Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1001/22.3T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
DEFINIÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE DOS AUTORES
PRÉDIOS CONFINANTES
FALTA DE ALGUNS ELEMENTOS IDENTIFICATIVOS DO PRÉDIO DOS RÉUS
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 568.º, A, DO CPC
ARTIGO 1353.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: A conseguida definição do direito de propriedade do Autor e a confinância desta com a dos Réus permite resolver o conflito entre as partes, mesmo que falte a completa identificação do imóvel destes (a matriz e o registo), sendo certo que esta falta ocorreu por falta de colaboração dos mesmos Réus.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

AA intentou ação contra BB e marido, CC, e A... SA, pedindo a condenação destes a reconhecer a propriedade do Autor relativamente ao prédio

identificado no artigo 1º, com o espaço identificado nos artigos 4º e 5º da petição e que sejam colocados marcos na linha divisória identificada entre o prédio do Autor e os dos Réus.

Para tanto, o Autor alegou, em síntese:

É dono do prédio urbano sito em ..., ..., Freguesia ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...66, dele fazendo parte uma área de 262 m2, correspondente ao espaço representado pelas letras a), h), i), c), j) e h) no croquis junto à petição sob o documento nº 4.

Os primeiros Réus ocuparam o referido espaço e pretendem fazê-lo seu.

Desde há mais de 30 anos que o Autor, por si e antepossuidores, vem possuindo o

prédio referido, com o espaço identificado, pelo que o adquiriu por usucapião.

Apenas foi apresentada contestação pela 2ª Ré, onde invoca a sua ilegitimidade, por não ser proprietária de qualquer prédio na dita Freguesia, impugnando, por desconhecimento, a factualidade alegada pelo Autor.

O Autor desistiu da instância quanto à 2ª Ré, desistência que foi homologada por sentença de 14.11.2022.

Por despacho de 30.01.2023, ao abrigo do disposto no art. 567º, nº 1 do CPC, considerou-se a revelia dos primeiros Réus operante e facultou-se o processo para exame e alegações escritas, aí se consignando: “Atenta a causa de pedir (aquisição originária por usucapião de determinada parcela de terreno como parte integrante do prédio dos autores e a sua ocupação ilícita pelos 1ºs réus) e o pedido (reconhecimento da propriedade relativamente a essa parcela) formulados, a impugnação dos factos relevantes, que apenas respeitam aos 1ºs Réus, mostra-se irrelevante para impedir os efeitos da revelia. O art. 568.º, al. a), do Código de Processo Civil, ressalvando os efeitos da revelia quando, havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar, limita tal ressalva aos factos de interesse comum para o réu contestante e para o réu revel”. – Cf. Ac. RE de 05.11.2020, proc. 2341/18.1T8PTM.E1”.

Por fim, foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente, declarando que o Autor é o único e legítimo dono e possuidor do prédio com o respectivo logradouro, identificado nos artigos 4º a 5º da petição, absolvendo os Réus do demais peticionado.


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Inconformados, os Réus recorreram e apresentam as seguintes conclusões:

1. Numa acção de demarcação, o autor deve identificar não só o seu prédio, como o prédio dos réus;

2. A acção de demarcação não é uma acção real, mas sim pessoal, não se pretendendo por meio dela, a declaração de qualquer direito real.

3. A acção de demarcação não tem por objecto o reconhecimento do domínio, não tem como objectivo principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de algum dos direitos definidos no art 2º do C.R. Predial, como a propriedade.

4. Na acção de demarcação visa-se apenas demarcar os prédios e obrigar os proprietários a concorrer para a respectiva demarcação, ou seja, para a definição da linha divisória entre os prédios.

5. Só através de uma acção de reivindicação se poderá pretender o reconhecimento do direito de propriedade sobre um prédio, nunca através de uma acção de demarcação.

6. Na acção de demarcação apenas pode haver discrepância quanto à exacta linha divisória, ou seja, quanto à extensão das respectivas propriedades.

7. Na ausência de contestação (e o réu revel beneficia sempre da contestação apresentada pelo seu co-réu) importa ter presente as consequências da revelia do réu, nas suas diversas modalidades que estão elencadas nos art 219º, 566º, 227º, 563º, 567º, 568º, entre outros, matéria muito bem estudada pelo Professor Paulo Pimenta in Processo Civil Declarativo, Livraria Almeida, pág. 228 e seg.

8. No caso dos autos não havia condições para o tribunal ter julgado o mérito da causa, como decidiu. Na realidade, o Autor esqueceu-se de indicar a inscrição e descrição dos prédios em causa e esse elemento (entre outros) é fundamental para a prossecução da acção.

9. Para que uma demarcação seja definida compete ao Autor cumprir a norma do art 1353º e seg. do C. Civil e sendo a acção complexa como é, a acção terá de ter como base os títulos de cada um dos proprietários porquanto a demarcação é feita com base neles (cf. nº 1 do art 1354 do C. Civil).

10. Dado que o Autor não juntou os documentos e o tribunal desconhece o título do terreno dos RR, ora recorrentes, a acção não poderia proceder, com o reconhecimento da propriedade sobre a faixa de terreno/logradouro.

11. A acção de demarcação não é uma acção real, mas pessoal, não se pretendendo obter, por meio dela, a declaração de qualquer direito real ou da sua amplitude (cf. STJ, 06.05.1969, BMJ, 187º-71) dado que estarem causa apelas a colocação da linha divisória entre prédios, a definição das estremas.

12. Na acção de demarcação compete ao Autor provar que é proprietário confinante e ao Réu provar que a demarcação já está feita e concretizada numa linha divisória (RC, 20-06-1995, BMJ 448º-443) e para isso o Autor terá de identificar o prédio do Réu. O que não fez!

13. Não tendo o Autor, ora recorrido, cumprido os pressupostos e requisitos da acção de demarcação, é nosso modesto entender que deveria o tribunal absolver os ora recorridos da instância, pois por culpa do Autor a revelia não pode operar a definição da linha divisória e muito menos a propriedade pois estamos em sede de acção de demarcação.

14. A sentença só deveria absolver os RR, ora recorridos, da instância, havendo manifesta excesso de pronúncia pois o julgado (reconhecimento de propriedade) não coincide com o pedido (demarcação).

15. A sentença é contraditória e obscura, e a matéria de facto está em colisão e em desarmonia com a decisão, existindo assim erro, manifesto e ostensivo, que aponta para o julgamento dos factos em sentido diverso do assumido na sentença recorrida está ferida das nulidades previstas no artº 615 do C.P. Civil;

16. A sentença violou os art. do C.P. Civil: 219º, 566º, 227º, 563º, 567º, 568º e os art 1353 e segs. do C. Civil.

17. Consequentemente deve a sentença ser revogada e em seu lugar ser proferido acórdão julgando a acção improcedente e não provada ou quando assim se não entenda, absolvendo-se os ora recorridos da instância, com as legais consequências.


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            O Autor contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

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As questões a decidir são as seguintes:

A natureza da ação;

A falta de identificação do prédio dos Réus;

A falta de contestação.


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            Os factos a considerar são os seguintes (não impugnados):

A) sob o nº ...66 está inscrito na Conservatória do Registo Predial ... o prédio urbano, sito em ..., ..., da Freguesia ... e ... composta de casa de habitação e logradouro, inscrito na matriz sob o art. ...37.

B) A aquisição de tal prédio está registada em nome do autor, por compra, pela Ap. ...94 de 2016/07/26.

C) Nele existe uma parcela com área de 262 m2, que corresponde ao espaço representado pelas letras a), h), i), c), j) e h) no croquis junto à petição sob o documento nº 4.

D) O Autor por si e por seus antepossuidores vem possuindo, gozando, usufruindo o prédio identificado com o espaço identificado em C), nomeadamente habitando a casa, aí dormindo, confecionando refeições, recolhendo e mantendo objetos, recebendo amigos e correio, e isto em relação à casa;

E) Limpando o solo, nele entrando, nele passando e por ele circulando, transportando compras, recebendo amigos e familiares, limpando-o de infestantes limpando e zelando os loureiros construindo e limpando as escadas e acessos;

F) Nele passando tempos de lazer e ócio, para ele abrindo entradas, uma mais a sul identificada pela letra a) do croquis junto e outro a norte do imóvel assinalado pela letra f) – dado que existe desnível entre a casa e o referido espaço, donde a construção das 2 entradas, limpando as entradas e os acessos, e isto, por si e por seus antepossuidores, de modo;

G) Contínuo, exclusivo e ininterruptamente desde há mais de 30 e mais anos até ao presente, à vista e com o conhecimento de toda a gente e até dos Réus, sem qualquer violência ou oposição de quem quer que seja, convicto, ele (e também os seus antepossuidores) de que adquiria coisa própria e que ao adquiri-lo e usufrui-lo no seu todo e nos termos supra alegados não lesava direitos de outrem.

H) Os 1ºs Réus, na ausência do Autor, decidiram ocupar o espaço/logradouro identificado em C); para o efeito, arrancaram ou movimentaram o solo desse espaço.


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O Autor pediu o reconhecimento de que é o único e legítimo dono e possuidor do prédio com o respectivo logradouro, identificado nos artigos 1 a 9 da petição.

O Autor invocou a confinância dos prédios e a ocupação de parcela sua realizada pelos Réus.

O Autor indicou as medidas dos prédios, indicando por onde passa a estrema entre o seu prédio e o dos Réus.

O Autor alegou os actos de posse e os espaços onde a exerceu.

Quem ler a petição, não tem qualquer dúvida sobre a localização de cada prédio, das linhas ou estremas que definia cada um deles.

            Além disso, por dificuldades inerentes ao domínio dos documentos respetivos, o Autor pediu que os Réus juntassem os títulos que dispunham (escritura e registo), no prazo da contestação, o que estes não fizeram.

Os Réus não contestaram e não se insurgem contra a matéria de facto dada como provada.

            Como se depreende do pedido e da causa de pedir, e do subsequente julgamento de facto e de direito do Tribunal, os Réus qualificam mal a ação, quando dizem que se trata de uma (simples) ação de demarcação.

Ora, perante o referido conjunto, antes da eventual necessidade de demarcação, impunha-se julgar se o Autor era o proprietário do prédio, como estava concretamente delimitado, e se os Réus tinham ocupado a parcela identificada, o que não é típico da ação de demarcação e se aproxima da ação de reivindicação, embora no caso falte o típico pedido de restituição.

            O Autor invocou a confinância dos prédios, mas não identificou formalmente o prédio dos Réus, pedindo a sua colaboração documental. Este pedido é justificado porque o Autor não conseguiria aceder aos dados prediais dos Réus.

Se os Réus tivessem juntado o que o Autor lhes pediu, não poderiam arguir agora uma falha cuja sanação (fácil) deles dependia.

Mas esta falta não ilude o facto dos prédios serem confinantes e de estar delimitado o prédio do Autor, o que os Réus deverão respeitar.

A Ré A... foi afastada do processo, por nada ter a ver com ele, por não ser proprietária de qualquer prédio naquele sítio, com a outra alegada confinância (predial).

Além disso, a sua contestação não diz respeito aos factos relativos aos limites e estremas entre o prédio do Autor e o dos Réus e conduta destes.

Assim, os Réus não deverão beneficiar da contestação da Ré parte ilegítima (alínea a) do artigo 568 do Código de Processo Civil).

Não contestando os factos que lhes dizem respeito, os Réus aceitaram os mesmos como verdadeiros, aceitando a sua legitimidade, pela confinância dos prédios, a irregular ocupação, a delimitação predial e os atos de posse sobre ela exercida, como apresentados pelo Autor.

            Ainda que estivéssemos perante uma simples ação de demarcação, os Réus estavam obrigados a concorrer para a mesma (artº 1353 do Código Civil), devendo juntar os seus títulos e elementos pertinentes, o que não fizeram.

Em conclusão, o Autor não falhou na identificação do prédio dos Réus. Quem não colaborou e falhou foram os Recorrentes. Nunca estes impugnaram ou alegaram que o prédio assinalado na petição como sendo seu, não o era; apenas se agarram à falta da menção da inscrição e descrição do seu prédio como elemento decisivo, quando tal junção lhes foi pedida e a poderiam ter cumprido.


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Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelos Recorrentes (art.527º, nº 2, do Código de Processo Civil), vencidos.

            Coimbra, 2023-05-16


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira)

(Rui Moura)