Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1019/09.1TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: PODERES DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 11/30/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: N.º 1 DO ARTIGO 712.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: A Relação não pode deduzir dos factos provados um outro que a 1.ª instância julgou não provado, visto que a decisão da matéria de facto só pode ser alterada nos termos previstos no n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I
A... e B... instauraram, na comarca de Viseu, a presente acção declarativa, com processo sumário, contra C... L.da e D..., pedindo que seja declarada a resolução do contrato de arrendamento celebrado com a ré e a condenação dos réus a despejar o imóvel arrendado, entregando-o aos autores devoluto de pessoas e bens.
Alegaram, em síntese, que são proprietários de um prédio urbano destinado a habitação e comércio, sito na Rua X...n.º 6, freguesia de ..., concelho de ..., e que por escritura pública, outorgada em 21 de Maio de 1975, a ré tomou de arrendamento o rés-do-chão do referido prédio, pelo período de um ano e com destino à exploração da indústria de fotografia e ao comércio de artigos para fotografia, papelaria e tabacaria e respectivos derivados, e que a renda, após as sucessivas actualizações, é actualmente de 220,96 €.
O estabelecimento constituído por um estúdio fotográfico instalado na fracção arrendada era explorado pela ré, sob a orientação do seu sócio gerente E..., o qual, no início de 2008, sofreu de doença que o incapacitou para qualquer trabalho. Em princípios de Novembro de 2008 os autores tiveram conhecimento de que o arrendamento e o estabelecimento foram transmitidos para o réu, sendo este quem, desde esse então, passou a explorar aquele, para aí transferindo a sua actividade, encerrando outros estabelecimentos que possuía, designadamente na loja 7 da Central de H..., sita na Av. Y... em ... designado “ I...”.
Mais alegam que nunca foram informados da transmissão do arrendamento, desconhecendo em que termos foi realizada, pelo que, a mesma é inválida ou ineficaz perante o senhorio, por isso, nos termos dos artigos 1038.º f) e 1083.º n.º 2 e) do Código Civil, existe fundamento para a resolução do contrato de arrendamento supra referido.
Os réus contestaram impugnando a alegada transmissão do arrendamento para o réu, dizendo que este presta serviços para a ré.
Foi proferido despacho saneador e fixaram-se os factos assentes e a base instrutória.
Procedeu-se a julgamento.
Foi proferida sentença em que se decidiu:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos julgo improcedente a acção instaurada por A... e B... contra C... L.da e D... e, em consequência, absolvo os Réus do pedido.
Inconformados com tal decisão, os autores dela interpuseram recurso, que foi admitido como de apelação e com efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
A) O Tribunal “a quo” foi chamado a apreciar e decidir a existência do direito à resolução do contrato de arrendamento celebrado entre recorrentes e 1.ª recorrida, designadamente pela verificação da transmissão do estabelecimento instalado no arrendado sem consentimento ou conhecimento do senhorio.
B) o Tribunal “a quo” conclui que a matéria de facto provada não é suficiente para concluir pela verificação de tal direito, incidindo sobre esta conclusão a discordância dos recorrentes.
C) efectivamente, considerando a factualidade que se deu por assente, parece-nos, ser de concluir que ocorreu uma transmissão do estabelecimento instalado no arrendado pois;
D) a 1.ª recorrida deixou de explorar o estabelecimento e tal exploração passou a ser efectuada pelo 2.º recorrido.
E) ou seja, o gozo do bem arrendado passou a ser do 2.º recorrido que por si, e através de um seu funcionário, abre e fecha as portas do estabelecimento e efectua as vendas dos serviços relativos ao comércio que nele se desenvolve.
F) acontecimento que ocorreu em circunstâncias que reforçam a convicção sobre tal transmissão, designadamente que a 1.ª recorrida, em resultado de doença do seu sócio gerente, havia expresso a vontade de transmitir o arrendamento por contrato de trespasse.
G) e o 2.º recorrido chegou a negociar esse trespasse que só não se concretizou em virtude de algumas exigências impostas pelos recorrentes, conforme vem realçado na resposta à base instrutória quanto à testemunha J... .
H) sendo certo que, simultaneamente, a 1.ª recorrida fez cessar a única relação laboral que mantinha e ficou sem a trabalhadora que desenvolvia actividade no estabelecimento.
I) e logo que cessou tal relação laboral passou a desenvolver actividade, no estabelecimento instalado no arrendado, uma trabalhadora do 2.º recorrido.
J) bem como, foram instalados equipamentos do 2.º recorrido em tal estabelecimento para o exercício da actividade comercial.
K) não merecendo grande relevância o expediente usado pelos recorridos e traduzido na invocação de um denominado “contrato de prestação de serviços” pois, para além do conhecimento exacto quanto aos elementos deste contrato e, consequentemente, a sua qualificação, sempre constituiria um aberrante expediente para ultrapassar as condicionantes legais relativas à transmissão do arrendamento ou do estabelecimento nele instalado.
L) sendo certo que a enumeração constante da alínea f) do art.º 1038.º Cód. Civil não é taxativa e, portanto, deverá considerar-se incluída nesta disposição qualquer cessão do gozo do locado, designadamente a invocada pelos recorridos.
M) Assim, mesmo sem os factos que a Meritíssima Juiz “a quo” considerou como não provados subsiste uma realidade que, inequivocamente, configura uma transmissão do gozo do arrendado que não foi consentida nem conhecida pelos recorrentes.
N) e concluindo-se nesse sentido, ou seja, que o arrendatário proporciona a terceiro o gozo do prédio arrendado sem consentimento ou, pelo menos, sem dar conhecimento ao senhorio, é quanto baste para que este tenha o direito de resolver o contrato de arrendamento, entre outros Ac. Rel. De Coimbra de 14/12/99 no proc. 2567/99
O) assim, com todo o respeito, parece-nos que, ao decidir pela improcedência da acção, a Meritíssima Juiz “a quo” não valorou suficientemente os factos assentes e fez uma interpretação do estabelecido na alínea f) do art.º 1038.º e alínea e) do n.º 2 do art.º 1083.º do Código Civil que carece ser rectificada.
Termina pedindo que seja concedido provimento ao presente recurso e revogada a decisão recorrida, julgando-se integralmente procedente o pedido formulado pelos recorrentes.
Os réus contra-alegaram, pedindo que se julgue improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Face às conclusões com que findam as alegação de recurso, as questões a decidir consistem em saber se, considerando a factualidade que se deu por assente, se deve concluir que ocorreu uma transmissão do estabelecimento instalado no arrendado e, em caso afirmativo, se há fundamento para a resolução do contrato de arrendamento.
II
1.º
Estão provados os seguintes factos:
1. Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de ... a favor dos Autores, através da Ap. ...de 2007/01/08, a aquisição, por compra, do prédio urbano, sito na Rua X..., n.º 6, da freguesia de ..., composto de casa de habitação, com cave destinada a garagem, rés-do-chão, 1º, 2º, 3º andares e sótão, inscrito na matriz urbana sob o n.º ..., e descrito na referida Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../2007 ....
2. Por escritura pública outorgada em 21/05/1975, no 2.º Cartório Notarial de ..., L... , na qualidade de 1.º Outorgante, declarou dar de arrendamento à 1ª Ré, e esta, por sua vez, na qualidade de 2.ª Outorgante, e através dos seus representantes e sócios gerentes E... e F..., aceitou tomar de arrendamento o rés do chão do prédio supra descrito com os números de polícia dois e quatro, pelo período de 1 (um) ano, renovável por iguais períodos, e com destino à exploração da industria de fotografia e ao comércio de artigos para fotografia, papelaria e tabacaria e respectivos derivados, conforme melhor resulta do documento de fls. 12 a 15, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
3. A renda actual, com as sucessivas actualizações, é de 220,96 €.
4. A 1.ª Ré comunicou ao Autor, por carta datada de 02/04/2008 que, por motivos de doença, iria proceder à venda do trespasse da loja arrendada.
5. O Autor informou a 1.ª Ré, por carta datada de 1/05/2008, que pretendia exercer o seu direito de preferência, pelo valor de 20.000 €, incluindo todo o recheio e sem encargos de pessoal e dívidas existentes, a partir de 1 de Julho de 2008.
6. O estabelecimento arrendado, constituído por um estúdio fotográfico, era explorado pela 1.ª Ré sob a orientação do seu sócio gerente E....
7. Em princípios de 2008, o referido gerente da 1.ª Ré sofreu de doença que o incapacitou para qualquer trabalho.
8. Desde Novembro de 2008 que o 2.º Réu, D..., comparece todos os dias na fracção arrendada, abrindo e encerrando as portas do estabelecimento.
9. Desde pelo menos essa data que o 2.º Réu efectua vendas de serviços relativas ao comércio de fotografia desenvolvido na fracção arrendada, o que faz por conta da 1.ª Ré.
10. O 2.º Réu tem uma trabalhadora ao seu serviço que desempenha funções na fracção arrendada.
11. O 2.º Réu encerrou um armazém que possuía na loja n.º 7 da Central de H..., sita na Av. Y... em ..., o qual fazia parte da “ I...”.
12. O 2.º Réu levou duas máquinas, de imprimir e de revelar, para a fracção arrendada.
2.º
Conforme resulta da matéria dada como provada, a ré é arrendatária do rés-do-chão do prédio sito na Rua X..., em ..., destinando-se o arrendado à exploração da industria de fotografia e ao comércio de artigos para fotografia, papelaria e tabacaria e respectivos derivados.
Por outro lado, o imóvel arrendado pertence aos autores.
Estes sustentam na presente acção que há fundamento para a resolução desse contrato de arrendamento, nos termos do disposto no artigo 1083.º n.º 2 e) do Código Civil, por, em síntese, a ré, em Novembro de 2008, ter transmitido para o réu o arrendamento e o estabelecimento que tinha no arrendado Cfr. nomeadamente os artigos 10.º e 11.º da petição inicial..
Na sequência dessa alegação foram formulados, entre outros, os quesitos 3.º, 4.º, 8.º e 9.º onde se questionava se:
3.º Os Autores tiveram conhecimento, em princípios de Novembro de 2008, que a 1ª Ré transmitiu o estabelecimento e o arrendamento ao 2º Réu?
4.º Desde Novembro de 2008, que o 2º Réu passou a explorar o dito estabelecimento?
8.º O 2.º Réu, alegando para o efeito a transmissão do trespasse do estabelecimento, dispensou os serviços da anterior funcionária da 1.ª R. em 01/10/2009?
9.º O 2.º R. transferiu para a fracção arrendada a sua actividade?
A estes quesitos a Meritíssima Juíza respondeu não provado Cfr. folhas 164 e 165..
Apesar dessas respostas, os autores consideram que, mesmo sem os factos que a Meritíssima Juiz “a quo” considerou como não provados subsiste uma realidade que, inequivocamente, configura uma transmissão do gozo do arrendado que não foi consentida nem conhecida pelos recorrentes. Cfr. conclusão M.
Será que se pode percorrer tal caminho?
Como se disse no acórdão desta Relação de 12-10-201, Proc. 385/04.0TBVIS Este acórdão, nesta data, não se encontra publicado. O aqui relator interveio nele como adjunto., na decisão do recurso é consentido à Relação tirar ilações ou conclusões lógicas e racionais dos factos julgados provados, para os interpretar ou esclarecer.
Sucede que este poder de deduzir, dos factos provados, conclusões lógicas e razoáveis tem limites. Um desses limites é precisamente o seguinte: é vedado à Relação modificar a resposta (positiva ou negativa) que o tribunal a quo tenha dado a um ponto da base instrutória, servindo-se de ilações tiradas da matéria julgada provada por esse mesmo tribunal. Assim, a Relação não pode, recorrendo a um juízo presuntivo ou dedutivo, julgar provado um facto declarado não provado pelo tribunal a quo; nem pode julgar não provado um facto declarado provado por aquele tribunal. E não pode porque a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto só pode ser alterada pela Relação nas hipóteses previstas nas alíneas a) a c), do n.º 1, do artigo 712º, do CPC, e nenhuma delas cobre o recurso a ilações ou deduções dos factos provados para modificar a decisão de facto da 1ª instância.
Este entendimento tem sido afirmado, de modo constante, pela jurisprudência do Supremo de Justiça, de que constituem exemplos, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-04-2009, proferido no processo n.º 0853254, o acórdão de 07-01-2010 proferido no processo n.º 5175/03.4TBAVR, o acórdão de 14-01-2010 proferido no processo n.º 2537/03.0TBOVR, o acórdão de 29-04-2010 proferido no processo n.º 792/02.2YRPRT, o acórdão de 6 de Maio de 2010 proferido no processo n.º 2148/05.6TBLLR, e o acórdão de 07-07-2010 proferido no processo n.º 2273/03.8TBFL.G todos publicados no sítio http://www.dgsi.pt/jstj. No mesmo sentido se pronuncia Calvão da Silva, na RLJ, ano 135º, n.º 3935, páginas 127, em anotação ao acórdão do STJ de 25 de Março de 2004, ao afirmar “…quesitado um facto - … - a que a 1ª instância deu resposta negativa, não pode esse facto vir a ser considerado assente mediante presunção judicial. Permitir que a Relação considere provado por inferência um facto que a 1ª instância deu como não provado após o funcionamento do princípio da imediação e do contraditório da prova directa constitui clara e ostensiva violação do disposto no art. 712º do Código de Processo Civil”.
Assim, tendo o tribunal a quo julgado não provada a matéria daqueles quatro quesitos, dos quais, para este efeito, se salienta os quesitos 3.º e 4º, não se pode agora querer extrair dos restantes factos provados a existência da transmissão do estabelecimento e que, por via dela, o réu o passou a explorar. Pois, dessa forma estar-se-ia a contornar a resposta de não provado aos mencionados quesitos, alterando-se, de uma forma não prevista no artigo 712.º n.º 1 do Código de Processo Civil, a decisão da 1.ª instância relativa a essa matéria de facto, quando é certo que dos factos provados não emerge, como uma evidência ou certeza, a existência da alegada transmissão do estabelecimento e que este passou a ser explorado pelo réu. Com efeito, não se pode dizer que por se ter provado que o réu, desde Novembro de 2008, comparece todos os dias na fracção arrendada, abrindo e encerrando as portas do estabelecimento, que tem uma trabalhadora ao seu serviço que desempenha funções no arrendado, que encerrou um armazém que possuía na loja n.º 7 da Central de H..., em ..., o qual fazia parte da “ I...” e que levou duas máquinas, de imprimir e de revelar, para a fracção arrendada, houve, necessariamente, a alegada transmissão do estabelecimento da ré para o réu. Se, em tese, essa actuação do réu é compatível com cenário da transmissão do estabelecimento, não é menos verdade que ela também se concilia com a hipótese de, na sua conduta que se relaciona com o arrendado, aquele agir em nome da ré.
Aliás, importa salientar que também se provou que, desde Novembro de 2008, o réu efectua vendas de serviços relativas ao comércio de fotografia desenvolvido na fracção arrendada, o que faz por conta da 1.ª ré (sublinhado nosso), o que aponta, claramente, no sentido de que não é ele, mas sim a ré, quem continua a explorar o estabelecimento.
À luz do que se deixa dito, contrariamente ao defendido pelos autores, não se pode concluir da factualidade que se deu por assente (…) que ocorreu uma transmissão do estabelecimento instalado no arrendado pois a 1.ª recorrida deixou de explorar o estabelecimento e tal exploração passou a ser efectuada pelo 2.º recorrido Cfr. conclusões C) e D)..
Não se tendo demonstrado que a ré transmitiu para o réu o estabelecimento instalado no arrendado e que este o passou a explorar, é pacífico que, face ao disposto no artigo 1083.º do Código Civil, não há fundamento para a resolução do contrato de arrendamento, o mesmo é dizer que improcede o presente recurso.
Uma palavra final apenas para dizer que o facto mencionado pelos autores na conclusão H) não figura entre os factos provados e que não está igualmente provado o nexo causal entre esse facto e o que se refere na conclusão L).
II
Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas pelos autores.

António Beça Pereira (Relator)
Manuela Fialho
Távora Vítor