Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
268/08.4GELSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: MEDIDA DA PENA
PRINCIPIO DA INVESTIGAÇÃO
PRINCIPIO DA VERDADE MATERIAL
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PARA A DECISÃO
Data do Acordão: 11/05/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE OURÉM – 2.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 41.º; 47.º; 69.º; 71.º, Nº1 DO CÓDIGO PENAL E ARTIGO 340.º; 369.º; E 410.º, N.º 2, ALÍNEA A) DO C.P.P..
Sumário: I. – A determinação da medida da pena é um procedimento vinculado - (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, 194 e seguintes) - que impõe ao Juiz a necessidade de dentro, dos limites da lei, proceder, oficiosamente, às diligências necessárias para que a determinação da medida concreta da pena se opere numa perspectiva objectiva.
II. - A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.
III. – Não tendo o tribunal indagado das condições pessoais (familiares) e económicas do agente verifica-se o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do Código Penal.
Decisão Texto Integral: 6

1. No processo sumário n.º 268/08.4GELSB, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Ourém, …, melhor identificado nos autos, foi condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, do Código Penal, na pena 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros), perfazendo o total de €350,00 (trezentos e cinquenta euros), bem como na pena acessória de proibição do exercício da condução pelo período de quatro meses. 2. Inconformado com tal sentença, o arguido interpôs o presente recurso, formulando, na motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
1. A razão do presente recurso prende-se com a medida da pena aplicada ao arguido e respectiva sanção acessória, atento o facto de o tribunal a quo não considerar o estabelecido nos artigos 71, n.º 1 e 2° do Código Penal, com referência aos artigos 41.º e 47.º do mesmo diploma legal.
2. Atento o facto do arguido ser primário, a taxa de alcoolemia ligeiramente acima do valor a partir do qual há crime de condução em estado de embriaguês, a consequente culpa leve do agente, e, bem assim, as reduzidas ou pouco significativas necessidades de prevenção geral e especial do caso, quer a pena principal, quer acessória de inibição de conduzir deviam ter sido fixadas no limite mínimo.
3. Aliás, o mínimo da pena imprescindível à manutenção da confiança colectiva na validade da norma violada situa-se, no caso, no limite mínimo da moldura penal, sendo que a medida da pena há-de ser fixada tendo como limite máximo a culpa do arguido e como limite mínimo a exigência de prevenção.
4. Até porque, tanto á medida da pena acessória, tendo presentes as considerações expendidas, a amplitude dos seus limites mínimo e máximo abstractamente fixados e os factores sopesados na graduação em concreto da pena, a primariedade do arguido e o facto de a proibição de conduzir por 3 meses representar já um sacrifício assinalável para quem o sofre, justifica a aplicação ao caso do mínimo legal, ou seja, três meses. "E, a tarefa de determinar a medida da pena acessória, nos termos do artigo 69° do C.P" impõe a observância do disposto no artigo 71.º do C.P., incumbindo ao Juiz a sua graduação em função das circunstâncias do caso concreto e da culpa do agente".
5. Ademais, não foi produzida qualquer prova quanto as condições sócio económicas do arguido para que, o tribunal pudesse fixar a taxa diária de pena de multa a aplicar.
6. A audiência de julgamento realizou-se na ausência do arguido, sendo que o tribunal não procurou colmatar esse facto solicitando a elaboração de relatório social relativo às condições sócio económicas do arguido.
7. Donde não se compreende em que provas o Tribunal a quo se sustentou para formular a sua convicção relativamente ao quantitativo diário da pena de multa aplicada ao arguido.
8. O que significa que, ocorre o vicio de insuficiência da matéria de facto provada, dado os artigos 369° e 370° preverem a possibilidade de prova suplementar, nomeadamente a elaboração de relatório social, facto que o Tribunal a quo não tomou em consideração.
9. Ao decidir na forma exposta, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 40°, 47.º, artigo 71.º, n.º 2, alíneas a), b) e d) do Código Penal e artigos 369.º e 370.º do Código do Processo Penal.
10. Termos em que deve ser revogada a douta Sentença proferida pelo tribunal a quo.
ASSIM, SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA!
3. O Ministério Público junto do tribunal de 1.ª instância respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência.
4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pronunciando-se, a fls. 75, no sentido de que o recurso não merece provimento.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º1, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
II – Fundamentação
1. Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Tendo em vista o teor das conclusões que sintetizam a motivação, as questões que importa apreciar no presente recurso são:
- a insuficiência da matéria de facto provada;
- a medida concreta das penas, principal e acessória.
2. A sentença recorrida
2.1. Os factos que foram considerados provados são os seguintes:
1. No dia 20 de Abril de 2008, cerca das 05h17m, o arguido conduzia o veículo automóvel, ligeiro de mercadorias, com a matrícula XX-XX-XX, na Estrada Nacional 113, ao km 19,1, na comarca de Ourém.
2. Ao ser submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue, naquela ocasião, apresentou uma taxa de alcoolémia no sangue de 1,49 g/l;
3. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que não podia conduzir na via pública sob a influência do álcool, e que a sua conduta era proibida e punida por lei.
4. Não se apurou a existência de antecedentes criminais.
Para além do que antecede, com relevo para a decisão, não se provaram quaisquer outros factos.
2.2. O tribunal fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
«A convicção do Tribunal baseou-se na análise do documento de fls. 4 que traduz o resultado da análise ao ar expirado e no depoimento da testemunha autuante, que relatou o modo como decorreu a fiscalização do arguido.
Valorou-se o CRC de fls. 11 dos autos.»
2.3. Quanto à determinação das penas, principal e acessória, consta da sentença recorrida:
«Há que proceder agora à determinação da medida concreta da pena tendo por base o disposto no art. 71.° do Cód. Penal.
Dentro dos limites estabelecidos no tipo legal, a determinação da medida da pena faz-se em função da culpa do arguido e as exigências de prevenção (art. 71.° nº 1, e 40.° n.º 1 e 2 ambos do Cód. Penal), havendo que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o arguido considerando, nomeadamente, os factores de determinação da pena a que se referem as várias alíneas do n.º 2 do art. 71.° do Cód. Penal.
Contra o arguido milita o dolo directo com que agiu bem como a hora em que os factos ocorreram, e o tipo de veículo que tripulava, além da taxa com que circulava, que apesar de não ser das mais elevadas já encerra um grau de perigosidade acrescido.
A favor do arguido depõe a circunstância de não se ter apurado a existência de antecedentes criminais.
A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do art. 71.º, entre o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 120 dias – cfr. art. 47.° n.º1, e 292.° n.º1 ambos do Cód. Penal.
Ponderando os factores atrás mencionados, julga-se adequada a fixação da pena a aplicar ao arguido em 50 (cinquenta) dias de multa.
Cumpre, agora, proceder à fixação da taxa diária da multa tendo por base os critérios previstos no art. 47°, n.º2, do Cód. Penal, ou seja, e situação financeira e económica do condenado e dos seus encargos pessoais.
Sendo que o arguido não compareceu em sede de audiência de julgamento nem fez chegar qualquer elemento relativo à sua situação económica fixa-se em € 7,00 a taxa diária.
C) Pena Acessória.
Nos termos do n.º 1, alínea a) do artigo 69.° do Código Penal é condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crime previsto no artigo 292.° do Código Penal. Como pena acessória que é, a proibição de conduzir veículos com motor determina-se, quanto à sua duração, dentro dos limites mínimo e máximo legais, de acordo com os critérios estabelecidos no art. 71.° do Código Penal, nomeadamente, em função da gravidade do ilícito e da culpa, das exigências de prevenção especial e da necessidade geral da manutenção da confiança da comunidade na segurança rodoviária.
Atendendo às circunstâncias da prática do crime, desde logo as conexionadas com o grau de ilicitude do facto, o grau de alcoolémia de que o arguido era portador - 1,49 g/lt-, o dolo directo e as exigências de prevenção, entende-se fixar em 4 meses a proibição de conduzir veículos com motor.»
3. Apreciando
3.1. Estabelece o art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (diploma que doravante será designado como C.P.P.) que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Em qualquer das hipóteses apontadas neste nº 2, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2.ª Edição, p. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª Edição, pp. 77 e segs.).
Não tendo sido impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.º3, do C.P.P., importa apreciar o vício invocado pelo recorrente – que é, aliás, de conhecimento oficioso – e que consiste na insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
3.1.2. Existe o vício previsto na alínea a), do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P. quando a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final (Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., p. 69) ou, por outras palavras, quando a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito (Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 340).
Como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena (entre outros, cfr. Acórdão de 4/10/2006, Proc. n.º 06P2678 - 3.ª Secção, em www.dgsi.pt; Acórdão de 05-09-2007, Proc. n.º 2078/07 - 3.ª Secção e Acórdão de 14-11-2007, Proc. n.º 3249/07 - 3.ª Secção, sumariados em Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça -Secções Criminais).
Prova essencial à boa decisão da causa, no caso de condenação e aplicação de pena, conforme resulta expressamente da própria lei (artigos 369.º e segs. do C.P.P.), é a relativa aos antecedentes criminais do arguido, à sua personalidade e às suas condições pessoais. A lei prevê até a possibilidade de produção suplementar de prova, tendo em vista a determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar, para o que, sendo necessário, poderá ser reaberta a audiência (artigo 371.º do C.P.P).
Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, 194 e seguintes).
Nos termos do artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, é por apelo aos critérios da culpa e da prevenção – geral e especial – que deve ser encontrada a medida concreta da pena, dentro da respectiva moldura abstracta, sendo certo que o n.º3 do mesmo artigo prescreve que «na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena».
Da leitura da sentença recorrida extrai-se que nada foi apurado quanto às condições pessoais do arguido e à sua situação económica, factores de determinação da pena que, entre outros, constam do elenco não taxativo previsto no artigo 71.º, n.º2, do Código Penal, como elementos relevantes a ponderar na determinação da pena.
É certo que o julgamento decorreu sem que o arguido-recorrente estivesse presente, circunstância que pode ter dificultado o apuramento da factualidade atinente às suas condições pessoais e situação económica.
Porém, resulta dos princípios da investigação e da verdade material que ao tribunal cumpre investigar, independentemente da acusação e da defesa, com os limites previstos na lei, os factos sujeitos a julgamento, de forma a criar as bases necessárias para a decisão.
Quer isto dizer que o tribunal tem o poder-dever de, oficiosamente, socorrer-se do disposto no artigo 340.º, do C.P.P., para investigar os factos sujeitos a julgamento, procedendo, autonomamente, às diligências que, numa perspectiva objectiva, possam ser razoavelmente consideradas necessárias, de modo a se habilitar a proferir uma decisão justa, não lhe sendo consentido remeter-se a uma atitude passiva e meramente dependente da iniciativa probatória dos sujeitos processuais.
Ora, o tribunal a quo não procedeu a qualquer diligência para suprir o seu défice de conhecimento, sendo certo que dependeu de sua decisão entender que não carecia da presença do arguido.
Não se trata de exigir o impossível ou de impor que a sentença, sob pena de incorrer num vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, tenha de conter todos os elementos que, idealmente, deveriam ser considerados na sempre árdua tarefa de determinação da pena.
No caso vertente, todavia, ficou-se aquém do mínimo razoavelmente exigível, carecendo a sentença recorrida de elementos que habilitassem o tribunal a quo a, conscienciosamente, levar a bom termo o procedimento de determinação individualizada da pena, dentro dos parâmetros legais, seja quanto à pena principal, seja quanto à pena acessória – pois para ambas, e não apenas para fixação da razão diária da multa, releva o conhecimento de quem é, afinal, o arguido: quais as suas condições pessoais (o que faz, situação familiar, etc.) e a sua situação económica.
Esta situação traduz-se na insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, integradora do mencionado vício da alínea a) do artigo 410.º, n.º2, do C.P.Penal, determinante do reenvio do processo para novo julgamento quanto ao recorrente, relativo às questões (de facto) pertinentes para a determinação da pena – condições pessoais e económicas do arguido – e, bem entendido, à questão (de direito) do reflexo desses factores na medida concreta das respectivas penas, principal e acessória (cfr. Ac. do S.T.J., de 06/11/2003, proc. nº 03P3370, http://www.dgsi.pt).
E assim, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
III – Dispositivo
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em revogar a sentença recorrida e ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º do C.P.P., mas apenas para averiguação das condições pessoais e situação económica do recorrente e consequente determinação das penas, principal e acessória.