Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2678/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: ACÇÃO REAL
MURO DIVISÓRIO
PRESUNÇÃO DE COMPROPRIEDADE
CACHORROS DE PEDRA
Data do Acordão: 11/29/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1371º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – De acordo com o disposto no artº 1371º do Código Civil, os muros entre prédios rústicos presumem-se comuns, não havendo sinal em contrário, sendo sinal que exclui a presunção de comunhão haver no muro, só de um lado, cachorros de pedra salientes encravados em toda a largura dele.
II – Os cachorros de pedra são saliências, encravadas no muro, que servem, ou se destinam a servir, de pontos de apoio a uma construção.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A... e mulher, B..., intentaram, 02/09/2003, pelo Tribunal Judicial de Tondela, a presente acção declarativa, com forma de processo sumário, contra C... e mulher D..., pedindo que os Réus sejam condenados a:
a)-reconhecerem que o muro divisório identificado nos artºs 10º a 14º da p. i. com as características aí referidas faz parte integrante do prédio dos Autores identificado no artº 1º da petição inicial;
b)-a retirarem tudo quanto nele implantaram, abstendo-se de proceder a qualquer outra alteração do mesmo;
c)-a repor no mesmo local e com a mesma linha de orientação os blocos de granito que retiraram do muro inicialmente colocando os ditos blocos de granito nas mesmas condições descritas nos artºs 10º, 11º, 12º, 13º e 14º da petição inicial;
d)-Reconhecer que o prédio identificado no artº 1º da petição inicial é propriedade dos Autores pela usucapião que expressamente invocaram a seu favor.
Para fundamentarem os seus pedidos alegaram, em síntese, que são donos e legítimos possuidores de um prédio que identificam no artº 1 da petição inicial, invocando factos consubstanciadores da sua aquisição por usucapião. Os réus são proprietários de um prédio rústico que confina com o prédio dos autores, estando tais prédios demarcados numa extensão de 20,2m através de um muro divisório de pedras de granito, o qual se encontra regularmente faceado pelo lado do prédio dos réus, obedecendo a um segmento de recta de alinhamento, estando a face plana dos blocos de granito voltada para o prédio dos réus e do lado do prédio dos autores tais blocos de

granito encontram-se irregulares e com face saliente, constituindo cachorros que se encontram por toda a largura do muro. Não há memória de quem tenha edificado o muro, no entanto, em face da existência dos cachorros, presume-se que o mesmo é parte integrante do prédio dos autores. Os réus, no entanto, desde há cerca de 6 meses, têm vindo a retirar as pedras de granito e em sua substituição implantaram, ocupando a totalidade da largura do muro, postes em lousa e cimento aramados e alinhando-os pelo lado do prédio dos autores, fazendo desaparecer os anteriores blocos de granito que constituíam o muro, sendo que, a inexistirem os cachorros, e que faz presumir que a propriedade do muro é dos autores, sempre o dito muro seria comum a ambos os prédios.
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Os réus contestaram, alegando que o muro aludido pelos autores foi sendo construído ao longo dos anos, primeiro pela ré e seu irmão ainda adolescentes, com pedras irregulares que iam retirando do terreno de cultivo e que estorvavam o amanho da terra e posteriormente pelo réu, que continuou a colocar mais algumas pedras no local de forma a construir o muro até ao limite do seu prédio, o que têm feito à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de o fazer sobre coisa sua, tendo os autores sempre reconhecido os réus como proprietários de tal muro. Os réus retiraram algumas pedras do muro por necessitarem delas noutro local.
Concluem pela improcedência da acção e sua absolvição dos pedidos formulados.
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Os Autores apresentaram articulado de resposta alegando que o muro já existia no tempo do antepossuidor dos pais da ré e que nunca reconheceram o muro como sendo propriedade dos réus, impugnando os factos alegados pelos réus e concluindo nos mesmos termos da petição inicial.
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Foi proferido o despacho saneador e organizada a matéria de facto considerada assente e a que constitui a base instrutória, sem qualquer reclamação.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento e, decidida a matéria de facto controvertida, sem reclamações, foi proferida a sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando os réus a reconhecerem os autores como donos e

legítimos possuidores do prédio identificado no artº 1º da p.i., que adquiriram por usucapião; a reconhecerem que o muro divisório identificado nos nºs 3, 10 e 11 dos factos provados, com as características aí referidas, é propriedade em comum de autores e réus; a retirarem do muro tudo quanto nele implantaram, abstendo-se de proceder a qualquer outra alteração do mesmo; e a reporem no mesmo local e com a mesma linha de orientação os blocos de granito que retiraram do muro, colocando-os nas mesmas condições em que se encontravam anteriormente.
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Na 1ª instância foi dado como provado o seguinte:
1 - No lugar de Tapado, limite de Valverde, freguesia de Canas de Santa Maria, existe um prédio rústico composto de terreno de vinha com oliveiras e centeio, com a área de 1430m2, a confrontar do norte com sucessores de Domingos Pereira, do nascente com Eduardo Marques Martins, do sul com Anselmo Pais Pereira e do poente com os réus, inscrito na matriz sob o artº 504 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tondela sob o nº 01898/240304 (al. A) dos Factos Assentes).
2 - Os réus são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico sito no lugar do Tapado, limite de Valverde, freguesia de Canas de Santa Maria, composto por terreno de cultivo e vinha, com a área de 930m2, a confrontar do norte com Anselmo Pais Pereira, do nascente com os autores, do sul com António Rodrigues Oliveira e do poente com Aurora Loureiro Marques, inscrito na matriz sob o artº 506 (al. B).
3 - O prédio aludido no nº 2 confronta do nascente com o prédio aludido no nº 1 onde existe um muro com pedra de granito (al. C).
4 - Há cerca de seis meses, atenta a data da propositura da acção, os réus têm vindo a retirar pedras de granito do muro aludido no nº 3 (al. D).
5 - Em substituição das pedras de granito inicialmente existentes os réus implantaram em cima do muro aludido no nº 3 postes em lousa e cimento aramados, alinhando-os pelo lado do prédio aludido no nº 1 ocupando a totalidade da largura do referido muro (al. E).
6 - Os Autores têm vindo a cultivar o prédio aludido no nº 1, surribando o terreno e plantando vinha e outros produtos agrícolas como centeio e oliveiras (quesito 1º da Base Instrutória).

7 - O que fazem, por si e antepossuidores, de forma ininterrupta, há mais de 30 e 40 anos (qº 2º).
8 - À vista de toda a gente e sem oposição de ninguém (qº 3º).
9 - Convictos de o prédio ser coisa exclusivamente sua (qº 4º).
10 - Os prédios aludidos nos nºs 1 e 2 confinam entre si numa extensão de 33,80m, estando toda a extensão murada pelo muro aludido no nº 3 (qºs 5º e 6º).
11 - As pedras maiores do muro aludido no nº 3 encontram-se com a face plana voltada para o prédio aludido no nº 2 e do lado do prédio aludido no nº 1 tais pedras de granito encontram-se irregulares e com face saliente, existindo tais saliências em toda a extensão do muro (qºs 7º, 8º e 9º).
12 - O muro aludido no nº 3 foi construído em data anterior a 1964, altura em que o prédio aludido no nº 2 era amanhado por José Dinis (qº 10º).
13 - A ré D... e seu irmão, ainda adolescentes, quando ajudavam no amanho das terras, foram colocando em cima do muro algumas pedras pequenas e irregulares que iam retirando do terreno do cultivo do prédio aludido no nº 2, que aí se encontravam envolvidas na terra e estorvavam ao bom amanho da mesma (qºs 11º e 12º).
14 - Os factos aludidos no nº 13 foram praticados à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém (qº 15º).
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Inconformados com a sentença na parte em que julgou que o muro divisório é propriedade em comum de autores e réus, apelaram os autores, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
I- Foi dado como provado que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio identificado com o nº 2 da matéria de Facto Assente;
II- Que os autores o adquiriram por usucapião;
III- Que os réus são proprietários do prédio contíguo ao dos autores, identificado com o nº 1 da matéria de Facto Assente;
IV- Que os prédios de autores e réus confinam entre si do lado nascente/poente, numa extensão de 33,80 m, estando toda a extensão murada por um muro divisório com pedra de granito.


V- As pedras maiores do muro encontram-se com a face plana voltada para o prédio dos réus e do lado do prédio dos autores tais pedras de granito encontram-se irregulares e com a face saliente existindo saliências em toda a extensão do muro.
VI- Os réus não lograram afastar a presunção legal prevista na al. b) do nº 3 do artº 1371º do Código Civil.
VII- Face à matéria dada como provada a decisão do Tribunal a quo não poderia ser outra que não julgar propriedade exclusiva dos autores o muro divisório entre os prédios destes e dos réus.
VIII- A sentença do Tribunal violou o disposto na a. b) do nº 3 e do nº 4 do artº 1371º do Código Civil.
IX- O que importa nulidade da sentença nos termos do disposto na al. c) do nº 1, do artº 668 do C.P.C.
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Os réus contra-alegaram, defendendo a improcedência do recurso e requerendo que se decida a final que o dito muro é propriedade exclusiva dos réus, ora recorridos.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).

Antes de entrar na apreciação do objecto do recurso convém, porém, esclarecer que consideramos totalmente absurda a pretensão dos réus, ora recorridos, explanada na sua contra-alegação, de se decidir a final que o dito muro é propriedade exclusiva deles, réus.
E isto por duas ordens de razões: por um lado, porque não deduziram pedido reconvencional nesse sentido, e, por outro lado, porque nem sequer interpuseram recurso da sentença proferida nos autos (sendo certo que isso de nada lhes adiantaria,

atenta a primeira razão enunciada), não se estando perante qualquer dos casos previstos no nº 2 do artº 684º-A.
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A única questão a decidir no presente recurso consiste em saber se o muro divisório dos prédios dos autores e dos réus faz parte integrante do prédio dos autores, sendo, portanto, propriedade exclusiva destes.
Na sentença decidiu-se que tal muro é propriedade em comum de autores e réus, com o fundamento de que os autores não lograram provar factos que integram a situação de exclusão referida na al. b), nem qualquer outra das alíneas previstas no nº 3 do artº 1371º do Código Civil.
Diferente entendimento têm os autores, ora recorrentes, segundo os quais os réus não lograram afastar a presunção legal prevista na al. b) do nº 3 do referido artº 1371º e que, face à matéria dada como provada a decisão do Tribunal não poderia ser outra que não julgar propriedade exclusiva dos autores o aludido muro divisório.
Esse artigo dispõe, na parte que aqui interessa:
1 - ………………………………………………………………………
2 – Os muros entre prédios rústicos (…) presumem-se comuns, não havendo sinal em contrário.
3 – São sinais que excluem a presunção de comunhão:
a) ……………………………………………………………………….
b) Haver no muro, só de um lado, cachorros de pedra salientes encravados em toda a largura dele.
c) ………………………………………………………………………..
4 – No caso da alínea a) do número anterior, presume-se que o muro pertence ao prédio para cujo lado se inclina a ladeira; nos outros casos, àquele de cujo lado se encontrem as construções ou sinais mencionados.
5 - ……………………………………………………………………….
Da análise deste preceito resulta, portanto, que se se provar que há no muro divisório, apenas de um lado, cachorros de pedra salientes encravados em toda a largura dele, cessa a presunção de comunhão, presumindo-se, antes, que tal muro pertence ao prédio de cujo lado se encontrem tais cachorros.
A lei não diz o que são os cachorros de pedra.

Importa, assim, saber o que são os referidos cachorros de pedra e se eles existem no muro objecto da presente acção.
Os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 228) dizem que são pontos de apoio que indicam que só um dos proprietários teve em vista futuras construções.
O Dr. Carvalho Martins (Paredes e muros de meação, 3ª ed., págs. 47) diz que o termo cachorros, ordinariamente aplicado a pedras trabalhadas (em cabeças de cães), abrange quaisquer saliências de pedra, destinadas aparentemente a servir de suporte a terraço, latada ou parreira, etc.
Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, o cachorro é uma peça saliente, encravada na parede ou no muro, que sustenta ou aparenta sustentar uma cimalha, uma cornija, um beirado.
Também o Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, nos define cachorro como peça saliente, de apoio, numa construção.
E o Dicionário Francisco Torrinha define-o como escora que numa construção sustenta cimalha, friso, escada, etc.
De tudo isto parece poder concluir-se que os cachorros de pedra a que alude a lei são saliências, encravadas no muro, que servem, ou se destinam a servir, de pontos de apoio a uma construção.
Como se diz na sentença recorrida, é algo não integrante do muro, mas encravado nele.

No caso sub iudice, deu-se como provado que as pedras maiores do muro divisório encontram-se com a face plana voltada para o prédio dos réus e do lado do prédio dos autores tais pedras de granito encontram-se irregulares e com face saliente, existindo tais saliências em toda a extensão do muro.
Ora, como bem se decidiu na sentença recorrida, a mera existência de saliências pela irregularidade das pedras maiores que constituem o muro não pode ser considerada como cachorros de pedra encravados em toda a largura do muro.
Com efeito, não estamos perante saliências encravadas no muro, mas apenas perante uma situação em que as pedras que constituem o muro se encontram dispostas de forma irregular, com a face saliente.
Não se podendo, assim, concluir pela existência de cachorros de pedra no aludido muro, do lado do prédio dos autores, não é possível decidir, como pretendem os recorrentes, pela propriedade exclusiva deles sobre tal muro.
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Invocam os recorrentes - nas conclusões, que não na respectiva alegação - a nulidade da sentença nos termos do disposto na al. c) do nº 1 do artº 668º.
Estipula este normativo que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Esta nulidade ocorre quando a fundamentação da decisão aponte num sentido e esta siga caminho oposto ou, pelo menos, diferente, isto é, quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto, como seria o caso, por exemplo, de os fundamentos apontarem no sentido da procedência do pedido e, depois, julgar-se este improcedente, ou vice-versa (cfr. Acs do STJ de 09/12/1993, de 26/04/1995, de 13/02/1997, de 22/01/1998, e de 04/05/1999, in, respectivamente, BMJ 432º-342, CJ, Ano III, T2-57, BMJ 464º-525, 473º-427, e Agravo nº 324/99, 1ª Secção (Bol. nº 31, Maio/99) e Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 141).
Só existe, pois, tal nulidade quando existe um vício real no raciocínio do julgador. Este retira das premissas (fundamentos) uma conclusão (decisão) diversa do que a lógica impõe.
Ora, isso não acontece no presente caso, uma vez que o Sr. Juiz, considerando que, conforme resultou provado, as saliências existentes no muro divisório não são de considerar como cachorros de pedra, para efeitos do disposto na al. b) do nº 3 do artº 1371º do Código Civil, retirou a conclusão apropriada, julgando improcedente o pedido dos autores de reconhecimento de propriedade exclusiva sobre o aludido muro.
A decisão surge, assim, como consequência lógica dos fundamentos, pelo que, não ocorrendo a oposição entre estes e aquela, não se verifica a invocada nulidade da sentença.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes.