Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
538/08.1TBOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GRAÇA SANTOS SILVA
Descritores: INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 11/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGO 20.º, N.º 1 DO CIRE
Sumário: O sócio não gerente de uma sociedade por quotas não tem legitimidade para requerer a insolvência da sociedade, ao abrigo do nº 1 do artº 20º do CIRE, pelo facto de ter sido responsabilizado criminalmente por falta de cumprimento de medida incluída no plano de recuperação da empresa, que corre termos.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes neste Tribunal da Relação de Coimbra:
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I- Relatório:
A...., requereu a declaração de insolvência da sociedade "B....Alegou que é sócia da requerida, que tem a correr contra si um processo especial de recuperação de empresa, no qual foi homologada e transitou em julgado, em Março de 2006, medida de recuperação de que decorre a obrigação de efectuar um pagamento mensal de 1.417,20 €, em 150 prestações.
Mais disse que, tendo exercido funções de gerente da sociedade até 10/09/2007, nessa data renunciou à gerência, que assim passou a pertencer unicamente a uma sua irmã, que nunca mais a informou sobre a vida da sociedade. Disse ainda que soube que a empresa encerrou, que tinha havido um despedimento colectivo, e, tendo deixado de ser pagas as obrigações assumidas pela sociedade, perante a Segurança Social, por força do plano de recuperação, daí resultou que ambas as sócias foram acusadas em processo comum pela prática de um crime de abuso de confiança, por força do disposto nos artsº 6º, nº 3, e 7º, nsº 1 e 3 do RJIFNA, e 7º, nº 1 do RGIT. Mais referiu que as dívidas referentes ao regime geral dos trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários, atingem os valores de 66.057,04€ e 3.000,81€, respectivamente.
Alegou ainda que, aparentemente, houve suspensão de pagamento das obrigações vencidas, abandono do local do exercício e da sede da empresa, dissipação de bens e que não possui elementos para quantificar as dívidas da sociedade, para dar cumprimento às exigências emergentes do disposto nos artºs 23º e 24º do CIRE e nem tão pouco conhece os processos judiciais que ela enfrenta.
Por decisão de 19/09/2008, o pedido de declaração de insolvência foi liminarmente indeferido, por falta de legitimidade activa para a propositura da acção.
Inconformada, a requerente recorreu, apresentando as seguintes conclusões de recurso:
1 - Não existe falta de legitimidade activa.
2 – A Requerente/Recorrente alega no art. 15° da P.I., a sua responsabilidade legal pelas dívidas da Requerida,
3 – para além, da mesma alegação que se mostra contida em toda a P.I., na sequência do não cumprimento do Plano de Pagamentos no Processo de Recuperação de Empresas.
4 – Logo, estão cumpridas as exigências legais do n.° 1, do art. 20° do CIRE.
5 – Assim, não tem qualquer razão o MM juiz a quo, que quando muito, devia ter proferido Despacho de Aperfeiçoamento nos termos do art. 508°, n.º 1, al. b), do C.P.C., norma jurídica violada.
6 – Mais ainda, não interpretou correctamente, os factos alegados, não os aplicando ao aludido normativo do CIRE.
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II- Questões a decidir no recurso:
Compulsadas as conclusões das motivações do presente recurso, verifica-se que a questão que se coloca é apenas aferir da bondade do indeferimento liminar. (Vide artºs. 660º, nº 2, in fine, 684º, nº 3, 690º, nº 1, do CPC, na versão anterior ao D.L. nº 303/07, de 24/8, e Acs. do STJ, de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.” e de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
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III- Factos a considerar:

Os factos a considerar consubstanciam-se no teor do requerimento inicial, supra descrito.
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IV- Fundamentos:
Pretende a recorrente que, pelo facto de se encontrar acusada pela prática de um crime de abuso de confiança, decorrente da cessação dos pagamentos determinados pela medida de recuperação, acordada no processo dessa natureza - que necessariamente, face à duração do fraccionamento dos pagamentos, ainda corre termos, conforme aliás consta da certidão junta, e não que correu termos como alegou -, isso lhe confere legitimidade para requerer a declaração de insolvência da sociedade, ao abrigo do nº 1 do artº 20º do CIRE.
Sem razão.
A regra sobre a titularidade da legitimidade processual para requerer a declaração de insolvência vem contida no artº 19º do CIRE, tal como consta do despacho recorrido. A requerente apenas é sócia, e não gerente, pelo que por esse normativo não lhe é conferida a pretendida legitimidade. E pelo artº 20º também não. Prevê o mencionado normativo, no n.º 1, que "a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados...".
Nos termos do art. 6.º, nº, 2, do C.I.R.E. “são considerados responsáveis legais as pessoas que, nos termos da lei, respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário."
Ora, a recorrente não responde pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas da sociedade como pretende. Responderá, quanto muito, se condenada for no processo crime, mas apenas pela prática de um ilícito que tem a ver com a ilegal destinação dos bens da sociedade, em prejuízo dos seus credores. Responsabilidade penal e civil são realidades completamente distintas, e mal iria a praça da nossa indústria e comércio se paralelamente a cada processo de recuperação ou insolvência houvesse, necessariamente (e, pior ainda, por força da própria lei) um processo-crime. Os fundamentos da responsabilidade civil, a que se apela no nº 1 do artº 20º do CIRE, e da responsabilidade penal, com que a recorrente se vê confrontada, são realidade jurídicas distintas, e como tal carecem de ser tratadas.
Conforme se lê na anotação ao artº 6º do CIRE de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, vol. I, reimpressão, pág. 86 “o pensamento legislativo pode, porém, exprimir-se da seguinte forma: são responsáveis legais todos aqueles, mas só aqueles, que estão sujeitos a pagar a generalidade das dívidas do insolvente por determinação da lei, que é sempre e unicamente a fonte da responsabilidade”.
São requisitos da existência de uma responsabilidade ilimitada: a não dependência do montante da dívida da sua natureza ou fonte, ou seja de algo que ultrapasse a existência de uma norma legal, e a afectação da totalidade do património do responsável ao pagamento das dívidas da sociedade. Nenhum dos requisitos se verifica, no caso em apreço, pelo que não resta senão confirmar a decisão recorrida.
Não se trata sequer de um caso que permita despacho de aperfeiçoamento, porque não há forma legal de suprir a ilegitimidade da recorrente.
Por outro lado, a factualidade alegada pela recorrente para obter uma declaração de insolvência (quando corre um processo de recuperação) é manifestamente insuficiente.
Não basta a circunstância de haver falta de cumprimento de obrigações para poder ser decretada uma insolvência, sendo necessária uma avaliação de correlação entre passivo e activo, e verificada a insuficiência deste para dar satisfação àquele, há que verificar se as dívidas, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revelam impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
Ora, a factualidade aduzida em sede de requerimento liminar é manifestamente insuficiente para justificar a pretensão requerida. Se a recorrente desconhece o estado da empresa, nada obsta a que tome conhecimento do mesmo junto do administrador judicial, ou até consultando o processo judicial. Quanto ao activo, nem dele fala, e não se crê que o seu desconhecimento vá, necessariamente, a tal ponto.
V- Decisão:
Acorda-se, pois, em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas em primeira instância e do recurso pela recorrente.