Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1757/18.8T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: DÍVIDA LIQUIDÁVEL EM PRESTAÇÕES
VENCIMENTO
INTERPELAÇÃO
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
Data do Acordão: 07/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - COVILHÃ - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.S256, 258, 781, 801, 805 CC
Sumário: I – O vencimento imediato das prestações previsto no artigo 781.º do Código Civil (Dívida liquidável em prestações) é uma norma supletiva e exige que o credor interpele o devedor nesse sentido, declarando-lhe que considera vencidas todas as prestações em dívida.

II – Mas se as partes previram detalhadamente num acordo que denominaram de «Confissão e assunção de dívida e acordo de pagamento» o modo como seria reposto o direito dos Autores, então ao dizerem na respetiva cláusula 7.ª que a falta de pagamento de uma das prestações ali previstas «implicava» o vencimento de todas as que estivessem em dívida, quiseram dizer isso mesmo, que verificada tal hipótese seguia-se aquele resultado, isto é, eram exigíveis de imediato todas as prestações ainda em dívida, sem necessidade de interpelação.

III - A interpelação pode fazer-se por via judicial, seja por meio de notificação judicial avulsa (cfr. arts. 256.º a 258.º do Cód. Proc. Civil) ou através da citação do devedor para a ação (ou execução) nos termos do artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil.

Decisão Texto Integral:





*

Recorrente ……………..M (…)

Recorridos………………A (…)

A(…)

J (…)

M (…)

N (…)

M (…)

M (…)

Todos melhor identificados nos autos.


*

I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto pela Ré relativamente à sentença que antecede, que a condenou, no confronto com os Autores ora recorridos, nos seguintes termos:

«Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decido julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência condeno a Ré M (…) no pagamento aos Autores da quantia de €17.925,00 (dezassete mil novecentos e vinte e cinco euros), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da citação – 4.12.2018 – até efetivo e integral pagamento.

Custas a cargo dos Autores e Ré na proporção do respetivo decaimento (artigo 527.º»

Esta condenação resultou do incumprimento de um acordo para pagamento de uma dívida.

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte da ré M (…) cujas conclusões são as seguintes:

(…)

c) Não foram apresentadas contra-alegações.

II. Objeto do recurso.

De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 - A primeira questão colocada pelo recurso respeita à impugnação da matéria de facto. A recorrente pretende que seja declarado não provado o fato provado n.º 10, o qual tem a seguinte redação:

«Por missiva remetida em 20.09.2018, os Autores interpelaram a Ré (…)para proceder ao pagamento das prestações aludidas no acordo outorgado e referido em 1».

2- Em segundo lugar, a Recorrente sustenta que não tendo ficado provada a interpelação então não pode ser responsabilizada pelo pagamento do montante em dívida, porquanto tal interpelação teria de ter sido realizada para, com base na mesma, operar o vencimento antecipado da dívida na sua totalidade.

III. Fundamentação

a) Impugnação da matéria de facto

A recorrente pretende que seja declarado não provado o fato provado n.º 10, o qual tem a seguinte redação:

«Por missiva remetida em 20.09.2018, os Autores interpelaram a Ré (…)para proceder ao pagamento das prestações aludidas no acordo outorgado e referido em 1».

Em 1.ª instância a convicção sobre este facto foi justificada deste modo:

«No que refere à facticidade aludida em 10. o Tribunal atendeu ao teor dos documentos juntos em audiência de julgamento – Ref.ª 31726894. Conjugados com as declarações de parte do Autor (…) que aludiu ao envio da aludida missiva de forma credível e convincente».

A recorrente argumenta que os autores não alegaram a interpelação da Ré e que a carta junta em audiência, conjugada com as declarações de parte do Autor (…), que aludiu ao respetivo envio, não revela qualquer interpelação apenas diz «(…) a presente missiva se destina a solicitar um contacto no sentido de podermos agendar uma reunião para encontrar uma solução amigável para o assunto», não constando da mesma qualquer valor em dívida, nem relativo às prestações – montantes, datas e/ou vencimentos.

Além disso, a carta não foi redigida, assinada ou enviada pelo referido Autor ou por qualquer outro dos Autores, nem por pessoa com poderes para o efeito.

Tal interpelação não foi referida nas declarações de parte do mencionado Autor (….), das quais resulta apenas o acordo efetuado e as prestações que foram efetuadas, com indicação dos respetivos valores e datas e que, todos os pagamentos foram efetuados através da testemunha S (…), testemunha esta que também não referiu que a interpelação tenha sido feita.

Além disso, não foi feita a prova de que tal carta tenha sido rececionada pela Ré apelante.

Vejamos então.

Concorda-se com a argumentação da recorrente no sentido de não ter existido a apontada interpelação, não porque o teor da carta não possa ser interpretada no sentido de conter implicitamente essa declaração, mas porque não há prova de que a carta tenha sido rececionada, pois além de não existir confissão do facto, não há prova testemunhal a atestá-lo, nem aviso de receção da carta.

Por conseguinte, não pode ser dado como provada a interpelação referida no facto provado n.º 10, o qual será eliminado e passará para os factos não provados.

Acresce que este facto não foi alegado nos articulados. Na hipótese de se considerar fundamental, por fazer parte da causa de pedir, não poderia ser levado à matéria de facto provada, por se tratar de facto conformador da própria causa de pedir e não caber no elenco de factos instrumentais ou complementares mencionados no n.º 2 do artigo 5.º do C.P.C.

b) 1. Matéria de facto – Factos provados

1. Em 1 de Fevereiro de 2017, B (…) na qualidade de primeira outorgante e E (…), Lda., M (…) e J (…), todos na qualidade de segundos outorgantes e A (…), M (…),  N (…), J (…), M (…), M (…) e A (…), todos na qualidade de terceiros outorgantes, outorgaram um acordo denominado “Confissão e assunção de dívida e acordo de pagamento” do qual constam as seguintes cláusulas:

Primeiro

“Entre a primeira e terceiros outorgantes vigora um contrato de arrendamento, relativo a duas frações autónomas do prédio sito na Rua x... , n.º 125, y... .

Segundo

A Primeira outorgante não tem pago pontualmente a renda estando em dívida no final de janeiro de 2017 a quantia de €21.250,00, dos quais €5.312,54 euros correspondem a retenções na fonte, à taxa anual de 25%.

Terceiro

A primeira outorgante confessa dever tal valor aos terceiros.

Quarto

Os segundos outorgantes assumem-se pelo presente ato solidariamente responsáveis com a primeira pelo pagamento do valor devido, nos termos que constam das cláusulas supra e infra, renunciando ao benefício da excussão prévia.

Quinto

Para pagamento do valor em dívida a primeira outorgante entrega aos terceiros 36 cheques mensais e sucessivos de €356,25 euros cada um, vencendo-se o primeiro em 8 de fevereiro de 2017 e os restantes no mesmo dia de cada um dos 35 meses subsequentes.

Em cada um dos referidos meses a primeira outorgante entregará ainda €118,75 euros à administração tributária correspondente à retenção na fonte à taxa de 25% sobre o valor das rendas pago, que totaliza assim €475.00 euros mensais.

Sexto

Com o bom cumprimento do plano de pagamentos referido no artigo anterior a Primeira outorgante terá pago um total de €17.100,00 euros por conta das rendas devidas, caso em que os terceiros outorgantes perdoarão o remanescente da dívida.

Sétimo

A falta de pagamento de uma prestação ou de uma retenção na fonte implica o vencimento da totalidade da dívida, pelo valor referido no artigo SEGUNDO deste acordo.

Oitavo

Ainda que qualquer dos terceiros outorgantes venha a transferir para outro comproprietário ou para terceiro o seu direito de propriedade sobre o imóvel referido no artigo PRIMEIRO, o transmitente não perde a qualidade de credor perante a primeira e segundos outorgantes a menos que tal venha a ser expressamente previsto no acordo de transmissão e – para o efeito – se notifiquem os devedores.

O presente acordo será objeto de autenticação.

(…).”

2. O acordo aludido em 1. mostra-se assinado por todos os outorgantes, designadamente a Ré M (…).

3. Tal acordo não foi submetido a autenticação mas sim a reconhecimento de assinaturas de M (…), que interveio no aludido contrato por si e na qualidade de sócia gerente da sociedade “E (…), Lda.”, bem como de J (…) que interveio por si e na qualidade de sócio gerente da sociedade “b (…), Lda.”, reconhecimento esse datado de 11.4.2017.

4. Apenas foram pagas as 7 primeiras prestações, num total de €3.325,00, não tendo sido paga a 8.ª prestação que se venceu em 8.9.2017, nem as seguintes.

5. A sociedade B (…), Lda., foi declarada insolvente em Fevereiro de 2018 no âmbito dos autos n.º 131/18.0 T8FND que correu os seus termos no Tribunal da Comarca de Castelo Branco, no Juízo de Comércio do Fundão.

6. J (…) foi declarado insolvente por sentença de 15.1.2019 proferida nos autos de insolvência n.º 25/19.2 T8FND que correu os seus termos pelo Tribunal da Comarca de Castelo Branco – Juízo de Comércio do Fundão.

7. Os Autores não reclamaram o seu crédito nas insolvências aludidas em 5 nem 6.

8. A Ré M (…) está divorciada de J (…)..

9. A Ré M (…) é a única sócia da sociedade A (…), Lda.

10. [Eliminado].

11. Em 1 de Setembro de 2017 foi outorgado entre os ora Autores (na qualidade de primeiros outorgantes), a sociedade B (…), Lda., (na qualidade de segunda outorgante) e a sociedade E (…), Lda., (na qualidade de terceira outorgante) um acordo denominado “Aditamento a contrato de arrendamento” do qual consta as seguintes cláusulas:

1. “Entre primeiros outorgantes e segunda outorgante vigora o contrato de arrendamento relativo a duas frações autónomas do prédio sito na Rua x... n.º 125, y... .

2. Segunda Outorgante e terceira outorgante acordaram na transmissão da posição contratual da segunda outorgante para a terceira outorgante, transmissão à qual os primeiros outorgantes não se opõem.

3. A transmissão produz efeitos a partir do dia 1 de setembro de 2017 devendo, a partir dessa data, as rendas vencidas e as rendas que se venham a vencer passarem a ser pagas pela terceira outorgante aos primeiros outorgantes, que lhe darão quitação.

4. A terceira outorgante declara que conhece o teor do “contrato de arrendamento” e da “confissão e assunção de dívida e acordo de pagamento”, aceitando os direitos e obrigações que deles decorrem.

5. O presente aditamento será comunicado a repartição de finanças competente, ficando o encargo com o imposto de selo a cargo da terceira outorgante.”

2. Matéria de facto – Factos não provados

Que desde a outorga do acordo aludido em 11. dos factos provados, as rendas mensais têm sido regulamente pagas.

Que por missiva remetida em 20.9.2018, os Autores interpelaram a Ré M (…) para proceder ao pagamento das prestações aludidas no acordo outorgado e referido em 1.

c) Apreciação das restantes questões objeto do recurso

A Recorrente sustenta que não tendo ficado provada a interpelação então não pode ser responsabilizada pelo pagamento do montante em dívida, porquanto tal interpelação teria de ter sido realizada para, com base na mesma, operar o vencimento antecipado da dívida na sua totalidade.

Mas não tem razão, como se vai procurar demonstrar.

1 – Em primeiro lugar, a responsabilidade da Ré é clara, porquanto subscreveu o contrato em questão e a cláusula 4.ª do contrato estabelece a responsabilidade da Ré, que é um dos «segundos outorgantes», nestes termos:

«Quarto

Os segundos outorgantes assumem-se pelo presente ato solidariamente responsáveis com a primeira pelo pagamento do valor devido, nos termos que constam das cláusulas supra e infra, renunciando ao benefício da excussão prévia».

A responsabilidade da Ré deriva da autonomia da sua vontade e da liberdade contratual de que goza, que a lei reconhece aos cidadãos nos artigos 405.º, n.º 1, 406.º, n.º 1 e 595.º, n.º 1, todos do Código Civil (Todos os artigos citados doravante, sem indicação da origem, pertencem ao Código Civil).

No n.º 1 do artigo 405.º declara-se que «Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver» e o n.º 1 do artigo 406.º estabelece que «O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei».

Por fim, o n.º 1 do artigo 595.º (Assunção de dívida) dispõe que «1. A transmissão a título singular de uma dívida pode verificar-se:  a) Por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor; b) Por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor».

Verifica-se, por conseguinte, que a Ré assumiu a dívida que originariamente era da ré B (…), primeira outorgante contratual.

Tendo a Ré assumido essa dívida perante os Autores é responsável pelo respetivo pagamento.

Sendo certo que o devedor, neste caso a Ré, cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está obrigado – artigo 762.º, n.º 1 – e se não a realizar, culposamente, deve indemnizar o credor do prejuízo que lhe haja causado – artigo 798.º – podendo o credor exigir judicialmente o seu cumprimento – artigo 817.º.

A culpa nesta sede é apreciável pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso, ou seja, em abstrato (artigos 487º, n.º 2, e 799º, n.º 2).

Nas obrigações pecuniárias a indemnização consiste nos juros a contar do dia da constituição em mora – artigo 806.º

A Ré, por conseguinte, é responsável pela dívida a que se refere o contrato que serve de causa de pedir a esta ação.

2 – Em segundo lugar, cumpre analisar a questão da interpelação da Ré.

A Ré defende-se argumentando que não foi notificada pelos Autores no sentido de estes lhe declararem que consideravam vencidas as restantes prestações não pagas.

A Ré tem em vista o disposto no artigo 781.º (dívida liquidável em prestações) onde se dispõe, de facto, que «Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas».

Efectivamente entende-se, como referiu Antunes Varela, que «O vencimento imediato das prestações cujo prazo ainda se não vencera constitui um benefício que a lei concede – mas não decreta ela própria – ao credor, não prescindindo consequentemente de interpelação ao devedor» - Das Obrigações em Geral, Vol. II, 5ª edição, pág. 54.
O artigo correspondente do Código Civil de Seabra era mais claro a este respeito, pois dispunha no artigo 742.º o seguinte: «Nas dívidas que devem ser pagas em prestações, a falta de pagamento de uma destas dá ao credor o direito de exigir o pagamento de todas as que ainda se devem».

Ou seja, existindo uma dívida fracionada em prestações, se porventura o devedor não pagar uma delas, o credor tem o direito de considerar as restantes vencidas, mas para isso, tem de levar essa sua vontade ao conhecimento do devedor.

É esta a jurisprudência estabelecida [Neste sentido, entre muitos outros, o acórdão desta Relação de 12-12-2017, exarado no processo n.º 10180/15.5T8CBR-A.C1, relatado pelo aqui 2.º Adjunto, cujo sumário é o seguinte «1 – Nas dívidas liquidáveis em prestações, de acordo com o regime consagrado no art. 781º, do C. Civil, o não pagamento de uma delas não importa a exigibilidade imediata de todas, cabendo ao credor interpelar o devedor para proceder ao pagamento da totalidade da dívida. 2 – Isto porque face ao disposto nesse dito art. 781º do C.Civil, deve-se considerar que o imediato vencimento de todas as prestações e a constituição em mora relativamente às mesmas, pressupõe a prévia interpelação do devedor para cumprir a prestação nesses termos (na sua totalidade)»].

Como assinalou Vaz Serra, «O fundamento de uma disposição desta natureza deve ser o de que, faltando ao pagamento de uma prestação, o devedor faz nascer a suspeita de que não fará as outras, isto é, cria uma situação de perigo quanto ao cumprimento futuro da obrigação, quer porque esta ou se tornará insolvente, quer porque, independentemente disso, não é pontual na satisfação das prestações.

Não se trata apenas de conferir ao credor um meio cómodo de obter o cumprimento integral, dispensando-o de proceder judicialmente contra o devedor por causa de cada uma das prestações que se forem vencendo; mas de o acautelar contra o risco de não-cumpriemnto definitivo ou pontual do devedor. O devedor que se compromete a pagar uma dívida em prestações e deixa de pagar pontualmente uma delas, faz surgir o receio de que deixará também de pagar, de vez ou pelo menos pontualmente, as restantes. Daí que o credor, para conjurar esse risco, tenha o direito de reclamar o pagamento de todas as prestações ainda em dívida. O que está, de resto, de acordo com a intenção usual do credor, ao consentir no pagamento em prestações, pois, se consentiu nele, é de crer que tivesse sido proque confiou na pontualidade do devedor» - Tempo da prestação. Denúncia. Boletim do Ministério da Justiça n.º  50, pág. 172/173.
No mesmo sentido, Manuel de Andrade referiu que «Se o credor permitiu que o devedor pagasse por prestações foi para lhe facilitar o pagamento, de maneira que, se este deixa de pagar uma prestação, o credor perde a confiança que nele tinha, e portanto desaparece a base de que o credor possa exigir logo o total pagamento da dívida» - Teoria Geral das Obrigações, I. Coimbra: Almedina, 1958, pág. 316.

Porém, a norma do artigo 781.º tem natureza supletiva, ou seja, só se aplica se as partes não tiverem dito nada a esse respeito no contrato; se elas não tiverem previsto expressamente a situação.
Como se ponderou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-5-2017, no processo n.º 1244/15.6T8AGH-A.L1.S2 (Olindo Geraldes), «A norma do art. 781.º do CC tem natureza supletiva, pelo que o credor e o devedor, no âmbito da sua autonomia privada, podem acordar num sentido diverso, nomeadamente do vencimento automático das prestações vincendas, sem necessidade, para tal efeito, de interpelação do devedor».
Efetivamente no âmbito da liberdade contratual e dentro dos limites impostos pela lei, as partes são soberanas e regulam os seus interesses como entenderem.
Ora, afigura-se que no caso dos autos as partes previram expressamente esta hipótese na cláusula «sétima» cuja redação é a seguinte:

«A falta de pagamento de uma prestação ou de uma retenção na fonte implica o vencimento da totalidade da dívida, pelo valor referido no artigo segundo deste acordo».
Objetar-se-á que esta cláusula reproduz o teor do artigo 781.º, mas este argumento não é procedente, por várias razões:
Em primeiro lugar, as partes têm obrigatoriamente de dizer que a falta de pagamento de uma das prestações implica o vencimento das restantes ainda em dívida, o que nos mostra que caso as partes queiram redigir uma cláusula a prever o vencimento automático das prestações, elas apenas têm ao seu dispor um número limitado de palavras, modos ou fórmulas para o fazer.
  Por conseguinte, é espectável que que as partes sejam levadas a adotar as próprias palavras consagradas da lei.
Em segundo lugar, se esta cláusula tivesse o mesmo efeito que tem a norma do artigo 781.º, no sentido de esta cláusula não prever um vencimento automático das restantes prestações, sendo sempre necessária uma interpelação, então esta cláusula do contrato ficava reduzido a algo inútil, a algo com o mesmo valor que teria o contrato se a mesma nem tivesse sido redigida.

Não se compreenderia a razão que teria levado os contraentes a colocar essa cláusula inútil no contrato.

Em terceiro lugar, com tal cláusula tem utilidade porque acautela os interesses futuros dos credores, pois assim evitavam quaisquer problemas que pudessem vir a existir no sentido de localizar os devedores para lhes dar conhecimento da vontade resolutiva do contrato.

Por fim, verifica-se que o contrato em causa nestes autos é fruto de uma negociação cuidadosa destinada a regularizar o incumprimento de um outro contrato (de arrendamento), como se vê, por exemplo, pela redação dada às cláusulas 5.ª e 6º, com este teor:

«Quinto - Para pagamento do valor em dívida a primeira outorgante entrega aos terceiros 36 cheques mensais e sucessivos de €356,25 euros cada um, vencendo-se o primeiro em 8 de fevereiro de 2017 e os restantes no mesmo dia de cada um dos 35 meses subsequentes.

Em cada um dos referidos meses a primeira outorgante entregará ainda €118,75 euros à administração tributária correspondente à retenção na fonte à taxa de 25% sobre o valor das rendas pago, que totaliza assim €475.00 euros mensais»;

«Sexto - Com o bom cumprimento do plano de pagamentos referido no artigo anterior a Primeira outorgante terá pago um total de €17.100,00 euros por conta das rendas devidas, caso em que os terceiros outorgantes perdoarão o remanescente da dívida».

Logo a seguir vem a cláusula 7.ª: «A falta de pagamento de uma prestação ou de uma retenção na fonte implica o vencimento da totalidade da dívida, pelo valor referido no artigo SEGUNDO deste acordo».

Vê-se, através desta sequência e das razões que ficam indicadas, que a Cláusula 7.ª estabelece uma resolução automática do contrato.

Aliás, isso explica, por exemplo, que não tenha sido enviada uma carta a declarar essa resolução aos Réus, porquanto não era necessária.

Resumindo.

Se as partes previram detalhadamente no acordo que denominaram de «Confissão e assunção de dívida e acordo de pagamento», o modo como seria reposto o direito dos Autores, então ao dizerem na cláusula 7.ª que a falta de pagamento de uma das prestações previstas «implicava» o vencimento de tudo o que estivesse em dívida, quiseram dizer isso mesmo, que verificada tal hipótese seguia-se aquele resultado, isto é, eram exigíveis de imediato todas as prestações, o mesmo é dizer que o contrato terminava, sem necessidade de interpelação.

Acresce que a hipótese de ser ainda necessária uma declaração de resolução a emitir pelos Autores, os quais ainda teriam de a fazer chegar ao conhecimento dos Réus, não tem qualquer apoio na letra do contrato, resultando apenas na norma legal supletiva do artigo 781.º.

3 – Em terceiro lugar, cumpre referir que a própria instauração da ação sempre teria de se considerar uma interpelação para pagamento, nos termos do artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil onde se dispõe que «O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir».

A este respeito Pires de Lima e Antunes Varela referiram que «O princípio consagrado no n.º 1 do artigo 805.º é, como regra geral, indiscutível, pois sem a interpelação o devedor pode não saber que está em atraso no cumprimento.

A interpelação judicial pode ser feita por meio de notificação judicial avulsa (cfr. arts. 257.º a 261.º do Cód. Proc. Civ.) ou pela citação do devedor para a ação ou para a execução (cfr. arts. 662.º, n.º 2, alín. b), e 801.º do Cód. cit.)» - Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª edição (1986), pág. 64.

Neste sentido pode consultar-se o Acórdão do STJ de 12-7-2018 no processo n.º 10180/15.5T8CBRT-A.C1.S1 (Helder Almeida), com o seguinte sumário:

I - Seguindo a execução para pagamento de quantia certa a forma de processo comum ordinário – na qual a citação prévia constitui o procedimento-regra – a citação levada a efeito vale como interpelação judicial aos executados nos termos e para os efeitos do art. 805.º, n.º 1, do CC, no caso, para cumprimento das prestações e acréscimos do contrato de mútuo considerados como estando em dívida (arts. 726.º e 727.º do CPC).

II - Essa interpelação apenas confere à obrigação exequenda o indispensável atributo da exigibilidade, não se reconduzindo a qualquer declaração resolutiva do contrato, já que, lançando o credor mão do mecanismo do vencimento ou exigibilidade antecipada da dívida pagável em prestações, reclamando a totalidade desta, com a consequente perda do benefício do prazo por parte do devedor, tem o mesmo em vista a consideração do contrato como válido (no qual permanece interessado) e não a sua resolução/extinção (art. 781.º, n.º 1, do CC, e art. 713.º do CPC)» - Em www.dgsi.pt.

No mesmo sentido o acórdão desta Relação de 27-5-2015, relatado pelo ora 2.º adjunto, no processo n.º 6659/12.9TBLRA-A.C1: «…. 4 - Sem embargo, nunca ocorreria a inexigibilidade da obrigação exequenda, na medida em que no âmbito da execução instaurada teve lugar a citação dos executados, o que sempre consubstancia a interpelação conducente à exigibilidade imediata da totalidade da dívida» (sumário), em www.dgsi.pt.

Conclui-se, por conseguinte, que os Autores têm direito ao que pedem, como se concluiu na sentença.

Na sentença considerou-se que os juros só seriam devidos a partir da citação.

Pelo que acaba de ser referido atrás, os juros poderiam ser contados a partir do momento em que todas as prestações se venceram, mas como o recurso não compreende naturalmente essa parte, nada há a alterar.

Cumpre, pelo exposto, julgar o recurso improcedente e manter a sentença recorrida.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a sentença recorrida. Custas pela Recorrente


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Coimbra, 13 de julho de 2020

Alberto Ruço ( Relator )

Vítor Amaral

Luís Cravo