Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
643/07.1TBSCD.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
DANO CAUSADO POR ANIMAL
Data do Acordão: 04/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SANTA COMBA DÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.483, 493, 502 DO CC
Sumário: I - Na responsabilidade civil por danos causados por animais, podem coexistir as responsabilidades fundadas tanto no art. 493, como no art.502, ambos do Código Civil, quando a pessoa obrigada à vigilância do animal é simultaneamente seu proprietário.

II - Provando-se que dois cães, pertencentes ao réu, andavam à solta na via pública e assustaram uma ovelhas que seguiam com o autor, tendo uma delas feito um movimento brusco e projectado o autor ao chão, sofrendo danos corporais, o dono dos cães é responsável pelos danos causados ao autor.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

*

Recorrente…………A (…)

Recorridos…………Companhia de Seguros (…) 

……………………… B (…)


*

I. Relatório:

a) O Autor instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, com o fim de obter a condenação dos Réus a pagarem-lhe uma indemnização por danos de natureza patrimonial e não patrimonial que diz ter sofrido em consequência de uma queda que o vitimou e que alega ter ocorrido ao ser puxado, repentinamente, por uma ovelha, que conduzia presa por uma corda, a qual, por sua vez, reagiu assim ao desviar-se de dois cães, ambos propriedade do Réu António, que apareceram subitamente junto das ovelhas, assustando-as.

Necessitou de receber tratamentos hospitalares e fez despesas para se curar, tendo sofrido com toda esta situação.

Sustenta que a Ré Seguradora tinha assumido, mediante contrato de seguro, a responsabilida­de civil decorrente de danos ocasionados pelos cães.

Pede €12.500,00 euros a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos até à propositura da presente acção; pelas despesas referentes a consultas médicas, diagnósticos, tratamentos, reabilitação, fisioterapia e medicação que teve de efectuar até à indicada data; pelos custos referentes a consultas médicas, diagnósticos, tratamentos, possíveis cirurgias, reabilitação, fisioterapia e medicação que venha a ter de efectuar, bem como juros de mora sobre as quantias reclamadas, contados desde a citação dos Réus, até integral cumprimento.

b) Todos os Réus alegaram a sua ilegitimidade, excepções que foram julgadas improce­dentes no despacho saneador.

Em sede de impugnação, a seguradora sustentou que o contrato de seguro ape­nas dizia respeito a um dos cães e que os animais se encontravam soltos na rua, situação que exclui a sua responsabilidade.

Por sua vez, os Réus, donos dos cães, alegaram que estes se encontravam na sua casa, fechados num canil, nada tendo a ver com a queda do autor.

c) Por sentença de 16 de Junho de 2008 a acção foi julgada improcedente, mas o Autor recorreu da sentença, a qual veio a ser revogada, após anulação das respostas dadas os quesitos 2.º, 6.º, 7.º e 8.º.

Realizou-se nova audiência de julgamento e foi proferida nova sentença que voltou a absolver os Réus do pedido.

Fundamentalmente porque foi dado como provado que os cães estavam fechados no interior do logradouro da casa de habitação dos Réus e estes tinham observado as providências exigíveis à prevenção dos riscos inerentes à utilização dos cães a que alude o disposto no artigo 493.º do Código Civil.

Considerou-se ainda não ter existido nexo de causalidade entre o dano e a acção dos cães, na medida em que intercedeu no processo danoso a acção de outro animal, isto é, a ovelha que o Autor conduzia presa por uma corda e que provocou a queda, o que constituiu circunstância anómala que quebrou o nexo de causalidade, pois se o Autor não levasse consigo as ovelhas ou não levasse presa aquela que o puxou ele não teria caído.

Analisados os factos à luz do artigo 502.º do Código Civil considerou-se na sentença não ser possível responsabilizar os donos dos cães porque embora se tivesse provado que estes assustaram as ovelhas não se provou, porque não se alegou na petição, de que forma os cães assustaram as ovelhas.

Por conseguinte, as ovelhas tanto podiam ter-se assustado pela ocorrência da presença dos cães, como pela passagem súbita de um veículo motorizado ou de uma pessoa em corrida, pelo que, não se mostra que a acção dos cães tivesse sido uma acção típica inerente à sua perigosidade, podendo-se concluir que a queda resultou, sim, do perigo emergente da condução de uma ovelha presa por uma corda.

d) O Autor recorre discordando de parte das respostas dadas à matéria de facto e da solução jurídica exarada na sentença.

As conclusões do recurso são as seguintes:

1 – O tribunal com base unicamente no depoimento da testemunha (…), sem atender aos demais depoimentos, não podia ter respondido aos quesitos 6.º e 7.º «provado» e ao quesito 8.º «não provado».

Com base na apreciação da totalidade dos depoimentos, a resposta deve ser negativa aos quesitos 6.º e 7.º e positiva em relação ao quesito 8.º.

2 – Não tendo concluído pela existência do dever de indemnizar, por falta de nexo de causalidade, o tribunal recorrido fez errada interpretação do disposto no artigo 493.º e artigo 563.º do Código Civil.

3 – O tribunal recorrido devia ter concluído pela existência da responsabilidade objectiva dos Réus, em consequência do resultado da acção dos seus cães, por força da presunção de culpa contida no artigo 493.º, n.º 1 do Código Civil.

d) Não houve contra-alegações.

O objecto do recurso consiste, por conseguinte, nas três questões acabadas de identificar.

II. Fundamentação.

Vejamos as questões colocadas relativas à impugnação da matéria de facto.

(…)

4. Decidida a matéria de facto, consoante fica exposto, os factos a ter em conta são estes:

1- Os Réus são donos de dois cães, um da raça «Dálmata» e outro de cor preta (aI. b) dos factos assentes).

2 - A Ré assumiu a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo animal de raça «Dálmata», nos termos do contrato de seguro ajustado com os réus, titulado pela apólice com o n.º 127000571, e cujas condições gerais, especiais e particulares foram juntas aos autos a folhas 108 a 116 (aI. c) dos factos assentes).

3 - No dia 5 de Março de 2007, cerca das 17.15 horas, o Autor regressava a casa, proveniente da sua propriedade sita na «Nave», freguesia de..., concelho de ..., quando deu uma queda, perto da casa de habitação dos Réus (al. a) dos factos assentes).

4 - No percurso até à sua residência, o Autor levava consigo duas ovelhas e um carneiro, sendo que segurava uma das ovelhas por uma corda (resposta ao quesito 1.º).

5 - A certa altura do referido percurso, os cães dos Réus assustaram as ovelhas (respostas ao quesitos 2.º e 3.º).

6 - Em consequência, a ovelha que o Autor segurava com uma corda fez um movimento brusco (resposta ao quesito 4.º).

7 - Em virtude do movimento brusco da ovelha, o Autor foi arrastado e caiu no chão sobre o seu ombro esquerdo (resposta ao quesito 5.º).

8 - No dia e hora referido em A), os cães dos Réus encontravam-se soltos na rua (resposta ao quesito 8.º).

9 - O referido espaço é separado do caminho público por um muro de cimento de 1,20 metros de altura, encimado por uma grade de ferro de 0,50 metros, e fechado com uma porta de ferro a poente que deita directamente para dentro da casa dos réus (resposta 7.º).

10 - Após a queda, cerca das 17.45 horas, o autor foi observado no Centro de Saúde de ..., onde lhe foi diagnosticado «Luxação Gleno-Umeral Esquerda» (resposta ao quesito 9.º).

11- Daquele Centro de Saúde foi transportado numa ambulância para o Hospital de São Teotónio em Viseu (resposta ao quesito 10.º).

12 - Nesse hospital o Autor foi sujeito a exame físico de limitação funcional, dor à palpação na região do ombro esquerdo e exames de imagem - RX Luxação do úmero esquerdo (resposta ao quesito 11.º).

13 - O Autor, durante um período não superior a um mês, necessitou de ajuda da sua esposa para efectuar as tarefas mais elementares do dia-a-dia, em virtude de não poder movimentar o ombro esquerdo (resposta ao quesito 12.º).

14 - O Autor teve que dirigir-se por 10 vezes a consultas médicas, a fim de ser observado e sujeitar-se a tratamentos diversos (resposta ao quesito 13.º).

15 - Teve que efectuar em exame radiológico ao ombro esquerdo, na localidade de Oliveira do Hospital, que implicou a pagamento de €1,70 euros (resposta ao quesito 14.º).

16 - Teve que efectuar uma ecografia do ombro esquerdo, na localidade de Santa Comba Dão, que importou a quantia de €50,00 euros (resposta ao quesito 15.º).

17 - Teve que se submeter a 15 (quinze) sessões diárias de fisioterapia, que importaram o pagamento de €150,00 euros (resposta ao quesito 16.º).

18 - O Autor despendeu em medicamentos €11,09 euros (resposta ao quesito 17.º).

19 - Em consultas médicas despendeu €166,25 euros (resposta ao quesito 18.º).

20 - Despendeu com a deslocação para a realização de consultas médicas, exames radiológicos, ecografias, fisioterapia e consultas no escritório da sua mandatária o montante de €257,07 euros (resposta ao quesito 19.º).

21- Em consequência da queda que deu, o autor sofre quase diariamente dores no seu ombro esquerdo, principalmente quando tem necessidade de pegar em objectos ou fazer qualquer movimento com o ombro esquerdo, dores essas que aumentam de intensidade e frequência em períodos de mudança de tempo (resposta ao quesito 20.º).

22 - Sendo que sofreu fortes dores durante o período de recuperação em que se sujeitou a diversos meios de diagnóstico e tratamentos, nomeadamente na fisioterapia (resposta ao quesito 21.º).

23 - Em 1 de Agosto de 2007, o autor apresentava sequelas que lhe conferiam uma IPP de 0,03% (resposta ao quesito 22.º).

24 - Em virtude das lesões que sofreu e respectivas dores, o autor sofreu e sofre de alterações comportamentais, caindo frequentemente em profundo desânimo (resposta ao quesito 23.º).

25 - À data da ocorrência da queda, era altura de efectuar as sementeiras (resposta ao quesito 24.º).

26 - Devido às lesões que sofreu, o Autor não pode fazer, pela sua própria mão, as sementeiras (resposta ao quesito 25.º).

27 - A queda sofrida pelo Autor provocou-lhe sequelas (resposta ao quesito 26.º).

28 - Tais sequelas determinam que o Autor continue a necessitar de assistência médica, medicamentosa e de fisioterapia (resposta ao quesito 27.º).

29 - O Autor necessita de realizar uma ressonância magnética, com vista a apurar se precisa de uma intervenção cirúrgica (resposta ao quesito 28.º).

30 - Os factos foram participados à Ré através do mediador de seguros (…)com escritório da localidade de... e reiterados por faxes, enviados pela mandatária do autor, datados de 21 e 28 de Maio, 8, 15 e 22 de Junho e 5 de Julho, todos de 2007 (al. d) dos factos assentes).

31 - Por carta datada de 5 de Julho de 2007, e ré declinou a responsabilidade pela ocorrência dos factos (aI. e) dos factos assentes).

 5. Passando agora à apreciação da questão de direito que decorre da alteração da matéria de facto.

a) Como os Réus são proprietários dos cães, devido a tal facto, convém ao caso o regime previsto no artigo 502.º do Código Civil, (danos causados por animais), onde se dispõe:

«Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo que envolve a sua utilização».

E não a disciplina do artigo 493.º do mesmo código ([1]), muito embora o regime do artigo 502.º e do artigo 493.º possam coexistir quando, como no caso, a pessoa obrigada à vigilância do animal é simultaneamente seu proprietário ([2]).

O artigo 502.º do Código Civil coloca sobre o dono dos animais uma responsabilidade objectiva, pelo que não interessa indagar, ao invés do regime previsto no artigo 493.º do mesmo código, se o proprietário agiu ou não com culpa.

Por conseguinte, o lesado, neste caso concreto, face a esta norma, apenas tem de provar:

(1) Os danos;

(2) O nexo de causalidade entre a «acção» dos cães e os danos;

(3) Que a «acção» dos cães foi uma actuação apropriada ou não alheia às suas reacções animais (perigosidade específica) ([3]); e

(4) Que o réu é o dono dos cães.

Face aos factos provados é de concluir que o Autor cumpriu este ónus, embora tivesse dificultado e muito a actividade do tribunal, ao não ter alegado na petição, como justamente se dá conta na sentença, a concreta acção dos cães que conduziu à produção do susto nas ovelhas.

E não teria sido tarefa difícil descrever a realidade por palavras simples, que todos pudessem entender da mesma forma, afastando as incertezas e os equívocos, dizendo aquilo que os cães fizeram.

Vejamos então.

No que respeita à «acção» dos cães, provou-se:

Que os cães dos Réus andavam soltos na rua (quesito 8.º);

Que, a certa altura do percurso efectuado pelo Autor, os cães assustaram as ovelhas (quesitos 2 e 3) que o Autor conduzia;

Que a ovelha que ia presa por uma corda, que o Autor segurava, fez um movimento brusco (quesito 4.º);

Que, em consequência do movimento brusco da ovelha, o Autor caiu no chão sobre o seu ombro esquerdo (quesito 5.º).

Cumpre agora apurar se estes factos chegam para concluir que existiu uma actuação dos cães susceptível de preencher o conceito de perigosidade que envolve a utilização dos animais, no caso posse dos cães, e que vem mencionado no artigo 502.º do Código Civil.

A resposta deve ser afirmativa.

Com efeito, é vulgar os cães assustarem outros animais em relação aos quais têm uma relação de domínio ou, não a tendo, quando agem em defesa do seu território.

Assustam outros animais ladrando ou arremetendo, simultaneamente ou não, sobre os mesmos, assumindo uma aparência de ataque.

É do conhecimento comum que faz parte da natureza dos cães arremeterem contra pessoas (como é frequente ver, por exemplo, contra pessoas que se deslocam a pé, em motorizadas ou bicicletas e mesmo automóveis) ou outros animais domésticos, (outros cães, galinhas, ovelhas, gatos, etc.) que encontram na rua, assustando-os ([4]).

No caso presente, os factos provados descrevem o resultado da actuação dos cães, mas, como já se disse e se dá justamente conta na sentença, não descrevem aquilo que os cães fizeram, omissão que tem assento na petição inicial e que nunca foi colmatada e que trouxe e continua a provocar dificuldades na apreciação do caso, quer ao nível dos factos, quer, depois, na aplicação do direito.

Sabemos, porém, que nem as ovelhas nem os cães racionalizam os seus comportamentos, agindo sim instintiva e irracionalmente, segundo a sua própria natureza, e submetidos às leis que governam os seus instintos.

Ou seja, os animais não são seres livres, ausência de liberdade que pressupõe que os seus comportamentos sejam determinados por leis rígidas, tratando-se em ambos os casos de animais não racionais, que agem, como se disse, por instinto, mecanicamente, portanto, quer estejam numa situação de ataque ou de fuga a um perigo que é sentido.

Por conseguinte, pode raciocinar-se no contexto em causa (ovelhas e cães que se encontram numa rua de uma aldeia), nestes termos:

Sabendo-se o resultado (o efeito), pode regredir-se do efeito à causa e concluir-se, com segurança, porque se trata de animais que agem e reagem por instintos, de forma determinista, que perante tal efeito (susto e movimento brusco da ovelha, só possível numa situação de fuga), só um comportamento típico dos cães tendo como alvo as ovelhas, inerente à sua natureza, pôde ter causado o comportamento também típico das ovelhas e daquela em concreto que ia presa por uma corda.


*

Para clarificar a questão cumpre efectuar aqui um parêntesis.

No modelo de explicação causal, aplicável nas ciências da natureza, admite, senão em todos os casos, pelo menos em grande parte deles, uma certa simetria entre explicação e a previsão.
Ou seja, se explicarmos a rotura de um fio (efeito) afirmando como condições iniciais/causa que o fio tinha uma resistência à tracção de um quilo e que foi pendurado do mesmo um peso de dois quilos, então também podemos prever (prognóstico) que colocando um peso de dois quilos num fio cuja resistência sabemos ser de um quilo, o fio irá partir-se (efeito).

A estrutura da explicação é, pois, semelhante à estrutura da previsão.

Na previsão ainda não conhecemos o efeito, mas conhecemos a causa e as leis que regem o fenómeno, a partir das quais podemos, por dedução, prever o efeito.

Por conseguinte, a diferença entre explicação e previsão depende, em muitos casos, somente de conhecermos ou não o efeito antes de o deduzirmos a partir da causa e das leis que governam a parcela da realidade em questão.

Se já conhecemos o efeito, deduzi-lo a partir de causas e leis servirá para explicá-lo; se não o conhecemos, a dedução servirá para prevê-lo.

Isto tem utilidade na hora de avaliar as provas e as relações que podem existir entre os diversos factos quando aparecem como causais uns dos outros, por forma a que, conhecendo-se um facto-efeito, se possa retroagir ao respectivo facto-causa e verificar se entre ambos os factos é possível estabelecer uma relação de causalidade por forma a concluir que fizeram parte da mesma factualidade histórica.

No caso, sabendo-se o efeito, a apontada reacção da(s) ovelha(s), podemos deduzir, com segurança, que tal efeito teve, necessariamente, como causa uma acção dos cães adequada, segundo a natureza de ambos os tipos de animais, a produzi-lo (efeito), ao invés de ter sido fruto de um qualquer acaso ou da reacção das ovelhas constituir para nós um mistério ([5]).


*

Ou seja, os cães actuaram de acordo com o seu comportamento animal que lhes é típico, isto apesar do processo não revelar aquilo que os cães fizeram (salvo no depoimento da esposa do Réu, como já acima se assinalou, mas que não passou para a matéria de facto), e as ovelhas interpretaram essa actuação dos cães levando-as a reagir de forma assustada, ao ponto da ovelha que era conduzida pelo Autor, que seguia presa por uma corda, ter reagido à acção dos cães também com um movimento brusco, que só pôde ter sido desencadeado com a finalidade de se afastar dos cães, de fugir, movimento esse que veio a provocar a queda do Autor ao chão.

Se assim não tivesse sido, as ovelhas não teriam reconhecido instintivamente na acção dos cães algo que as assustou e levou a que aquela que seguia presa tivesse tentado fugir.

Como se referiu no anterior acórdão desta Relação (folhas 315), «…um cão não passa de um lobo que foi domesticado, sendo certo que as ovelhas, instintivamente, temem os lobos e aparentados».

Concluiu-se, pois, que os factos conhecidos permitem inferir que os cães executaram em relação às ovelhas uma «acção» adequada a estas reconhecerem nela, instintivamente, um perigo para elas levando-as a reagir como ficou provado.

Existiu, pois, um nexo de causalidade entre a actuação dos cães, a reacção das ovelhas, designadamente daquela que o Autor levava presa por uma corda, o movimento brusco desta, a queda do Autor no chão e os danos sofridos por este na sua integridade física.

Trata-se de uma sequência de actos que se seguem uns aos outros numa sequência típica de causa para efeito.

Verifica-se, pois, que os factos provados são suficientes para preencher a previsão do artigo 502.º do Código Civil.

b) Os donos dos cães são responsáveis nos termos do artigo 502.º do Código Civil por serem os proprietários dos cães.

E a Ré seguradora?

Relativamente à Seguradora é de concluir que não pode ser responsabilizada na medida em que no respectivo contrato de seguro existe uma cláusula de exclusão da responsabilidade, nos termos da qual o seguro não garante os danos «Causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção de animais de companhia» - al. g) do artigo 4.º da apólice – ver folhas 111).

Ora, no que respeita à detenção de cães, o n.º 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro, dispunha ao tempo dos factos o seguinte: «É proibida a presença na via ou lugar públicos de cães sem estarem acompanhados pelo detentor, e sem açaimo funcional, excepto quando conduzidos à trela, em provas e treinos ou, tratando-se de animais utilizados na caça, durante os actos venatórios».

Resultou provado que no dia e hora referido em A), os cães dos Réus encontravam-se soltos na rua (resposta ao quesito 8.º), isto é, no local por onde o Autor seguia com as ovelhas.

E sem estarem acompanhados por uma pessoa («detentor»), ou seja, em infracção ao disposto no n.º 2, do artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro.

Ou seja, para o aspecto que agora se aprecia, a presença dos cães na rua, desacompanhados do dono, implica a conclusão de que se encontravam no local onde ocorreram os factos numa situação de infracção às «…disposições legais em vigor…» que regulamentavam a detenção de animais de companhia - (al. g) do artigo 4.º da apólice).

É certo que não se quesitou, pois não se alegou especificamente que os cães estavam desacompanhados do seu dono ou de alguém que desempenhasse a mesma função, mas ao alegar-se «…os cães dos Réus encontravam-se soltos» quis-se dizer também com a palavra «soltos» que eles se encontravam entregues a si próprios, isto é, desacompanhados de alguém.

Aliás, nem se pode defender algo diverso, pois a posição assumida pelos Réus, seus donos, foi a de que os cães não andavam soltos na rua, antes estavam confinados ao interior do logradouro da casa.

Conclui-se, por conseguinte, que andando os cães na rua, entregues a si mesmos, sem controlo do «detentor», estavam no local onde causaram os factos numa situação de infracção às disposições legais em vigor que regulamentavam a sua detenção, o que implica a exclusão da responsabilidade da Ré seguradora - al. g), do artigo 4.º da respectiva apólice.

Passando à liquidação da responsabilidade dos Réus.

c) No que respeita à obrigação de indemnização regem os art. 562.º e seguintes do Código Civil, dispondo este artigo que «Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação», devendo esta reparação consistir, sempre que possível, na reconstituição natural da situação que existia antes da ocorrência do evento danoso.

Os prejuízos patrimoniais distinguem-se em danos emergentes (o prejuízo causado nos bens ou nos direitos já existentes na titularidade do lesado à data da lesão, traduzindo-se numa desvalorização do património e numa perda no mesmo) e lucros cessantes (abrange os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito, mas a que ainda não tinha direito à data da lesão, traduzindo-se numa não valorização do património, numa frustração de um ganho) ([6]).

Vejamos os danos começando pelos patrimoniais.


*

Provou-se que o Autor fez as despesas com tratamentos médicos que ficaram referidas nas respostas aos quesitos 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º e 19.º, no total de €636,11 euros.

Tem direito a ser indemnizado destas despesas, já que é não as teria feito caso não tivesse ocorrido o evento.

Quanto a despesas que o Autor virá a efectuar no futuro.

Provou-se que a queda lhe provocou sequelas (resposta ao quesito 26.º), as quais determinam que o Autor continue a necessitar de assistência médica, medicamentosa e de fisioterapia (resposta ao quesito 27.º).

Além disso, o Autor necessita de realizar uma ressonância magnética, com vista a apurar se precisa de uma intervenção cirúrgica (resposta ao quesito 28.º).

Estes danos futuros, mas já praticamente certos, devem ser também suportados pelos Autores, pois são necessários a restaurar o anterior estado de saúde do Autor, o qual foi afectado negativamente pelo evento.


*

Passando agora à análise dos danos não patrimoniais.

Segundo o critério estabelecido no n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil, só haverá que fixar indemnização quanto aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

Não merecem essa tutela «...os prejuízos insignificantes ou de diminuto significado, cuja compensação pecuniária não se justifica, que todos devem suportar num contexto de adequação social, cuja ressarcibilidade estimularia uma exagerada mania de processar e que, em parte, são pressupostos pela cada vez mais intensa e interactiva vida social hodierna. Assim não são indemnizáveis os diminutos incómodos, desgostos e contrariedades, embora emergentes de actos ilícitos, imputáveis a outrem e culposos» ([7]).

Tutelam-se aqui «...não apenas os chamados danos morais (ofensas à honra, à dignidade, ao bom nome das pessoas, humilhações, vexames, desgostos de ordem afectiva), mas também os sofrimentos físicos (as dores corporais, padecimentos ou tratamentos dolorosos) e os complexos de pura ordem estética (como os provenientes de cicatrizes no rosto ou de anomalias no andar, no falar, no gesticular, etc.)» ([8]).

Afigura-se que os danos não patrimoniais a que se referem as respostas aos quesitos 10.º a 13.º e 21.º a 24.º encerram suficiente gravidade para merecerem tutela, tratando-se de situação que não tem de ser suportada altruisticamente pelo Autor em nome da tolerância e coesão sociais.

Não se trata, efectivamente, de danos insignificantes, que devam ser suportados como tributo a pagar à vivência em sociedade, com os seus benefícios e prejuízos, pois o Autor necessitou da ajuda da esposa durante três meses para efectuar as tarefas elementares do dia-a-dia.

Relativamente à medida da indemnização.

Não é possível, com elevado grau de certeza, quantificar monetariamente este tipo de dano.

Por um lado, porque o dano se produz na esfera pessoal, no modo de vida, e na sensibilidade moral da pessoa afectada, o mesmo tipo de causa gera danos diferenciados de pessoa para pessoa porque as pessoas e o ambiente pessoal em que se movem são diferentes.

Por outro, porque a causa do dano nunca ou raramente será exactamente a mesma de caso para caso.

Por conseguinte, a quantificação monetária deste tipo de danos far-se-á com recurso a critérios de equidade, nos termos autorizados pelo n.º 3 do artigo 496.º do Código Civil.

Tendo em consideração que não se conhece a situação económica das partes, o tipo de causa geradora dos danos; o tempo de recuperação do Autor e dificuldades produzidas no desempenho das tarefas elementares do dia-a-dia; os normais incómodos dos tratamentos; o ter sentido dores fortes neste período; o facto de ter ficado a padecer de dores que sente quando faz determinados movimentos com o ombro esquerdo, afigura-se ajustada ao caso uma indemnização de €3 500,00 (cinco mil euros), quantia esta que é actualizada à presente data.


*

Quanto aos juros.
Face ao disposto no artigo 806.º, n.º 1 e 2 do Código Civil, «1 - Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.  2 - Os juros devidos são os juros legais, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal».

É o caso dos autos.
Por sua vez, o art. 559.º, n.º 1 do Código Civil, determina que «Os juros legais e os estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo são os fixados em portaria conjunta dos Ministérios da Justiça e das Finanças e do Plano».

A taxa é de 4% ao ano (Portaria n.º 291/03 de 8/4).

O Autor pede juros desde a citação até integral cumprimento.

Nos termos do artigo 805.º, n.º 1, 2, al. b) e n.º 3 do Código Civil, «1 - O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.

2 - Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:

a ) (...); b) Se a obrigação provier de facto ilícito; c) (...).

3 - (...); tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação (...)».

A quantia fixada a título de danos não patrimoniais, actualizada à presente data, não está sujeita a juros a não ser após a data do presente acórdão ([9]).

A quantia relativa aos danos patrimoniais já verificados vence juros desde a citação.

Relativamente aos danos futuros os juros só podem vencer-se após a interpelação para pagamento da despesa feita.

Com efeito, neste caso não pode existir mora desde a citação, nos termos da regra que consta da última parte do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, porque, na altura da citação não existia ainda a dívida, quer como crédito líquido, quer como ilíquido.

Por conseguinte, como não é possível contar juros de uma dívida a partir de data anterior à existência dessa mesma dívida, não são devidos.

Nem se justifica o vencimento de juros logo a partir da existência da dívida, sendo de exigir a interpelação do devedor.

Com efeito, as despesas geradas por tratamentos futuros não estão incluídas, por serem futuras, na interpelação para pagamento que a citação, sem dúvida, constitui.

A interpelação efectuada através da citação refere-se apenas a dívidas existentes, embora ilíquidas, não a dívidas futuras, pois, como se referiu, não se pode exigir o pagamento actual de uma dívida futura cujo valor também é desconhecido.

Se assim não fosse, a despesa feita pelo credor podia vencer juros por largo tempo sem que o devedor o pudesse evitar, pagando.

Situação que se ficaria a dever ao facto do credor ter omitido a interpelação e de, por isso, o devedor desconhecer a dívida.

Daí que, neste caso, não seja de fixar o pagamento de juros porque tal pagamento resulta da lei, dado que o n.º 1 do artigo 805.º do Código Civil, onde se declara que o devedor fica constituído em mora depois de ter sido interpelado para cumprir. Para clareza da situação, será proferida decisão neste sentido.

III. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente.

1 – No que respeita à matéria de facto decide-se que a resposta ao quesito 6.º é «não provado»; a resposta ao quesito 8.º é «provado», com a especificação que os cães andavam soltos na rua; mantém-se a resposta dada ao quesito 7.º.

2 – Absolve-se a Ré seguradora do pedido.

3 – Condenam-se os Réus a pagar ao Autor a quantia de €636,11 (seiscentos e trinta e seis euros e onze cêntimos), acrescida de juros legais de mora desde a citação.

4 – Condenam-se os Réus a pagar ao Autor as quantias que este venha a despender com consultas médicas, diagnósticos, tratamentos, reabilitação, fisioterapia e medicação que venha a ter de efectuar, em virtude da queda que sofreu, e juros de mora a partir da respectiva interpelação para pagamento.

5 – Condenam-se os Réus a pagar ao Autor a quantia de €3 500,00 (três mil e quinhentos euros), acrescida de juros legais de mora, nos termos indicados, contados a partir da data do presente acórdão.

6 – Custas por Autor e Réus na proporção do respectivo vencimento e decaimento.

[1] «A diferença de regime explica-se pela diversidade de situações a que as duas disposições se aplicam: o artigo 493.º refere-se às pessoas que assumiram o encargo da vigilância dos animais (o depositário, o mandatário, o guardador, o tratador, o interessado na compra que experimenta o animal, etc.), enquanto o disposto no artigo 502.º é aplicável aos que utilizam os animais no seu próprio interesse (o proprietário, o usufrutuário, o possuidor, o locatário, o comodatário, etc.)» - Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª edição, pág. 484.

[2] «I. No que toca a danos causados por animais, as responsabilidades fundadas quer no disposto no artigo 493.º, quer no artigo 502.º do Código Civil, não se excluem uma à outra e podem coexistir. II. No caso do artigo 493.º, a responsabilidade é do vigilante do animal e funda-se na culpa, só havendo deslocação do ónus da prova; no caso do artigo 502.º, a responsabilidade assenta no princípio do risco que se cria, em relação a terceiros, com a utilização perigosa de animais» - ac. STJ de 19-06-2007, CJ (STJ) XV-II-121.

[3] «Essencial é que o dano proceda do perigo especial que envolve a utilização do animal e não qualquer facto estranho a essa perigosidade específica» -  Pires de Lima/Antunes Varela, ob. cit., pág. 485.

[4] «…o art. 502.º não se refere somente ao perigo especial de determinada espécie de animais, mas de igual modo ao perigo especial que qualquer ser irracional, dado, precisamente, que destituído de razão, necessariamente envolve» - ac. S.T.J. de 17-06-2003, C.J. (S.T.J.) XI-II-2003, pág. 116.

[5] «Assim, a estrutura lógica de uma predição científica é a mesma que a da explicação científica, tal como foi descrita em 2.1. Em particular, em toda a ciência empírica, tanto a predição como a explicação implicam a referência a hipóteses empíricas universais.

A distinção corrente entre explicação e predição reside principalmente numa diferença pragmática entre ambas: enquanto no caso da explicação já sabemos que o resultado final ocorreu e há que encontrar as suas condições determinantes, a situação inverte-se no caso da predição. Aqui estão dadas as condições iniciais e devem determinar-se os seus “efeitos”, que nos casos típicos ainda não se produziram» - Carl Hempel, La Explicacíon Científica (tradução castelhana da obra Aspects of Scientific Explanation and Other Essays in the Philosophy of Science), pág. 311/312, Editiones Paidós Ibérica, S.A. (tradução do relator).

[6] Cfr. Ac. do S.T.J de 11-05-2000, em http://www.gdsi.pt, processo n.º 00B327.

[7] R. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, pág. 555/556, Coimbra, 1995.

[8] Prof. Antunes Varela, RLJ N.º 123, pág. 253.

[9] «Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3  ─ interpretado restritivamente ─, e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação » - ac. do S.T.J. n.º 4/2002,  para uniformização de jurisprudência, de 9 de Maio de 2002, publicado no DR, I Série, n.º 146, de 27 de Junho de 2002, pág. 5057.