Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
456/04.2TBALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 04/08/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGO 483º Nº 2; 515º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. É incorrecto sustentar-se que a prova de determinados factos terá que ser feita pela parte que os alegou, esteja ou não onerada com o respectivo ónus.
2. Vigora neste particular o "princípio da aquisição processual" (consagrado no artigo 515º do Código de Processo Civil) postulando que "os materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo e são atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária.
3. A produção da prova em sede de impugnação paulina recorre frequentemente a conceitos indeterminados e às presunções hominis com vista a perscrutar em cada caso intenções manifestadas através de actos significantes fundadas na especificidade do caso concreto, campo de eleição para a discricionariedade judicial.
4. São requisitos da impugnação pauliana, a) Que haja um prejuízo causado pelo acto impugnado à garantia patrimonial; b) Anterioridade do crédito ou, caso o crédito seja posterior, ter sido o acto dolosamente realizado com o fim de impedir a satisfação do crédito pelo mesmo acto.
5. Compete ao Autor fazer a prova dos aludidos requisitos que são os factos constitutivos do seu direito. Por seu turno recai sobre o Réu o ónus de provar que no seu património ficaram bens de valor em ordem a cobrir a dívida para com a Autor.
6. Estando em causa numa hipótese de impugnação pauliana a alienação por um dos cônjuges de bens em contitularidade o co-alienante se não é condevedor ou responsável pela fraude, não poderá ser incomodado pelos actos do outro; entender o contrário seria pois viabilizar uma hipótese de responsabilidade objectiva que não é admitida à face da Lei nomeadamente o artigo 483º nº 2 do Código Civil.
Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.

            Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

            A...., melhor identificada nos autos veio intentar acção declarativa de condenação sob a forma sumária contra B...., C...., D....e ….. Lda., igualmente melhor identificados nos autos.

            Alegou fundamentalmente que é portadora de uma letra, vencida a 30/12/2001 de sacada e aceite pelo 1º Réu e avalizada por H….. no valor de 10.375,00, a qual foi paga.

            Em 07/2002 de 2003 os 1ºs RR – B.... e C…. constituíram a sociedade, 3º Ré, com capital de 5.000 €, detido em metade por cada um deles, através de duas quotas de € 2.500, cada.

            Em 11 de Fevereiro de 2002, os 1ºs RR. venderam à 3ª Ré, pelos mesmos representada dos prédios rústicos pelos valores, respectivos de 18 € e 39,81 €.

            O valor dos mesmos é de mais de 100 vezes o valor declarado nessa escritura;

            Em 21 de Março de 2002, os 1ºs RR venderam ainda à 3º Ré, pelos mesmos representada, uma fracção autónoma pelo valor declarado de 17.956,72 € (valor matricial), sendo que esse valor é inferior (menos de metade) ao seu valor real;

            Em 10/02/2003, os 1ºs Réus cederam as suas quotas da 3º Ré, à 2ª Ré – D.... – sua filha, pelo seu valor nominal.

            A 2ª Ré, à data, não exercia qualquer actividade nem auferia qualquer remuneração conhecida que lhe permitisse, sequer adquirir as quotas pelo seu valor nominal, sendo que o valor patrimonial da sociedade era muito superior a este.

            Destas alienações resulta a impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do seu crédito, pois que além desses prédios e das quotas não são conhecidos outros bens ao 1º Réu, sendo patente a má-fé dos alienantes e adquirentes.

            Conclui pedindo:

            - a procedência da impugnação pauliana da transmissões referidas em 10º e 15º da p.i., declarando as mesmas impugnadas e ineficazes em relação à A. para o efeito de esta poder executar os imóveis transmitidos no património da 3ª Ré, até à satisfação integral do seu crédito;

            – a procedência da impugnação pauliana da transmissões referidas em 26º e 27º da p.i., declarando as mesmas impugnadas e ineficazes em relação à A. para o efeito de esta poder executar as quotas transmitidas no património da 3ª Ré, até à satisfação integral do seu crédito;

            Subsidiariamente e para o caso de assim não se entender,

            – Serem declarados nulas, por simulação, as transmissões referidas supra em 10º e 15º da p.i., e em consequência, condenarem-se os RR, na restituição dos prédios transmitidos ao património dos lºs RR, de forma a aí poderem ser executados pela A., ordenando-se o cancelamento no registo predial das inscrições correspondentes às transmissões respectivas;

            - Serem declarados nulas, por simulação, as transmissões referidas supra em 26º e 27º da p.i., e em consequência, condenarem-se os RR, na restituição das quotas transmitidas ao património dos 1ºs RR, de forma a aí poderem ser executados pela A., ordenando-se o cancelamento no registo comercial das inscrições correspondentes às transmissões respectivas;

            Os Réus vieram apresentar a sua contestação defendendo-se por excepção, alegando em resumo o seguinte:

            - A letra em causa não resultou de qualquer transacção comercial havida entre a Autora e o R. marido mas entre a Autora e a sociedade …. Lda. de que eram sócios gerentes o R. marido e o avalista dessa letra H…., não sendo, por isso, o Réu devedor à Autora da quantia peticionada.

            Em Maio de 2002, o R. marido propôs à Autora, o que esta aceitou, que a referida letra fosse paga da seguinte forma:

            - A quantia de 4.573,69 €, equivalente a metade da letra inicial pelo aceitante, aqui 1º R. marido;

            - A restante quantia pelo seu sócio, que avalizara a letra, H….

            - Assim, sempre a obrigação cambiária subjacente à emissão da letra em causa se extinguiu por novação.

            Na acção executiva intentada com base na letra foram penhorados os saldos de três contas bancárias no valor, respectivo de € 1.120,32, 0,62 € e € 1.942,13.

            Alega ainda o R. a ilegitimidade passiva da 2ª Ré, pois que esta foi representada por procuradora na escritura de cessão de quotas, não tendo esta sido demandada na presente acção.

            No mais, impugnam a matéria vertida na p.i..

            Concluem pedindo a improcedência da acção e a procedência das excepções invocadas e, em consequência que:

            - Seja declarada a ilegitimidade passiva da 2ª Ré, quer em relação ao pedido principal, quer em relação ao pedido subsidiário, absolvendo-se esta R. do pedido.

            - Seja declarada a inexistência de qualquer dívida do 1º Réu à Autora, devendo assim improceder o pedido de impugnação pauliana e de nulidade, por falta de interesse em agir da Autora, uma vez que não detém a qualidade de credora do 1º Réu.

            Caso assim não se entenda, ainda sempre se deverão absolver os RR. dos pedidos contra si formulados.

            Na resposta a Autora:

            - Reconheceu que a letra junta decorreu do reconhecimento e assunção pessoal pelo R. António e seu sócio de uma dívida da sociedade SJM;

            – Reconheceu que o R. António inquiriu a A. sobre se esta aceitaria receber metade da dívida de cada um dos devedores cambiários, com o que esta afirmou que concordaria, desde que, obviamente, ambos pagassem, o que não aconteceu.

            – Não existiu novação pois que para tal era necessário que a A. aceitasse extinguir a dívida cartular, o que não aconteceu e teria de passar pela devolução da letra.

            - Afirmou nunca ter a A. aceitado liberar o Réu da solidariedade da dívida.

            - Defendeu a inexistência de ilegitimidade passiva        Conclui como na p.i.

            No saneador conheceu-se da validade e regularidade da instância, tendo-se elencado os factos provados e elaborado a Base instrutória que foi alvo de reclamação deferida.

            Procedeu-se a julgamento acabando por ser proferida sentença que julgou a acção procedente por provada e em consequência determinou:

            - A procedência da impugnação pauliana das transmissões referidas em 12 a 16 da matéria provada, declarando as mesma impugnadas e ineficazes em relação à Autora para efeito de esta poder executar os imóveis transmitidos no património da 3ª Ré até à satisfação integral do seu crédito.

            - A procedência da impugnação pauliana das transmissões referidas em 21 da matéria provada, declarando as mesmas impugnadas e ineficazes em relação à Autora para efeito de esta poder executar as quotas transmitidas no património da 3ª Ré até à satisfação integral do seu crédito.

            Daí o presente recurso de apelação interposto pelos RR., os quais no termo da sua alegação pediram que sejam alteradas as respostas à matéria de facto e consequentemente revogada a decisão recorrida, absolvendo-se os apelantes dos pedidos.

            Caso assim se não entenda deverá a decisão ser revogada por não ser admissível a acção pauliana em relação a bens comuns do casal quando só um dos cônjuges é responsável pela dívida, ou no mínimo ser parcialmente revogada de modo a abranger somente a quota/meação do 1º Réu (cônjuge devedor).

            Foram para tanto apresentadas as seguintes,

            Conclusões.

            1) A presente apelação visa a reapreciação da mateira de facto, nos termos dos artigos 712º nº 1 alínea a) 690º-A e 749º, do Código de Processo Civil, devendo a decisão ser revogada, quer em virtude da alteração das respostas quer por diferente interpretação e aplicação do direito.

            2º - A decisão em apreço viola, no entender das apelantes, as seguintes disposições legais: artsº 195º/e), 265º, 238º-A/1, 645.º, 659º e 668º/1/c) do C.P.Civil, artigos 350º/2, 342º/3 e 612º do C. Civil, 5º, 6º, 9º e 18º do Código das Sociedades Comerciais e 3º, 11º e 14º do Código de Registo Comercial.

            I – Impugnação da decisão de facto

            3º - As apelantes não podem concordar com as respostas dadas à matéria dos artigos 4º a 6º, 9º a 18º da base instrutória dada como total ou parcialmente provada.

            4º - A regra do ónus da prova constante do nº 1 do artigo 342º do Código Civil (C.C.) não foi respeitada.

            5º - A matéria em causa corresponde a alegações da recorrida, pelo que caberia a esta a respectiva prova, o que não se verificou.

            a) Artigos 4º, 5º e 18º da base instrutória

            6º - A matéria destes artigos da PI foi considerada provada (com as limitações vertidas na sentença e no despacho de fls...) com fundamento na prova pericial constante de fls. 155 e ss e 177 dos autos.

            7º - Mas estes factos reportam-se a inícios do ano de 2002 e a perícia foi feita com referência a preços de 2003, como resulta do requerimento de prova da recorrida de fls. 123 e do esclarecimento do perito a fls. 177 dos autos.

            8º - A perícia relativa a 2003 não pode provar factos relativos a um ano antes.

            9º - Não existindo qualquer outra prova produzida deverá a resposta de “provado” dada aos quesitos 4º, 5º e 18º da base instrutória ser alterada para "não provado"

            b) Artigos 6º e 7º da base instrutória

            10º - No final da resposta ao quesito 6º, refere-se que "as restantes RR [C.... e D...., ora primeira e segunda apelantes] tinham conhecimento que o mesmo [R. B....] tinha dívidas”, fundando-se o Tribunal a quo na "confissão dos primeiros Réus e segunda ré”.

            11º - Ora, como se pode verificar pela acta de fls. 406 e segs dos autos, relativa à primeira sessão de julgamento, realizada em 02 de Fevereiro último, nem a R. C…., nem a R. D.... confessaram o facto controvertido.

            12º - Com efeito, como consta daquela acta, a ora primeira apelante, M. Adelaide disse ter conhecimento que a SJM tinha problemas com credores, mas não conhece em concreto a dívida (sublinhado nosso) e ora segunda apelante D.... (e, a propósito do quesito 3,º, mas que aqui importa analisar) disse que sabia que as empresas do pai tinham diversas dívidas, mas concretamente não as sabe identificar. (sublinhado nosso).

            13º - Considerar estas declarações como confissão do conhecimento da dívida em apreço nos autos é ignorar a personalidade e capacidade jurídica das pessoas colectivas, vertido nos artigos 5º e 6º do Código das Sociedades Comerciais.

            14º - Pelas dívidas de uma empresa responde o património da empresa e não o património dos seus sócios e/ou gerentes, pelo que, ao afirmarem que sabiam que várias empresas ou uma empresa em concreto tinha dívidas, não significa que tivessem conhecimento que o sócio desta(s), B...., tivesse dividas.

            15º - Note-se que a dívida em análise nos presentes autos é uma letra aceite pelo 1º R., B.... (alínea A) dos factos assentes) sendo que, no entanto, a transacção comercial subjacente à sua emissão foi efectuada entre a recorrida. e uma empresa em que o referido R. era sócio, denominada …. Lda. ( alínea Q) dos factos assentes e 19º e 21º da bi).

            16º - Ou seja, o R. B.... não deve à recorrida. por lhe ter adquirido qualquer bem ou produto mas por se ter, pessoalmente, responsabilizado por uma dívida de terceiro (a referida SJMl).

            17º - De resto, as declarações da apelante C….. - na cassete nº 1 da sessão de julgamento realizada a 02 de Fevereiro último, no lado A, entre as rotações 4001 até 4860 e ainda no lado B entre as 0001 e até 1850 confirmam o que antecede.

            18º - O mesmo acontece com as declarações da apelante D.... – gravadas na cassete nº 1 da sessão de julgamento realizada a 2 de Fevereiro, lado B, entre as rotações 1851 até 3890.

            19º - Alem disso, o depoimento da testemunha da recorrida MC…. (gravado a na cassete nº 1 da sessão de julgamento realizada em 13 de Fevereiro último, lado A, entre as rotações 1975 a 3051) confirma que a apelante C…. não tinha conhecimento da divida em causa, o que constitui contraprova relativamente ao artigo 6º da PI, nos termos e para os efeitos referidos no artigo 346º C.C.

            20º - Deve, assim, ser alterada a parte final da resposta dada ao quesito 6º, eliminando-se a expressão "as restantes tinham conhecimento que o mesmo tinha dívidas".

            21º - As mesmas razões justificam a alteração da resposta dada ao artigo 7º, da qual deverá ser eliminado o parágrafo respeitante as primeira e segunda apelantes.

            c) Artigos 11º a 17º da Base instrutória

            22º - Sobre esta matéria poderá dizer-se, em resumo, que foi considerado “provado” que o valor das aquisições dos bens imóveis não foi pago e que em nenhuma das transmissões (imóveis e quotas) houve intenção quer por parte dos alienantes, quer por parte dos adquirentes de realizar os respectivos negócios, mas somente o objectivo de subtrair tais bens do património do 1º R B...., por forma a impedir que o crédito da recorrida. fosse cobrado.

            23º - Fundou o Tribunal a quo a sua convicção (conforme despacho de fls...) no seguinte : 1 - não ter sido exibida qualquer forma de pagamento, 2 - no conhecimento que todas os RR tinham das dificuldades financeiras do 1º R., 3 - nas datas de celebração das escrituras (pouco depois da constituição da dívida) e 4 - às relações existentes entre todos os RR.

            23º - O referido em 2, é infundado quanto às primeira e segunda apelantes como claramente resulta do que supra se referiu, quando se analisou a resposta dada ao quesito 6º e que aqui se dá por inteiramente reproduzida para todos os efeitos.

            24º - As afirmações contidas nos pontos 3 e 4 resultam de juízos retirados das conclusões contidas nos pontos 1 e 2, sendo certo que ambas estão erradas pelo que, em consequência, erradas estão as afirmações de 3 e 4.

            25) Com efeito e no que se refere ao ponto 1) (uma vez que já se demonstrou a inexactidão do 2), não poderia ter sido exibida qualquer forma de pagamento quanto à aquisição dos imóveis rústicos nem das quotas.

            26º - Quanto aos imóveis, face ao valor em causa - 618 (dezoito euros) e 6 47 (quarenta e sete curas), ao invés do vertido na alínea E) dos factos provados em que se refere € 39,81 (trinta e nove euros e oitenta e um cêntimos), o que se trata de um manifesto erro de escrita, como resulta da certidão da escritura junta a fls. 21 vs, pelo que deverá ser corrigido – o pagamento foi feito através do caixa da empresa, pela que não se podia exibir o comprovativo do pagamento.

            27) Isso mesmo foi afirmado pela apelante C…. nas suas declarações.

            28) Quanto ao comprovativo do pagamento do valor das quotas, o mesmo foi efectuado com dinheiro doado pelo avô materno da apelante D...., que não tem contas bancárias por não saber ler nem escrever.

            29) - E essas doações estão comprovadas nos autos por certidão emitida pelo Serviço de Finanças de Albergaria-a-Velha junta a fls., na sessão de julgamento de 2 de Fevereiro de 2007.

            30) - O 1º R. e as primeira e segunda apelantes confirmaram essa doação nos seus depoimentos gravados.

            31) - No que respeita à transmissão da loja sempre se dirá que, conforme depoimento do 1º R ( gravado em .....), a mesma foi “paga” através da entrada de suprimentos, em montante igual ao da aquisição, na empresa ….., Lda., ora terceira             apelante.

            32) - No que respeita à vontade de celebração dos negócios em referência (imóveis e quotas), além do que já se referiu, acrescentar-se-á que houve vontade, juridicamente relevante, de todos os sujeitos, na sua realização.

            33) - E os motivos determinantes da vontade foram explicitamente referidos pelo R. B.... (depoimento gravado em ......) e consistiram na tentativa de viabilizar a terceira apelante, permitindo-lhe actuar no mercado imobiliário com isenção de sisa nas futuras aquisições.

            34) - Por todas as razões expostas a que acresce a inexistência de qualquer outra prova e o ónus que impendia sobre a recorrida., deverão as respostas dadas aos artigo 11º a 17º da BI ser alteradas de “provado” para "não provado”.

             35) - Alteradas as respostas, nos termos expostos, aos quesitos referidos, impõe-se uma decisão substancialmente diferente da que considerou procedentes os pedidos formulados pela recorrida.

            36) - Na sentença recorrida considera-se que resultaram provados todos os pressupostos da acção pauliana, a saber: existência do crédito da recorrida, anterioridade deste em relação às transmissões e à cessão de quotas e consciência por parte do devedor e de terceiros do prejuízo que o acto causa ao credor.

            37) - Este último pressuposto considera-se verificada na decisão recorrida, com base no seguinte raciocínio: " - as alienações foram feitas dos sócios de uma sociedade para a mesma, sendo que esta era representada pelos sócios alienantes, de pais para filha; todos os RR tinham conhecimento que a situação económica do 1ºR era má; o preço declarado nas escrituras foi muito inferior ao valor real dos prédios e das quotas transaccionados e as transmissões referidas em 12 e 16 ocorreram entre dois e três meses, respectivamente, após o vencimento da letra (...)."

            38) - Todavia, se forem alteradas as respostas à BI, nos termos já referidos, este raciocínio não pode vingar, pois não está provado que o preço declarado nas escrituras foi muito inferior ao valor real dos prédios e das quotas transaccionados.

            39) E, aliás, em relação ao valor das quotas da terceira apelante não está provado e nem sequer alegado que fosse superior ao respectivo valor nominal, pelo qual foi feita a respectiva cessão.

            40) Na verdade só se sabe que o património imobiliário da terceira apelante, à data da cessão, era de 46.850 euros, nada se sabendo, porém, sobre a sua situação líquida (ou seja, sumariamente, a diferença entre o seu activo e o passivo), determinante para se apurar o valor de cada quota.

            41) - Além disso, com a alteração das respostas não ficará provado que as primeira e segunda apelantes tinham conhecimento concreto do crédito da recorrida e que o 1º R tinha dívidas pessoais e que com as transacções efectuadas ficaria impedido de as satisfazer ou agravaria esse impedimento.

            42) - Como se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-11-1997 (processo nº 7A591)"(...) não configura má-fé. como consciência do prejuízo do credor, no caso de simples conhecimento de dificuldades económicas e financeiras do devedor e de o negócio realizado vir a dificultar o pagamento do crédito (artigo 612 do cit. Código).

            43) - Não se verifica, portanto, em relação às apelantes o requisito de má fé, exigível pelo artº 612º do Código Civil para que a impugnação pauliana possa proceder.

            44) - Assim sendo, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por decisão que as absolva dos pedidos formulados.

            45) - Quando assim se não entenda e nomeadamente para o caso de não virem a ser alteradas as respostas à matéria da BI, nos termos requeridos, então a douta sentença recorrida deve ser total ou parcialmente revogada, como de seguida se justificará.

            46) - A dívida, que constitui o primeiro pressuposto da presente acção é pessoal do 1º R., sendo este casado no regime da comunhão geral de bens com a primeira apelante.

            47) - O 1º R., ao aceitar a letra que titula aquela dívida não agiu no exercício do comércio, pois pessoalmente não teve qualquer relação comercial com a recorrida que justificasse o aceite (isto mesmo resulta dos factos considerados provados sob os nºs 1, 3 e 7 na douta sentença recorrida).

            48) - Não há, assim que considerar a presunção prevista no nº 1, alínea d) do artº 1 691º do C. Civil, pelo que a primeira apelante não é responsável por essa dívida.

            49) - Devido, ao regime de bens entre o 1ºR e a primeira apelante os bens transaccionados eram comuns.

            50) - Ora, como tem sido decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça (por ex. Acórdão de 03-05-1995 - processo nº 086511) "não é admissível a impugnação pauliana, relativamente a um contrato de compra e venda de um bem comum do casal, pelo credor que apenas dispõe de um título executivo contra um dos cônjuges, não obstante se ter provado que o cônjuge meeiro agiu com a consciência de prejudicar o credor".

            51) - Em consequência deve a decisão recorrida ser revogada, absolvendo-se as apelantes dos pedidos.

            52) - Acresce que a impugnação pauliana só pode proceder em relação à quota-parte/meação do 1º R. nos bens alienados e não em relação à sua totalidade.

            53) - Neste sentido ver, por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28-01-2003, proferido no processo nº 3864/02, onde se escreve que os requisitos da acção pauliana devem verificar-se em relação a todos os intervenientes e sendo a dívida do Autor impugnante uma dívida exclusiva da responsabilidade da (..) alienante, e o imóvel alienado um bem comum do casal, a acção pauliana só pode proceder em relação à quota parte/meação (...)".

            54) - Deste modo, deverá, pelo menos, a decisão recorrida ser parcialmente revogada, considerando-se a acção procedente somente em relação à quota/meação do 1º R.

            Contra-alegaram os apelados pugnando pela confirmação da sentença.

            Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

                                                                       *

            2. FUNDAMENTOS.

            O Tribunal deu como provados os seguintes,

            2.1. Factos.

            2.1.1. A A. é portadora de uma letra sacada e aceite pelo primeiro R. em 13/12/2001, no valor de 10.375,00 6, com vencimento para 30/12/2001.

            2.1.2. Como garantia de pagamento da mesma letra, ela foi avalizada por H…. que assinou depois da menção “dou o meu aval à firma subscritora”

            2.1.3. O primeiro R. marido e o avalista obrigaram-se, solidariamente, a pagar à A. o valor da letra e respectivos juros de mora à taxa legal, até integral pagamento.

            2.1.4. Apresentada a mesma à cobrança, por intermédio do Banco da A., a mesma não foi paga na data do seu vencimento, nem o veio a ser posteriormente pelo que foi devolvida à aqui Autora.

            2.1.5. O original da letra consta dos autos de execução ordinária que correm termos sob o n.º 431/02 do 2º Juízo deste Tribunal, no qual, não obstante as diligências de penhora encetadas, não foi possível a sua efectivação em bens suficientes para pagamento da quantia exequenda,

            2.1.6. À ordem desses autos encontra-se depositada a quantia global de € 3.063,07, apreendida ao primeiro R. marido.

            2.1.7. A letra identificada em 1 resultou de uma transacção comercial havida entre a A. e a sociedade …. Lda. de que eram sócios gerentes o

primeiro R. marido e o avalista H…..

            2.1.8. Em Maio de 2002, o primeiro R. propôs à A. que a letra identificada em A) fosse paga da seguinte forma:

            - € 4573,69 pelo primeiro R. marido;

            - O remanescente pelo avalista – H…..

            2.1.9. Em 31/05/2002 a A. enviou ao primeiro R. marido a nota de lançamento n.º 600, de fls. 62, no montante de 4.573,64 €, constando da mesma a menção “S/aceite para pagamento c/ ….. Lda., encargos imposto de selo”.

            2.1.10. A A. aceitou a proposta na condição de que efectivamente fosse paga por cada um metade da dívida.

            2.1.11. Em 07-02-2002 constituíram os 1ºs RR a sociedade terceira Ré, com o capital de € 5.000,00   detido em metade por cada um deles, através de duas quotas de € 2.500,00 cada.

            2.1.12. Por escritura outorgada em 11-02-2002, no Cartório Notarial de Albergaria-a-Velha, os primeiros RR declararam vender à terceira Ré que, pelos mesmos

representada, declarou comprar:

            - Um prédio rústico situado no Ribeiro, inscrito na matriz respectiva sob o artigo 4565 da freguesia de Albergaria-a-Velha e descrito na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha sob o nº 1544 daquela freguesia pelo preço de € 18,00

            - Um prédio rústico situado na Ribeira, inscrito na matriz respectiva sob o artigo 4567 da freguesia de Albergaria-a-Velha e descrito na Conservatória do   Registo Predial de Albergaria-a-Velha sob o nº 1530 daquela freguesia pelo preço de 39,81

            2.1.13. As aludidas transmissões foram registadas na Conservatória de Registo Predial de Albergaria-a-Velha através das inscrições G-3 (Ap. 05.020211) e G-3

(Ap. 05.020211), respectivamente, ficando desse modo, os prédios registados a favor da terceira Ré.

      2.1.14. Tais prédios têm a área de 1.000 m2 e 3.100 m2, respectivamente.

            2.1.15. Atenta a sua localização, natureza e dimensão o seu valor comercial é de 1000 € e 3100 €

            2.1.16. – Por escritura outorgada em 21-03-2002, no Cartório Notarial de Albergaria-a-Velha, os primeiros RR declararam vender à terceira Ré que pelos mesmos ali representada, declarou comprar, pelo preço de 17.956,72 €, com idêntico valor matricial, a fracção autónoma designada pela letra “M” correspondente ao r/c esquerdo, situado no segundo piso do prédio urbano sito na Rua ….., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Albergaria-a-Velha sob o artigo 3591 e descrita na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha sob o número 4785 – M da mesma freguesia.

            2.1.17. Tal transmissão foi registada na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha através da inscrição G-3 (Ap. 02.020321, ficando desse modo, a fracção em causa registada a favor da terceira Ré.

            2.1.18. O valor declarado na escritura referida em 16 é inferior, em menos de metade, ao valor real do prédio aí igualmente identificado.

            2.1.19. Em ambos os negócios referidos em 12 e 16 os representantes da terceira Ré, no acto foram os próprios vendedores, sendo estes o primeiro R. marido e a primeira Ré mulher, que são casados entre si no regime de comunhão geral de bens.

            2.1.20. As transmissões referidas em 12 e 16 ocorreram entre dois e três meses, respectivamente, após o vencimento da letra mencionada em l.

            2.1.21. Por escritura outorgada em 10-02-2003, no Cartório Notarial de Albergaria-a-Velha, os primeiros RR, marido e mulher, declararam ceder a sua quota, no valor nominal de 2.500,00 € cada, no capital social da terceira Ré, à segunda Ré, declarando que o fizeram pelo seu valor nominal, tendo esta última declarado aceitar a cessão por intermédio da procuradora que a representou.

            2.1.22. Tais cessões foram submetidas ao registo na Conservatória do Registo Comercial de Albergaria-a-Velha, ficando as quotas transmitidas registadas a favor da segunda Ré através das inscrições n.º 2 (Ap. 03/300212) e nº 3 (Ap. 04/030212), respectivamente.

            2.1.23. Em consequência dessa cedência de quotas, a segunda Ré passou a ser detentora da totalidade das quotas do capital de terceira Ré.

            2.1.24. À data dos negócios referidos em 12 e 16, os primeiros RR eram detentores de duas quotas, no valor nominal de 2.500,00 6 cada, representando o total do capital da terceira Ré.

            2.1.25. À data daquela transmissão de quotas estava já vencida e não paga a letra identificada em      2.1.26. A segunda Ré é a única filha dos primeiros RR, vivendo com eles à data dos negócios referidos em 11, 15 e 20.

            2.1.27. A terceira Ré tem por objecto social a promoção imobiliária, compra, venda e revenda de imóveis urbanos e rústicos, construção e engenharia civil.

            2.1.28. À data da celebração dos negócios supra referidos em 12,16 e 21 o primeiro Réu marido e a terceira Ré, pela pessoa do mesmo, tinham conhecimento da existência da dívida para com a A.

            2.1.29. Nas mesmas datas as restantes RR tinham conhecimento que o mesmo tinha dívidas.

            2.1.30. Sabendo o primeiro Réu marido e a 3' Ré, por seu intermédio, que da realização daqueles resultava para a A. a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade de a mesma cobrar a totalidade do crédito que detinha sobre o primeiro R. marido

            2.1.31. As restantes RR tinham conhecimento que da realização dos negócios referidos em 12, 16 e 21 resultava para os credores a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade de os mesmos cobrarem a totalidade do crédito que detinham sobre o primeiro R. marido.

            2.1.32. À data da aquisição das quotas da terceira Ré, a segunda Ré não exercia qualquer actividade profissional, dando ocasionalmente, algumas explicações valor que não lhe permitia adquirir as quotas, ao menos, pelo seu valor nominal.

            2.1.33. Para além das quantias ganhas em explicações e das dádivas de seu avô, dependia exclusivamente dos rendimentos auferidos pelos primeiros RR.

            2.1.34. As segunda e terceira RR. não pagaram as quantias declaradas nas escrituras referidas em 12, 16 e 21 ou qualquer outra, pelas respectivas aquisições.

            2.1.35. Os primeiros RR nunca quiseram vender à terceira R. os imóveis identificados em 12 e 16, nem a terceira Ré os quis adquirir.

            2.1.36. Os primeiros RR nunca quiseram ceder à segunda Ré as quotas referidas em 21 que detinham no capital da terceira Ré, nem a segunda Ré as quis adquirir.

            2.1.37. Os primeiros, segunda e terceira RR. pretenderam, com aquelas alienações e aquisições, todos de comum acordo, retirar do património dos primeiros RR. os bens que aqueles possuíam.

            2.1.38. Assim impedindo a A de cobrar o seu crédito, o que quis o 1º Réu marido e a terceira Ré por intermédio deste e o que quiseram as restantes RR, genericamente, relativamente aos credores do 1º R marido.

            2.1.39. Aquando da cessão de quotas referida em 21 o património imobiliário da terceira Ré ascendia a cerca de 46.850 €.

                                                                       +

            2.2. Da reapreciação da matéria de facto.

            Insurgem-se os apelantes contra as respostas aos quesitos 4º a 6º, 7º e 9º a 18º da Base Instrutória.

            Perguntava-se nesses quesitos respectivamente o seguinte:

            Quesito 4º: Atenta a localização, natureza e dimensão dos prédios identificados em E) o valor comercial dos mesmos é de mais de € 1.800,00 e € 3.981,00 respectivamente?

            Quesito 5º: O valor por que o prédio identificado supra em H) foi vendido é inferior em menos de metade do seu valor real?

            Quesito 6º: À data da celebração dos negócios supra-referidos em E), H) e L) os primeiros RR., a segunda Ré e a terceira Ré pela pessoa dos seus respectivos representantes, tinham conhecimento da existência da dívida do primeiro Réu marido para com a Autora?

            Quesito 7º: E que da realização daqueles resultava para a Autora a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade de a mesma cobrar a totalidade do crédito que detinha sobre o primeiro Réu marido?

            Quesito 9º: À data da aquisição das quotas da terceira Ré, a 2ª Ré não exercia qualquer actividade profissional nem auferia qualquer remuneração que lhe permitisse adquirir as quotas, ao mesmo pelo seu valor nominal?

            Quesito 10º: Dependendo exclusivamente os rendimentos auferidos pelos primeiros RR.?

            Quesito 11º: As segunda e terceira Réus não pagaram as quantias declaradas nas escrituras referidas em E), H) e L) ou qualquer outra pelas respectivas aquisições?

            Quesito 12º: Os primeiros RR. nunca quiseram vender à terceira Ré os imóveis identificados em E) e H)?

            Quesito 13º: Nem a terceira Ré os quis adquirir?

            Quesito 14º: Os primeiros RR. nunca quiseram ceder à segunda Ré as quotas referidas em L) que detinham no capital da terceira Ré?

            Quesito 15º: Nem a segunda Ré as quis adquirir?

            Quesito 16º: Pretenderam os primeiros, segunda e terceira RR. com aquelas alienações e aquisições entre si, todos de comum acordo, retirar do património dos primeiros RR. os bens que aqueles possuíam?

            Quesito 17º: Assim impedindo a Autora de cobrar o seu crédito, o que quiseram?

            Quesito 18º: Aquando da cessão de quotas referida em L) o património imobiliário da terceira Ré ascendia a valor superior a € 100.000,00?

            Tais quesitos foram considerados como total ou parcialmente provados.

            Os Apelantes começam por manifestar a sua discordância alegando que a matéria em causa corresponde a alegações da recorrida, pelo que caberia a esta a respectiva prova, o que não se verificou.

            É inexacta esta afirmação, quer em termos gerais, quer à luz do caso concreto. Na verdade ainda está em vigor o "princípio da aquisição processual" postulando que "os materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária[1]. É o que resulta do disposto no artigo 515º do Código de Processo Civil quando reza que "O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado".

            Procurando concretizar algo de mais palpável concernente à sua discordância refere:

           

            Quanto aos quesitos 4º, 5º e 18º da Base Instrutória refere que a matéria que deles consta foi dada como provada com fundamento na prova pericial constante de fls. 155 ss e 177 dos autos; só que estes factos reportam-se a inícios do ano de 2002 e a perícia foi feita com referência a preços de 2003 como resulta do requerimento de prova da recorrida de fls. 123 e o esclarecimento do perito a fls. 177 dos autos. A perícia relativa a 2003 não pode provar factos relativos a um ano antes. Assim sendo e não existindo qualquer outra prova produzida, deverá a resposta de "provado" a tais quesitos ser alterada para "não provado".  

            Os apelantes não têm qualquer razão; é verdade que as respostas a estes quesitos se basearam exclusivamente na prova pericial de fls. 154 ss. Todavia pedidos esclarecimentos aos peritos os mesmos adiantaram a fls. 177 que o valor dos terrenos no local não sofreu variações sensíveis nomeadamente entre Fevereiro de 2003 e o mesmo mês de 2005. É certo que está em causa o valor no ano de 2002. Todavia não temos quaisquer elementos que nos indiquem ter havido qualquer variação sensível de preços de 2002 para 2003, nomeadamente através dos índices do Instituto Nacional de Estatística. Por outro lado se os Apelantes entendiam o contrário deveriam ter colocado esta questão aquando do exame pericial para o qual foram devidamente notificados.

            No que concerne aos quesitos 6º e 7º, defende os apelante que deveria ter sido conferida resposta negativa aos mesmos. Isto porque tendo a Sra. Juiz fundamentado aquelas respostas nos depoimentos de parte, estes não seriam de molde a poder concluir-se pelo teor das que foram dadas.

            Se bem que o depoimento de parte quando considerado isoladamente possa deixar algumas reservas quanto à cabal possibilidade de resposta positiva aos quesitos em análise, o certo é que a tal matéria foram ouvidas várias testemunhas que quanto à mesma só por si são de molde a sustentar plenamente tais respostas. É o que se passa com Ricardo Coelho, Director Financeiro da Autora que contactou com os RR. nas diligências subjacentes aos factos que estiveram na base do crédito da Autora e foi peremptório em confirmar que à data da celebração dos negócios supra-referidos em E), H) e L) o primeiro Réu marido e a terceira Ré pela pessoa do mesmo tinha conhecimento da existência da dívida para com a Autora. As restantes Rés sabiam que aquele tinha dívidas. No mesmo sentido foi ainda o depoimento da testemunha Maria da Conceição Domingos, trabalhadora de escritório da Autora. O depoimento das mesmas testemunhas sustenta também a resposta ao quesito 7º nos termos em que foi dado como provado relativamente ao primeiro Réu marido e à terceira Ré pela pessoa do mesmo. Relativamente aos restantes RR. prova-se na verdade que estas tinham conhecimento que da realização dos negócios referidos em E), H) e L) resultava para os credores a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade de os mesmos cobrarem a totalidade do crédito que detinham sobre o primeiro Réu marido. E os apelantes nada mais adiantaram que pudesse por em crise o decidido quanto a esta matéria.

            Por outro lado também nós nada lobrigámos nesse sentido, antes pelo contrário a audição da prova testemunhal no seu conjunto aponta inequivocamente para as respostas aos quesitos que foram dadas e cuja fundamentação a fls. 414 não nos merece qualquer censura e confirmamos in toto.

           

            Também as respostas aos quesitos 11º a 17º não têm a aquiescência dos apelantes.

             Para a resposta a tais quesitos, onde se indagam intenções, terá a solução, mais do que de depoimentos individualmente considerados, que emergir do conjunto da prova considerada no seu todo. Dir-se-á à partida que mau grado o Juiz de primeira instância esteja em posição privilegiada para apurar esta questão, atento a que a imediação da prova se patenteia em toda a sua plenitude, o certo é que as respostas que foram dadas aos quesitos em causa não se afastam da nossa própria convicção adquirida através da ponderação dos depoimentos gravados e condutas omissivas por parte dos Réus. Estamos no fundo perante uma prova em que as presunções hominis têm um relevo acrescido. Com efeito, dado que os RR. conheciam a dívida que tinham para com a Autora, representada por uma letra, necessariamente saberiam que se colocaria na data do vencimento, a 30 de Novembro de 2001, a questão do seu resgate. Contudo já "por coincidência" em 7/2/2002 constituíram os 1ºs RR. a sociedade terceira Ré com o capital de € 5.000,00 detido em metade por cada um deles através de duas quotas de € 2.500,00 cada; para logo por escritura outorgada em 11/2/2002 no Cartório Notarial de Albergaria-a-Velha, terem transferido para a mesma os dois prédios rústicos supra-identificados. Sucedeu-se uma nova escritura outorgada em 21/3/2002 em que os 1ºs RR. declaram vender à terceira pelos mesmos representada, e pelo preço de € 17.956,72 uma fracção autónoma também acima identificada, valor aquele inferior em menos de metade do seu valor real.

            Finalmente por escritura outorgada em 10/2/2003 no Cartório Notarial de Albergaria-a-Velha os primeiros RR. marido e mulher declararam ceder a sua quota no valor nominal de 2.500.00 cada no capital social da terceira Ré à segunda Ré, declarando que o fizeram pelo seu valor nominal, tendo esta última declarado aceitar a cessão por intermédio da procuradora que a representou. Não foram apresentados recibos de pagamentos, sendo certo que os RR. teriam todo o interesse em apresentá-los caso estivessem cientes da lisura do seu procedimento. De igual forma o preço da cessão de quotas deveria constar da contabilidade da sociedade criada e nada se demonstrou nesse sentido, sendo certo que os movimentos de caixa são ali registados.

            A “experiência comum” a que fundamentação da sentença implicitamente alude é um “con­ceito indeterminado” já que o respectivo conteúdo e extensão são em larga medida incertos; e tendo em linha de conta que o conceito em causa não é abarcável unica­mente pelos sentidos, dizemos estar face a um conceito normativo carecido de um “preenchimento valorativo[2]”. Sucede que no nosso direito vigora o "princípio da livre apreciação das provas" de harmonia com o qual “o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz gerada em face do material probatório trazido ao pro­cesso (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens não a pura e simples observância de certas fór­mulas legalmente prescritas”. Quer isto dizer que a “justiça do caso concreto” nem sempre pode ser alcan­çada através de normas rígidas, tornando-se necessário o apelo a figuras abertas como os “conceitos indetermina­dos” dotados de maleabilidade, de forma a moldarem-se à especificidade de cada caso concreto onde entra em linha de conta a “discricionariedade judicial. Nestes casos, escreve Karl Larenz, “é suficiente que o Juiz tenha esgotado todos os meios de concretização de que dispõe, mediados pela reflexão jurídica e que, nestes termos a solução se apresente como “plausível”. O Juiz denomina de plausível uma resolução quando pelo menos haja bons argumentos que apontem no sentido da sua correcção[3] (...)

            A prova por pre­sunção consiste precisamente "na dedução, na inferência do raciocínio lógico por meio do qual se parte de um facto certo provado ou conhecido e se chega a um facto desconhecido[4]". De entre as presunções distingue a Dou­trina as legais e as judiciais; estas últimas, que nos interessam particularmente nesta sede, fundam-se em regras práticas da experiência comum, nos conhecimentos da vida e estão vocacionadas, nomeadamente aos casos em que a prova directa é muito difícil de conseguir. Mas tal não significa que mesmo os contratos em análise não possam conter elementos que cotejados com outros e devidamente mediados pelo Juiz permitam chegar ao intuito subjacente aos negócios reali­zados como sejam o preço por que foram transaccionados os objectos dos mesmos; também para o alcance da motivação basilar dos negócios, releva a condição sócio-económica dos sujeitos nele intervenientes, a conjun­tura pessoal e económica coeva que atravessaram e o parentesco entre os interlocutores comerciais. A prova com recurso à presunção comporta três operações: em primeiro lugar, a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento, faz despoletar no raciocínio do julga­dor, uma regra da experiência ou da ciência que per­mite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento[5].

            No caso concreto o recurso às “regras da experiên­cia” culmina todo o percurso probatório e a bem dizer traduz-se num “juízo presuntivo” onde um conjunto de factos positivos e omissivos é mais que bastante para que possa, de harmonia com o senso comum e as realidades da experiência e da vida, permitir concluir por forma a optar pela resposta aos quesitos em análise que constituem o fecho da abóbada da construção tendente a subtrair o património dos RR. à satisfação dos direitos do credor. Desde que a convicção do julgador seja devidamente motivada é imprescindível o recurso à prova por presunções para aferir da veracidade de certos factos, nomeadamente em matérias como a que ora apreciamos cujos momentos essenciais não são palpáveis de imediato através da prova testemunhal, mas antes o resultado de uma mediação ponderada de quem julga com recurso às realidades da vida e às normas da experiência.

            Nada há pois a alterar à prova produzida em 1ª instância, mau grado a nossa fundamentação não seja necessariamente coincidente com a ali expendida.

                                                                       +

            2.2. O Direito.

            Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

           

            - Os requisitos da impugnação pauliana.

            - Em caso de procedência da acção poderão os efeitos da sentença afectar o património do casal ou quedarem-se apenas na meação do Réu marido?

                                                                       +

            2.2.1. Os requisitos da impugnação pauliana.

            Estatui o artº 610º do Código Civil que "os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do cré­dito e não tenham natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguin­tes:

            a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo poste­rior ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor.

            b) Resultar do acto a impossibilidade para o cre­dor de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade".

            São assim requisitos da impugnação pauliana,

            1) Que haja um prejuízo causado pelo acto impug­nado à garantia patrimonial; 2) Anterioridade do cré­dito em relação ao acto alienatório ou, caso o crédito seja posterior, ter sido o acto dolosa­mente realizado com o fim de impedir a satisfação do crédito pelo mesmo acto[6].

            Entendeu a sentença apelada que se verificavam os requisitos em causa pelo que julgou a acção procedente. Contra isso se insurgem os RR. referindo que a prova não se mostra feita; na sua óptica não se fez a prova da existência das alegadas dívidas com a má-fé dos recorrentes M…. e do R…. (traduzida esta no conhecimento da existência dessas alegadas dívidas (à data em que outorgaram a escritura) e da consciência de com esse acto prejudicarem a recorrida.

            A tese dos RR. baseava-se no erro da apreciação da prova e reapreciada a mesma por esta Relação, concluiu-se que as objecções dos RR. não tinham fundamento. E subsumindo os factos provados aos requisitos do instituto em causa temos que o crédito da Autora resulta do facto de ser portadora de uma letra sacada e aceite pelo primeiro Réu em 13/12/2001, no valor de € 10.375,00, com vencimento em 30/12/2001. Os actos lesivos da garantia patrimonial são, como vimos, posteriores, já que radicam na venda pelos 1ºs RR. à terceira Ré de dois prédios rústicos supra-identificados por escritura outorgada em 11/2/2002; na venda à terceira Ré através de escritura de 21/3/2003 da fracção autónoma designada pela letra "M" supra-identificada pelo montante de € 17.956,72; e finalmente por escritura outorgada em 10/2/2003 constata-se que os primeiros RR., marido e mulher declararam ceder a sua quota no valor nominal de € 2.500,00 cada, no capital social da terceira Ré à segunda Ré, declarando que o fizeram pelo seu valor nominal, tendo esta última declarado aceitar a cessão por intermédio da procuradora que a representou. As quotas em análise sido registadas a favor da segunda Ré, como se vê dos factos provados.

            Também não provaram os RR. que no seu património ficaram bens de valor em ordem a cobrir a dívida para com a Autora, sendo certo que era àqueles que cabia o respectivo ónus.

            Finalmente a prova que tais actos foram praticados dolosamente com o fim de subtrair tais bens, está patenteada nas respostas positivas dadas aos quesitos 11º a 17º.  

                                                                       +

            2.2.2. Em caso de procedência da acção poderão os efeitos da sentença afectar o património do casal ou quedarem-se apenas na meação do Réu marido?

            Referem os apelantes que atenta a forma como a acção se encontra esquematizada, a mesma terá que improceder total ou parcialmente. Na verdade a dívida que constitui o primeiro pressuposto da lide é pessoal do primeiro Réu, sendo este casado no regime da comunhão geral de bens com a primeira apelante. O primeiro Réu não agiu no exercício do comércio pois pessoalmente não teve qualquer relação comercial com a recorrida que justificasse o aceite da letra, o que resulta dos factos considerados provados sob os nsº 1, 3 e 7 da sentença recorrida. Não há assim que considerar a presunção prevista no nº 1 do artigo 1 691º alínea d) do Código Civil pelo que a primeira apelante mulher não é responsável por essa dívida.

            Colocam assim os apelantes o problema da alienação de bens em contitularidade no âmbito da impugnação pauliana. Referiremos à partida ser para nós ponto assente que o co-alienante se não é condevedor ou responsável pela fraude não poderá ser incomodado pelos actos do outro; entender o contrário seria pois viabilizar uma hipótese de responsabilidade objectiva que não é admitida à face da Lei nomeadamente o artigo 483º nº 2 do Código Civil - Diploma ao qual pertencerão os restantes normativos a citar sem menção de origem - ao estatuir que "Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei". No caso vertente somos reconduzidos para o campo da responsabilidade pelas dívidas do casal a que alude o artigo 1 691º já que é a isto que se reportam os apelantes nas conclusões da alegação de recurso quando pretendem excluir a Ré mulher dos efeitos da procedência da acção com salvaguarda da sua meação no conjunto dos bens do casal. Haverá igualmente que considerar a especial natureza que assume a figura da "comunhão conjugal" no seio do instituto que analisamos. É que é a natureza do acto que determinou a assunção da dívida que irá marcar o âmbito funcional da impugnação pauliana só extensível em relação a quem se verificam os respectivos pressupostos; assim sendo, na comunhão conjugal, se aqueles se verificam unicamente em relação a um dos cônjuges, a impugnação terá que proceder apenas em relação à res

pectiva meação[7]. Tudo está em saber ao fim e ao cabo se os factos provados sustentam a comunicabilidade da dívida em causa. Por outras palavras: ao subscrever na qualidade de aceitante a letra junta a fls. como Doc. 1, praticou o Réu António um acto que responsabilizou o seu cônjuge, a co-Ré C…..?

            Respondemos pela positiva. Na verdade vem dado como provado que o Réu bem como o outro co-obrigado cambiário, avalista, H…., eram sócios gestores da Sociedade ….. Lda., sendo certo que o aludido título resultou de uma transacção comercial havida por aquela com a Autora. Nesta conformidade é na qualidade de gerente comercial que a dívida foi contraída em nome da sociedade. E sendo os RR. casados no regime da comunhão geral de bens, os proventos resultantes da actividade comercial da sociedade (que terá que ser sempre gerida por alguém que a represente) traduzem-se em benefício também do casal; e as quotas são comuns (os RR. são casados no regime da comunhão geral de bens) pelo que a Ré mulher é igualmente responsável pela dívida à Autora. Aliás a Ré foi também co-alienante dos bens do casal sendo certo que é pelas forças desse património que irá processar-se ulteriormente a execução.

            Nesta conformidade a apelação terá que improceder.

            Poderá então concluir-se o seguinte:

            1) É incorrecto sustentar-se que a prova de determinados factos terá que ser feita pela parte que os alegou esteja ou não onerada com o respectivo ónus.

            2) Vigora neste particular o "princípio da aquisição processual" (consagrado no artigo 515º do Código de Processo Civil) postulando que "os materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo e são atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária.

            3) A produção da prova em sede de impugnação pauliana recorre frequentemente a conceitos indeterminados e às presunções hominis com vista a perscrutar em cada caso intenções manifestadas através de actos significantes fundadas na especificidade do caso concreto, campo de eleição para a discricionariedade judicial.

            4) São requisitos da impugnação pauliana,

            a) Que haja um prejuízo causado pelo acto impug­nado à garantia patrimonial; b) Anterioridade do cré­dito ou, caso o crédito seja posterior, ter sido o acto dolosa­mente realizado com o fim de impedir a satisfação do crédito pelo mesmo acto.

            5) Compete ao Autor fazer a prova dos aludidos requisitos que são os factos constitutivos do seu direito. Por seu turno recai sobre o Réu o ónus de provar que no seu património ficaram bens de valor em ordem a cobrir a dívida para com a Autor.

            6) Estando em causa numa hipótese de impugnação pauliana a alienação por um dos cônjuges de bens em contitularidade o co-alienante se não é condevedor ou responsável pela fraude, não poderá ser incomodado pelos actos do outro; entender o contrário seria pois viabilizar uma hipótese de responsabilidade objectiva que não é admitida à face da Lei nomeadamente o artigo 483º nº 2 do Código Civil.

            7) Provou-se todavia in casu que o Réu bem como o outro co-obrigado cambiário-avalista, H…., eram sócios gestores de uma sociedade comercial …. Lda.; também a letra que titula a dívida resultou de uma transacção comercial havida por aquela com a Autora. Assim é na qualidade de gerente comercial que a dívida foi contraída em nome da sociedade. M sendo os RR. casados no regime da comunhão geral de bens, os proventos resultantes da actividade comercial da sociedade (que terá que ser sempre gerida por alguém que a represente) traduzem-se em benefício também do casal; e as quotas são comuns, pelo que a Ré mulher é igualmente responsável pela dívida à Autora. Aliás a Ré foi também co-alienante dos bens do casal sendo certo que é pelas forças desse património que irá processar-se ulteriormente a execução.

                                                              *

            3. DECISÃO.

            Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando assim a sentença apelada.

            Custas pelos apelantes.


     [1] Cfr. Manuel de Andrade "Noções Elementares de Processo Civil" 1976, Coimbra Editora, pags. 383.
     [2] Cfr. Karl Engisch “Introdução ao Pensamento Jurídico Gulbenkian 2ª Edição pags. 117 ss.
     [3] A. citado "Metodologia da Ciência do Direito", Gulbenkian 3ª Edição pags. 414 ss.
     [4] Cfr. Antunes Varela e Outros "Manual de Processo Civil", Almedina, Coimbra 1ª Edição, pags. 485 e Manuel de Andrade "Noções Elementares de Processo Civil" Coimbra Editora 1976, pags. 214.
     [5] Cfr. Ac. desta Relação de 9-2-2000 (R. 78/2000) in Col. de Jur., 2000, I, 51.  
     [6] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela "Código Civil Anotado" Coimbra Editora, 4ª Edição pags. 625 ss. Antunes Varela "Das Obrigações em Geral" Almedina, Coimbra, 4ª Edição pags. 434 ss e Romano Martinez e Fuzeta da Ponte "Garantias de Cumprimento" 3ª Edição pags. 15 ss. João Cura Mariano "Impugnação Pauliana", 2004, Almedina, Coimbra, pags. 147 ss.
     [7] Cfr. Pedro Romano Martínez e Pedro Fuzeta da Ponte "Garantias de Cumprimento", Almedina, 2006, 5ª Edição, pags. 34 ss; Anotação da Drª Paula Costa e Silva ao Ac. da Rel. de Coimbra de 11-2-2003 in Cadernos de Direito Privado, 7, 46;