Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4047/19.5T8CBR-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
DILIGÊNCIAS DE VENDA
NÃO SUSPENSÃO FACE À LEI Nº 1-A/2020
DE 19/3
COVID 19
Data do Acordão: 09/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 7º, Nº 6 DA LEI Nº 1-A/2020,DE 19/3.
Sumário: 1. O disposto nº6 do artigo 7º da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março (na redação que lhe foi introduzida pelo artigo 2º da Lei nº 4-A/2020, de 6 de abril) – que estabeleceu medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença Covid-19 –, não é de aplicação analógica às diligências de venda a efetuar no processo de insolvência.

2. O artigo 6º da Lei nº 1-A/2020 (na redação da Lei nº 16/2020, de 29 de maio) apenas determina a suspensão dos atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência que se encontrem relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.

3. As medidas excecionais e temporárias contidas na Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, nas sucessivas alterações que lhe foram sendo introduzidas, não implicavam a suspensão das diligências e atos de venda em processo de insolvência.

Decisão Texto Integral:








Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

No âmbito do processo de insolvência respeitante a M..., por requerimento de 16 de abril de 2020 veio a insolvente:

1. Arguir a nulidade da venda/adjudicação realizada pelo Administrador Judicial ao credor garantido Banco C..., S.A., relativamente ao prédio urbano ..., com os seguintes fundamentos:

a adjudicação de tal imóvel foi comunicada aos autos a 9 de abril de 2020, tendo sido realizada já em situação de Declaração de Estado de Emergência, na sequência de leilão online operado entre 11 de março e 6 de abril de 2020, numa altura em que todos os atos e diligências judiciais tinham sido suspensos, sendo-lhe, ainda, aplicável, por aplicação analógica ou interpretação extensiva, o disposto no art. 7.º, n.º 6, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, na redação da Lei n.º 4/2020, que determina a suspensão dos atos a realizar em processo executivo, nomeadamente das vendas;

 nenhum dos credores reconhecidos foi notificado para se pronunciar sobre o pedido de adjudicação formulado pelo Banco C...;

2. Invocar a ilegalidade da notificação que lhe foi dirigida pelo administrador da insolvência para entrega do prédio até 30 de abril de 2020 é ilegal, visto o mesmo constituir a sua casa de habitação.

3. Pedir a destituição do administrador judicial face às irregularidades por este cometidas.

O Sr. Administrador da insolvência pronunciou-se contra as arguidas nulidades, alegando que, nos termos do art. 7.º, n.º 11, da Lei n.º 1-A/2020, de 6 de abril, o que se mantém suspenso é a entrega do imóvel, não estando a venda, em si mesma, suspensa.

 Também o credor Banco C..., S.A., se pronunciou pela improcedência das invocadas nulidades.

Pelo juiz a quo foi proferido o Despacho, de que agora se recorre, a 20 de maio de 2020, a:

- considerar sustadas todas as diligências para entrega efetiva do imóvel onde reside habitualmente a insolvente até ao termo da situação excecional provocada pelo corona vírus SARS-CoV2 e da Doença COVID-2;

- julgar improcedente a arguição da nulidade suscitada pela devedora

- julgar improcedente o pedido de destituição do administrador de insolvência.


*

Inconformada com tal decisão, a Insolvente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

...

O Banco Comercial Português apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Nulidade da venda por ter sido realizada durante o período abrangido pela Declaração de Estado de Emergência.
2. Nulidade da venda por omissão das notificações a efetuar aos demais credores.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
A decisão recorrida teve por relevantes os seguintes factos que considerou assentes face aos elementos constantes dos autos:
1. M... apresentou-se à insolvência por requerimento apresentado em 25 de junho de 2019, tendo, por sentença proferida a 2 de julho de 2019, sido declarada a respetiva insolvência, e nomeado administrador da insolvência o Sr. Dr. I...
2. Após a respetiva nomeação, o Sr. Administrador da insolvência apreendeu para a massa insolvente, entre outros bens, o prédio urbano composto de prédio urbano composto de casa de habitação, de cave e rés-do-chão, sito na Rua ...
3. Este prédio constitui a casa de habitação da devedora.
4. Apresentado o relatório do administrador da insolvência, determinou-se, por despacho de 24 de setembro de 2019, o prosseguimento do processo com a liquidação da massa insolvente.
5. O prédio correspondente à habitação da insolvente foi colocado em venda por leilão eletrónico, que decorreu entre 11 de março de 2020 (09 horas) e 6 de abril de 2020 (18 horas), se obter qualquer liquidação.
6. O imóvel tinha sido já objeto de apresentação de uma proposta pelo credor garantido, em 12 de fevereiro 2020, tendo-se mantido o interesse na venda por leilão eletrónico, na tentativa de obter melhor resultado.
7. Não tendo sido obtido melhor resultado, o administrador da insolvência aceitou a proposto do credor garantido, no valor de € 99.600,00.
8. Estão em curso diligências no sentido de outorga de escritura.
Versando o despacho sob recurso sobre outras duas questões – ilegalidade da notificação para desocupação do locado e destituição do administrador judicial –, da leitura das respetivas alegações de recurso constata-se que a Apelante circunscreve o âmbito do mesmo à decisão proferida relativamente à invocada nulidade da venda/adjudicação, nulidade esta que a Insolvente fizera radicar em duas ordens de razões: em primeiro lugar, porque considera que se aplica ao processo de insolvência a suspensão das diligências executivas a que se reporta o artigo 7.º, n.º 6, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, na redação aprovada pela Lei n.º 4-A/2020; em segundo lugar, porque os demais credores não foram ouvidos quanto à proposta do credor garantido.
Para além de se insurgir quanto à decisão proferida relativamente a cada um destes fundamentos de nulidade da venda, a Insolvente vem, nas alegações de recurso, invocar ainda as seguintes irregularidades da venda:
- decorrente de, ela própria, por si ou pelo seu mandatário, não ter sido notificada da referida proposta de venda apresentada pelo credor hipotecário, impedindo-a de exercer os direitos legalmente atribuídos ao devedor ou a terceiros com interesse na causa, designadamente o direito de remição pelos titulares desse mesmo direito, o que integraria uma nulidade nos termos do artigo 195º do CPC;
- a omissão da comunicação à comissão de credores e ao devedor, previstas nos arts. 161º, 162º e 163º do CIRE.
Não se destinando o recurso a apreciar questões novas, mas, tão só, a reapreciar o juízo efetuado em primeira instância e devendo as nulidades processuais ser invocadas perante o tribunal onde as mesmas ocorreram[1], a este tribunal encontrar-se-á vedada a apreciação da ocorrência das alegadas irregularidades, não se apreciando o que a tal respeito é alegado nas als. J), K), L, M), O), P), Q) e R).

*
1. Se o Administrador de Insolvência se encontrava impedido de proceder à venda por força da publicação da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março e da Lei nº 4/2020 (que veio proceder à 1ª alteração à Lei nº 1-A/2020, e à 2ª alteração ao Dec. Lei nº 10-A/2020).
O tribunal a quo veio a considerar que o Administrador de Insolvência não se encontrava impedido de proceder à venda do imóvel em causa, com a seguinte fundamentação:
“Já a proibição, introduzida pela redação que a Lei n.º 4-A/2020 conferiu ao art. 7.º, n.º 6, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, da prática de quaisquer atos a realizar em processo executivo, designadamente os referentes à venda, não se impõe no caso do processo de insolvência. Ao invés, julga-se que aquela proibição mais não traduz do que um corolário, no âmbito do processo executivo, do princípio da suspensão dos prazos de atos processuais estabelecida no n.º 1 do art. 7.º, o qual se não estende aos processos urgentes, como o processo de insolvência. Ao invés, estes processos, como estatuído no art. 7.º, n.º 7, continuam, a partir da entrada em vigor da Lei n.º 4-A/2020, a ser tramitados, sem suspensão de prazos, atos e diligências. Sendo que a proteção do insolvente, em razão da sua fragilidade por falta de habitação própria, não impõe a suspensão da venda, mas tão só da entrega do imóvel que constitua a casa de habitação daquele.
Assim, e perante o exposto, considera-se que o facto de o Sr. Administrador da insolvência ter prosseguido com as diligências para venda dos bens apreendidos no decurso do período de emergência e na vigência da Lei n.º 1-A/2020, na sua redação originária e na da redação aprovada pela Lei n.º 4-A/2020, não constitui ato vedado pela lei, e como tal, suscetível de determinar a nulidade da venda.”
Insurge-se a Insolvente/Apelante contra tal decisão, insistindo que o disposto no nº 6 do artigo 7º da Lei nº 4/2020 – “Ficam também suspensos: b) quaisquer atos a realizar em sede de processo executivo, designadamente os referentes a vendas, concurso de credores, entregas judiciais de imóveis e diligencias de penhora e seus atos preparatórias, com exceção daqueles que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja realização lhe provoque prejuízo irreparável, nos termos previstos no nº 2 do artigo 137º do Código de Processo Civil, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial” – é igualmente aplicável aos atos de venda no processo de insolvência, por aplicação analógica seria igualmente aplicável à casa de morada de família da insolvente. Ainda segundo a insolvente, se dúvidas houvesse, tal situação terá ficado devidamente esclarecida com a Lei nº 16/20020, que dispôs no seu artigo 6º, nº 6: Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório: a) o prazo de apresentação do devedor à insolvência (…); b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da cas de morada de família.”, e ainda no seu artigo 7º “Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que esta suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes”.
Vejamos, então, em primeiro lugar, se o disposto nº 6 do artigo 7º da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março (na redação que lhe foi introduzida pelo artigo 2º da Lei nº 4-A/2020, de 6 de abril) – que estabeleceu medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença Covid-19 –, será de aplicação analógica às diligências de venda a efetuar no processo de insolvência, como sustenta a Apelante.
Dispõe o citado artigo 7º, na parte em que releva para a apreciação da questão em apreço:
Artigo 7º
Prazos e diligências
1- Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, (…) ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença Covid-19, a decretar nos termos do nº seguinte.
(…)
6 – Ficam também suspensos:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no nº1 do artigo 18º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
b) Quaisquer atos a realizar em sede de processo executivo, designadamente os referentes a vendas, concurso de credores, entregas judicias de imóveis e diligências de penhora e seus atos preparatórios, com exceção daqueles que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja realização lhe provoque prejuízo irreparável, nos termos do nº2 do artigo 137º do Código de Processo Civil, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial.
7. Os processos urgentes continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, observando-se quanto a estes o seguinte (…)
(…).”
11. Durante a situação excecional referida no nº 1, são suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
(…)”
A leitura de tal norma, e partindo do princípio que o legislador se exprimiu corretamente e que não cometeu qualquer lapso não detetável por um declaratário normal, permite-nos retirar as seguintes ideias gerais, relativamente aos prazos e atos a praticar nos processos judiciais, durante o período excecional de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença Covid-19:
1. relativamente aos processos não urgentes:
- os prazos ficam suspensos (nº 1 do art. 7º);
- ficam igualmente suspensos quaisquer atos a realizar em sede de processo executivo, designadamente os referentes a vendas, concurso de credores, entregas judicias de imóveis e diligências de penhora e seus atos preparatórios (nº 6, al. b)).
2. Já quanto aos processos urgentes, relativamente a prazos, o legislador dispôs expressamente que “continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências”, abrindo como única exceção a suspensão do prazo de apresentação do devedor à insolvência (al. a) do nº 6).
Tratando-se de normais excecionais e que consagram desvios aos regimes regra dos prazos e prática de atos previstos para aos processos urgentes e não urgentes, definindo especificidades para uns e outros, teremos de presumir que o legislador só pretendeu excecionar do regime normal, as situações que aí identificou, não sendo possível uma aplicação analógica. E, se pretendesse consagrar o mesmo regime para a venda em processo executivo e na insolvência, certamente tê-lo-ia afirmado expressamente, sendo certo que a referência à suspensão do prazo de apresentação à insolvência constante da alínea a) do nº 6, nos permite afirmar que o legislador teve presente as especificidades do processo insolvencial – a não se tratando de um caso de omissão ou lacuna da lei – pelo que, só lhe serão de aplicar as normas relativamente às quais o legislador expressamente determinou a sua aplicabilidade ao processo de insolvência (ou as que visam os processos urgentes, em cuja categoria se insere o processo insolvencial).
Por outro lado, haverá que atentar em que as razões e a ponderação de valores que levaram o legislador a optar pela suspensão dos atos e diligências em processo executivo não serão extensíveis, sem mais, ao processo insolvencial, considerado urgente nas suas vertentes declarativas e executivas, sendo que, para os processos urgentes, o legislador determinou, como regra, a não suspensão respetivos prazos e atos, suspensão que só ocorrerá nos específicos casos excecionais aí previstos sob o nº 7.
Não se encontram, assim, presentes os requisitos de que o artigo 10º do Código Civil faz depender a aplicação analógica – ausência de previsão legal e que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei.
Concluímos, assim que, na vigência de tal norma (e na redação em causa), os atos referentes a vendas, concurso de credores, entregas judicias de imóveis e diligências de penhora e seus atos preparatórios, apenas se encontravam suspensos na ação executiva, suspensão essa que não abrangia as diligências de venda a realizar em processos de insolvência.
Quanto à Lei nº 16/2020, de 29 de maio, que veio a introduzir novas alterações à Lei nº 1-A/2020, de que a Apelante se pretende igualmente socorrer, há que atender a que, antes de mais, foi publicada depois da prolação do despacho recorrido, veio a dar a seguinte redação ao artigo 6º (eliminando o anterior artigo 7º da Lei nº 1-A/2020):
Artigo 6º-A
Regime processual transitório excecional
(…)
6- Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no nº 1 do art. 18º do CIRE (…);
b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligencias de entrega judicial da casa de morada de família;
c) As acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo (…)
Ora, no regime resultante desta alteração, a suspensão dos atos na ação executiva é restringida, tão só, aos relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família. Ou seja, a partir da sua entrada em vigor (dia 30 de maio de 2020, nos termos do art. 10º da Lei nº 16/2020), voltaram a poder ser praticados atos na ação executiva, circunscrevendo-se a suspensão às diligencias relacionadas com a entrega judicial da casa de morada de família.
E é este regime excecional, relativo a um específico ato de cariz executivo – suspensão de diligências relacionadas com a entrega judicial da casa de morada de família – que a alínea b) do nº 6 do art. 6º-A veio estender ao processo de insolvência.
Como tal, se algum sentido interpretativo podemos ir buscar às alterações introduzidas pela Lei nº 16/2020, será precisamente o oposto ao sustentado pela Apelante: o de estender a suspensão das diligências executivas no processo de insolvência unicamente aos atos relacionados com a entrega judicial da casa de morada de família.
 Concluindo, ao Administrador de Insolvência não se encontrava vedada a realização de diligências e atos de venda/adjudicação do imóvel apreendido para a massa insolvente, mas tão só de promover a sua entrega judicial por respeitar à casa de morada de família da insolvente, não se reconhecendo a verificação da invocada nulidade.
*
2. Falta de notificação dos credores reconhecidos para se pronunciarem sobre a proposta de adjudicação feita pelo credor garantido
Invocada nos autos pela Apelante a nulidade da venda/adjudicação com fundamento em que nenhum dos credores reconhecidos no processo de insolvência foi notificado para se pronunciar sobre o pedido de adjudicação formulado pelo Banco C... (sem que adiante em que norma faz assentar a imposição legal da notificação alegadamente em falta), o juiz a quo indeferiu tal arguição, com a seguinte fundamentação:
De igual modo, o facto de o administrador da insolvência não ter ouvido os demais credores sobre a proposta apresentada pelo credor garantido não integra a prática de qualquer irregularidade, para mais com aptidão para invalidar a venda.
Com efeito, o administrador da insolvência detém amplos poderes em matéria da liquidação da massa insolvente. Não obstante exercer a sua atividade sob a fiscalização do juiz, que pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações sobre o estado da administração e da liquidação (art. 55.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), não está submetido nesta matéria, nem à autorização ou aquiescência de outros órgãos, nomeadamente da assembleia ou da comissão de credores. Nos termos do n.º 1 deste artigo, compete nomeadamente ao administrador da insolvência escolher a modalidade da alienação dos bens, podendo optar por qualquer uma das que estão tipificadas na lei processual comum, ou por outras que entenda mais convenientes para o interesse dos credores.
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, “a decisão quanto à escolha é cometida, em exclusivo, ao administrador da insolvência, segundo o seu critério e tendo em conta o que entenda ser mais conveniente para os interesses dos credores (). Esta opção insere-se no quadro geral do reforço dos poderes do administrador e satisfaz, de modo significativo, a intenção de desjudicialização do processo. Há, a este propósito, duas considerações complementares que se justificam. Uma, para sublinhar a circunstância de, cabendo a escolha da modalidade da venda ao administrador, ele não estar vinculado a seguir deliberações que, sobre a matéria, tenham sido tomadas por outros órgãos da insolvência, mesmo que se trate da assembleia de credores. Outra, para advertir do facto de a decisão não ser censurável, através de qualquer tipo de impugnação, perante outros órgãos ou perante o juiz” (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2.ª edição, pág. 650).
A autonomia e os poderes do administrador da insolvência na liquidação apenas conhecem dois tipos de limites. Por um lado, existem atos que devem ser precedidos do consentimento da comissão de credores, quando exista, ou, na hipótese contrária, de deliberação da assembleia de credores (art. 161.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). Por outro, os credores dotados de garantia real devem ser ouvidos sobre a modalidade da alienação, e informados sobre o valor ou preço da venda projetada (art. 164.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Nenhuma destas limitações foi infringida no caso, uma vez que não estávamos perante um ato de especial relevo, mas de um ato corrente de liquidação, e dado que o credor garantido foi devidamente ouvido e informado sobre a modalidade de alienação, tendo, aliás, exercido a faculdade de requerer a adjudicação do bem.
Insurge-se a apelante contra a decisão recorrida, na parte em que julgou improcedente a invocada nulidade por falta de notificação dos demais credores sobre a proposta de adjudicação do banco garantido, sem que adiante qual ou quais os fundamentos para a discordância com o decidido a tal respeito.
Com efeito, tendo a invocação de tal nulidade sido indeferida pelo juiz a quo com fundamento, desde logo, em que tal notificação não se encontra prevista por lei e que o CIRE apenas impõe a audição da comissão de credores e o credor garantido, a Insolvente, nada alegando sobre o entendimento do juiz a quo de que o A.I. não se encontrava obrigado a proceder a tal notificação, limita-se, nas suas alegações de recurso, a invocar, pela primeira vez, uma outra irregularidade: a de que nem a comissão de credores ou a assembleia de credores, nem ela própria, foram ouvidas nos termos do artigo 161º, nºs e 163º CIRE.
Ora, como já foi aqui referido, a arguição de tal nulidade constitui uma questão nova nos presentes autos: não constituiu fundamento da inovada nulidade da venda no requerimento apresentado pela Insolvente a 16 de abril de 2020, não tendo sido, como tal, objeto de apreciação por parte da decisão recorrida e não podendo, como tal, ser apreciada por este tribunal.

A apelação é de improceder sem outras considerações.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela massa falida nos termos do artigo 148º CIRE.    

                                                 Coimbra, 21 de setembro de 2020

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. O disposto nº6 do artigo 7º da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março (na redação que lhe foi introduzida pelo artigo 2º da Lei nº 4-A/2020, de 6 de abril) – que estabeleceu medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença Covid-19 –, não é de aplicação analógica às diligências de venda a efetuar no processo de insolvência.

2. O artigo 6º da Lei nº 1-A/2020 (na redação da Lei nº 16/2020, de 29 de maio) apenas determina a suspensão dos atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência que se encontrem relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.

3. As medidas excecionais e temporárias contidas na Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, nas sucessivas alterações que lhe foram sendo introduzidas, não implicavam a suspensão das diligências e atos de venda em processo de insolvência.


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[1] Como é entendimento unânime na doutrina e na jurisprudência, o tribunal de recurso não pode conhecer questões novas, a não ser que se trate de questões de conhecimento oficioso – o recurso não serve para rejulgar o litígio (não se trata de reexaminar), mas apenas para apreciar se a decisão recorrida está ou não correta em face dos elementos de que o tribunal a quo dispunha para o julgamento da causa conhecer - Cfr., entre outros, Fernando Amâncio Ferreira, “Manual de Recursos em Processo Civil”, 9ª ed., Almedina, pág. 156 e 157, Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex Lisboa 1997, pág. 395, Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 3º, T1, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 8, e Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, 3ª ed., Almedina, 2009, págs. 103 e 104. “O tribunal ad quem apenas pode apreciar questões que tenham sido submetidas ao tribunal a quo e que tenham sido expressamente submetidas à sua apreciação pela interposição do recurso” – Elisabeth Fernandez, “Princípio do Dispositivo e Objecto de Decisão de Recurso”, in “As Recentes Reformas na Acção Executiva e nos Recursos”, Coimbra Editora, 2010, págs. 334, 336 e 337.