Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1272/05.0TBAND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
FALTA DE PAGAMENTO
PRÉMIO DE SEGURO
INEFICÁCIA
RESTITUIÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 04/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ANADIA - 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 473.º, N.ºS 1 E 2, DO CC E N.º 1 DO ARTIGO 6.º DO DECRETO-LEI N.º 142/00, DE 15 DE JULHO
Sumário: 1) É ilegal a consignação nas respostas aos quesitos de matéria de facto essencial à decisão de mérito resultante da discussão da causa, se a parte não manifestou a vontade de dela se aproveitar e não foi dada à parte contrária a possibilidade de se pronunciar.

2) No sistema emergente do Decreto-lei n.º 142/00, de 15 de Julho, a falta de pagamento do prémio de seguro no prazo estabelecido para o efeito implica, por regra, a resolução automática do contrato.

3) De qualquer modo, e a menos que as partes tenham acordado outra coisa, a cobertura dos riscos só se verifica a partir do pagamento do prémio inicial.

4) Não abusa do direito a seguradora que considera resolvido o contrato de seguro por falta do pagamento atempado do prémio inicial.

5) Efectuado o pagamento de indemnização em função de contrato de seguro que não produzia efeitos na altura em que ocorreu o evento gerador da reparação, tem a seguradora o direito de exigir a restituição do que pagou ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

            Companhia de Seguros AA...com sede na...., instaurou acção ordinária contra B... denominação posteriormente alterada para C..., com sede em ...., alegando, em resumo, o seguinte:

            A ré dirigiu-lhe uma proposta de seguro de tipo Multi-Riscos, para garantia de diversos riscos que pudessem ocorrer nas suas instalações; a apólice foi emitida, apenas, em 30.01.2003, data em que foi emitido, igualmente, o recibo relativo ao prémio inicial do contrato de seguro.

Mas, não tendo a ré pago o prémio inicial, que era devido até 09.02.2003, o contrato foi resolvido em 11.03.2003.

Só que, entretanto, havia ocorrido um sinistro, em resultado do qual pagou à ré uma indemnização no montante de € 22.191,02, com base no mesmo contrato.

O pagamento foi devido a mero lapso seu, pois que a ré, em face da resolução do contrato, não tinha o direito a haver indemnização alguma.

Apelando ao enriquecimento sem causa, pediu a condenação da ré no pagamento da quantia de € 22.191,02, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação.

            Regularmente citada, a ré contestou, afirmando, no essencial, que pagou o prémio de seguro em prazo e que o contrato não foi resolvido por falta de pagamento, pelo que tinha direito à indemnização suportada pela autora.

            Concluiu pela improcedência da acção.

            A autora replicou, de modo a contrariar a versão trazida aos autos pela ré.

            No despacho saneador foram afirmadas a validade e a regularidade da instância.

            A selecção da matéria de facto foi objecto de reclamação, parcialmente atendida.

            Efectuado o julgamento e dadas as respostas aos pontos controvertidos da base instrutória, foi proferida sentença, que absolveu a ré do pedido.

            Inconformada, a autora interpôs recurso, alegou e formulou as seguintes conclusões:

            a) A resposta ao ponto 2.º da base instrutória encerra matéria que não foi alegada, pelo que deve ser expurgada da mesma.

            b) O prazo para o pagamento do prémio de seguro foi fixado ao abrigo do n.º 8 do Regulamento 25/2000, de 14 de Outubro, do Instituto de Seguros de Portugal.

            c) O pagamento efectuado pela ré foi extemporâneo, por ter ultrapassado o prazo fixado.

            d) Não abusou de qualquer direito, porque a não produção de efeitos em resultado do não pagamento atempado de um prémio de seguro não é um direito do segurador, mas uma consequência directa da lei e do regulamento.

            e)Abusivo é o comportamento da apelada, que pretende beneficiar de um contrato para o qual não contribuiu durante mais de cinco anos.

            f) Foram violados os artigos 3.º, 264.º e 664.º do CPC, 2.º, 4.º, 6.º, 7.º e 8.º do DL 142/2000, de 15 de Julho, o Regulamento 25/2000, de 14 de Outubro, do Instituto de Seguros de Portugal, e os artigos 334.º, 406.º e 473.º e seguintes do CC.

            A apelada não contra-alegou.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            São quatro as questões a requerer solução:

            1) A alteração da matéria de facto;

            2) O prazo do pagamento do prémio de seguro;

            3) O abuso do direito;

            4) O enriquecimento sem causa.

            II. Na sentença apelada foram dados por assentes os seguintes factos:


1 – Em 06 de Novembro de 2002, a R. dirigiu à A. uma proposta de seguro de tipo Multi-Riscos PME’s, junta a folhas 8, cujo teor aqui se dá por reproduzido, através do qual pretendia que esta lhe garantisse a assunção de diversos riscos que pudessem ocorrer às suas diversas instalações, sitas em ...., entre os quais se encontrava o risco de danos que estas e os respectivos conteúdos – equipamentos de escritório, equipamento industrial, matérias primas, produtos acabados e diversos – pudessem sofrer em consequência, entre outros, de tempestades, inundações e danos por água.
2 – A apólice relativa a tal proposta só veio a ser emitida em 30 de Janeiro de 2003.

3 – Só a 30 de Janeiro de 2003 a autora emitiu o recibo relativo ao prémio inicial do contrato de seguro e que respeitava ao período de 06/11/2002 a 05/11/2003, no valor de € 3.313,78.

4 – Esse prémio devia ser pago a partir de 09.02.2003 (inclusive), até 11.03.2003.

5 – Em 07 de Janeiro de 2003 a ora R. participou à ora A. um sinistro que ocorreu em 02 de Janeiro de 2003 nas suas instalações de ...., que se traduziu numa enxurrada de água da chuva que, em consequência da muita precipitação caída nesse dia, escorreu pelos caminhos e terrenos circundantes às instalações da R. e penetrou nestas, onde atingiu a altura de alguns centímetros.

6 – A autora inventariou e avaliou os danos que resultaram do sinistro, tendo concluído que a R. havia sofrido danos de € 5.813,82 na parte do imóvel destinada a fábrica/sector produtivo; de € 1.457,60 na parte do imóvel destinado a serviços administrativos; de € 244,06 em mobiliário, equipamento e material de escritório; de € 45,56 em equipamento industrial; de € 12.598,90 em matérias-primas; de € 3.004,94 em produtos acabados; num total de € 23.164,88.

7 – Retirada a franquia fixa para os riscos de tempestades, inundações e danos por água de € 973,86, a autora pagou à ré, em 25.03.2004, o montante de € 22.191,02.

            8 – A ré pagou o prémio de € 3.313,78, respeitante ao prémio inicial do contrato, a que se refere o recibo/aviso de folhas 14.

            9 – Tal pagamento foi efectuado à autora a 02.04.03, pelo mediador da ré, D... , sendo que, em 24.02.2003, esta sociedade apresentou junto da autora pedido de esclarecimento quanto ao montante do prémio de seguro, já que ela e a ré entendiam que o montante do prémio deveria ser inferior, ficando estas a aguardar resposta da autora a tal pedido de esclarecimento, que não foi prestado.

            10 – A autora considerou o contrato referido em 1 e 2 como resolvido em 11.03.2003, pelo decurso de 30 dias desde a data de vencimento do aviso referido em 3 e 4.

            11 – A ré efectuou entrega por cheque, para pagamento do prémio referido em 3 e 4, em 01.04.2003, no mediador D....

            12 – Empresa para onde a autora havia enviado o aviso/recibo.

            13 – Onde o mesmo foi entregue à ré.

            14 – Essa empresa efectuou o pagamento à autora do valor desse aviso/recibo, em 02.04.2003.

            15 – O recibo não foi devolvido à autora, tendo sido entregue à ré, como prova do seu pagamento, pelo aludido mediador.

            16 – Por carta de 30.11.2004, a autora remeteu à ré cheque, titulando € 3.313,70, para efeito de “devolução do valor do recibo n.º 03010223654 contrato 9460.1455 anulado por falta de pagamento”, nos termos constantes de folhas 29.

            17 – Por carta de 06.12.2004, junta a folhas 30, cujo teor aqui se dá por reproduzido, a ré devolveu à autora a carta referida no número anterior.

            18 – Os serviços de sinistro da autora geriram o processo, assumindo que a ré não deixaria de pagar o prémio inicial do contrato de seguro quando este viesse a ser apresentado a pagamento.

            III. O direito:

            a) A alteração da matéria de facto

            O problema tem a ver com a resposta dada ao artigo 2.º da base instrutória, que, segundo a apelante, extravasa da matéria de facto alegada e viola, nessa medida, o disposto nos artigos 664.º e 264.º, n.º 3, do CPC.

            Como facilmente se vê do relatório deste acórdão, a grande questão que aqui se discute é a de saber se a ré/apelada pagou atempadamente o prémio inicial relativo a um seguro Multi-Riscos que contratou com a autora/apelante; segundo esta, o prémio era devido em 9 de Fevereiro de 2003, mas não foi pago nessa data nem no decurso dos 30 dias seguintes (só teria ocorrido em 3 de Abril do mesmo ano), razão pela qual o contrato foi resolvido em 11 de Março; segundo aquela, o prémio teria sido pago antes desta data, pelo que o contrato não poderia ser resolvido.

            Aceite por ambas as partes a data em que o prémio era devido, quesitaram-se as respectivas versões quanto à data do pagamento, que, no caso, da apelante, tiveram expressão nos dois primeiros artigos da base instrutória, formulados desta maneira:

            1) O pagamento referido em h) foi efectuado à A. após 11 de Março de 2003, pelo mediador da ré?

            2) (…) pagamento efectuado a 3 de Abril de 2003?

            Na resposta esclareceu-se que o pagamento foi efectuado a 2 de Abril de 2003 (pelo mediador da ré D...), acrescentando-se, porém, que, “em 24.02.2003, esta sociedade apresentou junto da autora pedido de esclarecimento quanto ao montante do prémio de seguro, já que ela e a ré entendiam que o montante do prémio deveria ser inferior, ficando estas a aguardar resposta da autora a tal pedido de esclarecimento, que não foi prestado”.

            É deste acrescento que a apelante discorda, por o considerar violador dos artigos 664.º e 264.º, n.º 3 do CPC.

            E há que dar-lhe razão, pois que, na verdade, a consignação de tal matéria ultrapassa claramente os poderes conferidos ao juiz quanto à conformação factual da causa.

            Cumpre esclarecer, antes de tudo, que os artigos 1.º e 2.º da base instrutória até eram irrelevantes para a decisão de mérito, à luz das regras do ónus da prova, na medida em que a autora só tinha de provar a existência do contrato de seguro e o prazo do pagamento do prémio devido (que não foram impugnados), cabendo à ré a prova do cumprimento atempado, como matéria de excepção, que é (artigo 342.º, n.º 2, do CC).

            Em qualquer caso, as respostas não podem sair do âmbito do princípio basilar do dispositivo, que modela o nosso ordenamento processual civil. Não que estejam vedadas as respostas restritivas ou simplesmente explicativas, que, aliás, se mostram, muitas vezes, necessárias para traduzir a verdade dos factos; o que se não pode é, a coberto da explicação, dar por adquirida matéria essencial ao desfecho da questão, que as partes não tiveram o cuidado de submeter à apreciação do tribunal.

            A regra, afirmada no n.º 1 e na primeira parte do n.º 2 do artigo 264.º do CPC e reafirmada no artigo 664.º do mesmo diploma, é a de que a modelação da matéria de facto, no que toca à ossatura das pretensões deduzidas, cabe às partes (o autor tem de alegar os factos constitutivos do direito invocado – ou seja, a causa de pedir – e o réu os que sejam impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito – que é como quem diz, os que respeitam às excepções) e a de que a decisão só pode levar em consideração esses factos e não outros.

            Mas a regra, como quase todas as regras, sofre excepções, logo enunciadas na segunda parte do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 264.º. Aquele permite a consideração, mesmo em termos oficiosos, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa; este, a dos factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros oportunamente alegados, desde que o interessado manifeste o desejo de deles se aproveitar e for observado o contraditório.

            Factos essenciais são, como o nome indica, aqueles em que as partes se baseiam para deduzir as respectivas pretensões (tendentes à afirmação do direito, no caso do autor, e à sua aniquilação, no caso do réu), ou seja, “os factos integradores da previsão ou «tatbestand» da norma aplicável à pretensão ou à excepção” (Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, página 416).

            Instrumentais ou indiciários, por sua vez, são os que “não pertencem à norma fundamentadora do direito e em si lhe são indiferentes, e que apenas servem para, da sua existência, se concluir pela dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção” (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, volume III, páginas 275/276); são factos que permitem estabelecer uma ligação com os factos essenciais e, por essa via, aferir da realidade destes; e, exactamente, porque de simples factos probatórios ou acessórios se trata, não precisam de ser alegados nem incluídos na base instrutória, sendo atendidos desde que venham à toa na instrução ou na discussão da causa (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, página 466).

            Olhando para os factos que a apelante pretende ver arredados, sem esforço se vê que são essenciais à decisão da causa (foram-no, sem dúvida, na hipótese em apreço, pois que a sentença se estribou, para julgar a acção improcedente, na indefinição do prazo de pagamento do prémio, derivada da falta de resposta ao pedido de esclarecimento formulado em 24.02.2030, e, bem assim, no exercício abusivo do direito de resolução do contrato de seguro, consistente, em primeira linha, no malogro das expectativas da apelada em ver definido o valor a pagar, mediante a resposta ao mencionado pedido); e não são, sequer, meramente complementares ou concretizadores, como aquela afirma, mas verdadeiramente novos e originais, porque configuradores de uma tese divergente da trazida aos autos pela ré/apelada.

            O que esta alegou foi que pagou o prémio do seguro dentro do prazo fixado e por ela aceite, ou seja, antes de 11 de Março de 2003; porém, o que se provou foi bem diferente e vem confirmar, no fundamental, a tese da apelante: que o pagamento foi efectuado para além do tempo devido, concretamente, em 2 de Abril de 2003.

            Neste enquadramento, é bom de ver que a consideração de ter sido formulado, em 24 de Fevereiro de 2003, um pedido de esclarecimento quanto ao montante do prémio devido, a que não foi dada resposta, não complementa nem concretiza facto algum que tenha sido alegado; sê-lo-ia, se a apelada tivesse admitido o pagamento fora do prazo, mas imputasse à apelante a responsabilidade pelo sucesso; asseverando o cumprimento em prazo da sua obrigação, a situação muda completamente de figura. Do que se trata, rigorosamente, é de uma alteração da defesa que a lei não permite fora do articulado de contestação (artigo 489.º do CPC).

            Mas, ainda que de factos complementares ou concretizadores se tratasse, a verdade é que nem assim poderiam ser atendidos, em face do que dispõe o falado artigo 264.º do CPC no seu número 3, que exige, para a sua consideração, um triplo requisito: 1) que a matéria resulte da instrução e discussão da causa; 2) que o interessado manifeste a vontade dela se aproveitar; 3) que à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.

É inquestionável que a matéria ora impugnada resultou da discussão da causa, como emerge da fundamentação utilizada (depoimento de uma testemunha e documento por esta junto); mas a apelada não manifestou a vontade de dela se aproveitar (tal não consta do processo, pelo menos), o que arreda a viabilidade da sua consignação em sede de factos provados, por via da regra geral da nulidade dos actos plasmada no artigo 201.º do CPC.

            A prática de um acto que a lei não admita só produz nulidade se a ali o declarar ou se a irregularidade puder influir no exame ou na decisão da causa (n.º 1 daquele preceito). No caso, a lei não comina sanção específica para a situação verificada, mas é indubitável que a consideração dos factos em análise pode influir decisivamente no desfecho da questão, por configurar em moldes diversos (quanto ao prazo) a obrigação assumida pela apelada no contrato de seguro descrito nos autos; a falta de resposta ao pedido de esclarecimento não poderia deixar de ser entendida (e foi-o, efectivamente) como uma violação do princípio da boa fé subjacente ao exercício do direito do credor (artigo 762.º, n.º 2, do CC), com consequências inevitáveis na solução final do litígio.

            Daí, que, e tal como sustenta a apelante, deva ser alterada a resposta ao artigo 2.º da base instrutória, que passará a ter a seguinte redacção: “provado, apenas, que tal pagamento foi efectuado a 2 de Abril de 2003”.

            b) O prazo de pagamento do prémio de seguro

             

            A acção em presença está estruturada no instituto do enriquecimento sem causa. Sintetizando,            pretende a apelante que a apelada lhe devolva uma quantia que recebeu indevidamente, porque entregue em função de um contrato de seguro que, ao tempo, já estava resolvido por falta de pagamento do respectivo prémio.

            A versão da ré é que o contrato não foi resolvido, porque o prémio foi pago atempadamente pelo seu mediador.

            A prova produzida, por seu turno, diz que, em 06.11.2002, a apelada dirigiu à apelante uma proposta de seguro, do tipo multi-riscos; que a apólice só veio a ser emitida em 30.01.2003, data em que foi emitido, igualmente, o recibo referente ao prémio inicial; que o prémio devia ser pago a partir de 09.02.2003 até 11.03.2003; que, em 02.01.2003, ocorreu um sinistro nas instalações da apelada, em razão do que a apelante, inventariou e avaliou os danos, na pressuposição de que aquela não deixaria de satisfazer o prémio, e, mais tarde (em 25.03.2004), lhe entregou a importância de € 22.191,02; que a apelada fez chegar o valor do prémio inicial ao respectivo mediador em 01.04.2003, que, por sua vez, o entregou à apelante no dia seguinte; e que a apelante considerou resolvido o contrato de seguro em 11.03.2003, pelo decurso de 30 dias sobre a data do vencimento do aviso de pagamento.

            Na sentença entendeu-se que o prazo de pagamento do prémio não estava concretamente definido, pelo que se não podia concluir pela falta de cumprimento atempado da obrigação da apelada; raciocinou-se, para tanto, que o prazo não foi fixado nos termos do DL 142/00, mas imposto unilateralmente pela apelante, que, por outro lado, não respondeu aos esclarecimentos solicitados pelo mediador em 24.02.03.

            A tese da apelante é a de que a falta de fixação de prazo tem de ser suprida por outra via, nomeadamente pela aplicação analógica da regra para o pagamento dos prémios subsequentes, que foi o mecanismo a que recorreu, transmitindo à apelada, para além de outros elementos, a data em que o prémio era devido e as consequências da falta do seu pagamento.

            Vejamos o que dizem as normas aplicáveis.

            Rege, neste particular, o Decreto-lei n.º 142/00, de 15 de Julho, diploma que estabeleceu o regime jurídico do pagamento dos prémios de seguro, com excepção dos respeitantes aos seguros dos ramos colheitas, ao ramo Vida e aos seguros temporários celebrados por períodos inferiores a 90 dias, que, no seu artigo 4.º, preceitua:

            “1 – O prémio ou fracção inicial é devido na data da celebração do contrato”.

            “2 – É, no entanto, admitido o pagamento do prémio ou fracção inicial em data posterior à da celebração do contrato, de acordo com norma regulamentar a emitir pelo Instituto de Seguros de Portugal (…)”.

            O artigo 6.º, n.º 1, por sua vez, é do seguinte teor:

            “A cobertura dos riscos apenas se verifica a partir do momento do pagamento do prémio ou fracção inicial, salvo se, por acordo entre as partes, for estabelecida outra data, que não pode, todavia, ser anterior à da recepção da proposta de seguro pela empresa de seguros”.

            Na sequência da faculdade permitida por aquele n.º 2 do artigo 4.º, estabeleceu o Instituto de Seguros de Portugal (Norma Regulamentar 9/2000) que a data da celebração do contrato é a data do início da cobertura (n.º 1), que as partes podem convencionar que o pagamento do prémio inicial tenha lugar até ao 30.º dia posterior à data em que se pretende que a cobertura tenha início (n.º 2), que, sempre que o prazo convencionado seja superior a 20 dias, a empresa de seguros, até ao meio do mesmo, deve avisar, por escrito, o tomador (n.º 4), que o contrato produz efeitos desde a data pretendida se o pagamento for feito dentro do prazo convencionado (n.º 5) e que o contrato se considera resolvido desde o início na hipótese inversa (n.º 6).

            Estão ambas as partes de acordo em que o prémio inicial não foi pago na data da celebração do contrato nem convencionado o seu pagamento até ao 30.º dia após a data em que se pretendia que a cobertura tivesse início, nos termos do n.º 2 do artigo 4.º daquele DL e do n.º 2 da aludida norma do ISP.

            O problema é saber como ultrapassar a questão. A apelante recorreu à previsão legal para o pagamento dos prémios ou fracções subsequentes (artigo 7.º do mencionado Decreto-lei), emitindo aviso com a indicação da data do pagamento, do valor a pagar, da data do pagamento e das consequências da falta de pagamento, nomeadamente a data a partir da qual o contrato é automaticamente resolvido.

            E a solução parece perfeitamente razoável, não apenas porque ajustada à regra geral da determinação do prazo estabelecida no artigo 777.º, n.º 1 do CC (“o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação”), mas, sobretudo, porque encontrada dentro da legislação aplicável e conforme ao seu espírito.

            Se o segurador tem direito ao prémio e o tomador do seguro o dever de o pagar, é óbvio que não pode deixar de ser fixado um prazo para o efeito; inexistindo disposição especial que colmate a falta de convenção das partes nos termos do n.º 2 do DL 142/00, o recurso à regra do pagamento dos prémios subsequentes apresenta-se como um meio equilibrado de atingir aquela finalidade, que, aliás, em nada prejudica o tomador, bem pelo contrário, uma vez que fica a dispor de mais tempo para cumprir a sua obrigação.

            De resto, o prazo de pagamento foi pacificamente aceite pela apelada, o que acaba por tornar estéril a discussão; é o que resulta da compreensão global da sua contestação e, mais especificamente, da ausência de impugnação do artigo 15.º da petição inicial (onde a recorrente alegou que o prémio era devido em 09.02.2003), do teor do artigo 3.º, onde reportou a data limite do pagamento a 11.03.2003, e do apelo expresso ao aviso de pagamento emitido por aquela, do qual consta, além do mais, ser o prémio devido em 09.02.2003, mas aceitar a seguradora a sua liquidação até 30 dias mais tarde, após o que procederia à resolução do contrato.

            Reflectindo o acordo de posições, consignou-se nos factos assentes do despacho de selecção que “esse prémio devia ser pago a partir de 09.02.2003 (inclusive), até 11.03.2003”.   

            Não se vê, portanto, como possa o ex.mo juiz falar em indefinição do prazo de pagamento do prémio, quando há concordância das partes quanto ao assunto; e nem a chamada a terreiro do pedido de esclarecimento relativo valor do prémio, pretensamente formulado pelo mediador da apelada, dá consistência ao seu raciocínio, uma vez que tal matéria foi ilegalmente consignada e, como tal, declarada não escrita.

            Com tal fundamento, portanto, não pode a sentença manter-se.

            c) O abuso do direito

            Defende-se, ainda, na sentença, que, mesmo a entender-se que o pagamento do prémio ocorreu para além do prazo estipulado, a resolução automática do contrato de seguro pretendida pela apelante seria ilegítima, por configurar “um flagrante caso de abuso do direito”.

            Segundo o raciocínio desenvolvido, o pedido de esclarecimento apresentado pelo mediador quanto ao montante do prémio teria criado na apelada a expectativa de uma resposta, que não veio a ser dada; o silêncio da apelante, associado à aceitação da posterior liquidação de prémio, ao pagamento da indemnização em data muito ulterior a essa liquidação e ao tempo decorrido até ao momento em que a apelante se lembrou de invocar a resolução do contrato, devolvendo o montante do prémio inicial do contrato, teria criado na apelada a convicção de que o contrato perdurara e fora tido como válido pela seguradora.

            Contrapõe a apelante que a não produção de efeitos pela falta do pagamento atempado de um prémio não é um direito do segurador, mas uma consequência directa da lei e do regulamento, pelo que não podia ter abusado de um direito que lhe não assistia.

            Há que dizer, em jeito de preâmbulo, que a decisão enferma de um vício lógico, ao admitir a susceptibilidade de a resolução automática do contrato fazer incorrer a apelante em abuso do direito; é evidente que não pode haver abuso, quando a consequência deriva da lei e não da vontade da parte; a haver abuso, então, seria da lei, coisa que se não pode conceber, a menos que se equacione a sua ilegalidade ou inconstitucionalidade.

            O que se pode, e deve, questionar é se a falta de pagamento do prémio dentro do prazo estipulado acarreta a resolução do contrato de seguro “ex vi legis”, como sustenta a apelante.

            Sabe-se que a regra geral não é essa. Nos contratos bilaterais, a simples mora não confere o direito à resolução, sendo necessário, para tanto, que ela se converta em incumprimento definitivo, mormente através da notificação admonitória a que alude o artigo 808, n.º 1, do CC (Antunes Varela, Das Obrigações em geral, volume II, 5.ª edição, página 119).

            Por outro lado, a resolução efectiva-se mediante declaração à outra parte, nos termos do artigo 436.º, n.º 1, do mesmo código, tornando-se eficaz, de acordo com a teoria da recepção consagrada no n.º 1 do artigo 224.º, logo que chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida (acórdão do STJ, de 10.02.2005, CJ de Acórdãos do Supremo, Ano XIII, Tomo I, página 71).

             Mas não assim no âmbito do Decreto-lei 142/00, de 15 de Julho, cujo sistema é, “grosso modo”, o da resolução automática por falta de pagamento, como se escreveu no aresto imediatamente antes citado.

            No caso dos prémios subsequentes, a consequência não suscita quaisquer dúvidas, em face do teor do n.º 1 do artigo 8.º daquele diploma: “Na falta de pagamento do prémio ou fracção na data indicada no aviso referido no artigo anterior, [1] o tomador de seguro constitui-se em mora e, decorridos que sejam 30 dias após aquela data, o contrato é automaticamente resolvido, sem possibilidades de ser reposto em vigor”.

            No caso do prémio inicial é, igualmente, líquida a resolução automática, desde que as partes tenham convencionado o pagamento até ao 30.º dia após a data em que se pretenda que a cobertura tenha início, nos termos do n.º 2 do artigo 4.º daquele DL e do n.º 2 da Norma Regulamentar 9/2000 (n.º 6 da mesma Norma, acima transcrito).

            E se as partes não tiverem convencionado prazo ao abrigo destes preceitos?

            Por norma, isso significará que o prémio foi pago na data da celebração do contrato, que é, de resto, a regra geral (artigo 4.º, n.º 1, do DL 142/00). Mas, se o não tiver sido, o que acontece é que se não verifica a cobertura dos riscos enquanto o pagamento estiver em dívida (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

            No caso vertente, o prémio não foi pago na data da celebração do contrato, o que parece querer dizer que segurador e tomador de seguro diferiram o pagamento para momento posterior; o certo, porém, é que não convencionaram que o pagamento do prémio tivesse lugar no prazo referido no n.º 2 da Norma Regulamentar 9/2000 e a apelante acabou por fixar um prazo, a que a apelada deu a sua adesão.

            Quais as consequências do não pagamento dentro desse prazo?

            À primeira vista, não se vê razão para que não seja a resolução automática do contrato, de acordo com o n.º 6 da citada Norma; se a apelante estabeleceu um prazo e a apelada o aceitou, parece fazer todo o sentido aplicar ao incumprimento, por analogia, o que se dispõe para a falta de observância do prazo convencionado.

            Mas, a entender-se que a resolução só se aplica à estrita hipótese configurada no n.º 2 da Norma, a consequência da falta de pagamento seria, então, a prevista no n.º 1 do artigo 6.º do DL 142/00, isto é, a ausência de cobertura dos riscos assegurados pelo contrato.

            Trata-se, em qualquer caso, de consequências impostas directamente por lei e não derivadas da vontade das partes, pelo que, ao declarar à apelada que o contrato não produzia efeitos, nunca poderia a apelante estar a agir em abuso do direito.

            Cai, pois, pela base o segundo fundamento invocado para a improcedência da acção.

           

            d) O enriquecimento sem causa

            Afastados os obstáculos levantados na sentença, nada obsta, ao que se julga, à procedência da pretensão da apelante.

            Recapitulando parte do que já foi dito, apelante e apelada celebraram entre si um contrato de seguro do tipo multi-riscos, nos termos do qual aquela se obrigou a indemnizar os danos de água e outros sofridos por esta nas suas instalações e a apelada se obrigou a pagar os prémios de seguro devidos. Embora a proposta tenha sido apresentada em 6 de Novembro de 2002, a apólice só veio a ser emitida em 30.01.2003, o mesmo sucedendo, aliás, com o recibo relativo ao prémio inicial, cujo pagamento foi estipulado para 09.02.03, aceitando, contudo, a apelante que a liquidação se fizesse até 11 de Março do mesmo ano.

Participado um sinistro resultante de água da chuva, em 07.01.2003, a apelante inventariou e avaliou os danos e pagou à apelada, já no decurso do ano de 2004, a importância de € 22.191,02.

Esta, porém, não pagou o prémio inicial até ao dia 11 de Março de 2003.

Seja qual for a posição que se perfilhe quanto às consequências da falta de pagamento do prémio inicial no prazo estabelecido (resolução do contrato desde o início ou falta de cobertura dos riscos, como se referiu no item anterior), certo é que o contrato de seguro não produzia efeitos na data do sinistro que deu origem ao pagamento da indemnização feito pela apelante à apelada.

Nos termos do artigo 473.º, n.º 1, do CC, “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”; acrescenta o n. 2 que “a obrigação de restituir … tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.

A obrigação de restituir derivada de tal preceito pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos: 1) que haja um enriquecimento de alguém; 2) que o enriquecimento careça de causa justificativa; c) que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição (Antunes Varela, Das Obrigações em geral, volume I, 7.ª edição, página 467).

Caso particular da figura geral do enriquecimento sem causa é a repetição do indevido, prevista no artigo 476.º do mesmo código, que configura três hipóteses: a) o cumprimento de obrigação inexistente; b) o cumprimento de obrigação alheia, na convicção errónea de se tratar de dívida própria; c) o cumprimento de obrigação alheia, na convicção errónea de se estar vinculado, perante o devedor, ao cumprimento dela.

Para a configuração da primeira hipótese são necessários três pressupostos: 1) que seja efectuada uma prestação com a intenção de cumprir uma obrigação; 2) que a obrigação não exista; 3) que não haja, sequer, por detrás do cumprimento, um dever de ordem mora ou social, sancionado pela justiça, que dê lugar a uma obrigação natural.

Não se exige, de qualquer sorte, o erro do solvens no acto do cumprimento, não obstando à repetição do indevido o facto de o prestador da obrigação estar seguro da sua inexistência (Antunes Varela, ob. cit., páginas 495/497).

Porque a obrigação de restituir não visa reparar o dano do lesado, mas eliminar o enriquecimento, o objecto da obrigação de restituir compreende apenas aquilo que o enriquecido obteve à custa do empobrecido (artigo 479.º, n.º 1, do CC). Mas após a citação judicial para a restituição, o enriquecido passa a responder, além do mais, pelos juros legais das quantias a que o empobrecido tiver direito (artigo 480.º do mesmo código).

Perante a matéria de facto provado, fácil é de ver que a apelada enriqueceu injustificadamente à custa da apelante, perfilando-se com toda a nitidez o caso particular da repetição do indevido; a apelante despendeu uma determinada quantia (de razoável montante, aliás) a favor da apelada, no intuito de cumprir uma obrigação contratual (cobertura de danos), quando a mesma não existia, devido à circunstância de os riscos assegurados pelo contrato não estarem cobertos na data do evento lesivo.

A apelante viu diminuído o seu património em valor igual ao da indemnização que pagou à apelada e esta viu o seu património acrescido no mesmo montante.

Terá, pois, a apelada de restituir a quantia que recebeu, acrescida de juros, à taxa legal, a contar da citação (artigo 480.º do CC).    

             

           

            IV. Síntese final:

            1) É ilegal a consignação nas respostas aos quesitos de matéria de facto essencial à decisão de mérito resultante da discussão da causa, se a parte não manifestou a vontade de dela se aproveitar e não foi dada à parte contrária a possibilidade de se pronunciar.

            2) No sistema emergente do Decreto-lei n.º 142/00, de 15 de Julho, a falta de pagamento do prémio de seguro no prazo estabelecido para o efeito implica, por regra, a resolução automática do contrato.

            3) De qualquer modo, e a menos que as partes tenham acordado outra coisa, a cobertura dos riscos só se verifica a partir do pagamento do prémio inicial.

            4) Não abusa do direito a seguradora que considera resolvido o contrato de seguro por falta do pagamento atempado do prémio inicial.

            5) Efectuado o pagamento de indemnização em função de contrato de seguro que não produzia efeitos na altura em que ocorreu o evento gerador da reparação, tem a seguradora o direito de exigir a restituição do que pagou ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.

            V. Decisão:

            Em face do exposto, julga-se procedente a apelação, em razão do que se revoga a sentença apelada e se condena a recorrida a restituir à recorrente a importância de € 22.191,02 (vinte e dois mil, cento e noventa e um euros e dois cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, a contar da citação.

            Custas em ambas as instâncias pela recorrida.


[1] O artigo 7.º obriga a seguradora a avisar, por escrito, o tomador, com 30 dias de antecedência, da data em que o prémio é devido, do respectivo valor e da forma de pagamento e, bem assim, das consequências da falta de pagamento, com indicação da data em que o contrato é automaticamente resolvido.