreu maioritariamente para a ocorrência do atropelamento e suas gravíssimas consequências.
9- À luz do disposto nos artigos 487º, nº 2 e 570º, nº 1 do [Código Civil] e no confronto global e valorativo das condutas do condutor B... e do peão F... é de considerar ajustado que aquele contribuiu com 70% e esta com 30% de culpa para a eclosão do sinistro, especialmente tendo em conta a especial perigosidade inerente à circulação de um veículo pesado de mercadorias, pelas suas grandes dimensões e peso adequado a produzir graves danos em caso de acidente, nomeadamente quando circula em zonas urbanas, onde é mais expectável a circulação de pessoas, e tendo em conta, além do mais, a violência do embate, o qual causou ao peão graves e extensas lesões físicas que foram causa necessária da sua morte.
10- Tendo decidido como decidiu, a Mma. Juiz a quo fez um incorrecto exame crítico das provas, violando o disposto no artigo 659º, nºs 2 e 3 do CPC e o disposto no artigo 349º do [Código Civil]; violou ainda as regras do ónus da prova constantes das disposições conjugadas dos artigos 350º, 505º e 570º do [Código Civil], bem como o disposto no nº 1 nº 2 do artigo 487º e artigo 570º, nº 1 do [Código Civil], e nos artigos 3º e 24º, nº 1 do [Código da Estrada].
[…]”
[transcrição de fls. 608/609, com ênfase no original omitido]

            Responderam o 4º e o 1º RR., pugnando ambos pela manutenção da decisão apelada.


II – Fundamentação


            2. Encetando a apreciação do recurso, importa ter presente que o âmbito objectivo deste se define através das conclusões com as quais o Apelante rematou as respectivas alegações (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC[3]).

            Dado que o Apelante não discute os factos apurados, aceitando a sua fixação pela primeira instância, referindo-se a sua impugnação, tão-só, à valoração desses factos, importa aqui consignar, enquanto passo necessário à subsequente argumentação, qual a matéria de facto a considerar, o que se fará transcrevendo o elenco desta constante da Sentença a fls. 541/544, acrescentando-lhe, porém, por se tratar de um elemento relevante, o facto documentalmente provado a fls. 74, através da certidão de nascimento da vítima[4]:


“[…]
1. No dia 22 de Dezembro de 1995, pelas 18h35m, na Rua dos Bombeiros Voluntários, em Ourém, ocorreu um atropelamento, no qual foram intervenientes a viatura de matrícula 74-91-BE, pesado de mercadorias e o peão, F... (número 1 da matéria assente);
2. O veículo 74-91-BE era, na altura, conduzido por B... e seguia imprimindo a direcção Norte – Sul, ou seja, o sentido Ourém – Torres Novas (número 2 da matéria assente);
3. O BE circulava a um velocidade de cerca de 30 Km/hora (resposta ao nº 17 da base instrutória);
4. F... efectuava a travessia da Rua dos Bombeiros Voluntários (resposta ao nº 2 da base instrutória);
5. Na altura, F... atravessava a rua no sentido esquerda – direita, atento o sentido de marcha do BE (número 3 da matéria assente);
6. F... efectuou a travessia da Rua dos Bombeiros Voluntários cerca de vinte metros para Sul do final da passadeira (resposta ao nº 15 da base instrutória);
7. F... vestia roupa preta (resposta ao nº 22 da base instrutória);
8. F... media 1,58 m de altura (resposta ao nº 32 da base instrutória);
9. O embate entre o BE e F... verificou-se, quando esta já estava na hemi-faixa de rodagem do lado direito, no sentido Norte – Sul (respostas aos nºs 3, 4 e 16 da base instrutória);
10. F... havia já atravessado a hemi-faixa de rodagem destinada aos veículos que tomavam o sentido Sul – Norte (resposta ao nº 37 da base instrutória).
11. O embate entre o BE e F... deu-se, na hemi-faixa de rodagem do lado direito, atento o sentido Norte – Sul, da Rua dos Bombeiros Voluntários (resposta ao nº 35 da base instrutória);
12. E a cerca de 20 metros da passadeira para peões (resposta ao nº 36 da base instrutória);
13. F... foi projectada a cerca de 8,30 metros do local do embate (resposta ao nº 8 da base instrutória);
14. F... imobilizou-se na via de trânsito contrária àquela onde circulava o BE junto ao passeio e a um candeeiro ali existente, a cerca de 8,30 metros do local do embate (resposta ao nº 24 da base instrutória);
15. O local do embate dista cerca de vinte metros para Sul do final da passadeira, atento o sentido de marcha de B... (resposta ao nº 25 da base instrutória);
16. O embate entre o pesado conduzido por B... e F... verificou-se com a frente do lado esquerdo do BE (resposta ao nº 33 da base instrutória);
17. O qual ficou com uma amolgadela na respectiva frente esquerda e com o farol do mesmo lado partido (resposta ao nº 34 da base instrutória); 
18. Na sequência do embate, ficaram vidros, no pavimento (resposta ao nº 23 da base instrutória);
19. A via, no local, configura uma recta (número 4 da matéria assente);          
20. Já era de noite (respostas aos nºs 5 e 27 da base instrutória);
21. O local estava iluminado por iluminação pública (resposta ao nº 6 da base instrutória);
22. À data do acidente o pesado BE pertencia a D... (resposta ao nº 14 da base instrutória);
23. À data do atropelamento a que se refere o nº 1 da matéria assente, o BE era conduzido por B..., que regressava de um transporte de gorduras animais que havia efectuado, sob as ordens e instruções da D... ao serviço da qual, o mesmo B... exercia a sua profissão de motorista (resposta ao nº 1 da base instrutória);
24. B... é um condutor experiente e cuidadoso (resposta ao nº 28 da base instrutória);
25. Em consequência do embate, F... sofreu lesões traumáticas destrutíveis a nível do crânio encefálico, fractura do crânio com laceração do cérebro, fractura de costelas com laceração do pulmão direito e hemotórax, lesões estas que lhe causaram a morte (resposta ao nº 7 da base instrutória);
26. F... trabalhava no campo, nas vindimas, apanha da azeitona e vários outros trabalhos sazonais da agricultura (resposta ao nº 9 da base instrutória);
27. Era viúva e vivia com os filhos mais novos (resposta ao nº 10 da base instrutória);
28. Todos os filhos da falecida eram muito ligados à mãe, sentindo enorme dor e angústia com a morte violenta desta (resposta ao nº 11 da base instrutória);
29. F... era uma pessoa muito activa e a todos ajudava de acordo com as suas possibilidades (resposta ao nº 12 da base instrutória);
30. Era alegre, vigorosa e sempre disponível para ajudar os outros (resposta ao nº 13 da base instrutória).
[]”
            [transcrição de fls. 541/544]

            A isto acresce (31) que F... havia nascido no dia 5 de Agosto de 1935 (documento de fls. 74).

2.1. Assenta a apelação – que, repete-se, aceita e pressupõe os factos acabados de enunciar – na crítica à caracterização feita pelo Tribunal a quo do acidente, enquanto evento exclusivamente imputável à conduta da vítima mortal. Tratando-se fundamentalmente de apreciar a visão (rectius, a valoração) alternativa do acidente que, com base nos mesmos factos, nos oferece o Apelante, importa ter presente que este argumento aparece associado, em algumas passagens das alegações (veja-se a correspondência dessas passagens nas conclusões 2, 3 e 4), a uma invocada violação das regras do ónus da prova, por referência à circunstância da condução do veículo atropelante pelo 1º R. ser referenciável à facti species do artigo 503º do Código Civil (CC)[5].

            Preliminarmente à valoração dos factos apurados, no quadro da aferição da culpa ou do risco enquanto elementos desencadeadores de uma obrigação de indemnizar por banda de alguns dos RR., nos termos propugnados pelo Apelante, importará tecer algumas considerações sobre esse alegado desvalor da decisão recorrida consistente na (suposta) violação, como se diz na conclusão 2 acima transcrita, das regras do ónus da prova aplicáveis ao caso.

            2.1.1. Dir-se-á que este argumento do Apelante só teria sentido se a decisão alcançada pelo Tribunal a quo tivesse assentado no funcionamento das chamadas “regras de decisão” e não, como aqui sucedeu, na efectiva demonstração da culpa da lesada. A questão do ónus da prova, com efeito, só interessaria (só constituiria um argumento válido de recurso) se a alocação deste ónus tivesse acabado por funcionar no caso como ratio decidendi, dizendo-se que impendia sobre o Apelante tal ónus e que, indemonstrada qualquer das teses em confronto (ou seja, sendo a situação de incerteza), a decisão seria proferida contra a parte sobre a qual impendesse esse ónus objectivo, com base no artigo 516º do CPC, enquanto regra sucedânea do artigo 342º do CC (ou do artigo 350º do CC)[6].

Nada disto sucedeu aqui, resultando a absolvição dos RR., como expressamente se consignou na Sentença, da demonstração de ter existido culpa da vítima em exclusivo, sendo irrelevante, alcançada essa demonstração[7], e tenha ela provindo da actividade probatória de uma parte ou de outra, falar em violação das regras do ónus da prova. É que, independentemente da questão de saber sobre quem impende o ónus da prova (e de saber quem goza de uma presunção), se da prova globalmente considerada resulta a demonstração de determinado facto ou conjunto de factos, ele (eles) sempre estará (estarão) coberto(s) – rectius, provado – através do funcionamento do princípio da aquisição processual (artigo 515º do CPC)[8]. Assim, se a prova – qualquer prova – confirmar determinados factos, mesmo decorrendo isso da actividade de quem não tinha o ónus de os demonstrar, não funciona a regra de decisão obtida através da alocação do ónus da prova, porque a situação assim configurada não é de incerteza e, como já se indicou, a regra de decisão – o artigo 516º do CPC, actuando em função do artigo 342º, nºs 1 e 2 do CC ou da existência de uma presunção – só é desencadeada por situações de incerteza[9].

2.2. Assente qual o acervo fáctico a considerar – e assente a irrelevância neste momento e nestas condições da questão do ónus da prova – importa caracterizar esses factos enquanto elementos integradores de uma imputação delitual, controlando a asserção da Sentença de que foi “[…] a própria vítima que[m], com a sua falta de cuidado, contribuiu de forma determinante e exclusiva, para a sua própria morte” (fls. 551).

Os factos que a Sentença apreciou para alcançar esta conclusão foram transcritos no item 2. supra, tratando-se aqui, neste trecho do presente Acórdão, de interpretar esses factos por referência à ideia de culpa na produção do acidente que vitimou a mãe do Apelante.

A determinação, relativamente a um evento delitual, do elemento culpa, aqui entendida em sentido normativo, ou seja, “[…] como um juízo de censura ao comportamento do agente”[10], mesmo no quadro da aferição de uma culpa concorrente, como aquela que o Apelante entende estar em causa, assenta no critério plasmado no nº 2 do artigo 487º do Código Civil (CC): “[…] é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de familia, em face das circunstâncias concretas”. O apelo a este paradigma de aferição, o bonus pater familias, igualmente presente, com esta ou uma formulação equivalente, na generalidade das ordens jurídicas[11], remete-nos para a “[…] diligência do homem médio […]”[12], aquele que não é pouco diligente, porque não põe um empenho muito reduzido, inferior ao da média, nos seus actos, mas que também não é excepcionalmente diligente, no sentido de adoptar nesses mesmos actos um empenho muito superior ao da média das pessoas.

Este conceito, o de condutor normalmente diligente – enfim, o de um condutor bonus pater familias –, toma como paradigma de aferição um cuidado assente na antecipação preventiva dos riscos normais da condução, e não de riscos excepcionais, assentes num exacerbamento das cautelas para além daquilo que usualmente, naquelas condições concretas, chega para evitar acidentes. É neste sentido que se diz, e trata-se de uma asserção muito empregue na nossa jurisprudência, que a um condutor normalmente diligente não se pede que conte, à partida, “com a actuação leviana e ilegal” dos outros, sejam eles condutores ou peões[13], quando o que em concreto ocorreu (e interessa-nos aqui o evento desencadeador da imputação delitual) se esgota no círculo de ocorrências causalmente recondutíveis a essa actuação leviana e ilegal de outrém.

Valem estes elementos para sublinhar que o somatório dos dados elencados na Sentença respeitantes à mecânica do acidente, indicam, paralelamente ao comportamento intensamente desvalioso da vítima (que atravessou de noite uma estrada, fora da passadeira existente a 20 metros, desatenta ao trânsito existente nos dois sentidos da via), um comportamento absolutamente adequado à condução naquelas particulares circunstâncias por parte do condutor 1º R., em termos aptos a excluir qualquer percentagem de culpa a ele (ao seu comportamento) referida. Com efeito, conduzia o 1º R. o veículo BE a 30Km/h (conforme se determinou pelo exame do tacógrafo: v. fls. 100; cfr. item 3 dos factos)[14], tendo sido surpreendido pelo inesperado e irregular atravessamento de um peão, escassos vinte metros depois de ter transposto (ele condutor) uma passadeira de peões, tendo-se o embate produzido entre o corpo da vítima e a frente lado esquerdo da viatura (v. item 16 dos factos), circunstância esta que indica que a convergência de trajectórias entre o peão e a viatura ocorreu logo no início da travessia por aquele da mão de trânsito do BE, em termos não propiciadores de uma manobra de evitação do embate por banda do 1º R..

Não existindo elementos que refiram a ocorrência do acidente ao concreto comportamento do 1º R. naquelas circunstâncias, não colhem os argumentos do Apelante destinados a obter uma corresponsabilização daquele, em termos de culpa concorrente, na produção do acidente. Este ocorreu, como muito acertadamente se observou na Sentença, em circunstâncias que não nos permitem considerar demonstrada a culpa do condutor do BE na verificação do acidente.

2.3. A exclusão de uma indemnização respeitante ao acidente não decorre, todavia, nestas particulares circunstâncias, da simples consideração de ausência de culpa por parte do condutor. Embora a Sentença não tenha ponderado este aspecto do problema, subsiste, com efeito, a questão da responsabilidade pelo risco, aqui reportada à intervenção das regras previstas no artigo 503º do CC, havendo que ponderar ainda, para afastamento de qualquer indemnização, a verificação em concreto da facti species de exclusão  constante do artigo 505º do CC[15].

Vale aqui, dada a ausência desta questão (possível responsabilidade pelo risco) do argumentário do Apelante (tanto na acção como no recurso) a consideração, presente no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 4 de Outubro de 2007[16], de que “[a] causa de pedir, nas acções de indemnização por acidente de viação, é o próprio acidente, e abrange todos os pressupostos da obrigação de indemnizar”, presumindo-se, na falta de indicação expressa em contrário, que se não descarta, mesmo face a um argumentário referido à culpa, uma consideração subsidiária (mesmo sem pedido subsidiário) da responsabilidade pelo risco.

Interessa-nos a este respeito ponderar os factos provados com base na interpretação do artigo 505º do CC que subjaz ao citado aresto do STJ de 4/10/2007. Assenta tal interpretação na consideração, no quadro da responsabilidade pelo risco prevista no artigo 503º do CC, enquanto elemento desencadeador de um dever de indemnizar, da possibilidade de concorrência de culpa do lesado com o risco próprio do veículo, valendo a pena referir, citando a caracterização constante do próprio Acórdão, qual a interpretação do artigo 505º do CC nele sufragada:


“[…]
[U]ma interpretação progressista ou actualista do artigo 505º, que tenha em conta (artigo 9º/1) a unidade do sistema jurídico – isto é, que considere o sistema jurídico global de que a mesma faz parte e, neste, o […] acervo de normas que consagram o concurso da culpa da vítima com o risco da actividade do agente, e repute adquirida, como princípio geral e universal do pensamento jurídico contemporâneo, essa regra do concurso – e as condições do tempo em que a norma é aplicada – em que  a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e de justiça – impõe […] que se tenha por acolhida, naquele normativo [artigo 505º do CC], a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo […]”

             Está em causa neste aresto a interpretação que parte significativa da nossa doutrina vinha adiantando, com base na crítica ao entendimento tradicional de referir o sentido exoneratório do artigo 505º do CC a todas as situações de culpa do lesado ou de causalidade exterior ao lesante. Esta posição tradicional – e é este o sentido da crítica que vimos considerando – esquece, nas palavras de José Carlos Brandão Proença, que “[…] o peão e o ciclista (esse «proletariado do tráfego» de que alguém falava) são vítimas de danos, resultantes, muitas vezes, de reacções defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com os perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados (face aos inúmeros obstáculos colocados nas «suas» vias) ou de «condutas» sem consciência do perigo (maxime de crianças) e a cuja danosidade não é alheio o próprio risco da condução”[17]. Neste mesmo sentido, fornece-nos Calvão da Silva, anotando esse mesmo Acórdão do STJ, a seguinte interpretação do artigo 505º do CC:


“[…]
Sem prejuízo da culpa do lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo
Equivale isto a admitir o concurso da culpa da vítima com o risco próprio do veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo. Afora o caso de o facto do lesado (como o facto de terceiro) ter sido a causa única do dano, a responsabilidade fixada pelo nº 1 do artigo 503º não é afastada, admitindo-se que a indemnização seja totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
[…]”[18]

            E, enfim, sem querer atribuir à idade desta vítima (60 anos) um significado que em abstracto seria desajustado e relativamente ao qual não dispomos de elementos concretos, não deixaremos de sublinhar – e citamos de novo José Carlos Brandão Proença – que não “[…] parece justo remeter para o âmbito exoneratório do artigo 505º tanto a conduta do adulto, que atravessou imprevistamente, com o sinal luminoso impeditivo ou que se viu obrigado a descer o passeio, como a daquele que, na fragilidade da sua condição, deu um passo imprevidente […]”[19].

            2.3.1. Servem estas considerações para sublinhar a presença neste caso de um elemento, inquestionavelmente respeitante ao risco próprio da viatura, cuja contribuição decisiva – avasaladora, mesmo – para a magnitude do dano é evidente. Referimo-nos à circunstância de estar em causa, enquanto agente material do atropelamento, um veículo pesado. Com efeito, seguindo este a uma velocidade particularmente moderada (30Km/h), a gravidade das lesões directamente causais da morte imediata da vítima (v. item 25 dos factos) só são explicáveis por uma associação causal da fragilidade física desta (1,58 m de estatura, v. item 8 dos factos) às grandes dimensões da viatura BE, determinantes de uma muito significativa massa dinâmica. Aliás, desta mesma circunstância se apercebeu a Sentença apelada, ao explicar o próprio acidente nos seguintes termos:


“[…]
Desde logo, considerando a altura da vítima – 1,58 m – e as características do pesado, quanto à altura deste, o facto da F..., no momento do embate com o BE, vestir roupa preta, seria quase impossível ao condutor do BE vê-la, na medida em que a vítima mede menos do que a altura da frente do pesado, desde o chão até ao vidro da frente.
[…]”
            [transcrição de fls. 547/548]

            Ora, representando a particular natureza da viatura um elemento do risco em causa no artigo 503º do CC[20], não se pode deixar de considerar que o dano aqui presente (e é o elemento dano que aqui nos interessa) não deixou de expressar a actuação do factor concreto de risco inerente àquela viatura e, em função disso, de considerar adequada e justa uma ponderação indemnizatória, recorrendo ao artigo 570º do CC[21], da específica contribuição do elemento material associado àquele tipo de risco. Este, aliás, não deixando de representar uma vantagem para o utilizador (referimo-nos às inegáveis vantagens, em termos de economia de escala, propiciadas pelo uso da capacidade de transporte de um pesado), não pode deixar de abranger a magnificação do risco, referido ao dano, que essa vantagem económica do utilizador implica para terceiros. É que, como sublinha Sofia de Sequeira Galvão, caracterizando a essência da imputação pelo risco, “[…] quando se retiram vantagens, ou benefícios, de uma qualquer fonte de risco [deve-se] responder pela eventual superveniência de danos dela resultantes”, o que “[t]raduz o velho brocardo ubi commoda, ibi incommoda e funda-se numa elementar ideia de justiça”[22]. Estamos, pois, no que poderiamos qualificar de fulcro teleológico da imputação referida ao risco, visando esta “[…] uma responsabilidade pelo resultado relativamente aos prejuízos que advêm de um potencial danoso não totalmente dominável, mas que, por força das vantagens que proporciona à maioria e do carácter excepcional da concretização do dano, é juridicamente permitido”[23].

            2.3.1.1. Claro que, correspondendo a vantagem associada ao concreto risco àquele que o controla[24], rectius dispõe do poder de accionar ou não accionar o meio associado a esse risco, vale a responsabilização a ele referida, desde logo, relativamente a quem efectivamente tem essa espécie de “domínio do facto”[25], ou seja, na terminologia do Código Civil, relativamente a quem detém a “direcção efectiva” do veículo criador do risco (artigo 503º, nº 1[26]). E, como não poderia deixar de ser, só a este – a quem detém tal “direcção efectiva” – corresponde essa responsabilização, quando ela se esgota, como aqui sucede, no círculo de protecção inerente ao próprio risco. Com efeito, e esta constitui a incidência prática nesta situação da asserção respeitante ao domínio do risco, não abrange o condutor – comissário de quem detém a “direcção efectiva” do veículo (aqui o 1º R.) – uma imputação assente na responsabilidade pelo risco, nos casos de culpa do lesado, em que a subsistência do elemento risco se refere à natureza ou intensidade do dano sofrido pelo lesado e nesse elemento (natureza ou intensidade do dano) se esgota, dada a prova de ausência de culpa por parte desse condutor, como diz o nº 3 do artigo 503º do CC[27] e, poderiamos acrescentá-lo, dada a não integração relativamente a esse condutor do fundamento da imputação pelo risco.

            É este o sentido da exclusão neste caso – com a consequente confirmação desse elemento da decisão apelada – de qualquer responsabilidade indemnizatória referida ao 1º R., condutor do veículo pesado BE.   

            2.3.2. A ponderação indemnizatória da concreta contribuição da conduta (intensamente desvaliosa) da lesada e do risco representado pela circulação daquela viatura, enquanto elemento magnificador do dano, assentará, como já se disse, no critério plasmado no artigo 570º, nº 1 do CC, sendo que esta Relação considera que a fixação de um contributo da vítima para o dano ficcionado em dois terços (um terço para a R. D..., enquanto detentora da “direcção efectiva” da viatura) expressa um resultado equilibrado e, como tal, equitativamente adequado. Vale aqui a consideração do elevado peso da contribuição da vítima para a sua trágica sorte, ao atravessar-se inopinadamente na frente da viatura, fora do local (por sinal próximo) destinado à travessia de peões, funcionando a condução a 30Km/h por parte do 1º R. como elemento significativo de atenuação  (mas não de supressão) do risco representado pela viatura. Importa, pois, aplicar esta redução (2/3) ao montante indemnizatório que se venha a determinar como correspondente aos danos.

            2.3.3. Estão em causa, por ser esse o conteúdo do pedido formulado, o chamado dano morte da vítima e os danos não patrimoniais sofridos pelo A./Apelante em função do desgosto decorrente da morte da sua mãe. A quantificação destes foi feita pelo A. atribuindo €12.500,00 ao dano morte e €25.000,00 aos seus danos não patrimoniais, funcionando a soma destes (€37.500,00) como limite da condenação, sem vinculação, como não poderia deixar de ser, aos valores parcelares referidos ou aos que este Tribunal considere antes da aplicação da indicada redução.

            2.3.3.1. Ora, apreciando agora o dano morte, ponderando o sentido significativo do mesmo, enquanto dano respeitante a um valor, necessariamente idealizado, correspondente à supressão da vida da própria vítima, que se transmite aos seus herdeiros, nos termos do artigo 2024º do CC[28], considera-se adequado quantificá-lo em €30.000,00, sendo que a este montante haverá que subtrair os dois terços fixados como contribuição da própria vítima, obtendo-se um valor indemnizatório correspondente ao dano morte de €10.000,00. Este montante (€10.000,00) vale globalmente para este A./Apelante e para os seus três irmãos, AA./Apelantes no processo apenso (proc. nº 801-A/2002, antes respeitante ao proc. nº 811/2002), referindo-se a condenação a proferir nestes autos quanto a tal item indemnizatório aos €2.500,00 que, desses €10.000,00, correspondem a este A. em concreto, como um dos quatro filhos da vítima.

            2.3.3.2. Quanto ao dano não patrimonial do A. (artigo 496º, nº 1 do CC), traduzido no desgosto correspondente à morte trágica da mãe, pessoa de 60 anos de idade, activa, alegre, vigorosa e sempre disponível para ajudar os filhos, que a ela estavam muito ligados (itens 28, 29 e 30 dos factos), considera esta Relação adequado, funcionando aqui o critério da fixação equitativa (artigo 496º, nº 3 do CC), o montante de €9.000,00, ao qual haverá que reduzir, nos termos já antes mencionados, os dois terços de contribuição da vítima, obtendo-se o valor (este a entregar a cada um dos filhos e ao ora Apelante em concreto) de €3.000,00.

            2.3.4. Desta responsabilidade indemnizatória assente no risco, respeitante à 3ª R. D..., enquanto detentora da “direcção efectiva” da viatura BE, está excluído o condutor 1º R. (como se indicou no item 2.3.1.1. supra) e a 2ª R., C..., como correctamente se observou na Sentença apelada, e adquire sentido em função da presente decisão, dado não ser esta empresa a proprietária da viatura, nem o 1º R. comissário dela (não tinha, pois, a C..., a “direcção efectiva” da viatura). Por sua vez, responde o 4º R., E... (em conjunto com a 3ª R.), dada a inexistência de seguro, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 21º, nºs 1 e 2, alínea a), 23º, nº 1 e 29º, nº 6, todos do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro[29].

            2.4. Resta-nos, assim, fazer incidir as antecedentes considerações na Sentença apelada, alterando-a no aspecto respeitante à aqui afirmada subsistência da imputação pelo risco, formulando antes a seguinte síntese conclusiva dos argumentos acima expendidos:


I – Resultando uma decisão da prova concreta de determinados factos, e não do funcionamento, enquanto “regras de decisão” respeitantes à incerteza quanto a esses factos, das regras respeitantes ao ónus da prova, é irrelevante a parte de quem provém a prova desses factos.
II – A formulação de um juízo de culpa, enquanto elemento de uma imputação delitual respeitante à circulação automóvel, assenta na aferição da conduta do agente com base na antecipação preventiva dos riscos normais da condução e não de riscos excepcionais, referidos a um exacerbamento de cautelas para além daquilo que usualmente, naquelas condições concretas, é suficiente para evitar acidentes.
III – Numa acção destinada à efectivação da responsabilidade civil por acidente de viação, é o próprio acidente, enquanto evento juridicamente plurissignificativo, que integra a causa de pedir, sendo de presumir que ao aludir a uma responsabilidade assente na culpa, exclusiva ou concorrente, do lesante, o demandante não exclui a responsabilidade pelo risco.
IV – No caso de um veículo pesado de circulação terrestre, a responsabilidade pelo risco, referida a quem detém a “direcção efectiva” do mesmo (artigo 503º, nº 1 do CC), abrange as características desse tipo de veículo potenciadoras da magnitude do dano.
V – Tal responsabilização subsiste, relativamente a quem detém a “direcção efectiva” e, como tal, controla a utilização desse meio, mesmo face à prova da ausência de culpa por parte do condutor (artigo 503º, nº 3 do CC), sempre que o dano expresse (ainda expresse), na sua natureza ou intensidade, elementos ligados à particular natureza desse veículo.
VI – Actua nestes casos, na ponderação das contribuições para o dano, em sede de fixação do quantum indemnizatório, o disposto no artigo 570º, nº 1 do CC.
VII – A exclusão da responsabilidade objectiva do detentor do veículo, nos termos do artigo 505º do CC, só ocorre quando o acidente for unicamente devido ao próprio lesado ou a terceiro, ou resulte em exclusivo de causa estranha ao funcionamento do veículo, não tendo em nada contribuído a particular natureza deste para a ampliação dos danos.


III – Decisão

            3. Assim, na parcial procedência da apelação (com a consequente revogação dos pertinentes trechos da Sentença apelada), condenam-se os RR. D... e E..., a satisfazerem ao A., A..., a quantia de €5.500,00, acrescida dos juros de mora que se vierem a vencer desde a data deste Acórdão.

            Custas pelos dois RR. ora condenados e A., na proporção de metade para aqueles e metade para este.

            Coimbra,


(J. A. Teles Pereira)

(Jacinto Meca)

(Falcão de Magalhães)



[1] Refere-se o processo apensado (que foi proposto depois deste, em 10/12/2002) ao mesmo acidente e à mesma vítima, nele sendo AA. outros três filhos desta (G..., H... e I...) e RR. os mesmos desta acção, mais a J.... 
[2] Assentou tal pronunciamento decisório na prova de culpa exclusiva da vítima na produção do acidente (v. síntese conclusiva final da Sentença a fls. 551).
[3] Este último, por estar aqui em causa processo iniciado anteriormente a 1 de Janeiro de 2008, na redacção que apresentava anteriormente ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. artigos 9º, alínea a), 11º, nº 1 e 12º, nº 1 do mencionado diploma). Note-se que, pela mesma razão, qualquer disposição do CPC citada neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterada pelo DL 303/2007, o é na versão anterior a este diploma.
[4] “A aplicação do direito pressupõe o apuramento de todos os factos da causa que, tidos em conta os pedidos e as excepções deduzidas, sejam relevantes para o preenchimento das previsões normativas, sejam elas de normas processuais, sejam de normas de direito material. Na […] decisão sobre a matéria de facto […], foram dados como provados os factos cuja verificação estava sujeita à livre apreciação do julgador […]. Agora na sentença, o juiz deve considerar, além desses, os factos cuja prova resulte da lei, isto é, da assunção dum meio de prova com força probatória pleníssima, plena ou bastante […] independentemente de terem sido ou não dados como assentes na fase da condensação […]” (José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol 2º, Coimbra, 2001, p. 643). 

[5] Não restam dúvidas de que o 1º R. era, no momento do acidente, comissário da 3ª R.
[6] Pressupomos aqui a dicotomia ónus objectivo – ónus subjectivo, nos termos em que esta é enunciada, no quadro da chamada “teoria das normas”, por Pedro Ferreira Múrias: “[…] o ónus da prova objectivo é o instituto que determina segundo qual das versões disputadas deve decidir-se quando é incerta a verificação de algum facto pertinente. O instituto do ónus subjectivo ou ónus da produção de prova prescreve a qual das partes processuais incumbe alguma actividade probatória, sob pena de ver a sua pretensão desatendida” (Por Uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, pp. 20/21 importa sublinhar que este Autor expõe a chamada “teoria das normas” numa perspectiva crítica, caracterizando-a como inadequada a uma série de situações). É assim que – e continuamos a citar Pedro Ferreira Múrias: “[…] as normas do ónus da prova, em cuja facti species se encontra a incerteza processual sobre um elemento que preenchesse a previsão da norma material […,] [sejam] normas de decisão [funcionando como] um meio auxiliar da decisão de mérito que autoriza o juiz a decidir como se tivesse obtido um resultado positivo ou negativo quanto à verificação de certo facto, i.e., através da ficção […]” (ob. cit., pp. 62/63).
[7] E adiante veremos se os factos provados suportam essa asserção: a de ter sido o acidente imputável à vítima.
[8] “Está consagrado neste preceito […] o chamado princípio da aquisição processual: no momento da decisão, é irrelevante que a proposição do meio de prova tenha provindo de uma ou de outra parte, ou ainda que a produção do meio de prova constituendo ou a apresentação no processo do meio de prova pré-constituído tenha resultado de iniciativa oficiosa; uma vez produzida a prova constituenda ou admitida a prova pré-constituída, ela deverá ser considerada na decisão” (José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, Código…, cit., p. 400). 
[9] Pois “[o] ónus objectivo prevê um resultado probatório, a incerteza, determinando a decisão […]” em função dele (Pedro Ferreira Múrias, ob. cit., p. 21).
[10] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 2005, pp. 295/296; v., sobre a natureza normativa da culpa, António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º vol., Lisboa, 1980, pp. 308/309.
[11] Para utilizar o exemplo, menos habitual, de um sistema de common law, no caso o do direito norte-americano, sublinhar-se-á que na responsabilidade por conduta negligente (liability for negligent conduct) se utiliza como padrão de conduta (standard of conduct) a ideia de “pessoa razoável” (reasonable person, ou expressões equivalentes: ordinary care, reasonable care, reasonable person of ordinary prudence, etc.), com o significado “idealizado” (“a creature of the law’s imagination”) de alguém que corresponde ao “julgamento da comunidade sobre como um típico membro dessa comunidade é suposto agir naquelas circunstâncias” (Edward J. Kionka, Torts in a Nutshell, St. Paul, Minnesota, 2005, pp. 56/60). V., sobre o conceito nos sistemas continentais, António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1º vol., Lisboa, 1980, pp. 152/154. 
[12] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, cit., p. 303.
[13] Acórdão do STJ de 25/03/2004 (Araújo de Barros), publicado na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, tomo I/2004, p. 143.
[14]E circular naquelas concretas circunstâncias a 30 km/h traduz uma condução particularmente defensiva, já que chega para antecipar os riscos normais da condução e a eles reagir.
[15] “Sem prejuízo do disposto no artigo 570º, a responsabilidade fixada pelo nº 1 do artigo 503º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.
[16] Relatado pelo Conselheiro Santos Bernardino, publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 137º (Setembro-Outubro de 2007) nº 3946, pp. 35/49, seguido de uma anotação concordante de Calvão da Silva (pp. 49/64). Trata-se do Acórdão respeitante ao processo nº 07B1710, também disponível no sítio www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[17] A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Coimbra, 2007, pp. 275/276.
[18] Anotação referida na nota 17, p. 51.
[19] A Conduta do Lesado…, cit., p. 821.
[20] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, cit., p. 351.

[21] Diz-se no já citado Acórdão do STJ de 4/10/2007 que a situação concursal de causas do dano do tipo da aqui em causa deve ser subsumida “[…] à norma de repartição do dano que é o artigo 570º”.
[22] Reflexões Acerca da Responsabilidade do Comitente no Direito Civil Português (a propósito do contributo civilista para a dogmática da imputação), Lisboa, 1990, p. 67.
[23] Sofia de Sequeira Galvão, Reflexões…, cit. p. 56.
[24] Pois, “[c]onceber a responsabilidade como um instrumento de repartição do risco por aqueles que se encontram em posição de melhor o controlar, mais não é do que um corolário de uma ciência jurídica que procura fornecer os critérios para a distribuição desse mesmo risco assente em bases tendencialmente constantes e, por isso, economicamente justificadas e defensáveis” (Sofia de Sequeira Galvão, Reflexões…, cit. p. 63).
[25] A expressão é aqui empregue em sentido impróprio, pretendendo sublinhar a ideia de controlo do meio que subjaz à imputação assente no risco.
[26] “Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”.
[27] “Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte […]”.
[28] V. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, cit., pp. 319/322.


[29] O acidente aqui em causa é anterior ao Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto.