Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
12/08.6IDGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: ABUSO CONFIANÇA FISCAL
CONSUMAÇÃO
Data do Acordão: 10/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VILA NOVA DE FOZ CÔA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 105º DO RGIT
Sumário: O sentido materialmente constitucional que deve ser dado ao tipo penal contido no artigo 105º do RGIT exige que se considerem elementos do tipo de ilícito: a existência (legal) de uma obrigação de entrega à administração tributária de uma prestação tributária; a existência de uma prestação tributária efectivamente deduzida ou cobrada (nos termos legais); a falta dolosa dessa entrega.
O crime de abuso de confiança fiscal é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, haja ou não declaração tributária.
Decisão Texto Integral: A - Relatório:
Nos autos de Processo Comum que corre termos no 1º Juízo Criminal de Vila Nova de Foz Côa o Ministério Público deduziu acusação para julgamento em processo comum com intervenção de Tribunal singular contra A..., casado, construtor civil, natural de T…, Vila Nova de Foz Côa, residente na Rua das E… em Vila Nova de Foz Côa, imputando-lhe a prática, em autoria material e sob a forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105º, n.ºs 1 e 2 e 16º, alínea g), da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias – RGIT).

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Por despacho lavrado em 28/02/2009, a Mmª. Juíza, considerando que os factos descritos no despacho de acusação não consubstanciam a prática do crime imputado ao arguido A... – abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1 e 2, do RGIT – nem de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 103º, do RGIT, mas sim, a provarem-se tais factos, de um ilícito contra-ordenacional, rejeitou a referida acusação, ao abrigo do disposto no artigo 311º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea d), do Código de Processo Penal.

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O Ministério Público da Comarca de Vila Nova de Foz Côa interpôs recurso de tal despacho, pedindo a revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público, com as seguintes conclusões:

1. A obrigação da administração fiscal de notificar o contribuinte nos termos e para os efeitos do disposto no art. 105°, nº 4, al. b) do RGIT só se verifica em situações de mora (e não de falta de declaração);

2. O despacho de não recebimento da acusação evidencia uma contradição na própria fundamentação de direito;

3. Pois, por um lado, o Tribunal recorrido admite que:

"A falta de entrega da prestação tributária pode estar associada ao incumprimento declarativo ou decorrer simplesmente da falta de pagamento do imposto liquidado na referida declaração.

Quando a não entrega da prestado tributária está associada à falta declarativa existe uma clara intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fiscal.

O mesmo não se poderá dizer, quando a existência da divida é participada à Administração Fiscal através da correspondente declaração, que não vem acompanhada do correspondente meio de pagamento, mas que lhe permite desencadear de imediato o processo de cobrança coerciva.

Tratando-se de diferentes condutas, com diferentes consequências na gestão do imposto, devem, portanto, ser valoradas criminalmente de forma diferente,".

4. Por outro, acaba por concluir que:

"Assim, a vontade inequívoca do legislador - que encontra apoio na letra e no espírito da actual alínea b), do nº 4, do artigo 105°, do RGIT - é a de só criminalizar e punir como crime de abuso de confiança fiscal a pessoa que, tendo comunicado à Administração Fiscal a declaração da prestado deduzida e não entregue, não procedeu ao seu pagamento, acrescida de juros e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação que, para o efeito, a Administração Fiscal lhe fez”.

5. Ora, não se compreende que o Tribunal a quo reconheça que o comportamento de quem nem sequer chega a declarar o facto sujeito a imposto (como é o caso do arguido) é muito mais censurável do que o comportamento que quem entrega a declaração devida, mas por qualquer motivo, não liquida o imposto, fazendo até notar que o legislador quis "dar mais uma oportunidade às pessoas que comunicaram a declarado de prestado tributária à Administração Fiscal, mas não fizeram a entrega - sem limitação a qualquer valor -, para regularizarem a sua situação fiscal, pagando a dívida, acrescida de juros e coima" para daí concluir que o legislador só quis "punir como crime de abuso de confiança fiscal a pessoa que, tendo comunicado à Administração Fiscal a declaração da prestado deduzida e não entregue, não procedeu ao seu pagamento, acrescida de juros e do valor da coima aplicável”.

6. Dito de outra forma, seguindo a óptica do julgador, quem não entregou a declaração e omitiu o pagamento do imposto, sai beneficiado, uma vez que segundo a interpretação feita na decisão de que se recorre o legislador não quis ver perseguido criminalmente quem não entregou a declaração e por isso não foi notificado para proceder ao pagamento do imposto;

7. Ora, não se pode deixar de notar que a posição adoptada é um claro convite à não entrega da declaração da prestação tributária;

8. Pois, cabe perguntar que de serve declarar os rendimentos sujeitos a imposto se "só quem comunica à Administração Fiscal a declaração da prestação deduzida e não entregue e não procedeu ao seu pagamento" é passível de ser perseguido pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal;

9. Nada mais injusto e violador do espírito e letra da lei, uma vez que da posição adoptada decorre que quem pratica acto menos grave acaba por ser mais severamente punido, sendo que o arguido, que nem sequer declarou os rendimentos sujeitos a imposto, ainda saiu beneficiado;

10. Somos de parecer que, na realidade, a obrigação que recai sobre a administração fiscal de diligenciar no sentido de dar cumprimento ao disposto no art. 105°, nº 4, al. b) do RGIT, apenas é exigida pelo legislador quando o contribuinte declarou o facto sujeito a tributação e não quando o mesmo não chegou sequer a declarar a dívida (situações de mora e não de falta de declaração);

11. É, salvo melhor entendimento, nesta medida, que o legislador quis, como se frisa na decisão recorrida, "dar mais uma oportunidade às pessoas que comunicaram a declaração de prestação tributária à Administração Fiscal, mas não fizeram a entrega - sem limitação a qualquer valor -, para regularizarem a sua situação fiscal, pagando a dívida, acrescida de juros e coima";

12. E, será nessa medida que o legislador quis ver punidas de forma diferente duas situações de omissão dos deveres fiscais, em virtude das mesmas revestirem gravidade dissemelhante, e não, como se decidiu, de apenas criminalizar a conduta de quem declarou o facto sujeito a imposto;

13. Em suma da interpretação dada pelo Tribunal recorrido ao art. 105° do RGIT resulta uma punição mais severa de quem até cumpriu a obrigação declarativa e a total impunidade de quem nem sequer declarou o rendimento;

14. Pelo que vem dito, concluiu-se que o Tribunal a quo violou o art. 105°, nºs 1 a 4, do RGIT e o art. 311° do Código de Processo Penal.

Nestes termos, e nos mais, que V. Exªs, na vossa douta munificência, saberão suprir, deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público.


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Nesta Relação o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.

Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.


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B.1 - Fundamentação:

São estes os elementos de facto relevantes e constantes do processo:

Nos autos de Processo Comum que corre termos no 1º Juízo Criminal de Vila Nova de Foz Côa o Ministério Público deduziu acusação para julgamento em processo comum com intervenção de Tribunal singular contra A..., casado, construtor civil, natural de T…, Vila Nova de Foz Côa, residente na Rua das E… em Vila Nova de Foz Côa, imputando-lhe a prática, em autoria material e sob a forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105º, n.ºs 1 e 2 e 16º, alínea g), da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias – RGIT).

Por despacho lavrado em 28/02/2009, a Mmª. Juíza, considerando que os factos descritos no despacho de acusação não consubstanciam a prática do crime imputado ao arguido A... – abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1 e 2, do RGIT – nem de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 103º, do RGIT, mas sim, a provarem-se tais factos, de um ilícito contra-ordenacional, rejeitou a referida acusação, ao abrigo do disposto no artigo 311º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea d), do Código de Processo Penal.

É o seguinte o teor do referido despacho judicial:

“Dispõe o artigo 311º, do CPP que: «1. Recebidos os autos no Tribunal, o presidente pronuncia-se sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. 2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente. 3. Para os efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) se os factos não constituírem crime.»

Após a leitura de todos os elementos probatórios carreados para os autos na fase de inquérito (assumindo especial relevância o teor de fls. 49) e a leitura do despacho de acusação de fls. 97 a 102, considera este Tribunal ser imprescindível a apreciação da seguinte questão prévia: consubstanciarão os factos descritos no referido despacho de acusação a prática do ilícito criminal aí imputado ao arguido, ou a prática de qualquer outro ilícito criminal, concretamente p. e p. pelo Regime Geral das Infracções Tributárias – RGIT?

Vejamos.

Nos termos do artigo 105º, n.ºs 1 e 2, do RGIT, “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias”, considerando-se também prestação tributária “a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja”.

A propósito do disposto no n.º 1 do artigo 105º do RGIT cumpre salientar, antes de mais, que tal preceito foi alterado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro – Lei do Orçamento do Estado (OE), que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2009 –, prevendo-se agora que “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias” (sublinhado nosso).

Também o n.º 4 do artigo 105º do RGIT já havia sido alterado [pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro – Lei do Orçamento do Estado (OE), que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2007]. Com efeito, o artigo 95º, da Lei n.º 53-A/2006 veio aditar a alínea b) ao n.º 4, do aludido artigo 105º, fazendo depender a manutenção da punibilidade dos factos descritos nos números anteriores (para além dos requisitos que já constava da sua normatividade) do não pagamento da prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, acrescida de juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.

Assim, dispõe actualmente o n.º 4, do artigo 105º, do RGIT que “os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida de juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação feita para o efeito.”

Tal circunstância faz agora também depender essa (manutenção da) punibilidade do não pagamento da prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.

O aditamento configura uma condição objectiva de exclusão de punibilidade, ou seja, o crime não será punido se o agente repuser [em 30 dias contados da notificação a fazer-lhe] a situação tributária acrescida dos respectivos juros e do valor da coima aplicável (v. g. Ac. de fixação de jurisprudência do STJ de 6/2008, DR, 1ª série, n.º 94, de 15 de Maio de 2008, p. 2672 a 2680).

Ou seja, a vontade inequívoca do legislador foi a de só incriminar e punir como crime de abuso de confiança fiscal a pessoa que, tendo comunicado à Administração Fiscal a declaração da prestação deduzida e não entregue, não procedeu ao seu pagamento, acrescida de juros e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação que para o efeito a Administração Fiscal lhe fez. Regularizando a dívida, a actual Lei passa a considerar que existe apenas uma contra-ordenação.

Ora, os factos em apreço nos presentes autos foram alegadamente praticados em data anterior à entrada em vigor das Leis n.ºs 53-A/2006 e 64-A/2008 (segundo o despacho de acusação, em data não concretamente apurada, mas anterior a 11 de Maio de 2005).

Entende o Tribunal, no entanto, estar-se perante uma sucessão de leis penais no tempo, a que alude o artigo 2º, do Código Penal, sendo de aplicar a lei que se revelar mais favorável ao arguido (n.º 4 do artigo 2º do Código Penal), in casu, a alteração introduzida pelas referidas LOE n.ºs 53-A/2006 e 64-A/2008 (neste sentido, vide Acórdãos da Relação de Coimbra de 14/03/2007, 21/03/2007 e 28/03/2007 e Acórdão do STJ de 21/02/2007, todos em www.dgsi.pt e Ac. fixação jurisprudência do STJ de 6/2008).

O conceito de prestação tributária previsto no n.º 1, do artigo 105º, é ampliado nos n.ºs 2 e 3, daquele preceito legal, por forma a abarcar todas as prestações que são deduzidas por conta daquela, bem como as, que tendo sido recebidas, haja obrigação de as liquidar (n.º 2) e as prestações de natureza parafiscal (n.º 3).

As prestações referidas no n.º 2, do artigo 105º, do RGIT, dizem respeito àquelas que são devidas no âmbito do I.R.S. (“deduzida por conta daquela”), em que o imposto é deduzido sobre os montantes de remunerações dos empregados dependentes, e no âmbito do I.V.A. (“haja obrigação legal de a liquidar”), em que o imposto é liquidado pelo sujeito passivo, que o exige à pessoa a quem cede os bens ou presta serviços.

São elementos do tipo legal descrito no artigo 105ºº, n.º 1, do RGIT:

- A falta de entrega, total ou parcial, por parte dos sujeitos passivos, da prestação tributária, de valor superior a € 7500, deduzida das remunerações dos empregados dependentes, bem como da prestação, de valor superior a € 7500, liquidada às pessoas a quem cedem os bens ou prestam serviços;

- A apropriação, total ou parcial, de tais montantes;

- O dolo.

O primeiro elemento reporta-se à violação da relação de confiança, uma vez que é o próprio sujeito passivo que se encontra legalmente obrigado a liquidar o I.V.A. e a exigir o referido montante ao sujeito a quem cede bens ou presta serviços, ficando esta quantia legalmente confiada para que seja devolvida posteriormente. Com efeito, o I.V.A. é um “imposto geral sobre o consumo” que pretende tributar todo o valor acrescentado ao longo das diferentes fases dos diversos estádios da produção e da distribuição e ainda no domínio da prestação de serviços.

Este elemento reporta-se, igualmente, à violação da relação de confiança do sujeito passivo que se encontra legalmente obrigado a deduzir e reter das remunerações dos trabalhadores dependentes (porquanto são estes os pagadores do imposto, servindo a entidade patronal de mera intermediária na cobrança e posterior entrega dele aos cofres do Estado) o imposto devido a título de I.R.S., imposto esse que fica legalmente confiado para que seja entregue posteriormente ao Estado. Uma vez deduzido e retido o referido imposto, se a entidade patronal deixar de o entregar ao Estado, desviando-o para outros fins, defraudada está a confiança nela depositada por força da lei.

Neste âmbito, o facto tributário é instantâneo, pois logo que se verifica o elemento material – dedução do imposto das remunerações mensais (no caso do IRS) ou a transmissão do bem ou a prestação do serviço (no caso do IVA) – surge a obrigação do imposto, obrigação essa que é certa, líquida e exigível.

Isto porque, aquele que transmite o bem ou presta o serviço, denominado de sujeito passivo, deve liquidar o imposto à contraparte. Esta, por seu turno, conhece o imposto e deve pagá-lo juntamente com o preço do bem ou do serviço. O mesmo sucede com a entidade patronal que deduz mensalmente dos salários pagos o montante de I.R.S. devido.

A relação de confiança descrita e agora fundamentada legalmente, é violada através da não entrega ao Estado e da apropriação da quantia deduzida a título de I.R.S. e recebida a título de I.V.A., apropriação essa que constitui o resultado típico.

FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE defendem que o crime de abuso de confiança fiscal é um crime de resultado, o qual consiste “na efectivação de um dano/enriquecimento, sob a forma de descaminho de prestações correspondentes a créditos tributários” (Jorge Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade in «O Crime de Fraude Fiscal no Novo Direito Penal Tributário Português», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano VI, n.º 1, p. 91).

No que concerne ao tipo subjectivo, o crime em causa é essencialmente doloso, podendo assumir qualquer uma das formas previstas no artigo 14.º, do Código Penal (aplicável ex vi artigo 3º, do RGIT), não sendo admitida a forma negligente.

Nos termos do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, a conduta do agente só é, no entanto, punível se:

a) tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.

Deste modo, a entrega da prestação tributária (retenções de IRS e IVA) está actualmente associada à obrigação de apresentação de uma declaração de liquidação/pagamento.

A falta de entrega da prestação tributária pode estar associada ao incumprimento declarativo ou decorrer simplesmente da falta de pagamento do imposto liquidado na referida declaração.

Quando a não entrega da prestação tributária está associada à falta declarativa existe uma clara intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fiscal.

O mesmo não se poderá dizer, quando a existência da dívida é participada à Administração Fiscal através da correspondente declaração, que não vem acompanhada do correspondente meio de pagamento, mas que lhe permite desencadear de imediato o processo de cobrança coerciva.

Tratando-se de diferentes condutas, com diferentes consequências na gestão do imposto, devem, portanto, ser valoradas criminalmente de forma diferente.

Assim, a vontade inequívoca do legislador – que encontra apoio na letra e no espírito da actual alínea b), do n.º 4, do artigo 105º, do RGIT – é a de só criminalizar e punir como crime de abuso de confiança fiscal a pessoa que, tendo comunicado à Administração Fiscal a declaração da prestação deduzida e não entregue, não procedeu ao seu pagamento, acrescida de juros e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação que, para o efeito, a Administração Fiscal lhe fez.

Trata-se de, no fundo, de dar mais uma oportunidade às pessoas que comunicaram a declaração de prestação tributária à Administração Fiscal, mas não fizeram a entrega – sem limitação a qualquer valor –, para regularizarem a sua situação fiscal, pagando a dívida, acrescida de juros e coima, com a consequente despenalização da não entrega da prestação tributária (cfr. Ac RC de 21/03/2007, www.dgsi.pt).

No caso em apreço, e conforme resulta do despacho de acusação (artigo 4º) e do teor de fls. 49, o arguido A..., apesar de a isso estar legalmente obrigado, “não comunicou ao Serviço de Administração Fiscal do IVA através da correspondente declaração periódica a liquidação e recebimento de tal montante [€ 8075,00], omitindo a declaração da operação tributável em causa e ocultando dessa forma o recebimento do valor de 8075 euros, do qual enriqueceu o seu património de forma ilegítima, não tendo até à presente data entregue tal montante à Administração Fiscal.” (sublinhado nosso).

Ora, a não entrega da referida declaração consubstancia uma concreta falta de comunicação à administração fiscal da declaração de prestação tributária.

O arguido não chegou sequer a declarar a sua dívida.

Nessa medida, não se verificando uma das condições objectivas de punibilidade, é forçoso concluir não se verificarem preenchidos os elementos objectivos do tipo de ilícito em apreço - crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1 e 2, do RGIT.

Contudo, a conduta do arguido não deixa de revelar uma clara intenção de ocultação dos factos à Administração Fiscal, pelo que é de chamar à colação o disposto no artigo 103º, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 2, do RGIT (a fim de aferir da necessidade de proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos no despacho de acusação, ao abrigo do disposto no artigo 311º, n.º 2, alínea b), a contrario, do CPP – cfr. AC. do Tribunal da RL de 14/10/1999, CJ, ano XXIV, tomo 4, p. 150).

Estatui o referido preceito legal (redacção conferida pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, aplicável nos presentes autos por força do disposto no artigo 2º, n.º 4, do Código Penal) que “Constitui fraude fiscal, punível com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por: a) ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável; b) ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária; c) celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas”

Os factos previstos nos números anteriores não são, todavia, puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 15.000 (artigo 103º, n.º 2, do RGIT – redacção conferida pela Lei n.º 60-A/2005).

Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária (artigo 103º, n.º 3, do RGIT).

Para que o crime de fraude fiscal se considere consumado não se exigirá, em regra, que o agente represente com exactidão o montante da vantagem ou benefício patrimonial indevido. Será bastante a representação genérica da consequência da diminuição da receita fiscal.

Entre as condutas tipificadas passíveis de integrar este crime refere-se a «ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária», situação que nos parece ser a dos autos. Ou seja, a tipificação do crime abarca a omissão de declaração à administração fiscal de factos ou valores.

O crime consuma-se ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente. É o que resulta da expressão “susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias”.

Para a punição do agente basta comprovar que este quis as respectivas [acções ou] omissões e que elas eram adequadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais e à consequente diminuição das receitas tributárias.

A vantagem patrimonial ilegítima de que fala o n.º 2 do artigo 103º do RGIT é o montante do imposto que o sujeito passivo deixou de pagar em consequência da omissão das declarações.

Esta vantagem é elemento típico essencial para a verificação do crime. É, por isso, indispensável o seu cálculo e liquidação no âmbito da instrução do respectivo processo. A realização de tal diligência caberá à entidade concretamente competente para proceder, em termos normais, à liquidação do imposto.

O n.º 2 do artigo 103º do RGIT consagra uma cláusula objectiva de extinção da responsabilidade criminal, em função do montante (não considerado relevante pela lei) da vantagem patrimonial ilegítima, conducente à não punibilidade dos factos a título de crime.

Assim, presentemente, não será criminalmente punível a factualidade conducente à obtenção de vantagem patrimonial ilegítima inferior a € 15.000 [referida a cada uma das declarações a apresentar].

Terão pesado na opção político/criminal do legislador razões de oportunidade processual ou mesmo de desnecessidade de punição de condutas objectivamente desprovidas de relevância penal fiscal, considerada num plano jurídico/tributário, financeiro e pecuniário (cfr. Acórdão do Tribunal da RC de 09/05/2007, www.dgsi.pt).

Como refere o n.º 3 do artigo 103º do RGIT “os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.

Ora, no caso dos autos a declaração que o arguido alegadamente omitiu/não comunicou é de valor inferior a € 15.000, pelo que igualmente se conclui não se verificarem preenchidos os elementos do tipo de ilícito em apreço – crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 103º, do RGIT.

A alegada conduta do arguido consubstanciará, quanto muito, a provarem-se os factos descritos na acusação, um ilícito contra-ordenacional, p. e p. pelo artigo 117º, n.º 1, do RGIT.

Em face do exposto, uma vez que os factos descritos no despacho de acusação não consubstanciam a prática do crime imputado ao arguido A... – abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1 e 2, do RGIT – nem de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 103º, do RGIT, mas sim, a provarem-se tais factos, de um ilícito contra-ordenacional, rejeito a referida acusação, ao abrigo do disposto no artigo 311º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea d), do CPP.


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Cumpre conhecer

B.2 - O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº 1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Em função de tal princípio a questão a abordar no recurso reconduz-se a apurar se comete um crime de abuso de confiança fiscal previsto no artigo 105º do RGIT o agente que, para além de não apresentar declaração fiscal relativa a uma prestação em falta, igualmente a não paga.


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B.3 – Do tipo de ilícito contido no 105º do RGIT e em jeito de justificação material.

Dispunha o artigo 24º, nº 1 do RJIFNA (sempre na redacção dada pelo Dec-Lei nº 394/93, de 24-11):

Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei ...”;

Dispõe o actual artigo 105º do RGIT:

Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei ...”.

De igual forma o crime de abuso de confiança contra a segurança social viu surgir nova redacção, diversa da que constava do anterior artigo 27º-B do RJIFNA, a saber:

Dispunha o artigo 27º-B nº 1 do RJIFNA:

As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entregarem, total ou parcialmente,...... do mesmo se apropriando, serão punidas ...”;

Dispõe o actual artigo 105º do RGIT:

As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente,...... são punidas ...”;

Como se pode verificar, os anteriores tipos exigiam, de forma expressa, a “apropriação” como elemento do tipo de ilícito.

Qualquer dos actuais tipos penais parece prescindir (pelo menos literalmente) dessa apropriação, bastando-se com a “não entrega” de prestação tributária.

Ou, dizendo mais, se os anteriores tipos penais – à luz do regime instituído pelo Dec-Lei nº 394/93, de 24-11 - se construíram à imagem do crime “clássico” do abuso de confiança, os actuais tipos penais parecem afastar-se declaradamente daquela figura clássica, pelo menos literalmente, parecendo prescindir da dita apropriação.

Partindo de duas previsões legais (obrigação de dedução e obrigação de entrega) constrói-se o tipo de ilícito e parte-se para a presunção, pela não entrega, da existência da posse e inversão do título (ou prescinde-se mesmo da sua existência factual, leitura que será permitida). De forma linear: quem tem a obrigação de deduzir e não entregou praticou um crime, independentemente da posse e apropriação.

Ora, permitir que tal ocorra é objectivar a responsabilidade criminal é, depois disso, abrir a porta ao ónus da prova e sua inversão. É permitir presumir factos e culpa. É não distinguir crime de contra-ordenação (v. g. artigo 114º do RGIT).

Obviamente tal leitura contraria os mais elementares princípios de direito penal e atenta contra o edifício constitucional.

Assim, uma leitura da letra do artigo 105º do RGIT que prescinda da apropriação indevida reconduzir-nos-ia à afirmação da sua inconstitucionalidade material. Daí que se concorde com o expendido por Jorge Manuel Monteiro Pereira de que o tipo incriminador não abrange a “não dedução”, a “não liquidação e “o não recebimento por parte do agente”. - In “Despenalização da não entrega da prestação tributária” – O novo nº 4 do artigo 105º do RGIT”. Verbo Jurídico, pag. 5.

No mesmo sentido Isabel Marques da Silva na afirmação de que a prévia dedução ou cobrança da prestação tributária constitui um pressuposto do tipo. - In “Regime Geral das Infracções Tributárias”, pag. 181. Almedina, 2007.

Afirmações que nos permitem concluir que o tipo de ilícito criminal imputado ao arguido deve ser entendido como tipo doloso, com a exigência da possibilidade de reprovação da conduta do arguido a título de conduta dolosa, tendo por base omissão ou omissões reprováveis por o arguido não ter agido, conhecendo e querendo, em conformidade com o dever jurídico, apropriando-se indevidamente de prestação que tinha a obrigação de entregar à administração fiscal.

Assim, da jurisprudência do Tribunal Constitucional que materialmente tem procurado suster a preponderância de argumentos a favor da constitucionalidade do artigo 105º do RGIT e que surge como legitimação material do citado preceito podem retirar-se os seguintes elementos úteis para uma leitura materialmente constitucional do tipo penal em presença [Tomando como modelo o Ac. 640/03 do TC de 20-01-2004 (relator Cons. Mota Pinto), onde está em causa o IVA cobrado, enumeram-se os elementos do tipo, a saber (naquilo que nos interessa)]:

A existência (legal) de uma obrigação de entrega à administração tributária de uma prestação tributária;

A existência de uma prestação tributária deduzida (nos termos legais);

A falta dolosa dessa entrega;

A exclusão do dolo específico e da punibilidade da negligência;

Sendo certo que o obrigado se encontra numa posição ”que poderemos aproximar da do fiel depositário”, reafirma-se que o não cumprimento da obrigação de entrega é elemento do tipo, mas “o que importa para a punibilidade do comportamento é a falta dolosa de entrega da prestação” e a “mera impossibilidade de incumprimento não é elemento do crime de abuso de confiança...” (?) e a não entrega atempada da prestação, tornando possível embora, a instauração do procedimento criminal, vê a punibilidade da conduta dos arguidos dependentes da “apropriação dolosa da referida prestação” – (Ac. 80/00, de 29-11-2000, sendo relatora a Consª. Maria Helena Brito e por referência ao crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social).

Assim, a “apropriação” indevida, melhor dizendo, a “posse” ou “detenção” prévia do quantum da prestação é elemento que continua a fazer parte do tipo de ilícito numa leitura nada literal do preceito, pois que o agente comporta-se relativamente à prestação uti dominus, havendo um momento de inversão do título de posse, sendo a não entrega a manifestação exterior desse momento subjectivo.

Este o sentido material que pode ser dado ao tipo penal em análise face à constante jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido da constitucionalidade do tipo, não obstante a crítica acerba de que foi alvo. - V. g. Manuel da Costa Andrade, “O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza de um acórdão do Tribunal Constitucional”, in RLJ, ano 134, pags. 307-325 e “Direito Penal Económico e Europeu: textos doutrinários”, vol. III, pags. 229-253. Coimbra Editora, 2009.

Serão, assim, elementos do tipo de ilícito em presença: a existência (legal) de uma obrigação de entrega à administração tributária de uma prestação tributária; a existência de uma prestação tributária efectivamente deduzida ou cobrada (nos termos legais); a falta dolosa dessa entrega.

Tais elementos verificam-se no caso em apreciação.


*

B.3 – O raciocínio base que enforma o despacho recorrido assenta na ideia de que o tipo incriminador do artigo 105º do RGIT apenas abrange as situações em que o agente entrega a declaração tributária mas dolosamente não paga a prestação devida. Consequentemente, as situações em que o agente não declara a prestação tributária (e a não entrega) ficam abrangidas por outro tipo incriminador, o crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 103º do mesmo RGIT.

Permitimo-nos discordar de tal entendimento.

Sendo certo que a redacção vigente à data da prática dos factos não era absolutamente esclarecedora por não prever a condição objectiva de puniblidade que viria a ser introduzida pela Lei nº º 53-A/2006, de 29/12 (ainda hoje vigente na última versão introduzida, a da Lei n.º 64-A/2008, de 31/12), a sucessão de regimes torna clara a sem razão do despacho recorrido.

Assim, a Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho - Regime Geral das Infracções Tributárias – rezava na sua 9ª versão (Lei n.º 60-A/2005, de 30/12), versão vigente à data da prática dos factos:


Artigo 105.º Abuso de confiança

“1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.

5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.

6 - Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder (euro) 2000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.

7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”

A mesma Lei passou a ter na redacção do seu nº 4 uma condição objectiva de punibilidade esclarecedora (versão introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29/12), assente que existe uma continuidade típico-normativa (Taipa de Carvalho), e uma sucessão de leis penais no tempo a exigir a aplicação de lex mellior, com as novas normas a aplicarem-se aos factos ocorridos na vigência da lei antiga, desde que mais favoráveis ao agente:

“…….

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

Do que se expõe resulta indubitável que este tipo incriminador é aplicável às situações em que o agente comunicou a prestação devida à administração tributária, beneficiando aqui – através desta condição objectiva de punibilidade – de uma redução do tipo penal.

A alínea a) deste mesmo nº 4, por seu lado, é não só aplicada às situações em que houve declaração à administração fiscal, mas também aos casos em que essa declaração não ocorreu. - V. g. Cruz Bucho, in “O crime de abuso de confiança fiscal (e de abuso de confiança à Segurança Social): a Lei do orçamento de Estado de 2007 e os processos pendentes”. Tribunal da Relação de Guimarães. 6 de Fevereiro de 2007.

Importante que se note é que a alínea b) do nº 4 não é aplicável aos casos de ocultação da declaração de prestação, não beneficiando o agente “ocultador” da redução do tipo penal operado pela condição objectiva de punibilidade. Diferença de tratamento justificado pela maior censurabilidade da sua conduta.

Isto é, o agente que declarou a prestação e a não pagou pode beneficiar da conversão do crime em contra-ordenação via pagamento, desde que cumpridas as condições previstas naquela al. b). O agente que ocultou, que não cumpriu a obrigação de declaração, não pode beneficiar de tal condição objectiva de punibilidade que é, repete-se, uma redução do tipo penal.

Esta disparidade de tratamento é avançada como uma das razões para a alteração legislativa:

“Os motivos para esta alteração legislativa devem-se, no essencial, a duas ordens de razões: por um lado, entendeu o legislador que haveria que distinguir as situações em que o contribuinte cumpre as suas obrigações acessórias à entrega do imposto, nomeadamente as suas obrigações declarativas e das situações em que o contribuinte nada declara perante a Administração Fiscal, não podendo, neste último caso, aproveitar do regime estabelecido na alínea b) deste n.º4; por outro, razões de eficácia e de eficiência do sistema estão também subjacentes a esta alteração, uma vez que se pretende evitar a proliferação de procedimentos criminais que acabavam arquivados em virtude da regularização da situação tributária, nos termos do art.º 22º do RGIT.” - Jorge Manuel Monteiro Pereira in “Despenalização da não entrega da prestação tributária” – O novo nº 4 do artigo 105º do RGIT”. Verbo Jurídico, pag. 7.

O que demonstra que o tipo penal é aplicável quer exista declaração, quer inexista.

E precisamente porque a obrigação de declaração, no caso, se trata de uma obrigação acessória e não uma obrigação principal, não estamos perante um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 103º do RGIT. - Augusto Silva Dias, in “Crime e contra-ordenações fiscais”. “Direito Penal Económico e Europeu – Textos doutrinários”, vol. II, pag. 451.

Não obstante em local algum o despacho recorrido subsumir o caso dos autos a qualquer das alíneas do nº 1 do artigo 103º do RGIT, referindo indistintamente as três alíneas, a situação dos autos não se subsume a qualquer delas, mormente à al. b), a mais provável dada a sua aparente indeterminação e proximidade factual.

Isso porque, no caso sub-judicio, a obrigação de declaração é, precisamente, meramente acessória da obrigação principal, a entrega de quantia “detida” pelo agente.

De facto há quem defina o crime (fiscal) de abuso de confiança como um crime que tem em vista situações de substituição tributária, tendo presente o que dispõe o artigo 20º, nº 1 da Lei Geral Tributária ou seja, nos casos em que, por imposição legal a prestação tributária é exigível a pessoa diferente do contribuinte, quer se trate de verdadeira substituição tributária, quer de substituição tributária imprópria. - Susana Aires de Sousa, in “Os crimes fiscais”, pags. 125-126. Coimbra Editora, 2009. De forma expressiva afirma Susana Aires de Sousa que “a completa ilustração do tipo pressupõe um reenvio para as normas fiscais que contemplam os casos de substituição tributária, seja ela própria ou imprópria”. - As perplexidades sistemáticas da doutrina fiscal de que dá nota Isabel Marques da Silva (ob. cit, pag. 182) são irrelevantes para o caso sub judicio.

Ora, sendo assim, não faz sentido diferenciar as duas situações factuais já que em ambas o dever de declaração é acessório e a obrigação principal – a entrega – é que preenche o tipo penal. Nem faz sentido que, preenchido o tipo pela não entrega, se recorra a um tipo penal que não apela à ideia de substituição tributária para o seu preenchimento.

Podemos, portanto, secundar o expendido pelo acórdão desta Relação de 11-03-2009 (Proc. Nº 24/05.1IDGRD.C1, sendo relator o Desemb. Ribeiro Martins) no sentido de afirmar que “O crime de abuso de confiança fiscal é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, haja ou não haja entrega da declaração tributária”.

Por fim, o montante da prestação devida excede quer o quantitativo contido nº 6 do preceito na redacção vigente à data da prática dos factos, quer o quantitativo previsto no nº 1 do actual artigo 105º do RGIT.

Haverá, pois, que revogar o despacho recorrido e determinar que seja lavrado despacho a receber a acusação deduzida e a designar dia para audiência de julgamento.


*

C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso interposto e em determinar que seja lavrado despacho a receber a acusação deduzida e que designe dia para audiência de julgamento em consonância com o aqui decidido.

Notifique.

Não são devidas custas.

Coimbra, 21 de Outubro de 2009

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

Calvário Antunes