Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
803/16.4T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO
ACTUAÇÃO NEGLIGENTE DO SINISTRADO
CONTRATO DE SEGURO DE ACIDENTE DE TRABALHO
OBJECTO DO CONTRATO
INCUMPRIMENTO DOLOSO DO SEGURADO PERANTE A SEGURADORA
ANULABILIDADE DO CONTRATO
Data do Acordão: 10/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DO TRABALHO – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 14º/1 DA LAT DE 2009; 120º DO CT/2009; 25º DO DL 72/2008, DE 16/04.
Sumário: I – A descaracterização do acidente de trabalho com fundamento em actuação negligente do sinistrado supõe que se verifique uma situação de negligência grosseira do sinistrado e, para lá disso, que o acidente provenha exclusivamente dessa negligência.

II – O objecto do contrato de seguro e o correspondente âmbito de cobertura deverão ser determinados pela natureza da actividade económica a que o tomador do seguro se dedica e pretendeu ver coberta, devendo ter-se em atenção que aquela actividade económica abrange, ou pode abranger, uma multiplicidade de tarefas que, ainda que não constituindo o fulcro essencial da mesma, lhe são, no entanto, acessórias, com ela estando relacionadas ou conexionadas, estando todas elas, por isso, abrangidas pelo âmbito de cobertura do seguro.

III – O contrato de seguro em cuja apólice se indica como actividade segurada a da construção e reparação de edifícios cobre um sinistro ocorrido no manuseamento de rolos de madeira destinada à cofragem.

IV – O incumprimento doloso pelo tomador do seguro do dever de declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pela seguradora, gera mera anulabilidade do contrato de seguro, mesmo naquelas situações em que o sinistro ocorreu antes de a seguradora ter tido conhecimento daquele incumprimento doloso, razão pela qual tal anulabilidade deve ser arguida por ação ou por exceção, não podendo o tribunal conhecer dela oficiosamente.

V – O contrato de seguro de acidentes de trabalho é obrigatório e reveste a natureza de contrato a favor de terceiro, razão pela qual as execeções que o segurador tenha contra o segurado são do domínio exclusivo da relação entre eles, só sendo relevantes nas relações imediatas ou internas entre ambos, não podendo ser opostas ao sinistrado enquanto terceiro lesado pelo acidente.

Decisão Texto Integral:









Acordam na 6.ª secção social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

O autor propôs contra as rés a presente acção especial emergente de acidente de trabalho, tendo deduzido os seguintes pedidos:

A ré seguradora contestou, pugnando pela improcedência da acção.

Alegou, em resumo, que o âmbito do contrato de seguro celebrado entre ela e a entidade empregadora do sinistrado não abrangia o sinistro descrito na petição, por desconformidade entre a actividade segura declarada e aquela que era efectivamente exercida pelo autor no momento do sinistro; por outro lado, o acidente deveria considerar-se descaracterizado por ter decorrido de negligência grosseira do sinistrado.

A entidade empregadora também contestou, sustentando, em resumo, que estava integralmente transferida para a seguradora a responsabilidade emergente do acidente descrito na petição, razão pela qual a acção deveria improceder em relação a si.
O interveniente principal deduziu pedido de reembolso de prestações da Segurança Social contra as rés, pedindo a condenação destas no pagamento da quantia de 3.060,80 e juros de mora desde a data da citação e até integral pagamento, quantia essa que avançou ao sinistrado a título de subsídio de doença.
Com os mesmos fundamentos aduzidos na contestação da petição inicial, a ré seguradora contestou o pedido do ISS.

A acção seguiu os seus regulares termos, acabando por ser proferida sentença de cujo dispositivo consta o seguinte:

Condeno a seguradora, C... SA, no pagamento, ao sinistrado autor, A... , das seguintes quantias:
a) € 1.100,32, correspondente a indemnização por incapacidade temporária;
b) € 14.481,50, correspondente ao capital de remição (depois de descontado dos valores já adiantados pela Segurança Social) de uma pensão anual e vitalícia de € 1.181,22;
c) € 10,00, correspondente a despesas de transportes, para o tribunal e para o gabinete médico-legal.
d) Juros, à taxa legal, sobre os montantes referidos anteriormente, desde o respectivo vencimento no tangente às alíneas a) e b) e desde a citação nos restantes, e até integral pagamento.
Mais condeno a mesma seguradora, C... SA, no pagamento, ao Instituto de Segurança Social IP, da quantia de € 3.060,80, acrescida de juros, desde a notificação do pedido e até integral pagamento.
Absolvo a empregadora, B... Lda, do pedido.

Custas pela seguradora; valor da acção – € 18.652,62.”.

Não se conformando com o assim decidido, apelou a seguradora, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

[…]

A entidade empregadora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

*
II – Questões a resolver

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 – NCPC – aplicável “ex-vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho – CPT), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

1ª) se a sentença padece da nulidade que lhe é assacada pela recorrente;

2ª) se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada, devendo ser alterada;

3ª) se o acidente deve ter-se por descaracterizado pela circunstância de ter emergido exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
4ª) se a ré seguradora é responsável pelas prestações infortunísticas devidas ao sinistrado por causa do acidente a que os autos se reportam.

*
III – Fundamentação

A) De facto

Factos provados

O tribunal recorrido descreveu como provados os factos seguintes:
[…]

*
B) De Direito

Primeira questão: se a sentença padece da nulidade que lhe é assacada pela recorrente.

No caso em apreço, no próprio corpo das alegações da apelação (capítulo III) e nas correspondentes conclusões (conclusões 1ª e 2ª), a apelante arguiu a nulidade da sentença por alegada omissão de pronúncia.
Independentemente de se saber se a sentença enferma do vício de nulidade que lhe é assacado pela recorrente, o certo é que a arguição desse vício não teve lugar no requerimento de interposição do recurso, expressa e separadamente, tal como impõe o art. 77º/1 CPT.
Como se sabe, esse art. 77º/1 encontra a sua razão de ser na circunstância das nulidades serem, em primeira linha, dirigidas à apreciação pelo juiz do tribunal da 1ª instância e para que o possa fazer; radica no “…princípio da economia e celeridade processuais para permitir ao tribunal que proferiu a decisão a possibilidade de suprir a arguida nulidade.” – neste sentido, por exemplo, acórdão da Relação do Porto de 20-2-2006, proferido no processo 0515705, bem como demais jurisprudência aí invocada.
O acórdão do Tribunal Constitucional n° 304/2005, publicado no DR, II Série, de 05/08/2005, deixou consignado que em processo do trabalho, o requerimento de interposição de recurso e a motivação deste, no caso de arguição de nulidades da sentença, deve ter duas partes: a primeira dirigida ao juiz da 1ª instância, contendo essa arguição; a segunda, contendo a motivação do recurso, dirigida aos juízes do tribunal ad quem.
Como assim, uma vez que a recorrente não respeitou, relativamente à arguição da nulidade da sentença, o procedimento legalmente estabelecido para o efeito em processo do trabalho, não deve conhecer-se de tal nulidade, o que se decide.

*

Segunda questão: se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada, devendo ser alterada.

[…]
*

Terceira questão: se o acidente deve ter-se por descaracterizado pela circunstância de ter emergido exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.

Sustenta a apelante que o acidente de trabalho em apreço se deve ter por descaracterizado pela circunstância do mesmo ter resultado de negligência grosseira do sinistrado.
Nos termos do art. 14º/1 da LAT/09:
O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
(…)
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;…”.
 Comece por dizer-se que os factos integradores de causas de descaracterização de um acidente de trabalho são impeditivos do direito à reparação infortunística invocado pelo autor de uma acção emergente de um acidente dessa natureza.
Ora, como escreveu Antunes Varela (RLJ, nº 3718, ano 117º, pp. 30 a 32), “(...) a repartição do ónus da prova entre as partes tem de processar-se de harmonia com a previsão (geral e abstracta) traçada na norma jurídica que serve de fundamento à pretensão de cada uma delas (teoria da norma).
Ao autor cabe a prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável, servem de pressuposto ao efeito jurídico por ele pretendido.
(...) Ao réu incumbirá por sua vez, a prova dos factos correspondentes à previsão (abstracta) da norma substantiva em que se baseia a causa impeditiva, modificativa ou extintiva do efeito jurídico pretendido pelo autor.”.
Assim sendo, impende sobre os responsáveis pelas prestações devidas por acidente de trabalho, no caso a recorrente, o ónus de alegação e prova dos factos integradores das causas de descaracterização dos acidentes de trabalho – art. 342º/2 do CC; Menezes Leitão, Direito do Trabalho, 2ª edição, 2010, p. 444; acórdãos do STJ de 9/6/10 e 24/2/10, proferidos no âmbito dos processos 579/09.l YFLSB e 747/04.2TTCBR, de 31/10/07 (CJ do STJ, Ano XV, T. III), de 14/3/00 (CJ do STJ, Ano VIII, T. I, p. 283) e de 7/10/98 (CJ do STJ, Ano VI, T. III, p. 255); acórdãos Relação de Coimbra de 25/03/2004 e 17/05/2007, proferidos no âmbito dos processos 3654/03 e 105/04.9TTAVR.C1.
Por referência ao caso em apreço, importa esclarecer, antes de mais, que os factos a considerar são, apenas, os que o tribunal recorrido deu como provados nestes autos.
De nada relevam, pois, os factos que a recorrente pretendia ver dados como provados no recurso da decisão sobre a matéria de facto que interpôs e que foi totalmente improcedente.
Assim, temos apenas que:

5
Tal acidente ocorreu quando, nas referidas circunstâncias temporais, o sinistrado autor, num pinhal pertencente a familiares do sócio gerente da sua empregadora, e ao serviço da mesma ré, B... , manuseava um rolo de pinheiro já cortado que se destinava a servir de madeira para cofragem.
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Por via do seu peso, o rolo escorregou das mãos do autor, e atingiu-o, entalando-lhe a mão esquerda, o que lhe provocou lesões que deixaram, como sequela, a amputação dos segundo, terceiro, quarto e quinto dedos da mão esquerda.”.
Em face do acabado de referir importa salientar, antes de mais, que dificilmente poderá sustentar-se que o sinistrado assumia por sua própria iniciativa e decisão um comportamento violador do dever objectivo de cuidado a que estivesse obrigado, sem o que poderá fundadamente subsumir-se o seu comportamento ao estatuído no art. 14º/1/b da LAT/09.
Na verdade, a negligência estrutura-se, sempre, em torno de um elemento normativo nuclear que consiste na violação de um dever objectivo de cuidado.
Esta pode consistir:
- na violação de um dever de cuidado interno;
- na violação de um dever de cuidado externo.
O dever de cuidado interno traduz - se no dever de representar/prever o perigo para o bem jurídico tutelado pela norma jurídica e de valorar esse perigo.
Se o agente não representa a possibilidade de realização do facto típico, há negligência inconsciente. Se, pelo contrário, representou aquela possibilidade mas não a valora correctamente, confiando em que o resultado se não produzirá, há negligência consciente - sobre este tema, para maiores desenvolvimentos, v.g., Mir Puig, Derecho Penal, Parte General, PPU, pp. 294 e 295, Jeschek, Tratado de Derecho Penal, 1993, pp. 525/526, e A. Jorge Barreiro, La Imprudencia Professional, in La Imprudencia, Consejo General Del Poder Judicial, p. 240.
O dever de cuidado externo consiste no dever de adoptar um comportamento externo correcto, com vista a evitar a produção do resultado típico, desdobrando - se o mesmo no dever de omitir acções perigosas, no dever de actuar prudentemente em situações perigosas e no dever de preparação e de informação prévia.
A este respeito cabe, ainda, esclarecer que o dever de cuidado externo tem diversos fundamentos jurídicos.
Aliás, um dos problemas essenciais que perpassa toda a dogmática do ilícito negligente é o de identificar as normas de cuidado cuja violação consiste num delito negligente.
E, a propósito, tem indicado a doutrina que elas podem ter a sua origem não apenas nas leis e regulamentos, mas também nas «regras gerais de cuidado» ou da «experiência comum», como sejam as regras técnicas que devem ser respeitadas em determinada actividade, normas de segurança, de conduta profissional, etc. (sobre isto pode ver-se, Jeschek, Tratado, p. 528, A. Jorge Barreiro, La Imprudencia Professional, in La Imprudencia, Consejo General Del Poder Judicial, p. 240, F. Morales Prats in Comentarios ao Nuevo Codigo Penal, Aranzadi, 1996, pp. 96-97 - obra colectiva dirigida e coordenada por Quintero Olivares e Valle Muniz).
No entanto, para poder afirmar-se a culpa negligente do agente pela produção de um determinado resultado ilícito não basta demonstrar-se a objectiva violação do dever de cuidado; para lá disso é preciso provar-se que a produção do resultado ilícito resultou dessa violação e que, não fora esta, aquele se não teria produzido.
Ora, no caso em apreço, não se sabendo, sequer, o concreto circunstancialismo em que o sinistrado manuseava o rolo que o atingiu, nem sequer pode sustentar-se que o mesmo violou, de forma subjectivamente censurável, uma dada norma de cuidado.
Mas mesmo admitindo que os factos provados permitissem a formulação de um juízo de censura negligente ao sinistrado, menos certo não é que não poderia estar em causa um juízo de censura referente a um comportamento que devesse considerar-se grosseiramente negligente.
Com efeito, como claramente flui do seu próprio texto, para que um acidente possa considerar-se descaracterizado nos termos da citada alínea b) do art. 14º/1 da LAT/09, é necessário que se verifique negligência grosseira do sinistrado e, para lá disso, que o acidente provenha exclusivamente dessa negligência.
Ora, tendo presente a distinção clássica entre culpa lata, leve e levíssima (Jeschek, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Granada, 1993, p. 517), a negligência grosseira corresponde à culpa temerária referida por Cavaleiro de Ferreira (Lições de Direito Penal, Parte Geral I, 4ª Edição, Lisboa, 1992, p. 310), caracterizada pelo facto do agente ter agido sem qualquer cuidado, sem qualquer espécie de diligência, não cumprindo as mais elementares regras de precaução (cfr. acórdão do Tribunal de Círculo de Matosinhos de 10/7/01 disponível www.verbojuridico.net), sendo a culpa agravada pelo elevado teor de imprevisão ou de falta de cuidados elementares (acórdão da Relação de Coimbra de 29/3/00, disponível em www.trc.pt).
A doutrina e a jurisprudência têm vindo a associar aquele assinalado comportamento a uma conduta inútil, indesculpável, reprovada pelo mais elementar sentido de prudência[1] não sendo suficiente a simples negligência, consubstanciada em simples imprudência, imprevidência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras (Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª edição, p. 63, Romano Martinez, Direito do Trabalho, Coimbra, 2002, p. 782, Cruz de Carvalho, Acidentes de Trabalho, 1988, p. 42, Maria Gonçalves Lemos, Descaracterização dos Acidentes de Trabalho, UNL, 2011, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídicas Empresariais, sob a orientação do Professor Doutor José João Abrantes, pp. 76 a 80, acórdãos do STJ de 7/11/01, proferido no âmbito do processo nº 07S3419, de 24/2/10, proferido no âmbito do processo 747/04.2TTCBR.C1.S1, de 10/11/10, proferido no âmbito do processo nº 3411/06.4TTLSB.L1.S1).
Visto quanto vem de referir-se, somos de entendimento que nunca os factos provados suportariam a conclusão de que uma eventual negligência que pretendesse assacar-se ao sinistrado devesse qualificar-se como grosseira.
Finalmente, mesmo a considerar-se que o comportamento do sinistrado que está descrito nos factos provados autos era passível de um juízo de censura correspondente à dita negligência grosseira, ainda assim não poderia concluir-se pela descaracterização do acidente em apreço.
Com efeito, não basta a negligência grosseira do sinistrado para poder concluir-se pela descaracterização do acidente de trabalho, sendo ainda necessário que a mesma tenha sido causa exclusiva do acidente.
É necessário provar-se, assim, um nexo de causalidade exclusiva entre o acidente e a negligência grosseira, ou seja, que não fora aquela negligência grosseira e o acidente não teria ocorrido.
Ora, reportando-nos à situação em apreço, excluído não está que para a eclosão do acidente em apreço tenham concorrido outras circunstâncias para lá do concreto comportamento do autor por ocasião do acidente: por exemplo, instruções da entidade empregadora no sentido do sinistro actuar pela concreta forma como actuava, ou comportamento negligente de outrem entre os que se encontravam envolvidos na tarefa em execução.
Como assim, os factos provados não permitem estabelecer um nexo de causalidade exclusiva entre um dado comportamento do sinistrado que se pretenda considerar grosseiramente negligente e a ocorrência do acidente.
O recurso da apelante deve, pois, improceder, na parte em que nele se pugna pela descaracterização do acidente de trabalho com fundamento em negligência grosseira do sinistrado.

*
Quarta questão: se a ré seguradora é responsável pelas prestações infortunísticas devidas ao sinistrado por causa do acidente a que os autos se reportam.


A entidade empregadora do sinistrado tinha transferido para a ré seguradora a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho por contrato de seguro titulado pela apólice nº 69/79062 – ponto 3º dos factos provados.
O sinistrado tinha a categoria profissional de servente (ponto 10º dos factos provados), desenvolvendo as suas funções profissionais, fundamentalmente, em obras que eram adjudicadas à sua entidade empregadora (ponto 11º dos factos provados); no momento do acidente, num pinhal, o sinistrado manuseava um rolo de pinheiro já cortado que se destinava a servir de madeira para cofragem (ponto 5º dos factos provados).
Ora, tendo em conta que era a de construção e reparação de edifícios inferiores a 5 andares a actividade declarada pela entidade empregadora como sendo aquela a que se dedicava e por reporte à qual pretendia transferir a responsabilidade por acidentes de trabalho, considera a recorrente que a actividade no desempenho da qual o sinistrado se acidentou não estava abrangida pelo âmbito de cobertura proporcionado pelo contrato de seguro em que outorgaram as rés, razão pela qual se deveria considerar que a recorrente não era responsável pelas prestações devidas por causa do acidente a que os autos se reportam.
Não acompanhamos a recorrente.
Comece por referir-se que a entidade empregadora do sinistrado e a apelante outorgaram num contrato de seguro de acidentes de trabalho na modalidade de seguro a prémio fixo – cfr. apólice junta com o fax da apelante de 29/2/2016 e que constitui a referência Citius (…) e cláusula 5º/a da Portaria 256/2011, de 5/7, que aprovou a parte uniforme das condições gerais da apólice de seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, bem como as respectivas condições especiais uniformes.
Por outro lado, nos termos da cláusula 3º/1 da dita Apólice Uniforme “O segurador, de acordo com a legislação aplicável e nos termos desta apólice, garante a responsabilidade do tomador do seguro pelos encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho em relação às pessoas seguras identificadas na apólice, ao serviço da unidade produtiva também ali identificada, independentemente da área em que exerçam a sua actividade.”.
Assim sendo, o objecto do contrato e o correspondente âmbito de cobertura deverão ser determinados pela natureza da actividade económica a que o tomador do seguro se dedica e pretendeu ver coberta, sendo em função dela que são estipulados o prémio e as restantes condições contratuais (acórdão do STJ de 13/3/02, CJ do STJ, tomo I, p. 274).
Como se refere no Acórdão do STJ de 30/6/2004, disponível em www.dgsi.pt, “…a expressão independentemente da área em que exerçam a sua actividade, ínsita no mencionado art. 2º da apólice deve ser entendida como significando que a cobertura opera em relação às pessoas seguras identificadas na apólice, independentemente da área funcional em que os trabalhadores exercem a sua actividade ao serviço da unidade produtiva. Isto é, todos os trabalhadores incluídos (…) encontram-se cobertos pelo seguro (…), sem embargo de poderem desempenhar tarefas profissionais distintas. O ponto é que todas essas tarefas se enquadrem na actividade económica que constitui objecto do contrato de seguro.”.
Tal enquadramento, e consequente inclusão no âmbito da cobertura conferida pelo seguro, deverá, contudo, ter em atenção que a actividade económica abrange, ou pode abranger, uma multiplicidade de tarefas que, ainda que não constituindo o fulcro essencial dessa actividade, lhe são, no entanto, acessórias, com ela estando relacionadas ou conexionadas – cfr., a este respeito, acórdão da Relação do Porto de 12/4/2010 disponível em www.dgsi.pt, acórdãos deste Tribunal da Relação de Coimbra de 28/4/2017, proferido na apelação 27/14.5TTCTB.C1, e de 10/3/2017, proferido na apelação 818/14.7T8CTB.C1, dos quais não se conhece publicação.
Assim, o âmbito da actividade coberta pelo seguro há-de encontrar-se quer pela positiva, abrangendo todos os trabalhos (próprios e acessórios, conexos ou relacionados) dessa área económica, quer pela negativa, ou seja, através das exclusões nos termos que expressamente hajam sido outorgadas.
Ora, vistos os factos provados e analisada a apólice de seguro neles identificada, logo se verifica que deles resulta que a actividade a que se dedicava a empregadora do sinistrado e que se pretendia ver segurada era a de construção e reparação de edifícios inferiores a 5 andares, sendo no âmbito dessa actividade que o sinistrado operava como servente.
Assim, em condições de normalidade e em via principal, a actividade de manuseamento de rolos de madeira em pinhais que o sinistrado desenvolvia no momento do sinistro poderia não estar integrada no fulcro essencial da actividade a que a entidade empregadora se dedicava e que pretendia ver coberta pelo seguro de acidentes de trabalho.
Importa reter, no entanto, que ao contrário do sugerido pela apelante nas suas alegações o sinistro aqui em questão não ocorreu no âmbito de uma actividade de abate de árvores e respectivas operações complementares, a que corresponde o CAE 2200.
O acidente em apreço ocorreu no âmbito do manuseamento de um rolo de madeira destinado a ser utilizado em cofragem (ponto 5º dos factos provados).
Ora, é sabido que a cofragem é uma estrutura que pode  ser em madeira e é utilizada no âmbito da actividade de construção civil, designadamente para suster e moldar o betão até à sua completa solidificação
Por isso mesmo, excluído não está que quem se dedique à actividade principal de construção civil desempenhe ela própria, como acessória daquela e com ela conexionada, a actividade de manuseamento dos rolos de madeira necessários para ser obtida aquela que é preciso utilizar em cofragens.
Por outro lado, em termos de racionalidade económica que cada vez mais se exige das organizações empresariais e sob pena do insucesso destas, é exigível aos trabalhadores uma certa polivalência funcional e o desempenho de uma multiplicidade de tarefas complementares ou acessórias da actividade principal a que a entidade empregadora se dedica e para as quais tenham competências próprias, até porque a entidade empregadora pode, no exercício do jus variandi, impor ao trabalhador, transitoriamente, o desempenho de funções diversas daquelas para as quais o trabalhador foi contratado, indiciando os factos provados (ponto 5º dos factos assim descritos) que tal ocorria na situação que está em apreço – cfr. art. 120º do CT/09.
Assim, enquanto acessória e complementar da actividade principal de construção civil a que a entidade empregadora se dedicava, deve considerar-se coberta pelo seguro celebrado entre ela e a seguradora a actividade de manuseamento de rolos de madeira destinados às cofragens que são necessárias para o desempenho daquela actividade principal.
Acresce que o concreto risco de cuja concretização no acidente em apreço a recorrente pretende desonerar-se, considerando-o excluído do âmbito de cobertura do contrato de seguro de acidentes de trabalho em que outorgou, reporta-se ao risco de entalamentos/esmagamentos por ocasião do manuseamento de rolos de madeira.
Além disso, tanto quanto resulta da posição sustentada pela recorrente, a mesma consideraria que o acidente a que os autos se reportam e as suas consequências estariam abrangidos pela garantia prestada pelo contrato aqui em causa se pudesse concluir-se, face aos factos provados, no sentido de que tal acidente representou a concretização de um determinado risco inerente ao exercício das funções de servente.
Ora, não resultando dos factos provados quais as concretas funções acordadas entre a empregadora e o sinistrado como sendo as que este deveria desempenhar no desempenho da sua categoria de servente, é perfeitamente admissível que nesse desempenho funcional o sinistrado tivesse que manusear rolos de madeira destinados a cofragens utilizadas pela empregadora na sua actividade de construção civil.
Nesse enquadramento, aquela actividade de manuseamento de rolos de madeira poderia fazer parte integrante do conteúdo funcional típico de um servente ou, pelo menos, ser dele complementar.
Assim sendo, afigura-se-nos que o contrato de seguro em análise não pode ser interpretado, como a recorrente o faz, em moldes de serem excluídos do seu âmbito de cobertura os riscos de entalamento/esmagamento no decurso de manuseamento de rolos de madeira.
Por outro lado, como se escreveu no acórdão deste Tribunal da Relação proferido no âmbito do processo nº 97/07.2TTCBR.C1, “Nos negócios jurídicos em geral – como também, por norma, nas cláusulas de um contrato de seguro – a regra interpretativa é a de que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante – art. 236.º do Código Civil. Só assim não acontecerá quando seja irrazoável imputar ao declarante o sentido declarativo assim apurado, ou quando o declaratário conhecer a vontade real do declarante. Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações (art. 237.º do mesmo Código).
Mas nos negócios formais – como é o caso do contrato de seguro – o sentido hipotético da declaração, tem de ter um mínimo de correspondência no texto que a corporiza (art. 238.º n.º 1 do CC).
Todavia, nos contratos de adesão como também é o caso, de acordo com o disposto nos arts. 10.º e 11.º do D.L. n.º 446/85, de 25/10, as cláusulas ambíguas têm o sentido que lhes conferiria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição do aderente real e, em caso de dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.”.
Assim sendo, consideramos que um declaratário normal e um contratante indeterminado normal que subscrevesse o contrato de seguro a que os autos se reportam consideraria que a actividade de manuseamento de rolos de madeira destinados a serem utilizados nas cofragens da construção civil e os inerentes riscos de sinistros por esmagamento/entalamento ocorridos no decurso desse manuseamento estariam abrangidos, pelo menos enquanto actividade acessória, na actividade de construção e reparação de edifícios a que a empregadora do sinistrado se dedicava em via principal e que pretendeu ver segurada.
De resto, é esse o sentido mais favorável à empregadora/aderente, assim como é o mais consentâneo com os ditames da boa-fé a que deve sujeitar-se a interpretação do contrato.
Como assim, deve considerar-se abrangido pela garantia proporcionada pelo contrato aqui em apreço o risco esmagamento/entalamento que acabou por concretizar-se no acidente que deu origem a estes autos.
Neste enquadramento, há que aplicar o regime regra decorrente da cláusula 3ª/1 dita Apólice Uniforme, de onde se extraia que a ré seguradora garantia a responsabilidade da ré empregadora pelos encargos obrigatórios de acidentes de trabalho em relação às pessoas seguras identificadas na apólice e que se mostrassem ao serviço da unidade produtiva da ré empregadora, neles se incluindo o aqui autor e sem restrição do âmbito de protecção conferida pelo contrato que dela excluísse a actividade de manuseamento de rolos de madeira.
Noutro plano, cumpre também considerar que o incumprimento pelo tomador do seguro do dever de declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pela seguradora, por via de uma desconformidade entre o declarado pelo tomador a respeito da actividade desenvolvida pelos seus trabalhadores a segurar e aquela que verdadeiramente era desempenhada pelos mesmos, deveria ser enquadrada, mesmo nos casos mais graves de incumprimento doloso, nos termos previstos no art. 25º do DL 72/2008, de 16/4, onde está prevista uma situação de mera anulabilidade do contrato de seguro, mesmo naquelas situações, como a dos autos e prevista no nº 3 daquela norma, em que o sinistro ocorreu antes de a seguradora ter tido conhecimento daquele incumprimento doloso – no sentido de que nas situações previstas nesse nº 3 está prevista uma situação de mera anulabilidade, a ser arguida por via de acção ou de excepção pela própria seguradora, acórdão da Relação de Guimarães de 25/2/2016, proferido no processo 824/14.1TBBGMR.G1, e acórdãos desta Relação de Coimbra de 11/2/2014, proferido no processo 1265/09.8TBFIG.C1, e de 3/12/2013, proferido no processo 372/11.1TBACB.C1.
Ora, estando em causa um vício de mera anulabilidade e não tendo a mesma sido judicialmente arguida, tudo se passa como se tal vício se não se registasse, pois que o tribunal não pode dela conhecer oficiosamente.
Consequentemente, enquanto trabalhador identificado na apólice de seguro, o sinistrado estava abrangido pelo âmbito de protecção emergente do contrato de seguro celebrado entre a apelante e a empregadora do sinistrado, mesmo que existisse discrepância relevante entre o declarado pela empregadora quanto às actividades que pretendiam ver-se abrangidas pelo seguro e aquelas que realmente eram exercidas pelos trabalhadores da empregadora.
Finalmente, é preciso ter em devida conta que o contrato de seguro de acidentes de trabalho é obrigatório e reveste a natureza de contrato a favor de terceiro.
Como tal, o contrato de seguro está sujeito à disciplina do art. 449º do CC, nos termos do qual “São oponíves a terceiro, por parte do promitente, todos os meios de defesa derivados do contrato, mas não aqueles que advenham de uma relação entre promitente e promissário.” - neste sentido, acórdãos do STJ de 30/3/89 (BMJ 385, p. 563), da Relação de Coimbra de 12/2/98 (CJ, tomo I, p. 64), da Relação de Évora, de 9/4/03 (CJ, tomo II, p. 264).
Dada a sua fisionomia de contrato a favor de terceiro, ao celebrar o contrato de seguro de responsabilidade civil o segurador obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida ao segurado, ficando aquele com o direito de demandar directamente a seguradora.
As excepções que o segurador tenha contra o segurado são do domínio exclusivo da relação entre eles, só sendo relevantes nas relações imediatas ou internas entre ambos.
Na situação em análise, se porventura se verificassem excepções determinativas da anulabilidade do contrato de seguro ou da exclusão do âmbito de protecção do mesmo da actividade desempenhada pelo sinistrado no momento do acidente, elas não podiam ser opostas ao sinistrado enquanto terceiro lesado pelo acidente – neste sentido, acórdãos do STJ de 8/6/06, proferido no âmbito do processo 06A1435, bem como demais decisões do mesmo STJ identificadas nesse acórdão, desta Relação de 23/11/2004, proferido no âmbito da apelação 2568/04, e de 26/5/2011, proferido no âmbito da apelação 128/09.1, da Relação de Évora de 26/11/09, proferido no âmbito do processo 572/03.8PAVRS.
Consequentemente, a ré seguradora é responsável pelas prestações infortunísticas devidas ao sinistrado em consequência do acidente a que os autos se reportam.

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IV) – Decisão

Acordam os juízes que compõem esta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Coimbra, 27/10/2017.
 (Jorge Manuel Loureiro)

 (Paula Maria Roberto)

 (Ramalho Pinto)

Sumário:


A descaracterização do acidente de trabalho com fundamento em actuação negligente do sinistrado supõe que se verifique uma situação de negligência grosseira do sinistrado e, para lá disso, que o acidente provenha exclusivamente dessa negligência.

O objecto do contrato de seguro e o correspondente âmbito de cobertura deverão ser determinados pela natureza da actividade económica a que o tomador do seguro se dedica e pretendeu ver coberta, devendo ter-se em atenção que aquela actividade económica abrange, ou pode abranger, uma multiplicidade de tarefas que, ainda que não constituindo o fulcro essencial da mesma, lhe são, no entanto, acessórias, com ela estando relacionadas ou conexionadas, estando todas elas, por isso, abrangidas pelo âmbito de cobertura do seguro.

O contrato de seguro em cuja apólice se indica como actividade segurada a da construção e reparação de edifícios cobre um sinistro ocorrido no manuseamento de rolos de madeira destinada à cofragem.

O incumprimento doloso pelo tomador do seguro do dever de declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo seguradora, gera mera anulabilidade do contrato de seguro, mesmo naquelas situações em que o sinistro ocorreu antes de a seguradora ter tido conhecimento daquele incumprimento doloso, razão pela qual tal anulabilidade deve ser arguida por acção ou por excepção, não podendo o tribunal conhecer dela oficiosamente.

O contrato de seguro de acidentes de trabalho é obrigatório e reveste a natureza de contrato a favor de terceiro, razão pela qual as excepções que o segurador tenha contra o segurado são do domínio exclusivo da relação entre eles, só sendo relevantes nas relações imediatas ou internas entre ambos, não podendo ser opostas ao sinistrado enquanto terceiro lesado pelo acidente.


 (Jorge Manuel Loureiro)

























[1] Devem ser ponderados neste âmbito e para efeitos de ser fundamentado esse juízo de negligência grosseira factores como a especial relevância do bem jurídico lesado ou posto em perigo, o forte risco e probabilidade de “produção do resultado”, o especial dever de cuidado, considerando a profissão do sinistrado e a posição que ocupa dentro da empresa - Maria Gonçalves Lemos, Descaracterização dos Acidentes de Trabalho, UNL, 2011, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídicas Empresariais, sob a orientação do Professor Doutor José João Abrantes, p. 78.